Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

| o grande enigma ~


Objecções e contradições

Sendo o problema divino o mais vasto, o mais profundo dos problemas, pois que abrange todos os outros, embalou teorias, sistemas sem-número, que correspondem a outros tantos graus de compreensão humana, a outros tantos estádios do pensamento na sua marcha para o absoluto.

Nesse domínio as contradições pululam. Cada religião explica Deus à sua maneira; cada teoria o descreve a seu modo. E de tudo isso resulta uma confusão, um caos inextricável. Quantas formas variadas da ideia de Deus, desde o fetiche do negro até ao Parabrahm dos hindus, até ao Acto puro de São Tomás! Dessa confusão os ateus têm tirado argumentos para negar a existência de Deus; os positivistas, para declará-lo “incognoscível”. Como remediar tal desordem? Como escapar a essas contradições? Da maneira mais simples. Basta nos elevarmos acima das teorias e dos sistemas, bastante alto, para ligá-las no seu conjunto e pelo que têm de comum. Basta elevarmo-nos até à grande Causa, na qual tudo se resume e tudo se explica.

estreiteza de vistas desnaturou, comprometeu a ideia de Deus. Suprimamos as barreiras, as peias, sistemas fechados, que se contradizem, se excluem e se combatem, substituindo-os pelas vistas largas das concepções superiores. A certa altura, a Ciência, a Filosofia e a Religião, até então divididas, opostas, hostis, sob as suas formas inferiores, se unem e se fundem numa potente síntese, que é a do moderno Espiritualismo. Assim se cumpre a lei da evolução das ideias. Depois da tese, temos a antítese. Tocamos na síntese, que resumirá todas as formas e crenças, e será a glória do vigésimo século tê-las estabelecido e formulado.

Examinemos rapidamente as objecções mais comuns. A mais frequente é a que consiste em dizer: Se Deus existe, se Ele é, como pretendeis, Bondade, Justiça, Amor, por quê o mal e o sofrimento reinam feitos senhores em torno dos seres? Deus é bom, e milhões sofrem na alma e na carne. Tudo é dor e aflição na vida das multidões. A iniquidade é soberana no nosso globo e a ardente luta pela existência faz, todos os dias, vítimas sem-número.

Conforme mostramos noutra parte, (*) o sofrimento é um meio poderoso de educação para as Almas, pois desenvolve a sensibilidade, que já é, por si mesma, um acréscimo de vida. Por vezes é uma forma de justiça, um correctivo aos nossos actos anteriores e longínquos.

O mal é a consequência da imperfeição humana. Se Deus tivesse feito só seres perfeitos, o mal não existiria. Mas então o Universo seria fixo, imobilizado na sua monótona perfeição. A magnífica ascensão das Almas, através do Infinito, seria suprimida de chofre. Nada mais a conquistar; nada mais a desejar! Ora, que seria uma perfeição sem méritos, sem esforços para obtê-la? Teria algum valor aos nossos olhos? Em resumo, o mal é o Menos evoluindo para o Mais, o Inferior para o Superior, a Alma para Deus.

Deus nos fez livres; daí o mal, a fase transitória da nossa ascensão. A liberdade é a condição necessária da variante na unidade universal. Sem isso, a monotonia teria feito um Universo insuportável. Deus nos deu a liberdade com essa impulsão de vida inicial, pela qual o ser evoluirá pelo seu próprio esforço, através dos espaços e dos tempos sem limites, sobre a escala das vidas sucessivas, até à superfície dos mundos que povoam a imensidade.

Emanamos de Deus, tal qual os nossos pensamentos emanam do nosso Espírito, sem fraccioná-lo, sem diminuí-lo. Livres e responsáveis, nos tornamos senhores e artífices dos nossos destinos. Mas, para desenvolver os germens e as forças que estão em nós, a luta é necessária, a luta contra a matéria, contra as paixões, contra tudo a que chamamos de mal.

Essa luta é dolorosa e os choques são numerosos. No entanto, pouco a pouco, a experiência se adquire a vontade se tempera, o bem se desprende do mal. Chega a hora em que a Alma triunfa das influências inferiores, se resgata e se eleva pela expiação e purificação até à vida bem-aventurada. Então, compreende, admira a sabedoria e a providência de Deus, que, fazendo dela o árbitro dos seus próprios destinos, dispôs todas as coisas de maneira a destas tirar a maior soma de felicidade final para cada ser.

A condição actual de todas as Almas é o resultado justo de suas existências passadas. Da mesma forma, numa existência presente, a nossa Alma tece dia-a-dia, os actos livres, a sorte que teremos no futuro.

Outras objecções se apresentam. Há uma que não podemos desprezar, porque constitui uma das questões capitais da Filosofia. Pergunta-se-nos:

Será Deus um ser pessoal ou é o ser universal, infinito?

Não pode ser ambos, porque – dizem – essas concepções são diferentes e se excluem mutuamente. Daí os dois grandes sistemas sobre Deus; o deísmo e o panteísmo. Na realidade, tal contribuição é apenas um erro de óptica do espírito humano, que não sabe compreender, nem a personalidade, nem o infinito.

A personalidade verdadeira é o eu, a inteligência, a vontade, a consciência. Nada impede concebê-la sem limites, isto é, infinita. Sendo Deus a perfeição, não pode ser limitado. Assim se conciliam duas noções, na aparência contraditória.

Outra coisa: Deus é incognoscível, como dizem os positivistas e, entre eles, Berthelot? É o abismo dos gnósticos, a Ísis velada dos templos do Egipto, o terrível e misterioso Santo dos Santos dos Hebreus, ou pode ser conhecido?

A resposta é fácil: Deus é incognoscível na sua essência, nas suas profundezas íntimas; mas revela-se em toda a sua obra, no grande livro aberto aos nossos olhos e no fundo de nós mesmos.

Insiste-se, ainda disseste, que o fim essencial da vida, de todas as nossas vidas, era entrar, cada vez mais, na comunhão universal, para melhor amar e melhor servir a Deus nos seus desígnios. Não podendo Deus ser conhecido na sua plenitude, como se poderia amar e servir o desconhecido?

Sem dúvida, replicaremos nós, não podemos conhecer Deus na sua essência, mas nós conhecemo-lo pelas suas leis admiráveis, pelo plano que traçou todas as existências e no qual brilham a sua sabedoria e a sua justiça. Para amar a Deus não é necessário separá-lo da sua obra; é preciso vê-lo na sua universalidade, na onda de vida e amor que derrama sobre todas as coisas. Deus não é desconhecido: é somente invisível.

A alma, o pensamento, o bem e a beleza moral são igualmente invisíveis. Entretanto, não devemos amá-los? E amá-los não será ainda amar a Deus – a sua origem e, ao mesmo tempo, o pensamento supremo, a beleza perfeita, o bem absoluto?

Não compreendemos, na sua essência, nenhum desses princípios; entretanto, sabemos que existem e que não podemos escapar à sua influência, dispensando-nos de lhes prestar culto. Se amarmos somente o que conhecemos e compreendemos com plenitude, o que amaríamos, afinal, limitados qual somos actualmente, nos marcos estreitos de nossa compreensão terrestre?

Aqueles que reclamam absolutamente uma definição poder-se-ia dizer que Deus é o Espírito puro, o Pensamento puro. Mas a ideia pura, na sua essência, não pode ser formulada sem, por isso mesmo, ser diminuída, alterada. Toda a fórmula é uma prisão. Encerrada no cárcere da palavra, o pensamento perde a sua irradiação, o seu brilho, quando não perde o seu sentido verdadeiro, completo. Empobrecido, deformado, torna-se assim sujeito à crítica e vê desvanecer-se o que nele havia de mais probante. Na vida do Espaço, o pensamento é uma imagem brilhante.

Comparado ao pensamento expresso por palavras humanas, é o que seria uma jovem resplendente de vida e de beleza, comparada à mesma, porém deitada num caixão, sob a forma rígida e gelada da morte.

Entretanto, apesar da nossa impotência em exprimi-la na sua extensão, a ideia de Deus impõe-se, dissemos, por ser indispensável à nossa vida. Acabamos de ver que o Bem, o Verdadeiro, o Belo, nos escapam na sua essência, porque são de natureza divina. A nossa própria inteligência é para nós incompreensível, precisamente porque encerra uma partícula divina que a dota de faculdades augustas.

Só penetrando o sistema da alma humana chegaremos um dia a resolver o enigma do Ser infinito. Deus está na criatura, e a criatura Nele. Deus é o grande foco de vida e de amor do qual cada Alma é uma centelha, ou antes, um foco ainda obscuro e velado que contém, em estado embrionário, todas as potências; a tal ponto que, se soubéssemos tudo quanto em nós existe, e as grandiosas obras que podemos realizar, transformaríamos o mundo: elevar-nos-íamos, de um salto, na senda imensa do progresso.

Para nos conhecermos, é mister, pois, estudar Deus, porque tudo que está em Deus está nos seres, pelo menos em estado de gérmen. Deus é o Espírito Universal que se exprime e se manifesta na Natureza, da qual o homem é a expressão mais alta.

Todos os homens devem chegar a essa compreensão de sua natureza superior; na ignorância dessa natureza e dos recursos que em nós dormitam é que está a causa de todas as provações, dos nossos desfalecimentos e das nossas quedas.

Eis por que a todos diremos: Elevemo-nos acima das querelas de escola, acima das discussões e das polémicas vãs. Elevemo-nos bastante alto para compreender que somos outra coisa mais do que uma roda na máquina cega do mundo: somos os filhos de Deus e, por isso, ligados estreitamente a Ele e à sua criação, destinados a um fim imenso, ao lado do qual tudo mais se torna secundário; esse fim é a entrada na santa harmonia dos seres e das coisas, que não se realizam senão em Deus e por Deus!

Elevemo-nos até lá, e sentiremos a potência que está em nós; compreenderemos o papel que somos solicitados a desempenhar na obra do progresso eterno. Lembremo-nos de que somos Espíritos imortais. As coisas da Terra são um degrau, um meio de educação, de transformação. Podemos perder neste mundo todos os bens terrestres. Que importa? O indeclinável, antes de tudo, é engrandecer, arrancar da sua grosseira ganga esse Espírito divino, esse deus interior que é, em todo o homem, a origem da sua grandeza, da sua felicidade no porvir. Eis o fim supremo da vida!

Concluamos: Deus é a grande Alma do Universo, o foco de onde emana toda a vida, toda a luz moral. Não podeis passar sem Deus, de igual modo que a Terra e todos os seres que vivem na sua superfície não podem dispensar o seu foco solar: Se o Sol se extinguir, de repente, que acontecerá? O nosso planeta rolará no vazio dos espaços, levando nessa correria a Humanidade deitada para sempre no seu sepulcro de gelo. Todas as coisas morrerão, o globo será uma necrópole imensa. Triste silêncio reinará nas grandes cidades adormecidas no seu último sono.

Pois bem! Deus é o Sol das Almas! Extingui a ideia de Deus, e imediatamente a morte moral se estenderá sobre o mundo. Precisamente porque a ideia de Deus está falseada, desnaturada por uns, desconhecida por muitos outros, é que a Humanidade actual erra no meio das tempestades, sem piloto, sem bússola, sem guia, presa da desordem, entregue a todas as aflições.

Levantar, engrandecer a ideia de Deus, desembaraçá-la das escórias em que as religiões e os sistemas a têm envolvido, tal é a missão do Espiritualismo moderno!

Se tantos homens são ainda incapazes de ver e compreender a harmonia suprema das leis, dos seres e das coisas, é que a Alma deles não entrou ainda, pelo senso íntimo, em comunicação com Deus, isto é, com os seus pensamentos divinos, que esclarecem o Universo e que são a luz imperecível do mundo.

Indagamos de nós mesmos, ao terminar, se conseguimos dar um resumo da ideia de Deus. A palavra humana é muito fraca, muito árida e extremamente fria para tratar de semelhante assunto. Só a própria harmonia, a grande sinfonia das esferas e a voz do Infinito poderiam esboçar e exprimir a lei universal.

Há coisas que, de tão profundas, só se sentem, não se descrevem. Deus, somente no seu amor sem limites, pode revelar-nos o seu sentido oculto. E é o que fará, se na nossa fé, na nossa ascensão para a Verdade, soubermos apresentar, Àquele que sonda os recônditos mais misteriosos das consciências, uma alma capaz de compreendê-lo, um coração digno de amá-lo.

/...
(*) Vide Depois da Morte, segunda parte; O Problema do Ser, do Destino e da Dor, caps. XVIII e XIX.


Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo / IX – Objecções e contradições (fim da primeira parte), 20º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)

domingo, 17 de dezembro de 2017

Victor Hugo e o invisível ~


Perguntas sobre o próprio eu

  A filosofia de todas as idades pergunta pela existência do Eu individual. Fizeram-se perguntas, certamente muitas técnicas, sobre este Eu que nos conforma como um Ser existente, perguntas que não têm chegado à carne viva do homem: existir nos braços da incerteza e sobre a obscuridade do nada.

  Eu sou um eu, tem-se dito; mas este não foi nunca real e objectivo, antes um eu académico, envernizado por complicados tecnicismos psicológicos, metafísicos e ontológicos. Um eu que ao sair do âmbito oficial se esfuma como realidade existencial, surgindo dela um Ser sem nenhuma relação com a realidade humana. Quer dizer, é um eu desvinculado do dramatismo da vida diária em cujas esferas se prova a veracidade espiritual do Ser.

  Falou-se de um eu superficial, baseado no conceito fisicalista da vida, uma vez que para a filosofia oficial o homem não possui profundidade espiritual nem existencial, esta o considera uma ''massa fisiológica" e um mecanismo sem mundo interior. Mas o pensamento tem apetências que se tornam imperativos em todos os níveis ideológicos. Estas apetências são causadas pela sede de verdade que existe no eu e se sobrepõem ao físico e corporal, porque nisso está a vida do homem e dos seus processos interiores e exteriores.

  Que é o eu? pergunta a filosofia, ao que se pode acrescentar: quem sou eu? Nestas perguntas se concentra a essência ontológica do Ser e do mundo. São duas perguntas que persistem nas investigações filosóficas. O que e o quem constituem o saber ontológico que perdura com muito valor num momento do homem em que tudo muda e se confunde.

  Afinal, existe o eu para "algo" ou é o resultado de uma cega casualidade? O eu é uma entidade com dimensões ainda desconhecidas ou só existe para entrar no nada?

  Dir-se-á que estas inquietudes foram experimentadas pela alma humana em todos os tempos do planeta. Mas aqui, pela sua urgência, pode peguntar-se: quem deu sobre elas uma resposta capaz de satisfazer a alma da humanidade? Quem demonstrou por bases experimentais que o eu é um Ser profundo com dimensões desconhecidas? Quem demonstrou que no eu físico pode estar o eu metafísico?

  Foi esta última sempre aceite teoricamente, o que nada representa perante o mundo material da inteligênciaAgora trata-se de uma demonstração material, da mesma carne do homem, de uma metafísica existencial e viva do eu. Pois bem, aspirar a esta demonstração não é estar no campo de uma "má filosofia", mas buscar o homem e a vida como realidades espirituais que se sobreponham a todos os conceitos niilistas do Ser.

  O eu, porém, sempre sedento de infinito, não se detém à direita nem à esquerda da filosofia. O seu Ser profundo se sobrepõe ao conceito de "massa fisiológica" para exprimir os seus brados existenciais. A consciência moderna não se aquietará perante suposições teóricas; se o subjectivo não se transforma em realidade prática e objectiva, o eu prosseguirá reclamando um saber que esteja de acordo com as suas profundidades ontológicasSeguirá reclamando "direitos espirituais", posto que intui que existe nele um Ser que luta por instalar-se como uma realidade no mundo. É como um novo Ser que é vida com disposições espirituais bem diferentes das do passado, ansioso de encarnar no histórico e conduzi-lo mediante um novo processo tanto material como espiritual.


A pré-existência como base existencial do eu

  Se o eu existe, é para a vida ou para a morte? Essa ideia de regresso que se agita nas profundezas do eu pode ser tomada como uma prova de sua perdurabilidade espiritual? Se o eu pressente que o seu nascimento é um regresso, isso nos leva a supor que possui um pré-existir e não apenas um existir presente. Intui que regressa porque possui, de facto, um pré-existir ou um tempo anterior ao actual. Sente que regressa porque já esteve em alguma parte, o que assinala que o seu presente existir se baseia em um pré-existir.

  O eu existe hoje porque existiu antes e existirá depois porque existe agora. E por esse encadeamento de pré-existências, existências e super-existências o eu se afirma sobre a base de um novo existir consciente e definitivo. Deste modo, o homem reconhecerá um eu existencial responsável pelo seu crescimento como personalidade espiritual, até alcançar o sentido palingenésico de seu próprio Ser.

  eu ao possuir uma pré-existência poderá projectar-se sobre o passado, o presente e o futuro até perceber o enlace do humano e do divino. Sem pré-existência, o eu não passa de um Ser limitado às relatividades do presente. Existe sim uma conexão com o passado e o futuro. A história possui para ele apenas uma face, que consegue perceber com o seu sentido de presente. Mas com o tempo pré-existente, o eu é um Ser comprometido com o histórico em razão de sua participação no tempo passado que, para a filosofia universitária, carece de vinculação com o eu do tempo presente. O eu está comprometido com o histórico por causa do seu estar no pré-histórico, como o estará, por sua permanência no histórico actual, com o supra-histórico e o futuro histórico.

  A pré-existência do eu é uma prolongação do Ser desde o antigo e, uma projecção para o novo. eu já foi ontem e será novamente amanhã por ser hoje. Como se vê, a ideia da pré-existência determina no eu um enlace dialéctico que esclarece o processo histórico e nos dá essa historiosofia cristã de que falou Nicolas Berdiaev.

  A ideia de regresso experimentada pelo eu é o resultado de sua natureza pré-existenteeu intui que volta de algum lugar porque o seu Ser provém de um passado que, à medida em que se actualiza na sua memória, recorda o seu pré-existir constituído por uma série de extractos existenciais. Do que se infere que o eu é uma sucessão de seres que passaram através de um tempo infinito. Esta sucessão de seres que constituem o eu actual é o que determina a segurança de sua pré-existência e dá fundamento à sua natureza imortal. O eu, em suma, é infinito por causa de seu pré-existir, já que sem ele não seria mais que uma máquina sem capacidade de recordar ou de intuir um regresso mediante a penetração dos seus extractos pré-existenciais.

  A imortalidade do eu tem a sua base na sua própria pré-existênciaNenhum eu pode ser e existir sem que nele exista uma acumulação de idades e de tempos, pois todo o eu é uma formação sucessiva de outros eus cujas imagens estão gravadas na sua memória histórica.Ser é uma teoria de eus que não se decompôs através do processo histórico em razão de uma acumulação de experiências existenciais.

  O eu perdura através do tempo histórico e avança para o seu próprio estado absoluto, ou seja, para a sua perdurabilidade imortal por causa de seu Ser pré-existencialO passado nele traz a intuição, que se traduz pela lembrança de "algo" que regressa para a sustentação do seu Ser imortal. Em suma, a pré-existência do eu é que assegura ao Ser "salvar-se'' do nada, desse nada que destrói tanto o passado como o presente e o futuro, simultaneamente.


O nascimento como um regresso do eu

  O eu existe não obstante as negações que pretendem destruí-lo. Há nele um Ser que existe para algo transcendental, como se penetrasse na realidade material para sobrevir um "existente corporal". Mas o eu não é um existente corporal; a sua existência, quando está no mais profundo de si mesmo, vislumbra ou pressente as novas representações existenciais.

  A isso se poderia objectar o seguinte: o eu nasce como todo o humano, por conseguinte está exposto ao finito e ao relativo; é o resultado de um nascimento fisiológico e é, por isso mesmo, um factor psíquico determinado por combinações fisioquímicas, o que o situaria num plano puramente material. Porque se tem acreditado sempre que tudo o que nasce está sujeito a deteriorar-se, à categoria das coisas finitas. Sem dúvida, a sua afirmação como Ser existencial tem numerosos recursos a seu favor; contudo, o mais decisivo é essa percepção em si mesmo de uma presença anterior no seu Ser actual. Essa presença faz pressentir ao eu que o seu nascimento não é um fenómeno fisiológico, mas um regresso, um caminho pelo qual vem avançando através de um tempo infinito.

  De facto, o eu se sente como um-ser-que-nas-ce, mas sabe que regressa ou que vem de alguma parte. O seu nascimento não anula a sua sede de imensidade; pelo contrário, sem deter-se frente ao que nele é do ponto de vista corporal, continua sentindo-se no seu Ser como ''algo" que regressa, que é alguém que se está a formar através de um mundo que dura pelo espaço e o tempo.

  O que se agita no eu profundo está a comover as bases do saber materialista. Pois, enquanto do fundo do eu surgirem ideias e novas apetências gnosiológicas, o saber resultará sempre inseguro, já que os seus dogmas só se converterão em realidades experimentais se se consegue demonstrar que o eu não é mais que uma "massa fisiológica" ou uma consequência psíquica segregada pelos lóbulos cerebrais.

  Nas profundidades do eu está o novo saber da existência do Espírito. E isto não é uma simples expressão, posto que existe uma dialéctica do eu pela qual a sua natureza e o seu Ser se compreendem como o regresso de alguém que quer fazer-se presente no cenário do mundo. Essa dialéctica do eu é que determinará uma nova realidade nos campos do conhecimento, ou seja, uma realidade mutante e progressiva cujas raízes se encontram nos tempos pretéritos do Ser. Será um eu que se manifestará no temporal para dizer: eu fui, logo sou e serei eternamente.

/…


Humberto Mariotti (i)Victor Hugo Espírita, Adendo | perguntas sobre o próprio eu, a pré-existência como base existencial do eu, o nascimento como um regresso do eu, 17º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

domingo, 3 de dezembro de 2017

~~~Párias em Redenção~~~


SUICÍDIO ABOMINÁVEL
(II)

  Carlo afastou-se lépido, rindo, cínico, e desceu à cavalariça, partindo em seguida.

  O dia húmido e sombrio estava carregado. Caíam bátegas e a trovoada ameaçadora fechava o tempo sobre a região, com relâmpagos e trovões.

  Carlo, resguardado em pesado capuz, esporeou o animal e enfrentou a tormenta. O vento e a chuva fustigavam-lhe o rosto. Desejava, porém, atingir a estrada real, a Via Cassia, para alcançar a próxima hospedaria, evadindo-se da herdade, quanto antes.

  Coriscos rasgavam a noite que se fez no dia e o cavaleiro, a galope, surge e desaparece na alameda que desemboca na estrada de acesso à via para Florença. Raios singram em muitas direcções, acompanhados de trovões quais gargalhadas de Fúrias. O intrépido viajante sonha com as ambições. Repentinamente, um raio atinge um imponente carvalho, que arde em célere clarão e se rasga ao meio. O animal relincha e, assustando-se, atira longe o cavalgador, que tomba, recebendo em cheio o tronco decepado pela faísca eléctrica. Um grito de horror escapa-lhe dos lábios e o imenso silêncio continua, somente interrompido pelo troar da tempestade violenta.

  No solar, estremecendo e gritando, aparvalhado pela visão fantástica da tormenta que lhe produz recordações desesperantes, Girólamo se enfurece. Os servos se apressam em socorrê-lo e Beatriz ordena que seja atado com cordas.

  De coração despedaçado e sentindo o horror da situação delicada, sufoca as lágrimas e as angústias, pensando no filho, e, acompanhada pela velha aia, entrega-se à desatrelada litania da oração.

  O vento ulula fora do solar estremece aos choques das forças desgovernadas da Natureza. As sombras invadem tudo, clareadas apenas nos espaços rápidos dos relâmpagos. Olhos fora das órbitas, o obsidiado, em subjugação total, luta nas amarras contra as entidades que agora se consubstanciam diante dele, em visões incessantes, alucinadoras. Tomando o aspecto tradicional das concepções satânicas, para dominá-lo mais adiante pelo pavor, o duque desencarnado aparece-lhe armado de tridente e investe, cruel. O demente grita, esbraveja, estorce-se nas grimpas afiadas, que parecem dilacerá-lo. A demência o aniquila e a voz soturna do vingador esbraveja no pandemónio mental em que se contorce o atormentado:

  – Confessa os crimes, antes que a morte te arrebate, usurpador de vidas e de bens. Pede perdão a Deus, antes que seja tarde demais!

  – Beatriz, Beatriz, por que me abandonaste? Beatriz, socorre-me! O meu tio aqui está, matando-me. Beatriz, Beatriz, salva-me…

  A senhora, ajoelhada com a ama, crava os olhos na imagem do Crucificado, presa à parede, e suplica a protecção divina:

  – Oh! Deus meu! Por que sofro tanto, Senhor? Piedade para ele, para todos nós! – desespera-se a Condessa…

  – Os demónios me despedaçam, Beatriz, – baldoa o enfermo, entre as cordas, atado ao leito. – Oh! desgraça, mil vezes desgraçado…

  – Coragem, Girólamo! – replica a esposa. – A tormenta logo passará. Mandarei alguém a Siena buscar socorro. Coragem!

  – Será tarde, muito tarde, muito tarde… (Exaure-se numa voz que se apaga, enrouquecida pela dor e pelo cansaço.)

  A noite avança e, conquanto a chuva amaine, o tempo continua carrancudo, pesado.

  O silêncio no solar traduz o torpor que de todos se apossa.

  O paciente, desfalecido, mergulha nas sombras desalentadoras do mundo espiritual inferior. Defronta-se com o tio, que o arrasta em espírito, aturdido, e fá-lo experimentar nefanda perseguição, implacável, que parece não terminar nunca… A sugestão perniciosa da sua voz, da sua mente corroída pelo monoideísmo do desforço, esmaga as últimas resistências e apaga os derradeiros lampejos de lucidez no jovem senense…

  O novo dia começa em brumas escuras, que cobrem a região.

  Pela manhã, os servos encontram o animal que conduzia Carlo, no pátio de entrada da herdade… Dado o alarme, saem-lhe em busca e a menos de um quilómetro do portão central deparam-no morto, debaixo da árvore tombada. Conduzem o cadáver ao solar e um mensageiro ruma a Siena, para informar da tragédia o Conde Castaldi, rogando-lhe a presença.

  O sepultamento é feito entre choros das pessoas da plebe, que ali se agasalham, amedrontadas. Tem-se a impressão de que as tragédias do passado recomeçam no burgo malsinado.

  Libertado das cordas que o maltratam, o Conde Girólamo tem o olhar distante, vazio e não participa de nada que acontece à sua volta.

  Logo após o enterro, quando os lacaios vêm assistir o amo, na noite que chega e a borrasca que anuncia repetir-se, ele se levanta e, apontando a ampla janela rasgada na direcção do céu pardo-cinzento, estremece, faz-se marmóreo e grita:

  – Tirem Carlo daqui… O desgraçado está em sangue, arrastado pelo meu tio. Socorro!...

  Os servos seguram-no e o conduzem ao leito. Ele debate-se e se acalma no sono ofegante da demência.

  Quando os Condes chegam, atendendo ao aviso da filha e ao seu pedido de socorro, a casa tem aspecto fúnebre.

  – Vimos dispostos a levar-te para Siena, custe-nos o custar. Levaremos também o nosso doente, que perdeu o uso da razão. Lá, talvez…

  Depois de inteirados por Beatriz dos acontecimentos da véspera, e cansados da viagem, vencidos todos pelas emoções sucessivas, recolhem-se cedo, para o necessário refazimento.

  A noite avança e a borrasca desaba.

  Girólamo desperta e, desvairado, e ouve Assunta, que o chama:

  – Vem, perdoei-te. Poderás fugir. Vem comigo. Vamos à recâmara…

  Teleguiado pela mente da comparsa desditosa, ergue-se do leito e quando se dispõe a segui-la escuta-a dizer:

  – A corda… Traze a corda. É necessário.

  O subjugado, olhos além das órbitas, cambaleante, no silêncio da noite clareada pelos relâmpagos e de quando em quando sacudida pelo ribombar dos trovões, adentra-se pela peça da ala esquerda. Ali estão: Lúcia e as crianças (*) a debaterem-se inermes sob o travesseiro de plumas, vigorosamente aplicado sobre cada uma. Ele ri, blasfema em surdina e Assunta impõe:

  – Faze um laço corrediço. Fugiremos daqui. Ninguém nos alcançará. Unir-nos-emos. Vem, apressa-te!

  Com as mãos nervosas, ele ata a ponta da corda em nó corrediço e lança-a por cima da trave de carvalho, na peça em sombra.

  – Outro nó, Girólamio. Traze a arca, a de cânfora, para mais perto… Sim, essa traze…

  Automaticamente, o jugulado obedece. Frio cortante o vence. As mãos estão geladas e o suor escorre-lhe abundante.

  – Sobe na arca; coloca a corda. Vem! Vem, eu te ordeno; vem!

  – Sim, obedeço, sim…

  – Salta! Arroja o corpo para fora! Agora!

  – Ai… iii… uughug…

  O grito surdo não foi ouvido.

  Girólamo suicidara-se.

  Num clarão mais forte do relâmpago, quando os lacaios acordaram assustados e não encontraram o amo, deram o alarme. Acenderam-se tocheiros e velas e saíram em busca. O alvoroço tomou conta da casa.

  – Na recâmara da ala esquerda – suplicou Beatriz – , pelo amor de Deus…

  Os servos e os Condes Castaldi trouxeram o corpo do inditoso cavaliere para a alcova e logo após desceram-no para a câmara ardente, onde fora erguido um catafalco. A bandeira que ele ostentava no palio cobria o ataúde. Mensageiros foram despachados em todas as direcções. O Bispo de Siena foi chamado às pressas.

  Após o desfalecimento demorado, Beatriz continuou inspirando cuidados.

  Apesar da hora avançada, os agregados e os aldeães das cercarias foram chamados a prantear o morto.

  Nas exéquias fúnebres, quando o cortejo se dirigia à capela mortuária para o sepultamento, o Bispo, realmente comovido, depois das palavras habituais, proferiu:

  – “Requiescat in pace.”

  Um calafrio percorreu os circunstantes e alguns tiveram a impressão de escutar estridente gargalhada.

  Possivelmente, pois eram o duque Dom Giovanni di Bicci di M. e Assunta, que zombavam quanto às possibilidades de o Conde Girólamo Cherubini di Bicci “ repousar em paz”…

  O dia nevoento e sombrio morreu numa débil fímbria bruxuleante no ocaso…

  O calendário assinalava 22 de Dezembro de 1753…

  Por exigência da viúva, a Condessa Beatriz di Castaldi Cherubini di Bicci, no Duomo de Siena, um ano depois, Sua Eminência Reverendíssima proferiu, entre júbilos generalizados:

  – “Em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo, eu te baptizo Conde Dom Carlo di Castaldi Cherubini di Bicci…”

  As invioláveis e inabordáveis Leis Divinas davam curso à Justiça, à Misericórdia e ao Amor de Nosso Pai.

/…
(*) Fenómeno de ideoplastia proporcionado pela consciência culpada.


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 10 SUICÍDIO ABOMINÁVEL (2 de 2) 33º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)