Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 22 de março de 2011

A ignorância havia humanizado Deus

“Os grandes factos da moderna Ciência têm, por conseguinte, transformado a idéia de Deus, apresentando-o, ao demais, sob um aspecto bem diverso do encarado até agora. Esse aspecto é, ao mesmo tempo, mais grandioso e mais difícil de apreender.
E, contudo, nós podemos ao menos conceber, senão esboçar, o conjunto dessa metamorfose progressiva.
A ignorância havia humanizado Deus e a Ciência diviniza-o – se é que o pleonasmo não escandaliza os senhores gramáticos.
Outrora, Deus foi homem; hoje, Deus é Deus. A fé do carvoeiro, ainda tão gabada, não é mais a verdadeira fé. O credo quia absurdum é absurdo duplicado. O Ser supremo, criado à imagem do homem, hoje vê apagar-se pouco a pouco essa imagem, substituída por uma realidade sem forma. Pois a forma, a definição, o tempo, a duração, a medida, o grau de potência ou actividade, a descrição, o conhecimento, não mais se aplicam a Deus e mal começam a ser percebidos. O próprio nome oculta uma idéia incompleta e preciso fora falar de Deus sem nomeá-lo. Outrora, Júpiter empunhava o raio, Apolo conduzia o Sol, Neptuno senhoreava os mares... Na idolatria dos budistas, Deus ressuscitava um morto sobre o túmulo de um santo, fazia falar um mudo, ouvir um surdo, crescer um carvalho numa noite, emergir da água um afogado... Desvendava a um estático as zonas do terceiro céu, imunizava do fogo, são e salvo, um santo mártir, transportava um pregador, num abrir e fechar de olhos, a cem léguas de distância, e derrogava, a cada momento, as suas próprias, eternas leis... Ainda hoje, lá no Tibet longínquo, adoram Maitreya. A mão deste deus refreia as ondas enfurecidas, abençoa um exército e amaldiçoa o rival; dirige as chuvas em rogativas de procissões e, qual hábil jardineiro, rega aqui, ensombra ali, poda acolá, ajusta, enxerta, combina, seleciona e mantém um cadastro heráldico de nomes e datas . A maioria dos crentes em Deus o conceituam como um super-homem, alhures assentado acima das nossas cabeças, presidindo os nossos actos. Dotado de excelente vista e não inferior ouvido, mantém as rédeas do mundo e, em caso de necessidade, chama um anjo serviçal e o envia a consertar qualquer peça desarranjada do seu mecanismo. A darmos crédito às tradições do Damapadam e às inscrições d’Aschoka, o Buda tem um filho – Bodisatva – mediador assentado à sua direita, além de uma terceira pessoa – Buda-Manouschi – “a realização de Deus pelo homem”. Todos eles vivem nas alturas do Nirvana eterno, rodeados de espíritos, tronos, apóstolos, mártires, pontífices, confessores, dominações, potências, magos do culto precursor, videntes da filosofia sakhya, que foram purificados, etc.; tudo isso eternamente esquematizado e graduado, segundo os méritos de uma vida efêmera.”

FLAMMARION, CAMILLE in “Deus na Natureza” Tomo V - DEUS, (4/6)

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