Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...
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quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Uma Noite Esquecida ou 
a Feiticeira Manouza
(Milésima segunda noite dos contos árabes) 

~~ Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié
(Terceiro e último artigo)

Prefácio da Revue Spirite. (repetição)

No corrente ano de 1856, as experiências de manifestações espíritas que se realizavam em casa do Sr. B... (*), na rua Lamartine, atraíram uma assistência selecta e numerosa. Eram mais ou menos sérios os Espíritos que se manifestavam neste círculo; alguns disseram coisas de admirável sabedoria e notável profundidade, como se pode julgar por O Livro dos Espíritos, que ali fora começado e em grande parte realizado. Outros eram menos sérios; o seu humor jovial prestava-se de bom grado a piadas, mas daquelas que jamais se afastavam das conveniências. Nesse número se encontrava Frédéric Soulié, que veio espontaneamente, sem haver sido evocado, e cujas visitas inesperadas eram sempre um passatempo agradável para os membros deste círculo. A sua conversa era espirituosa, fina, mordaz, coerente e nunca desmentiu o autor das Mémoires du diable; aliás, nunca se deixou envolver pela lisonja; quando lhe dirigiam algumas perguntas um tanto mais espinhosas de filosofia, confessava francamente a sua incapacidade para resolvê-las, dizendo que ainda se encontrava bastante ligado à matéria e que preferia as coisas alegres às sérias.

médium que lhe servia de intérprete era a Srta. Caroline B..., uma das filhas do dono da casa, do género exclusivamente passivo e que não tinha a menor consciência do que escrevia, podendo rir-se e conversar como bem lhe aprouvesse, o que fazia com prazer, enquanto a sua mão se movimentava sobre o papel. Durante muito tempo o meio mecânico empregado foi o da cesta de bico(**) Mais tarde a médium serviu-se da psicografia (i) directa.

Perguntarão, certamente, que provas possuímos de que o Espírito comunicante era o de Frédéric Soulié e não um outro qualquer. Não nos cabe tratar aqui da questão da identidade dos Espíritos; diremos somente que a de Soulié se revelou por detalhes de tal forma numerosos que não podem escapar a uma observação atenta. Muitas vezes uma palavra, um gesto, um facto pessoal referido vinham confirmar que se tratava dele mesmo; por diversas vezes deixou a sua assinatura, que foi confrontada com as originais. Um dia pediram-lhe que desse o seu retrato e a médium, que não sabe desenhar, e que nem mesmo nunca o tinha visto, fez um esboço de uma semelhança extraordinária.

Ninguém da reunião havia tido relações com ele quando vivia; por que, então, vinha sem ter sido evocado? É que se tinha ligado a um dos assistentes, sem nunca ter revelado o motivo; só aparecia quando essa pessoa se encontrava presente; entrava com ela e com ela se ia embora, de sorte que, quando não estava presente, ela também não vinha e, coisa bizarra! quando Soulié estava lá era difícil, ou mesmo impossível, haver comunicações de outros Espíritos; o próprio Espírito familiar da casa cedia-lhe o lugar, dizendo, por delicadeza, que deveria fazer as honras da casa.

Um dia anunciou que nos daria um romance à sua maneira e, realmente, algum tempo depois começou uma narrativa cujo início era muito promissor. O assunto relacionava-se com os druidas e a cena passava-se na Armórica, ao tempo da dominação romana; infelizmente, parece que se apavorou diante da tarefa que havia empreendido, porquanto – é preciso que se diga  – o trabalho assíduo nunca foi o seu forte, confessando que encontrava mais satisfação na vida preguiçosa. Depois de haver ditado algumas páginas, abandonou o romance mas disse que escreveria outro, que lhe daria menos trabalho. Foi então que escreveu o conto cuja publicação iniciamos. Mais de trinta pessoas assistiram a essa produção e podem atestar-lhe a origem. Não a damos absolutamente como obra de elevado alcance filosófico, mas como curiosa amostra de um trabalho de grande fôlego obtido dos Espíritos. Notar-se-á como tudo nele tem sequência, como tudo se encadeia com uma arte admirável. O que há de mais extraordinário é que esse relato foi retomado em cinco ou seis ocasiões diferentes e, muitas vezes, após interrupções de duas ou três semanas. Ora, de cada vez que recomeçava, o assunto continuava como se tivesse sido escrito de um sorvo, sem rasuras, sem aditamentos, e sem que houvesse necessidade de lembrar o que antes já fora relatado. Nós o damos, tal qual saiu do lápis da médium, sem nada haver mudado, nem no estilo, nem nas ideias e nem no encadeamento dos factos. Algumas repetições de palavras e pequenos senão de ortografia foram percebidos, tendo o próprio Soulié nos encarregado de os corrigir, dizendo que nos assistiria nesse mister. Quando tudo estava terminado ele quis rever o conjunto, ao qual fez apenas algumas rectificações sem importância, autorizando a sua publicação como bem o entendêssemos e cedendo, com satisfação, os direitos de autor. Todavia, julgamos por bem não o inserir na Revista sem o consentimento formal do seu amigo póstumo, a quem pertencia de direito, porque foi graças à sua presença e à sua solicitação que nos tornamos devedores dessa produção de além-túmulo. O título foi dado pelo próprio Espírito Frédéric Soulié.
A. K.

Uma Noite Esquecida
(Terceiro e último artigo)

Observação – Os algarismos romanos indicam as interrupções que ocorreram no ditado. Frequentemente, não era retomado senão depois de duas ou três semanas e, apesar disso, como já fizemos observar anteriormente, o relato desenvolve-se como se tivesse sido escrito de um só fôlego; e isso não constitui uma das características menos curiosas desta produção de além-túmulo. O estilo é correcto e perfeitamente apropriado ao assunto. Repetimos, para aqueles que poderiam ver no ditado uma coisa fútil, que não o consideramos como obra filosófica, mas como de estudo. Para o estudioso, nada é inútil: ele sabe aproveitar-se de tudo para aprofundar a ciência espírita que estuda.

VII

– Levantai, disse-lhe Noureddin e, segui-me. Nazara lançou-se em pranto a seus pés, implorando graça. – Nenhuma piedade para semelhante falta, disse o pretenso Sultão; preparai-vos para morrer. Noureddin sofria muito por lhe falar desse modo, mas não julgou haver chegado o momento para se dar a conhecer.

Vendo que era impossível dobrá-lo, Nazara seguiu-o trémula. Voltaram aos aposentos; ali Noureddin disse a Nazara que se vestisse convenientemente. Depois, terminada a toalete e sem outras explicações, disse-lhe que iriam, ele e Ozana – o anão – conduzi-la a um subúrbio de Bagdá, onde ela encontraria o que merecia. Cobriram-se com grandes mantos para não serem reconhecidos e saíram do palácio. Mas, oh! terror! Mal transpuseram as portas transformaram-se aos olhos de Nazara. Não eram o Sultão e Ozana, nem os vendedores de roupas, mas o próprio Noureddin e Tanaple. Ficaram tão assombrados, principalmente Nazara, de se encontrarem tão perto da casa do Sultão, que apressaram o passo, com medo de serem reconhecidos.

Logo que entraram em casa de Noureddin, esta foi cercada por uma multidão de homens, de escravos e de tropas, enviada pelo Sultão para os prender.

Ao primeiro ruído, Noureddin, Nazara e o anão refugiaram-se nos aposentos mais retirados do palácio. Lá, disse-lhes o anão que não se amedrontassem e que havia somente uma coisa a fazer para não serem presos: enfiar na boca o dedo mínimo da mão esquerda e assobiar três vezes; que Nazara devia fazer o mesmo e instantaneamente se tornariam invisíveis a quantos quisessem apoderar-se deles.

Continuando o ruído a aumentar de maneira alarmante, Nazara e Noureddin seguiram o conselho de Tanaple; quando os soldados penetraram o aposento encontraram-no vazio, retirando-se depois de pesquisas minuciosas. Então o anão disse a Noureddin que fizesse o contrário do que haviam feito, isto é, enfiassem na boca o dedo mínimo da mão direita e assobiassem três vezes; eles o fizeram e logo se converteram no que eram antes.

Em seguida o anão os advertiu de que não se encontravam em segurança naquela casa, devendo deixá-la por algum tempo até que se apaziguasse a cólera do Sultão. Em razão disso, ofereceu-se para levá-los ao seu palácio subterrâneo, onde estariam mais à vontade, enquanto seriam providenciados os meios a fim de que, sem receio, pudessem retornar a Bagdá e, dentro das melhores condições possíveis.

VIII

Noureddin hesitava, mas Nazara tanto pediu que ele acabou consentindo. O anão lhes disse que fossem ao jardim e chupassem uma laranja, com o rosto voltado para o nascente; então, seriam transportados sem o perceberem. Fizeram um ar de dúvida que Tanaple não compreendia, depois de tudo o que houvera feito por eles.

Tendo descido ao jardim e chupado a laranja como lhes fora indicado, viram-se subitamente elevados a uma altura prodigiosa; depois experimentaram um forte abalo e um grande frio, sentindo que desciam a grande velocidade. Nada perceberam durante o trajecto; porém, quando tomaram consciência da situação encontravam-se num subterrâneo, dentro de magnífico palácio iluminado por mais de vinte mil velas.

Deixemos os nossos amantes no seu palácio subterrâneo e voltemos ao nosso pequeno anão, que havíamos deixado em casa de Noureddin. Sabeis que o Sultão tinha enviado soldados para se apoderarem dos fugitivos. Depois de haver explorado os recantos mais recônditos da habitação, assim como os jardins e, nada encontrando, viram-se forçados a retornar e prestar contas ao Sultão de suas buscas infrutíferas.

Tanaple os havia acompanhado em todo o percurso do caminho; olhava-os com malícia e de vez em quando indagava quanto o Sultão pagaria a quem lhe trouxesse os dois fugitivos. – Se o Sultão, acrescentava, estiver disposto a me conceder uma hora de audiência, dir-lhe-ei alguma coisa que o tranquilizará e ele ficará satisfeito por se desembaraçar de uma mulher como Nazara, que possui um mau génio e que faria descer sobre ele todas as desgraças possíveis, caso lá permanecesse por mais algumas luas. O chefe dos eunucos prometeu dar o seu recado e transmitir-lhe a resposta do Sultão.

Mal haviam retornado ao palácio o chefe dos negros veio dizer-lhe que o seu senhor o esperava, prevenindo-o, porém, de que seria empalado, caso sustentasse imposturas.

O nosso pequeno monstro apressou-se em dirigir-se à casa do Sultão. Chegando diante desse homem duro e severo, como de hábito inclinou-se três vezes perante os príncipes de Bagdá.

– Que tens a dizer-me? Perguntou o Sultão. Sabes o que te aguarda se não disseres a verdade. Fala, eu te escuto.

“Grande Espírito, celeste Lua, tríade de Sóis, não direi senão a verdade. Nazara é filha da fada negra e do Génio da Grande Serpente dos Infernos. A sua presença em tua casa acarretaria todas as pragas imagináveis: chuva de serpentes, eclipse solar, lua azul impedindo os amores nocturnos. Enfim, todos os teus desejos seriam contrariados e as tuas mulheres envelheceriam antes mesmo que se passasse uma lua. Poderei dar-te uma prova do que digo; sei onde se encontra Nazara; se quiseres, irei buscá-la e poderás convencer-te. Só há um meio de evitar essas desgraças: é dá-la a Noureddin. Noureddin também não é o que pensas; ele é filho da feiticeira Manouza e do génio do Rochedo de Diamante. Se os casares, em sinal de reconhecimento Manouza te protegerá; se recusares... Pobre príncipe! eu te lamento. Experimenta; depois decidirás.

Sultão ouviu muito calmo o discurso de Tanaple, mas logo em seguida convocou uma tropa de homens armados, ordenando aprisionar o monstrinho até que um acontecimento viesse convencê-lo do que acabara de ouvir.

Eu julgava – disse Tanaple – que estivesse a tratar com um grande príncipe, mas vejo que me enganei. Deixo aos génios o cuidado de vingar os seus filhos. Dito isto, seguiu os que vieram para o prender.

IX

Tanaple estava na prisão apenas há algumas horas quando o Sol se cobriu de uma nuvem sombria, como se um véu quisesse roubá-lo à Terra; depois ouviu-se um grande estrondo e, de uma montanha situada na entrada da cidade, saiu um gigante armado, dirigindo-se para o palácio do Sultão.

Não direi que o Sultão tivesse ficado muito calmo; longe disso. Tremia como uma folha de laranjeira açoitada por Éolo. À aproximação do gigante mandou fechar todas as portas, ordenando aos soldados que ficassem de prontidão e armas à mão para defender o seu príncipe. Mas, oh! estupefacção! À chegada do gigante todas as portas se abriram, como se mão invisível as impelissem; depois, gravemente, o gigante avançou para o Sultão, sem fazer nenhum sinal ou dizer uma só palavra. À sua vista, o Sultão caiu de joelhos e suplicou ao gigante que o poupasse e dissesse o que exigia.

“Príncipe! – disse o gigante – não digo muita coisa da primeira vez; apenas te advirto. Faze o que Tanaple te aconselhou e te asseguramos a nossa protecção; de contrário, sofrerás o castigo de tua obstinação.” Dito isso, retirou-se.

A princípio o Sultão ficou aterrorizado; porém, refazendo-se do susto um quarto de hora mais tarde e, longe de seguir os conselhos de Tanaple, mandou publicar um édito em que prometia uma magnífica recompensa a quem o pusesse no rasto dos fugitivos; depois mandou postar soldados às portas do palácio e da cidade, esperando pacientemente. Mas a sua paciência não durou muito ou, pelo menos, não lhe deixou tempo de prová-la. A partir do segundo dia surgiu às portas da cidade um exército que parecia ter saído das entranhas da Terra; os soldados vestiam peles de toupeira, tinham como escudos cascos de tartaruga e usavam clavas feitas de lascas de rochedos.

À sua aproximação os guardas quiseram opor-lhes resistência, mas o aspecto formidável do exército logo os fez baixar as armas; abriram as portas sem nada dizer, sem romper as suas filas e a tropa inimiga marchou solenemente para o palácio. O Sultão quis resistir à entrada nos seus aposentos, mas, para sua grande surpresa, os guardas adormeceram e as portas se abriram por si mesmas. Depois o chefe do exército avançou com passo grave até aos pés do Sultão e disse-lhe:

“Vim para dizer-te que Tanaple, percebendo a tua teimosia, enviou-nos para procurar-te; em vez de ser o Sultão de um povo que não sabes governar, vamos conduzir-te ao seio das toupeiras; tu mesmo te tornarás uma delas e serás um Sultão domesticado. Vê já se isso te convém ou se preferes fazer o que te ordenou Tanaple; concedo-te dez minutos para reflectir.”

X

Sultão teria preferido resistir; mas, para sua felicidade, após alguns momentos de reflexão concordou com aquilo que lhe exigiam; queria impor apenas uma condição: que os fugitivos deixassem o seu reino. Prometeram-lhe o que pedia e, no mesmo momento, sem saber de que lado nem como, o exército desapareceu a seus olhos.

Agora que a sorte dos nossos amantes estava completamente assegurada, voltemos a eles. Sabeis que os havíamos deixado no palácio subterrâneo.

Depois de alguns minutos, deslumbrados e encantados pelo aspecto das maravilhas que os cercavam, quiseram visitar o palácio e os seus arredores. Viram jardins encantadores. E, coisa estranha! ali viam quase tão claramente quanto a céu aberto. Aproximaram-se do palácio: todas as portas estavam abertas e havia preparativos como para uma grande festa. À porta encontrava-se uma dama em magnífica toalete. Ao princípio os nossos fugitivos não a reconheceram; porém, aproximando-se mais, viram Manouza, a feiticeira, completamente transformada; já não era aquela velha mulher, suja e decrépita e, sim uma senhora de certa idade, ainda bela e de porte elegante.

“Noureddin – disse ela – eu te prometi auxílio e assistência. Hoje vou cumprir a minha promessa; os teus males chegam ao fim e vais receber o prémio de tua perseverança: Nazara será tua esposa; além disso, dou-te este palácio e nele habitarás. Serás o rei de um povo bravo e reconhecido; eles são dignos de ti, como tu és digno de reinar sobre eles.”

A estas palavras ouviu-se uma música harmoniosa; de todos os lados surgiu uma multidão inumerável de homens e mulheres em trajes de festa; à sua frente grandes senhores e grandes damas vinham prostrar-se aos pés de Noureddin. Ofereceram-lhe uma coroa de ouro cravejada de diamantes e disseram que o reconheciam como o seu rei; que o trono lhe pertencia como herança paterna; e que estavam enfeitiçados há quatrocentos anos pela vontade de magos perversos e esse feitiço só deveria terminar com a presença de Noureddin. Em seguida fizeram um grande discurso sobre as suas e as virtudes de Nazara.

Então Manouza lhe disse: Sois feliz, nada mais tenho a fazer aqui. Se algum dia precisardes de mim, batei na estátua que está no meio do vosso jardim e virei no mesmo instante. Depois desapareceu.

Noureddin e Nazara quiseram retê-la por mais tempo, a fim de agradecer-lhe toda a bondade para com eles. Depois de alguns momentos de conversa voltaram aos seus súbditos. As festas e os regozijos duraram oito dias. O seu reino foi longo e feliz; viveram milhares de anos e posso até mesmo dizer que vivem ainda. Só que o seu país jamais foi encontrado ou, melhor dizendo, nunca se tornou bem conhecido.

FIM

Observação – Chamamos a atenção dos nossos leitores para as observações que antecederam este conto, nos números de novembro de 1858 e janeiro de 1859.

Allan Kardec

/…

(*) N. do T.: Referência ao Sr. Baudin, cujas filhas adolescentes, Caroline e Julie Baudin, foram as primeiras médiuns que concorreram para o trabalho de Allan Kardec. Vide Obras Póstumas – 2ª Parte – A minha iniciação no Espiritismo.
(**) N. do T.: Esse processo, bastante primitivo, está descrito na 2ª Parte – capítulo XIII, item 154, de O Livro dos Médiuns.


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Uma Noite Esquecida ou a Feiticeira Manouza, Milésima segunda noite dos contos árabes, Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié; – Prefácio da Revue Spirite (repetição), Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Novembro de 1858; – Uma Noite Esquecida (Terceiro e último artigo), Fevereiro de 1859, 20º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

sábado, 5 de outubro de 2024

as vidas sucessivas | os elementos ~


~~ Crenças antigas e conceitos modernos ~
(Victor Hugo)

  Eis como Arsène Houssaye relata a resposta que Victor Hugo deu a ateus em 1866:

  “Quem nos diz – recomeçou o poeta – que não me reencontro através dos séculos? Shakespeare escreveu: A vida é um conto de fadas que se lê pela segunda vez.

  Ele poderia ter dito: “pela milésima vez!”, pois não há século em que eu não veja passar a minha sombra.

  Vós não credes nas materializações que se movem (isto é, nas reencarnações) sob o pretexto de que não vos lembrais de nada de vossas existências anteriores. Porém, como é que as recordações dos séculos dissipados permaneceriam impressas em vós, quando mal vos recordais das mil e uma cenas de vossa vida presente? Desde 1802, houve em mim dez Victor Hugo! Acreditas, pois, que me recordo de todas as suas acções e de todos os seus pensamentos?

  Quando eu tiver atravessado a tumba para reencontrar uma outra luz, todos esses Victor Hugo ser-me-ão um pouco estranhos, porém será sempre a mesma alma!

  Sinto em mim – diz-lhes ele ainda – toda uma vida nova, toda uma vida futura. Sou como a floresta que várias vezes foi abatida: os jovens rebentos são cada vez mais fortes e vivazes. Subo, subo em direcção ao infinito! Tudo é radiante diante de mim. A terra me dá a sua seiva generosa, porém o céu ilumina-me com os reflexos dos mundos entrevistos!

  Dizeis que a alma é apenas a expressão das forças corporais. Então, porque é que a minha alma está mais luminosa quando as forças corporais vão em breve abandonar-me? O inverno encontra-se sobre a minha cabeça, porém a primavera eterna está na minha alma! Respiro a esta hora os lilases, as violetas e as rosas como aos vinte anos!

  Quanto mais me aproximo do fim, mais ouço à minha volta as imortais sinfonias dos mundos que me chamam! É maravilhoso e, é simples.

  Há todo um meio século que escrevo o meu pensamento em prosa e em verso: história, filosofia, drama, romance, lenda, sátira, ode, canção, etc.; tudo tentei; porém sinto que não disse a milésima parte do que se encontra em mim. Quando eu me deitar na tumba, não direi como tantos outros: terminei a minha jornada. Não, pois a minha jornada recomeçará no dia seguinte de manhã. A tumba não é um beco sem saída, é uma avenida; ela se fecha no crepúsculo e reabre ao alvorecer!”

Destinos da alma

O homem tem sedes insaciadas;
Em seu passado vertiginoso
Sente reviver outras vidas,
Conta os nós de sua alma.

Procura no fundo das sombrias cúpulas
Sob que forma resplandeceu,
Ouve seus próprios fantasmas,
Que atrás de si lhe falam.

O homem é o único ponto da criação
Em que, para permanecer livre tornando-se melhor,
A alma deve esquecer sua vida anterior.
Ele diz: Morrer é conhecer;
Procuramos a saída tacteando;
Eu era, eu sou, eu devo ser,
A sombra é uma escada, subamos. (*)

(*) Nota do tradutor – Para que pudéssemos ser fiéis ao conteúdo do texto original e aos termos utilizados pelo poeta, obrigamo-nos a prejudicar toda a melodia e as rimas dos versos, pois, para mantê-los, precisaríamos mudar a estrutura das frases e as palavras, o que fatalmente mudaria em parte o sentido do texto original. Preferimos, portanto, traduzi-lo quase que literalmente. Eis a seguir, no entanto, o texto original, com toda a sua beleza quanto à forma como ao conteúdo:

« Des destinées de l’âme / L’homme a des soifs inassouvies; / Dans son passé vertigineux / Il sent revivre d’autres vies, / De son âme il compte de noeuds, / Il cherche au found des sombres dômes / Sous quelle forme il a lui, / Il entend ses propres fantômes / Qui lui parlent derrière lui. / L’homme est l’unique poit de la création / Où, pour demeurer libre en se faisant meilleure, / L’âme doive oublier sa vie anterieure. / Il se dit: Mourir c’est connaítre; / Nous cherchons l’issue à tátons; / J’étais, je suis, je dois être, / L’ombre est une échelle, montons.»

/...


Albert de RochasAs Vidas Sucessivas, Primeira Parte – Crenças antigas e conceitos modernos (Victor Hugo), 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Albert de Rochas d'Aiglun (1837-1914), engenheiro militar francês, historiador da ciência, pesquisador de fenómenos espíritas, escritor, tradutor e administrador da Escola Politécnica de Paris)

domingo, 17 de março de 2024

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Pneumatografia ou Escrita Directa ~

   A pneumatografia é a escrita produzida directamente pelo Espírito, sem nenhum intermediário; difere da psicografia, por ser esta a transmissão do pensamento do Espírito, mediante a escrita feita com a mão do médium. Demos estas duas palavras no Vocabulário Espírita, no início de nossa Instrução Prática, com a indicação da sua diferença etimológica. Psicografia, do grego psykê, borboleta, alma; e graphus, eu escrevo; Pneumatografia, de pneuma, ar, sopro, vento, Espírito. No médium escrevente a mão é um instrumento, mas é a sua alma, ou Espírito encarnado, o intermediário, o agente ou o intérprete do Espírito estranho que se comunica; na Pneumatografia, é o próprio Espírito estranho que escreve directamente, sem intermediário.

   O fenómeno da escrita directa é, inegavelmente, um dos mais extraordinários do Espiritismo. Por anormal que pareça à primeira vista, é hoje um facto verificado e incontestável. Se dele ainda não falámos, é porque esperávamos poder dar-lhe a explicação e já ter procedido às observações necessárias, a fim de tratar a questão com conhecimento de causa. A teoria, sempre necessária para nos inteirarmos da possibilidade dos fenómenos espíritas em geral, talvez ainda se torne mais necessária neste caso que, sem contestação, é um dos mais estranhos que se possam apresentar; deixa, porém, de parecer sobrenatural, desde que se lhe compreenda o princípio.

   Da primeira vez que este fenómeno se produziu, deixou um sentimento dominante de dúvida. Logo acudiu aos que o presenciaram a ideia de um embuste. Toda a gente, com efeito, conhece a acção das tintas chamadas simpáticas, cujos traços, a princípio completamente invisíveis, aparecem ao fim de algum tempo. Podia, pois, dar-se o caso que tivessem, por esse meio, abusado da credulidade dos assistentes, e longe nos acharmos de afirmar que nunca o tenham feito. Estamos até convencidos de que algumas pessoas, não com propósitos mercenários, mas tão-só por amor-próprio e para fazer acreditar nas suas faculdades, hão empregado subterfúgios.

   Na terceira das cartas escritas de MontaigneJ.-J. Rousseau refere o seguinte facto: “Em 1743 vi em Veneza uma nova espécie de sortilégio, mais estranho que os de Préneste; quem o quisesse consultar entrava numa câmara, ali permanecendo sozinho, caso o desejasse. De um livro de folhas brancas tirava uma de sua escolha; depois, segurando essa folha, pedia mentalmente, e não em voz alta, aquilo que desejava saber; em seguida, dobrava a folha branca, depositava-a num envelope, lacrava-o e o colocava, assim fechado, dentro de um livro. Finalmente e sem perder de vista o livro, depois de haver recitado algumas fórmulas muito extravagantes, verificava se o selo não tinha sido violado, abria o envelope, retirava a folha e encontrava nela escrita a resposta. O mágico que fazia estas sortes era o primeiro secretário da Embaixada da França e chamava-se J.-J. Rousseau.”

   Duvidamos que Rousseau tenha conhecido a escrita directa, pois, de contrário, teria sabido outras coisas relativas às manifestações espíritas e não teria tratado do assunto com tanta leviandade. Como ele próprio reconheceu quando o inquirimos (ii) sobre este facto, é provável que se utilizasse de um processo que aprendera de um charlatão italiano.

   Entretanto, pelo facto de se poder imitar uma coisa, fora absurdo concluir-se pela sua inexistência. Nestes últimos tempos, não se há encontrado meio de imitar a lucidez sonambúlica, ao ponto de causar ilusão? Mas, porque este processo de saltimbanco se tenha exibido em todas as feiras, dever-se-á concluir que não haja verdadeiros sonâmbulos? Só porque certos comerciantes vendem vinho falsificado, será razão para que não haja vinho puro? O mesmo sucede com a escrita directa. Muito simples e fáceis eram, aliás, as precauções a serem tomadas para garantir a veracidade deste facto e, graças a estas precauções, hoje ele já não pode ser objecto da mais pequena dúvida.

   Considerando-se que a possibilidade de escrever sem intermediário representa um dos atributos do Espírito; uma vez que os Espíritos sempre existiram desde todos os tempos e que desde todos os tempos se hão produzido os diversos fenómenos que conhecemos, o da escrita directa igualmente se há de ter operado na Antiguidade, tanto quanto nos dias actuais. É deste modo que se pode explicar o aparecimento das três palavras célebres, na sala do festim de Baltazar. A Idade Média, tão fecunda em prodígios ocultos, mas que eram abafados por meio das fogueiras, também deve ter conhecido a escrita directa; igualmente é possível que, na teoria das modificações por que podem os Espíritos fazer passar a matéria, teoria que desenvolvemos no nosso artigo anterior, se encontre o fundamento da crença na transmutação dos metais. É um ponto que abordaremos mais tarde.

   Um dos nossos assinantes dizia-nos ultimamente que um seu tio, cónego, que durante muitos anos havia sido missionário no Paraguai, obtinha, por volta do ano 1800, a escrita directa, juntamente com o seu amigo, o célebre Abade Faria. O seu processo, que o nosso assinante nunca chegou a conhecer bem, e que de alguma sorte surpreendera casualmente, consistia numa série de anéis pendurados, aos quais eram adaptados lápis, dispostos em posição vertical, cujas pontas se apoiavam em papel. Esse processo reflectia a infância da arte, progredimos depois.

   Todavia, quaisquer que tenham sido os resultados obtidos nas diversas épocas, só depois de vulgarizadas as manifestações espíritas é que se tomou a sério a questão da escrita directa. Ao que parece, o primeiro a torná-la conhecida, nestes últimos anos, foi o Barão de Guldenstubbé, em Paris, que publicou sobre o assunto uma obra muito interessante, com grande número de fac-símiles das escritas que obteve (iii). O fenómeno já era conhecido na América, havia algum tempo. A posição social do Sr. Guldenstubbé, a sua independência, a consideração de que goza nas mais elevadas rodas afastam incontestavelmente toda a suspeita de fraude intencional, porquanto não havia nenhum motivo de interesse a que ele obedecesse. Quanto muito, o que se poderia supor, é que fora vítima de uma ilusão; a isto, porém, um facto responde peremptoriamente: o de haverem outras pessoas obtido o mesmo fenómeno, cercadas de todas as precauções necessárias para evitar qualquer embuste e qualquer causa de erro.

   A escrita directa é obtida, como em geral a maior parte das manifestações espíritas não espontâneas, por meio da concentração, da prece e da evocação. Tem-se produzido em igrejas, sobre túmulos, no pedestal de estátuas, ou imagens de personagens evocadas. Evidentemente, o local não exerce nenhuma outra influência, além da de facultar maior recolhimento espiritual e maior concentração dos pensamentos, porquanto está provado que o fenómeno se obtém, igualmente, sem estes acessórios e nos lugares mais comuns, sobre um simples móvel caseiro, desde que os que o desejam obter se encontrem nas devidas condições morais e, entre estes, se encontre quem possua a necessária faculdade mediúnica.

   Julgou-se, a princípio, ser preciso colocar aqui ou ali um lápis com o papel. O facto então podia, até certo ponto, explicar-se. É sabido que os Espíritos produzem o movimento e a deslocação dos objectos; que, algumas vezes, os tomam e atiram longe. Bem podiam, pois, pegar também os lápis e servir-se deles para desenhar letras. Visto que o impulsionam, utilizando-se da mão do médium, de uma prancheta, etc., podiam, do mesmo modo, impulsioná-lo directamente. Porém, não tardou, que se reconhecesse que o lápis era dispensável, que bastava um pedaço de papel, dobrado ou não, para que, ao fim de alguns minutos, se encontrassem nele grafadas as letras. Aqui, o fenómeno já muda completamente de aspecto e transporta-nos a uma ordem inteiramente nova das coisas. As letras hão de ter sido traçadas com uma substância qualquer. Ora, sendo certo que ninguém forneceu ao Espírito essa substância, segue-se que a produziu ele próprio. De onde a tirou? Esse é o problema.

   O general russo, conde de B... mostrou-nos uma estrofe de dez versos alemães obtida desta maneira por intermédio da irmã do Barão de Guldenstubbé, simplesmente colocando uma folha de papel, arrancada de sua própria caderneta, debaixo do pedestal do relógio da chaminé. Tendo-a retirado, ao fim de alguns minutos, nela encontrou versos em caracteres tipográficos alemães muito finos e de perfeita pureza. Através de um médium psicógrafo o Espírito disse-lhe que queimasse esse papel; como hesitasse, lamentando sacrificar um espécimen tão precioso, o Espírito acrescentou: “Nada temais; dar-te-ei um outro”. Com essa garantia, assentiu queimar o papel, colocou depois uma segunda folha, igualmente tirada de sua carteira, sobre a qual os versos se reproduziram, exactamente da mesma maneira. E foi essa segunda edição que vimos e examinamos com o maior cuidado e, coisa bizarra, os caracteres apresentavam um relevo como se tivessem saído do prelo. Não é, pois, apenas o lápis que os Espíritos podem criar, mas também a tinta e os caracteres de imprensa.

   Um dos nossos honrados colegas da Sociedade, o Sr. Didier obteve há alguns dias os resultados seguintes, que tivemos oportunidade de constatar, e cuja autenticidade podemos garantir. Tendo ido à igreja de Nossa Senhora das Vitórias, com a Sra. Huet, que há pouco tempo teve sucesso em experiências deste género, pegou uma folha de papel de carta com o timbre de sua casa comercial, dobrou-a em quatro e a colocou sobre os degraus de um altar, rogando, em nome de Deus, que um Espírito bom se dignasse escrever alguma coisa. Ao fim de dez minutos de recolhimento encontrou no interior e numa das partes dobradas da folha a palavra fé e num dos outros campos a palavra Deus. A seguir, tendo pedido ao Espírito que dissesse quem havia escrito aquilo, recolocou o papel no mesmo lugar e, dez minutos depois, encontrou estas palavras: por Fénelon.

   Oito dias depois, a 12 de Julho, quis repetir a experiência e dirigiu-se ao Louvre, à sala Coyzevox, situada sob o pavilhão do relógio. Sobre a base do busto de Bossuet pôs uma folha de papel, dobrada como a primeira, mas nada obteve. Acompanhava-o um menino de cinco anos e o seu boné foi deixado no pedestal da estátua de Luís XIV, que se encontrava a alguns passos da primeira. Julgando que a experiência houvesse falhado, já se dispunha a sair quando, ao apanhar o boné, percebeu debaixo deste, como se fora escrito a lápis sobre o mármore, a expressão amai a Deus, seguida da letra B. O primeiro pensamento que veio à mente dos assistentes foi o de que tais palavras poderiam ter sido escritas anteriormente por mãos estranhas, que não foram percebidas. Entretanto, quiseram tentar a prova novamente, recolocando a folha dobrada em cima dessas palavras, cobrindo-as com o boné. Decorridos alguns minutos perceberam que a folha continha três letras: a i m. Repuseram o papel e pediram que fossem os escritos completados e obtiveram: Amai a Deus, isto é, aquilo que fora escrito no mármore, menos o B. Ficava assim evidente que as primeiras letras traçadas resultavam de escrita directa. Ressaltava, ainda, este facto curioso: as letras foram grafadas sucessivamente e não de uma vez; quando da primeira inspecção, não houvera tempo de concluir as palavras. Saindo do Louvre, o Sr. D... dirigiu-se à igreja de Saint-Germain l'Auxerrois onde obteve, pelo mesmo processo, as palavras: Sede humildesFénelon, escritas de maneira muito clara e muito legível. Estas palavras ainda podem ser vistas no mármore da estátua a que nos referimos.

   A substância de que são feitos estes caracteres tem toda a aparência da grafite do lápis e é facilmente apagada com a borracha. Examinámo-la ao microscópio e constatamos que não é incorporada no papel, mas simplesmente depositada na superfície, de maneira irregular, sobre as suas asperezas, formando arborescências muito semelhantes às de certas cristalizações. A parte apagada pela borracha deixa à mostra as camadas de matéria negra introduzida nas pequenas cavidades das rugosidades do papel. Destacadas e retiradas com cuidado, essas camadas são a própria matéria que se produz durante a operação. Lamentamos que a pequena quantidade recolhida não nos tenha permitido fazer a sua análise química; mas não perdemos a esperança de o conseguir mais tarde.

   Quem quiser reportar-se às explicações que foram dadas no nosso artigo anterior encontrará completa a teoria do fenómeno. Para escrever desta maneira, o Espírito não se serve das nossas substâncias, nem dos nossos instrumentos. Ele próprio fabrica a matéria e os instrumentos de que há mister, tirando, para isso, os materiais preciosos, do elemento primitivo universal que, pela acção de sua vontade, sofre as modificações necessárias à produção do efeito desejado. É-lhe possível, portanto, fabricar tanto o lápis vermelho, a tinta de imprimir, a tinta comum, como o lápis preto, ou, até, caracteres tipográficos bastante resistentes para darem relevo à escrita.

   Tal o resultado a que nos conduziu o fenómeno da tabaqueira, descrito no nosso número anterior, e sobre o qual nos estendemos longamente, porque nele percebermos oportunidade para perscrutarmos uma das importantes leis do Espiritismo, lei cujo conhecimento pode esclarecer mais de um mistério, mesmo do mundo visível. Assim é que, de um facto aparentemente vulgar, pode sair a luz. Tudo está em observar com cuidado e isso todos podem fazer como nós, desde que se não limitem a observar efeitos, sem lhes procurarem as causas. Se a nossa fé se fortalece dia a dia, é porque compreendemos. Tratai, pois, de compreender, se quiserdes fazer prosélitos sérios. Ainda outro resultado decorre da compreensão das causas: o de deixar traçada uma linha divisória entre a verdade e a superstição.

   Considerando a escrita directa do ponto de vista das vantagens que possa oferecer, diremos que, até ao presente, a sua principal utilidade há consistido na comprovação material de um facto sério: a intervenção de um poder oculto que, neste fenómeno, tem mais um meio de se manifestar. Todavia, raramente são extensas as comunicações que por essa forma se obtêm. Em geral espontâneas, elas se reduzem a algumas palavras ou proposições e, às vezes, a sinais ininteligíveis. Têm sido dadas em todas as línguas: em grego, em latim, em sírio, em caracteres hieroglíficos, etc., mas ainda se não prestaram às dissertações seguidas e rápidas, como permite a psicografia ou a escrita pela mão do médium (iv).


JEAN-JACQUES ROUSSEAU

(Médium: Sra. Costel / Agosto de 1861)

Nota – A médium encontrava-se ocupada com assuntos alheios ao Espiritismo; dispunha-se a escrever sobre assuntos pessoais, quando uma força invisível a compeliu a dissertar o que se segue, não obstante o seu desejo de continuar o trabalho começado. É o que explica o início da comunicação:

   “Eis-me aqui, embora não me tivesses chamado. Venho falar-te de coisas muito estranhas às tuas preocupações. Sou o Espírito de Jean-Jacques Rousseau. Há muito tempo que esperava a ocasião de me comunicar contigo. Escuta, pois.

   “Penso que o Espiritismo é um estudo puramente filosófico das causas secretas dos movimentos interiores da alma, pouco ou nada definidos até agora. Ele explica, mais ainda do que descobre, horizontes novos. A reencarnação e as provas sofridas antes de atingir o fim supremo não são revelações, mas uma confirmação importante. Estou comovido pelas verdades que este meio põe à luz. Digo meio com intenção, porque, a meu ver, o Espiritismo é uma alavanca que afasta as barreiras da cegueira. A preocupação com as questões morais está inteiramente por nascer. Discute-se a política que move os interesses morais; discutem-se os interesses privados; apaixona-se pelo ataque ou pela defesa das personalidades; os sistemas têm partidários e detractores, mas as verdades morais, que são o pão da alma, o alimento da vida, são deixadas na poeira acumulada pelos séculos. Todos os aperfeiçoamentos são úteis aos olhos da multidão, salvo os da alma. A sua educação, a sua elevação são quimeras, boas só para deleitarem os sacerdotes, os poetas, as mulheres, seja como modo, seja como ensinamento.

   “Se o Espiritismo ressuscitar o Espiritualismo, devolverá à Sociedade o impulso que a uns dá a dignidade interior, a outros resignação e a todos a necessidade de se elevarem para o Ser Supremo, esquecido e desprezado pelas suas ingratas criaturas.

                                                                                          Jean-Jacques Rousseau"

/…

(ii) Por mediunidade. Adenda desta publicação.
(iii) La realité des Esprits et de leurs manifestations, démontrée par le phenomène de l`écriture directe, pelo barão de Guldenstubbé, 1 vol. in-8o, com 15 estampas e 93 fac-símiles. Preço 8 fr. Casa Frank, rua Richelieu. Encontra-se também nas Casas Dentu e Ledoyen.
(iv) N. do T.: Vide O Livro dos Médiuns, Segunda Parte, capítulo XII.


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Pneumatografia ou Escrita Directa, Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos / Agosto de 1859; – Jean-Jacques Rousseau, Dissertações e ensinos espíritas / Médium: Sra. Costel / Agosto de 1861, 19ºs fragmentos da Revista objecto do presente titulo desta publicação.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

sábado, 2 de setembro de 2023

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Uma Noite Esquecida ou 
a Feiticeira Manouza
(Milésima segunda noite dos contos árabes)

~~ Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié
(Segundo artigo)

Prefácio da Revue Spirite. (repetição)

No corrente ano de 1856, as experiências de manifestações espíritas que se realizavam em casa do Sr. B... (*), na Rua Lamartine, atraíram uma assistência selecta e numerosa. Eram mais ou menos sérios os Espíritos que se manifestavam neste círculo; alguns disseram coisas de admirável sabedoria e notável profundidade, como se pode julgar por OLivro dos Espíritos, que ali fora começado e em grande parte realizado. Outros eram menos sérios; o seu humor jovial prestava-se de bom grado a piadas, mas daquelas que jamais se afastavam das conveniências. Nesse número se encontrava Frédéric Soulié, que veio espontaneamente, sem haver sido evocado, e cujas visitas inesperadas eram sempre um passatempo agradável para os membros deste círculo. A sua conversa era espirituosa, fina, mordaz, coerente e nunca desmentiu o autor das Mémoires du diable; aliás, nunca se deixou envolver pela lisonja; quando lhe dirigiam algumas perguntas um tanto mais espinhosas de filosofia, confessava francamente a sua incapacidade para resolvê-las, dizendo que ainda se encontrava bastante ligado à matéria e que preferia as coisas alegres às sérias.

médium que lhe servia de intérprete era a Srta. Caroline B..., uma das filhas do dono da casa, do género exclusivamente passivo e que não tinha a menor consciência do que escrevia, podendo rir-se e conversar como bem lhe aprouvesse, o que fazia com prazer, enquanto a sua mão se movimentava sobre o papel. Durante muito tempo o meio mecânico empregado foi o da cesta de bico(**) Mais tarde a médium serviu-se da psicografia (i) directa.

Perguntarão, certamente, que provas possuímos de que o Espírito comunicante era o de Frédéric Soulié e não um outro qualquer. Não nos cabe tratar aqui da questão da identidade dos Espíritos; diremos somente que a de Soulié se revelou por detalhes de tal forma numerosos que não podem escapar a uma observação atenta. Muitas vezes uma palavra, um gesto, um facto pessoal referido vinham confirmar que se tratava dele mesmo; por diversas vezes deixou a sua assinatura, que foi confrontada com as originais. Um dia pediram-lhe que desse o seu retrato e a médium, que não sabe desenhar, e que nem mesmo nunca o tinha visto, fez um esboço de uma semelhança extraordinária.

Ninguém da reunião havia tido relações com ele quando vivia; por que, então, vinha sem ter sido evocado? É que se tinha ligado a um dos assistentes, sem nunca ter revelado o motivo; só aparecia quando essa pessoa se encontrava presente; entrava com ela e com ela se ia embora, de sorte que, quando não estava presente, ela também não vinha e, coisa bizarra! quando Soulié estava lá era difícil, ou mesmo impossível, haver comunicações de outros Espíritos; o próprio Espírito familiar da casa cedia-lhe o lugar, dizendo, por delicadeza, que deveria fazer as honras da casa.

Um dia anunciou que nos daria um romance à sua maneira e, realmente, algum tempo depois começou uma narrativa cujo início era muito promissor. O assunto relacionava-se com os druidas e a cena passava-se na Armórica, ao tempo da dominação romana; infelizmente, parece que se apavorou diante da tarefa que havia empreendido, porquanto – é preciso que se diga  – o trabalho assíduo nunca foi o seu forte, confessando que encontrava mais satisfação na vida preguiçosa. Depois de haver ditado algumas páginas, abandonou o romance mas disse que escreveria outro, que lhe daria menos trabalho. Foi então que escreveu o conto cuja publicação iniciamos. Mais de trinta pessoas assistiram a essa produção e podem atestar-lhe a origem. Não a damos absolutamente como obra de elevado alcance filosófico, mas como curiosa amostra de um trabalho de grande fôlego obtido dos Espíritos. Notar-se-á como tudo nele tem sequência, como tudo se encadeia com uma arte admirável. O que há de mais extraordinário é que esse relato foi retomado em cinco ou seis ocasiões diferentes e, muitas vezes, após interrupções de duas ou três semanas. Ora, de cada vez que recomeçava, o assunto continuava como se tivesse sido escrito de um sorvo, sem rasuras, sem aditamentos, e sem que houvesse necessidade de lembrar o que antes já fora relatado. Nós o damos, tal qual saiu do lápis da médium, sem nada haver mudado, nem no estilo, nem nas ideias e nem no encadeamento dos factos. Algumas repetições de palavras e pequenos senão de ortografia foram percebidos, tendo o próprio Soulié nos encarregado de os corrigir, dizendo que nos assistiria nesse mister. Quando tudo estava terminado ele quis rever o conjunto, ao qual fez apenas algumas rectificações sem importância, autorizando a sua publicação como bem o entendêssemos e cedendo, com satisfação, os direitos de autor. Todavia, julgamos por bem não o inserir na Revista sem o consentimento formal do seu amigo póstumo, a quem pertencia de direito, porque foi graças à sua presença e à sua solicitação que nos tornamos devedores dessa produção de além-túmulo. O título foi dado pelo próprio Espírito Frédéric Soulié.
A. K.

Uma Noite Esquecida

(Segunda parte, Segundo artigo)

Observação – Os algarismos romanos indicam as interrupções que ocorreram no ditado. Frequentemente, não era retomado senão depois de duas ou três semanas e, apesar disso, como já fizemos observar anteriormente, o relato desenvolve-se como se tivesse sido escrito de um só fôlego; e isso não constitui uma das características menos curiosas desta produção de além-túmulo. O estilo é correcto e perfeitamente apropriado ao assunto. Repetimos, para aqueles que poderiam ver no ditado uma coisa fútil, que não o consideramos como obra filosófica, mas como de estudo. Para o estudioso, nada é inútil: ele sabe aproveitar-se de tudo para aprofundar a ciência espírita que estuda.

III

Nada, entretanto, parecia perturbar a nossa felicidade; tudo era calmo à nossa volta. Vivíamos em perfeita segurança quando, uma noite, no momento em que nos julgávamos mais seguros, apareceu, de repente, ao nosso lado (posso dizer assim porque estávamos numa rotunda, para onde confluíam várias aléias) o sultão, acompanhado do seu grão-vizir. Ambos apresentavam uma expressão apavorante: a cólera havia-lhes transtornado a sua fisionomia; estavam, principalmente o sultão, numa exasperação facilmente compreensível. O primeiro pensamento do sultão foi mandar matar-me, mas, sabendo a que família pertenço e a sorte que o esperava, caso ousasse arrancar um só fio de cabelo da minha cabeça, fez de conta (à sua chegada eu me afastara para o lado) que não me tinha visto e precipitou-se furioso sobre Nazara, a quem prometeu não fazer demorar o castigo que ela merecia. Levou-a consigo, sempre acompanhado do vizir. Quanto a mim, passado o primeiro momento de susto, apressei-me a voltar ao meu palácio a fim de procurar um meio de subtrair a estrela de minha vida das mãos daquele bárbaro, que, provavelmente, iria destruir essa preciosa existência.

– E depois, que fizeste? perguntou Manouza; porque, afinal de contas, não vejo em tudo isso razão para te atormentares tanto para tirar a tua amante do perigo em que a colocaste por tua própria culpa. A mim me pareces um pobre homem que não tem coragem nem vontade quando se trata de coisas difíceis.

– Antes de condenar, Manouza, deves escutar. Não vim a ti sem antes haver examinado todos os meios ao meu alcance. Fiz ofertas ao sultão: prometi-lhe ouro, jóias, camelos e até palácios, se ele devolvesse a minha doce gazela. Desdenhou de tudo. Vendo repelidos os meus sacrifícios, fiz ameaças, que também não foram levadas em consideração: riu-se de tudo e zombou de mim. Também tentei introduzir-me no seu palácio; corrompi escravos e cheguei aos quartos. Entretanto, apesar de todos os meus esforços, não consegui chegar até a minha bem-amada.

– Tu és franco, Noureddin; a tua sinceridade merece uma recompensa e terás aquilo que vens buscar. Far-te-ei ver uma coisa terrível: se tiveres a força de suportar a prova pela qual te farei passar, fica certo de que reencontrarás a tua felicidade de outrora. Dou-te cinco minutos para te decidires.

Esgotado esse tempo, Noureddin disse a Manouza que estava pronto a fazer tudo quanto ela quisesse para salvar Nazara. Então a feiticeira, levantando-se, disse-lhe: Pois bem! – Segue. Depois, abrindo uma porta situada no fundo da sala, fê-lo passar à sua frente. Atravessaram um pátio sombrio, repleto de coisas horríveis: serpentes, sapos que passeavam gravemente em companhia de gatos pretos, os quais transmitiam um ar de domínio no meio desses animais imundos.

IV

Na extremidade desse pátio havia uma outra porta, que Manouza igualmente abriu; e, tendo feito passar Noureddin, entraram ambos numa sala baixa, apenas iluminada do alto: a luz vinha de uma cúpula muito elevada, guarnecida de vidros coloridos, formando todo o género de arabescos. No centro da sala havia um escalfador aceso e, sobre este, num tripé, um grande vaso de bronze, dentro do qual ferviam todos os tipos de ervas aromáticas, cujo odor era tão forte que mal se podia suportar. Ao lado desse vaso havia uma espécie de poltrona grande, de veludo negro, de aspecto surpreendente. Quem ali se sentasse desaparecia completamente, porquanto Manouza, nela se havendo acomodado, Noureddin a procurou durante alguns momentos sem conseguir percebê-la. De repente ela reapareceu e disse-lhe: Estás ainda disposto? – Sim, respondeu Noureddin. – Pois bem! Senta-te nesta poltrona e espera.

Tão logo Noureddin se sentou na poltrona tudo mudou de aspecto, enchendo-se a sala de uma multidão de grandes figuras brancas, a princípio apenas visíveis e que depois pareciam de um vermelho sanguíneo ou lembravam homens cobertos de chagas sanguinolentas, dançando uma ronda infernal; e, no meio deles, Manouza, cabelos desgrenhados, olhos chamejantes, vestes esfarrapadas e uma coroa de serpentes na cabeça. Na mão, à guisa de ceptro, brandia uma tocha acesa que deitava chamas, cujo odor subia à garganta. Depois de haverem dançado um quarto de hora, pararam de repente, a um sinal de sua rainha que, para isso, lançara a sua tocha no escalfador em ebulição. Quando todas essas figuras se dispuseram em volta do escalfador, Manouza fez aproximar-se o mais velho, reconhecido por sua longa barba branca, dizendo-lhe: – Vem aqui, tu que segues o diabo; tenho uma missão muito delicada para te encarregar de fazer. Noureddin quer Nazara e eu prometi que lha entregaria; é coisa difícil. – Conto, Tanaple, com o teu concurso. Noureddin haverá de suportar todas as provas necessárias. – Actua, pois! Sabes o que quero; faze o que quiseres, mas faze; tremerás se fracassares. Eu recompenso a quem me obedece, mas infeliz daquele que não me fizer a vontade! – Serás satisfeita, disse Tanaple, e podes contar comigo. – Muito bem! Vai e age.

V

Mal acabara de pronunciar estas palavras e tudo mudou aos olhos de Noureddin; os objectos tornaram-se o que eram antes e Manouza encontrou-se a sós com ele. – Agora, disse-lhe, volta para casa e espera; eu te mandarei um dos meus gnomos dizer o que deves fazer; obedece e tudo correrá bem.

Noureddin ficou feliz com estas palavras e mais feliz ainda por deixar o antro da feiticeira. Atravessou novamente o pátio e a sala por onde havia entrado; depois ela o acompanhou até a porta exterior. Tendo Noureddin perguntado se devia retornar, ela respondeu: – Não; no momento é inútil. Se for necessário eu to farei saber.

Noureddin apressou-se a voltar ao seu palácio. Estava impaciente para saber se alguma novidade havia acontecido desde a sua saída. Encontrou tudo no mesmo estado; apenas viu, na sala de mármore – sala de repouso de verão dos habitantes de Bagdá – uma espécie de anão de fealdade repugnante, perto da piscina situada no centro dessa sala. A sua vestimenta era amarela, com bordados vermelhos e azuis; tinha uma corcunda monstruosa, pernas pequenas, rosto grosseiro, olhos verdes e estrábicos, boca rasgada até às orelhas e os cabelos de um ruivo que podia rivalizar com o sol.

Noureddin perguntou-lhe como chegara ele ali e o que vinha fazer. – Fui enviado por Manouza, disse-lhe, para te entregar a tua amante. Chamo-me Tanaple. – Se és realmente o enviado de Manouza, estou pronto a obedecer às tuas ordens; mas apressa-te, aquela a quem amo está acorrentada e tenho pressa em libertá-la. – Se estás pronto, leva-me imediatamente ao teu quarto e te direi o que é preciso fazer. – Segue-me, então, disse Noureddin.

VI

Depois de haver atravessado vários pátios e jardins, Tanaple encontrou-se nos aposentos do rapaz; fechou todas as portas e disse-lhe: – Sabes o que deves fazer, tudo quanto eu te disser, sem objecção. Usarás este traje de mercador. Levarás um fardo às costas, contendo os objectos que nos são necessários. Quanto a mim, vestir-me-ei de escravo e conduzirei outro fardo.

Para sua grande estupefacção, Noureddin viu dois enormes pacotes ao lado do anão, embora não tivesse visto nem ouvido ninguém trazê-los. – Em seguida, continuou Tanaple, iremos à casa do SultãoMandarás dizer-lhe que tens objectos raros e curiosos; que se ele os quiser oferecer à sultana favorita, nenhuma huri nunca terá usado outros iguais. Conheces a sua curiosidade; ele terá vontade de nos ver. Uma vez admitidos em sua presença, não terás dificuldade em apresentar a tua mercadoria e lhe venderás tudo quanto levamos: são indumentárias maravilhosas, que transformam as pessoas que as vestem. Assim que o Sultão e a sultana os vestirem, todo o palácio os tomará por nós e não por eles: a ti pelo Sultão e a mim por Ozara, a nova sultana. Operada essa metamorfose, estaremos livres para agir à vontade e libertarás Nazara.

Tudo se passou como Tanaple anunciara: a venda ao sultão e a transformação. Depois de alguns minutos de horrível furor da parte do sultão, que queria expulsar os importunos e fazia um barulho medonho, Noureddin, conforme ordem de Tanaple, chamou diversos escravos e fez prender o sultão e Ozara como escravos rebeldes, ordenando que os conduzissem imediatamente à presença da prisioneira Nazara. Queria saber, dizia ele, se ela estava disposta a confessar o seu crime e se estava preparada para morrer. Quis também que a favorita Ozara viesse com ele, a fim de presenciarem o suplício que iria infligir às mulheres infiéis. Dito isto, marchou, precedido do chefe dos eunucos, durante um quarto de hora, por um sombrio corredor, no fundo do qual havia uma pesada porta de ferro maciço. Tomando de uma chave, o escravo abriu três fechaduras e eles entraram num grande gabinete, comprido e da altura de três ou quatro côvados. Ali, sobre uma esteira de palha, estava sentada Nazara, com um cântaro de água e algumas tâmaras por perto. Já não era a brilhante Nazara de outrora: mas continuava sempre bela, entretanto, pálida e emagrecida. À vista daquele que tomava por seu senhor, estremeceu de medo, julgando que houvesse chegado a sua hora.

(Continua na próxima publicação)

/…
(*) N. do T.: Referência ao Sr. Baudin, cujas filhas adolescentes, Caroline e Julie Baudin, foram as primeiras médiuns que concorreram para o trabalho de Allan Kardec. Vide Obras Póstumas – 2ª Parte – A minha iniciação no Espiritismo.
(**) N. do T.: Esse processo, bastante primitivo, está descrito na 2ª Parte – capítulo XIII, item 154, de O Livro dos Médiuns.


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Uma Noite Esquecida ou a Feiticeira Manouza, Milésima segunda noite dos contos árabes, Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié; – Prefácio da Revue Spirite (repetição), Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Novembro de 1858; – Uma Noite Esquecida (Segundo artigo), Janeiro de 1859, 18º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra

sexta-feira, 23 de junho de 2023

O Mundo Invisível e a Guerra ~


XXVII 

~~~ A Grande Doutrina 

 A guerra mundial (1) marcou o fim de uma época e para nós se inicia um novo período histórico, oferecendo aos homens de saber e de boa vontade uma tarefa imensa. Trata-se de refazer todo o género humano, por meio de uma educação, uma moral e de uma fé novas. É preciso mostrar às gerações que estão a passar, a meta que devem atingir, lhe ensinar o sentido profundo da vida, a nobreza do trabalho e a grande lição da morte. 

 É preciso ensinar a todos que a vida é sagrada até mesmo nos seus aspectos comuns, apesar de suas provações e de suas dores, principalmente em razão destas, já que a vida é para nós um supremo recurso de progresso e elevação. Devemos ensinar-lhes que as vidas humildes, obscuras e operosas, quando não representam o resgate de um passado criminoso, correspondem a um processo eficaz de aperfeiçoamento. 

 É preciso demonstrar-lhes a virtude do sacrifício e a vaidade das riquezas que nos prendem à matéria. É pela abnegação que o ser adquire todo o seu poder de irradiação e espalha salutar influência em tudo quanto realiza e em tudo que o rodeia. 

 Através de mil vidas, o homem deve ir conhecendo todas as alternativas do prazer e da dor, sendo esta última, inegavelmente, a mais fecunda para o seu progresso. Essa é a razão pela qual temos mais causas de pesar do que de felicidade. 

 A décima sexta Tríade (idiz: “Tudo é padecer em Abred (a Terra) porque sem isso não se pode conseguir conhecimento completo sobre coisa alguma”. 

 O homem deve ocupar, alternadamente, as situações sociais mais variadas, para passar pelas provações e adquirir as qualidades desses diversos meios. As situações fáceis nos estimulam a desenvolvermos as nossas faculdades, cultivarmos as artes e as ciências e exercermos a beneficência. As situações obscuras e de dependência nos ensinam a paciência, a disciplina, a economia e a perseverança no trabalho. 

 Ora vencido pelo destino, ora por ele servido, o homem abre caminho através dos obstáculos, porém cada vez que supera uma dificuldade sente que lhe aumenta a força, a vontade se retempera e a sua experiência se enriquece. 

 Em cada reencarnação ele retorna à vida terrena, como a uma escola saudável onde ganhará novos méritos e, recomeça a luta que deve aumentar-lhe o cabedal de energia e as riquezas do espírito e do coração. 

 Assim, de vida em vida, como a borboleta que sai da crisálida, ele sente desprender-se, pouco a pouco, da individualidade grosseira do começo, um espírito poderoso, luminoso, de sabedoria e de amor. E, de esfera em esfera, de mundo em mundo, prosseguirá a sua carreira, ligado aos seres que ama, para com eles chegar, um dia, à plenitude da ciência, da virtude e da felicidade. 
~~~
 A revelação dos espíritos efectua-se através de fenómenos cujo conjunto forma uma nova Ciência, uma Ciência que encontra, em tais factos, preciosos elementos de desenvolvimento e progresso. A Ciência convencional havia chegado aos limites finais do mundo da matéria. 

 Diante dela, agora, o Invisível se mostra com as suas imensas forças e as suas leis espirituais, sem o conhecimento de tais leis é impossível compreender a vida nas suas variadas formas e no seu progresso colossal. 

 A análise metódica e racional das manifestações colocará a Ciência em contacto com o mundo dos espíritos, aproximando as humanidades e facilitando a sua colaboração num programa de trabalho que resultará no mais amplo entendimento do universo psíquico e das condições da vida nas suas fases superiores, mas esse é apenas um dos dois aspectos de uma grande questão. 

 A Ciência é necessária, mas não é bastante, porque a corrente científica deve ter, como paralelo e complemento, a corrente popular, que levará às multidões o ensino e o conforto de que precisam. A Ciência é complexa e por isso inacessível ao maior número de pessoas. O ensino popular deve ser singelo e estar ao alcance de todos. 

 Faz cinco anos que epidemias, luto e todas as desgraças [ provenientes da guerra ]* causaram cruéis feridas à França; são inúmeras as almas que a dor atingiu e, que exigem a parcela de verdade e luz que lhes cabe. 

 Assim, devemos procurar a humanidade sofredora, mostrando-lhe as perspectivas consoladoras do Invisível e do além-túmulo, demonstrando-lhe a certeza da sobrevivência e da imortalidade da alma, a alegria de se tornarem a ver os que foram separados pela morte. 

 Devemos dirigir-nos ao povo que é desprovido de ideal, aos humildes e aos pequenos aos quais o materialismo enganou, pois só fez medrar neles o gosto pelos prazeres e os sentimentos de ódio e de inveja; devemos ir até eles levando-lhes o ensinamento moral, a alta e pura doutrina que aclara o futuro e nos mostra como a justiça se realiza por intermédio das vidas sucessivas. 

 Todos vós que amais a justiça e a procurais no estreito círculo que o vosso olhar abrange, raro a encontrareis nas obras humanas ou nas instituições deste mundo inferior. Dilatai os vossos horizontes e podereis vê-la expandir-se na série das nossas vidas através dos tempos, pela simples análise dos efeitos e das causas. 

 O bem e o mal remontam sempre às suas origens e o crime recai pesadamente sobre os seus autores. O nosso destino é obra nossa, mas só se ilumina com o conhecimento do passado e, para nos apoderarmos do seu encadeamento, é necessário contemplarmos do alto e, no seu conjunto, o panorama vivo de nossa própria história. 

 Todavia, isso só seria possível para o espírito que se encontre desligado do envoltório carnal, seja pela exteriorização durante o sono, seja pela morte. Então, das sombras e contradições do presente, aparecerá para ele, no seu esplendor e na sua soberana majestade, a grande lei que regula o progresso dos seres, da mesma forma como rege a marcha dos mundos. 

 Quando os apóstolos da causa social compreenderem e ensinarem essa nobre doutrina, nela irão encontrar fecunda fonte de inspiração. Ela lhes dará à palavra o poder de penetração, o calor que derrete os gelos da indiferença e do cepticismo, trazendo-lhes uma onda purificadora e regeneradora ao coração. 

 Espero aqui as mesmas contestações que me foram endereçadas durante certas conferências seguidas de debate público. Dir-me-ão: “Essa é a linguagem que usaram todas as opressões políticas e religiosas através dos séculos, para dominar e subjugar as multidões e, tais promessas de vidas futuras, embora apresentadas de outra forma, são sempre, no dizer de Jean Jaurès; – uma velha cantiga que acalenta a miséria humana”. 

 Pode ser que a nossa forma de ver não coincida com a teoria deste ou daquele teórico; o que procuramos, acima de tudo, é a verdade e, para descobri-la, convém que nos elevemos às serenas regiões onde as paixões políticas não chegam e onde os interesses materiais não reinam. Indagai os grandes mortos – responderei aos meus contraditores –, inspirai-vos com os seus conselhos. Eles confirmarão a existência dessas leis superiores fora das quais é inútil e estéril qualquer obra humana. 

 Enquanto limitardes o vosso pensamento aos estreitos horizontes da vida actual e não quiserdes ver nela o que ela representa na verdade, isto é, um degrau para subir mais alto, serão inúteis as vossas tentativas para criar neste mundo uma ordem de coisas que esteja de acordo com a justiça, assim como têm sido inúteis todos os esforços que o vosso talento tem realizado. 

 [ Observai o que está a acontecer lá no oriente da Europa, onde a tremenda luta de classes lança as nações num abismo, onde nenhum raio de idealismo brilha. Vede essa maré crescente das paixões desencadeadas por um materialismo grosseiro que tudo ameaça invadir! Não obstante certas teorias, o que é necessário fazer para se atingir a paz social e a harmonia é o acordo íntimo das inteligências, das consciências e dos corações e isso só nos será dado por uma grande doutrina, uma revelação superior que trace a rota humana e fixe os nossos deveres comuns. ]* 

 Afirmamos que, na história do mundo, as catástrofes geralmente são sinais precursores de tempos novos, o anúncio de que se prepara uma transformação e de que a humanidade vai passar por profundas transformações. 

 A morte abriu clareiras numerosas entre os homens, porém entidades mais evoluídas encarnarão na Terra e as legiões inumeráveis das almas libertas pela guerra pairarão acima de nós, ávidas por participar dos nossos trabalhos, dos nossos esforços, para transmitir aos que elas deixaram no mundo a confiança em Deus e a fé num porvir mais auspicioso. 

 A acção dessas almas se estende e se impõe cada vez mais, provocando testemunhos inesperados que, às vezes, vêm de bem alto. O jornal "L’Homme Livre", por exemplo, em 1º de janeiro de 1919, registava o seguinte: “Os nossos queridos mortos estão ao nosso lado e a humanidade se compõe mais de mortos que de vivos; somos governados pelos mortos”. 

 Numa oratória magnífica, na Câmara dos Deputados, Georges Clemenceau evocava os espíritos de Léon GambettaAuguste Scheurer-KestnerAlfred Chanzy e outros ilustres mortos, convidando-os a serem “os primeiros a transpor as terríveis portas de ferro que a Alemanha fechou contra nós”. 

 O próprio Presidente da República, Raymond Poincaré, disse no seu discurso de Estrasburgo: “Connosco, Alsácia, tu honrarás a memória de nossos mortos, porque tanto ou mais do que os vivos, foram eles que te libertaram”. 

 Os obreiros de nossa vitória não foram apenas esses grandes mortos, pois à frente deles vemos os Espíritos de Luz (i) que nos mostram o caminho sagrado e os altos destinos que nos aguardam. 

 É lógico que muitos homens e, não apenas os de menor valor, por meio das provações sofridas, foram curados dessa sensualidade e desse cepticismo pestilento que quase levaram a França à perdição. 

 Actualmente, um grande sopro passa pelo mundo, conduzindo as almas para uma síntese onde tudo o que existe de bom e verdadeiro nas antigas crenças se vem juntar às obras da Ciência e do pensamento moderno, formando um instrumento valioso na educação e na disciplina sociais. 

 Entretanto, às vezes a sombra se condensa e a escuridão da noite se torna maior à nossa volta, multiplicam-se os perigos e terríveis ameaças pesam sobre a civilização, porém nessas horas sentimos mais perto de nós os nossos grandes irmãos do Espaço. 

 Os seus fluidos vivificantes nos amparam e nos penetram. Graças a eles acendem-se, no horizonte, clarões de aurora que iluminam o nosso caminho. No meio do caos dos acontecimentos, um novo mundo se delineia... 

/… 
(1) Primeira guerra mundial 1914-1918. Adenda desta publicação. 
Parênteses atribuídos por esta publicação. 


Léon Denis, O Mundo Invisível e a Guerra, XXVII A Grande Doutrina, 43º fragmento e o último desta obra. 
(imagem: Dois soldados um alemão e o outro britânico, no dia de Natal durante a primeiraguerra mundial (1914), aquando de um cessar-fogo promovido pelos próprios soldados, alemães, britânicos e também franceses, ao longo de uma semana trocaram saudações, cantaram músicas e chegaram a trocar presentes)