Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 17 de dezembro de 2022

O Homem e a Sociedade ~


O SIGNIFICADO ESPÍRITA do Materialismo Dialéctico 
(III de III) 

  O que os materialistas dialécticos não deveriam ignorar é que o conceito de movimento traz como consequência um conceito idealista da natureza, quando se reconhece o movimento como a origem das formas. 

  O movimento levará sempre a um espiritualismo dinâmico, o que nos faz reconhecer que o materialismo histórico, para permanecer como um verdadeiro materialismo, não devia adoptar a dialéctica de Hegel, já que ela, queira-se ou não, desembocará numa concepção idealista do homem da vida. A filosofia espírita apresenta ao materialismo dialéctico uma interpretação nova do espírito, baseada na teoria do perispírito, mediante a qual demonstra a substancialidade do Ser e da Ideia, antes considerados como puras abstracções. Por isso, disse Gustave Geley: "A noção do perispírito suprime a grave objecção, feita continuamente ao espiritualismo, quanto à dificuldade de conceber a própria alma sem nenhuma forma definida.” 

  Com a teoria do perispírito, o movimento, como as formas materiais, resultam numa consequência da vida Universal. Com ela aparece uma teleologia do Ser, sendo a dialéctica a causa da expansão psíquica dos seres e, o perispírito o receptor da força e da inteligência. O materialismo dialéctico não conseguiu nunca explicar como se produz na mente do indivíduo a pantomnésia, isto é, a conservação da individualidade e das recordações. Porque, se o processo dialéctico é também mental, em virtude de que princípios a memória regista as impressões do mundo exterior e permanece inalterável à consciência do indivíduo? Além disso, que essência misteriosa protege o pensamento, se o movimento o renova totalmente e tudo é e não é ao mesmo tempo? Por que, se ninguém se banhará duas vezes no mesmo rio, a inteligência continua sendo a mesma, sem esquecer as suas aquisições e conhecimentos? Numa palavra, quem preserva a coesão individual e a memória, se tudo está exposto ao processo dialéctico? 

  Eis aqui, pois, os pontos capitais a que o materialismo histórico deverá responder. 

  O espiritismo pode solucionar o problema, dizendo que o Ser espiritual se mantém inalterável no meio do processo dialéctico, devido ao perispírito, no qual se resumem toda a sua inteligência e a sua individualidade. O Ser, com efeito, sustenta-se no perispírito, órgão que não pode ser alterado pelas leis do movimento dialéctico. Como veremos, esta interpretação do homem sobrepuja completamente a interpretação materialista da história. Assim, já não é somente o factor económico que determina as condições políticas, artísticas, religiosas e, outras da sociedade, pois nelas intervêm também os elementos espirituais. Porque, se a vida espiritual do homem dependesse exclusivamente dos modos de produção, não existiriam espíritos com sentido de justiça: a inteligência estaria ao nível das formas imperfeitas da sociedade. 

  Não obstante, as formas capitalista e socialista são a consequência de estados de consciência, respondendo a dois graus de evolução intelectual e mental do indivíduo. Estes dois graus de evolução deveriam explicar-se pelo estado moral do perispírito, base de todas as sensações do Ser e, pelo maior desenvolvimento palingenésico do homem. Se é certo que os modos de produção aperfeiçoam e ampliam a técnica, vemos, entretanto, que os referidos factores são incapazes de criar no organismo humano novos membros, que o indivíduo pudesse utilizar em seu proveito. Esta impotência dos modos de produção permite à filosofia espírita estabelecer a seguinte conclusão: 

  Se a mão foi o primeiro instrumento do qual se valeu o homem, na sua luta pela existência, este mesmo facto nos indica que é sempre a Ideia, ou o Espírito, que rege a realidade objectiva, por intermédio de um órgão material. 

  E a isto, para sermos mais explícitos, devemos acrescentar que não foram as forças produtivas da economia que desenvolveram as mãos no indivíduo, mas o próprio poder de materialização do Ser, já que os modos de produção em nada alteraram as formas anatómicas do homem. Podemos dizer que as formas orgânicas do indivíduo não foram tocadas pelo processo dialéctico da economia, o que nos mostra a existência, na natureza humana, de um princípio psíquico que não poderá ser alterado por nenhuma espécie de influência exteriores. 

  O desenvolvimento ou aparição de asas nas espécies voláteis não tem origem de carácter económico, mas corresponde apenas a uma finalidade do perispírito (i) desses seres. O aparecimento das faculdades metapsíquicas na espécie humana não se deve tampouco a qualquer tipo de determinismo económico. O seu desenvolvimento corresponde a factores espirituais que o homem traz em si mesmo, e que irão aumentando à medida que ele avance através do processo palingenésico. 

  Entretanto, os factores económicos são elementos que podem influir indirectamente sobre o desenvolvimento metapsíquico do homem. Por isso, no seu aspecto social, a filosofia espírita revela um sentido nitidamente socialista. Um povo economicamente pobre não poderá desenvolver com facilidade o sentido psíquico da vida espiritual; não terá oportunidade para isso, visto que a pobreza sempre engendra o raquitismo. O desenvolvimento de qualquer faculdade metapsíquica nos homens e nos povos requer a organização de uma sociedade próspera, no sentido económico; as nações pacíficas e felizes são as que mais prontamente se aproximam das realidades do mundo invisível. 

  O materialismo dialéctico deverá reconhecer que a vida do homem tem uma finalidade transcendental. Desse modo poderia conter, como parece desejar, os erros do existencialismo. Porque, se o homem e o cidadão, a sociedade e a história, não possuem uma suprema teleologia espiritualde nada valerá o esforço para instituir na Terra uma sociedade sem classes. Se o homem, repetimos, é um Ser para a morte e para o nada, como o admite o existencialismo ateu, pouco importa que existam ou não classes exploradoras, pois tudo há de terminar na gélida noite do sepulcro. Em compensação, se o Ser é uma individualidade espiritual para a vida eterna, poderão justificar-se as diversas lutas em prol de uma sociedade justa e perfeita. (1) 

  A filosofia espírita, que experimentalmente pode provar a existência imortal do Espírito, é uma vigorosa ideologia que poderá inspirar todo o homem que se sacrifique pelo bem e pela igualdade. Se o materialismo dialéctico quer enveredar por este novo caminho da filosofia e da ciência, deverá espiritualizar as suas conclusões e reconhecer que, nos diversos processos da evolução, todo o princípio material tem o seu espírito e, todo o princípio espiritual tem a sua matéria. Desta aproximação entre o material e o espiritual surgirá a mais extraordinária das revoluções, que dignificará o homem, como em nenhum outro período da história. 

 /… 
(1) Os materialistas lutam estoicamente por um futuro que nega o seu objectivismo e os coloca no plano do idealismo. Mariotti acentua essa contradição, dialecticamente resolvida pelo espiritismo. (Nota de José Herculano Pires). 


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo V – O Significado Espírita do Materialismo Dialéctico (III de III), 10º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali)

sábado, 3 de dezembro de 2022

Deus na Natureza ~


~ a vontade do homem ~ 
(IV) 

  A nacionalidade, o clima, a natureza dos alimentos, a educação, não bastam para constituir caracteres inteligentes e indómitos! No carácter humano a energia é, realmente, poder central, o eixo da roda, o centro de gravidade. Só ela dá impulsão aos actos. 

  Essa força mental é a própria base e a condição de toda a esperança legítima e, se é verdade que a esperança é o perfume da vida; o poder mental há-de ser a raiz dessa planta preciosa. 

  Ainda mesmo que as esperanças se desvaneçam e a criatura sucumba nos seus esforços, resta-lhe a satisfação de haver trabalhado para vencer e, sobretudo, que, longe de ser escrava da matéria, se manteve fiel às regras, por vezes árduas, que a honestidade impõe. Haverá espectáculo mais belo e digno de elogios que o de um homem a lutar energicamente com a sorte, a demonstrar que lhe palpita no seio uma força imperecível, a triunfar pela grandeza de carácter e a prosseguir corajoso e resoluto, ainda “quando lhe fraquejam as pernas e sangram os pés”? 

  Em sentido menos generalizado que o destes grandes factos precedentes, temos visto exemplos particulares de vontades poderosas a realizar milagres. Os nossos desejos são, muitas vezes, os precursores da capacidade de realização, bastando intensificá-los para que a possibilidade se resolva na realidade. 

  Se de um lado as vontades de um Napoleão e de um Richelieu riscam dos dicionários a palavra impossível, por outro existem os vacilantes, a quem nada se afigura possível. 

  “Saiba querer energicamente – dizia Lamennais a um espírito enfermo –, fixe a sua vida flutuante e não se deixe levar por todos os ventos, qual folha murcha desgarrada do tronco.” 

  Pessoalmente, temos conhecido criaturas exaltadas, que, depois de terem estado com um pé na sepultura, recuaram de espanto perante o esplendor da vida que pretendiam abandonar e resolveram conservá-la. Estes exemplos são raros, por só serem possíveis quando o corpo não esteja tocado pela mão da morte. E, no entanto, existem. Um escritor inglês, Walker, autor de O Original (e que não deixa de revelar uma certa originalidade na sua determinação) resolveu um dia vencer a enfermidade que o acabrunhava, conseguindo admiração dali por diante. 

  Os fastos militares oferecem-nos o exemplo de vários chefes que, velhos ou doentes, logo que ouvindo no momento decisivo da batalha que os seus comandados desertavam, se atiravam para fora da tenda, assim se reuniam e conduziam à vitória, para logo depois tombarem exaustos e exalarem o último suspiro. 

  Não somente a vontade, mas também a imaginação domina a matéria, contradiz o testemunho dos sentidos e origina, às vezes, ilusões absolutamente alheias ao domínio físico. 

  Expliquem-nos como pode morrer um homem quando, com uma simples picada, os médicos lhe sugerem que o sangue escorre da veia rasgada. (Este e outros factos estão judicialmente averiguados.) Que nos expliquem como a imaginação cria um mundo de quimeras, que actuam activamente no organismo e se reflectem na saúde. 

  Ao demais, tão forte e autónoma é a vontade, que as influências ambientes tão precárias se afirmam, para explicar a marcha da vida intelectual, que, a maior parte das vezes, não a atrapalham e, ao contrário, nos induzem a proceder com energia tanto maior, quanto mais prementes são os obstáculos que se nos deparam. Todos quantos se votam a tarefas intelectuais dirão connosco que a fase em que mais operaram na sua carreira foi precisamente a de maiores dificuldades na vida prática e que a vontade é qual os rios que seguem destruindo e vencendo os acidentes do seu curso, não obedecem a barragens e até se encrespam e se precipitam mais impetuosos, quanto mais sólida e alta é a muralha que se lhes opõe. Quando o sucesso e a glória vêm coroar os nossos trabalhos e após uma faina longamente sustentada a reacção vem convidar-nos ao repouso, nele nos deixamos efeminar pelas delícias de Cápua e já o fogo da inspiração não nos acende auroras na mente. O trabalho pessoal da vontade é condição sine qua non do nosso progresso. 

  Na polémica acerca da existência da vontade, a questão muito longa e inutilmente contestada, do livre-arbítrio, não pode ficar sem o seu ponto de interrogação. Os adversários negam-no-lo absolutamente e proclamam, como vimos e suficientemente comentámos, que todas as realizações humanas são o resultado necessário de causas ou oportunidades emergentes à revelia da reflexão, sem que esta lhes possa mudar o curso. O pensamento não é mais que o movimento físico da substância cerebral. Esse movimento procede do sistema nervoso, afectado, a seu turno, por um movimento exterior. 

  O movimento pensante, por sua vez, reage sobre os nervos e os músculos e determina os actos. Em toda esta sucessão não há movimentos materiais transmitidos. Eu imagino de bom grado o encontro de um cristão com um discípulo de Holbach no sótão de um desses ateliês, cujas portadas se protegem com a clássica estatueta de Hipócrates travando o seguinte diálogo: 

  – É facílimo demonstrar que o pensamento é produto da matéria – dirá o holbaquiano –. Eis, por exemplo, uma locomotiva que se precipita veloz ao vosso encontro. A visão da locomotiva ou, para falar fisicamente, o raio luminoso partido dessa máquina atinge o vosso globo ocular e provoca um dado movimento distensivo do nervo óptico... Por intermédio desse mesmo nervo o movimento se transmite ao cérebro. Depois, o movimento cerebral, tornando-se causal, por sua vez acciona os nervos correspondentes às pernas e estas começam a correr e a levar-vos para fora da linha. É evidente, pois, que em tudo isto não utilizas uma partícula de liberdade qualquer. A vossa atitude deriva, necessariamente, da impressão visual da locomotiva. 

  – Mas, perdão – retorquirá o outro – e, se eu, por um capricho de suicida, aliás comum, tivesse deliberado permanecer na linha até que a locomotiva me esmagasse? Não praticaria dessarte um acto voluntário e de livre-arbítrio

  – Absolutamente. A não ser que houvesse enlouquecido e tivésseis premeditado e maturado o plano do suicídio, nem por isso ele deixaria de ser o resultado de causas predispostas e, portanto, involuntário. 

  – Admitamos que assim seja, quanto ao momento decisivo, uma vez que matar-se a gente sem motivo seria imbecil. Mas, pergunto ainda: quanto ao género de morte, não poderia escolher a corda, o veneno, a queda de uma torre, a bala, etc., em vez de me atravessar na linha férrea? Não terei, pelo menos, a liberdade de opção? 

  – Desenganai-vos. Se vos decidirdes pelo esmagamento, será porque existe próximo uma linha-férrea; ou por imaginardes ser esse um processo mais rápido, menos doloroso; ou por vos repugnarem outros géneros de morte, etc. 

  – Mas, de qualquer forma, sempre se conclui que escolhe... 

  – Jamais! É que uns tantos movimentos se operaram no órgão da reflexão. Seria um causado pelo aspecto de uma força, o outro pelo necrotério; pela imagem de um crânio partido, pela hipótese de um tiro falhado, das angústias da asfixia e assim por diante. O movimento correspondente ao esmagamento pelo comboio seria, então, o que se afigurava menos desagradável e, dominando os demais, decidiria da vossa sorte. 

  – Mas, se eu tivesse, por exemplo, conflitos com um irmão e, em lugar de postar-me na linha, fosse, por determinação dos movimentos correspondentes a tais agravos, levado a atirar sob as rodas do comboio o corpo do meu irmão, tinha ou não a liberdade de o fazer? Seria responsável, ou não? 

  – Não entremos em tricas jurídicas... 

  – Pois muito bem: voltando ao nosso suicídio, dissestes que eu teria escolhido um género de morte determinado por uma causa qualquer. Ora, isso é claro, pois de outro modo, para falar com franqueza, escolher sem uma causa determinante, é estúpido. Mas, como podem tais causas actuar materialmente? 

  – Por um revés de sorte perdeis a tranquilidade e o bem-estar. Habituado à fartura e a todos os regalos do corpo e do espírito, encontrais-vos de chofre na maior miséria. O constrangimento, as restrições do vosso organismo, a alteração de hábitos, actuam sobre o cérebro, que, perante a perspectiva de morte lenta e miserável, decide antecipá-la desde logo. São sempre, como vedes, movimentos físicos. 

  – Mas... se forem desgostos de família, decepções amorosas, medo da desonra, causas de ordem moral, em suma? 

  – Não existe ordem moral. 

  – Já esperávamos por essa. E é assim que pretendeis nada afirmar sem provas? É assim que presumis interpretar fielmente o ensino da Ciência? Tomemos um último exemplo, vede bem! Eis aqui, em descanso, a minha mão direita; nada me obriga a erguê-la... Agora, contudo, quero fazê-lo e o faço... Agi livremente, ou não? 

  – Não. Houve uma razão determinante, como a de provar o vosso arbítrio e suscitada pela vossa conversa anterior. Esta, por sua vez, originando-se de factos precedentes, desde que nascestes. A vida mental, como a material, ou para melhor dizer – única, não passa de uma sucessão necessária de causas e efeitos a se entrosarem naturalmente. 

  – Vede ainda: tenho a mão suspensa. Agora, imaginai que a movimento num círculo e a espalmo, chapada, na vossa cara. Tendes uma sensação de ardor, exaltamento imediato e já ruborizado, gritareis: que é isso? Mas, antes que possais reagir de facto, digo-vos: 

  – De que vos admirais? Então, este sopapo não é consequência inevitável do movimento da mão, da fantasia desse lóbulo que opera acima do ouvido, junto das zonas protectoras da apófise mastóidea e da sutura occipto-parietal, etc.? E tal não se dá, de sucessão em sucessão, desde os primórdios do mundo? 

  – Caro senhor, tendes na verdade exemplos edificantes, que muito me impressionam. Tenho, para mim, que tudo isso não passa de um movimento em série da dipotasshydorylhydroxamina no vosso lóbulo frontal e dado que, em consequência desses movimentos, tomásseis de uma faca para me esfolar vivo, seria cómico que me formalizasse. Mas, para encerrar a questão, uma vez que preciso retirar-me, dizei-me: – não pensais com Espinoza que a nossa pretensa liberdade não passa de aparência e que, “tendo consciência dos nossos actos, nem por isso lhes conhecemos a causa?”. Não admitis, com Hurne, que o “homem tem consciência, não do princípio dos seus actos, mas tão somente dos actos em si, apenas como fenómenos”? Todo o movimento cerebral nos vem do exterior, pelos sentidos e a excitação do cérebro; o pensamento é um fenómeno material, como o próprio pensamento. A vontade é a expressão necessária de um estado cerebral produzido por influências exteriores. Não há vontade livre; não há concretização de vontade independente da soma de influências que a todo o momento inspiram o homem e lhe impõem, ainda, os mais poderosos limites invioláveis”. 

  Assim falaria, porque assim falam os discípulos de Holbach. No parecer deste (ii), “a liberdade não é mais que a necessidade encerrada dentro de nós. Não há diferença entre o homem que se atira voluntariamente e o que é atirado de uma sacada abaixo, senão que ao primeiro a impulsão lhe vem de dentro e ao segundo lhe chega de fora do seu maquinismo”. 

  Contudo, há casos peremptórios, nos quais pensamos poder constatar o livre-arbítrio, como, por exemplo, na atitude de um homem que, possuído de grande sede, repele dos lábios o copo d'água, logo que lhe dizem que esta contém veneno. Mas, temos o direito de supor que esse homem assim proceda livremente? A vontade, ou, melhor, o cérebro se encontra em estado comparável à bola que, recebendo um impulso em certa direcção, desta se desvia logo que intervenha uma força maior que a primeira. 

  Holbach nos dá uma fórmula aritmética da liberdade: As acções do homem são sempre um misto de energia própria e dos seres que sobre ele actuam e o modificam (iii)

  Respondemos a essa negação integral da liberdade com uma doutrina que, sem nos investir de um arbítrio absoluto, uma vez que as influências exteriores actuam constantemente para atenuar esse absoluto, nem por isso deixa de nos dar uma liberdade real, uma responsabilidade íntima, um livre-arbítrio incontestável. O assunto é mais complexo do que parece aos profanos e temos uma permanente manifestação de sua dificuldade na sucessão secular das crenças religiosas, que oscilam entre o fatalismo e a graça divina. Maomé arvorou-o estandarte do fatalismo; Calvino só vê a predestinação, enquanto Lutero consagra o livre-arbítrio absoluto. A verdade, pensamos, está entre os extremos. O número de partes teológicas concernentes à graça divina é incontável e compreende-se que, nesta época, é tempo perdido para aquele que se emprega nestas elucubrações. Contudo, é sempre útil saber o que devemos pensar da liberdade. Nós, pelo menos, assim o consideramos com Spurzheim, quando a respeito escreveu aquelas páginas sensatas, quando assim pondera o controverso assunto (iv)

  A palavra liberdade é empregada num sentido mais ou menos lato. Há filósofos que atribuem ao homem uma liberdade ilimitada. A seu ver, o homem cria, por assim dizer, a sua própria natureza, adquire as faculdades que deseja e age independente de qualquer lei. Uma tal liberdade está em contradição com um ser criado. Tudo quanto possam dizer a seu favor não passará de declamações enfáticas, desprovidas de senso e de veracidade. 

  Outros há que admitem uma liberdade absoluta, em virtude da qual o homem age sem motivo. Isso, porém, é presumir efeito sem causa, é isentar o homem da lei de causalidade. Seria uma liberdade contraditória de si mesma, podendo proceder-se no mesmo caso bem ou mal, mas sempre sem motivo. Inúteis seriam, então, todos os institutos de finalidade beneficente, individual ou colectiva. De que serviriam as leis, a Religião, as penalidades e recompensas, se nada determinasse o homem? Por que esperar de outrem amizade e fidelidade, antes que ódio e perfídia? Promessas, juramentos, votos, tudo ilusão! Uma tal liberdade nada tem de real, não passa de especulativa e absurda. 

  Precisamos, ao contrário, reconhecer uma liberdade concorde com a natureza humana, liberdade que a legislação pressupõe, liberdade raciocinada

  Três são as condições fundamentais da liberdade legítima: em primeiro lugar, é preciso que a criatura possa escolher entre os vários motivos. Seguindo o motivo mais forte, ou agindo só por prazer, já se não opera com liberdade. O prazer não é mais que uma falsa aparência de liberdade. A ovelha que mastiga a erva com prazer não está a exercer um acto livre. 

  Obedecendo a um desejo mais forte, também o animal, quanto o homem, não o pratica livremente, tampouco. A condição principal da liberdade é a inteligência, ou a faculdade de conhecer e escolher os motivos. Quanto mais activa a inteligência, mais ampla a liberdade. Os idiotas natos, as crianças até uma certa idade, têm, às vezes, desejos muito enérgicos, mas ninguém os considera livres, visto não possuírem inteligência bastante para distinguir o falso do verdadeiro. Os homens melhor educados e os mais inteligentes são os de quem, mais que dos ignorantes, deploramos as faltas. À medida que se elevam na série das faculdades intelectivas, os animais se vão tornando mais livres e modificam mais individualmente os seus actos, de acordo com as circunstâncias exteriores e com as lições da sua prévia experiência. Se empregamos a violência para impedir o cão de perseguir a lebre, ele se lembrará das pancadas que o aguardam e, irascível e trémulo ao império dos próprios desejos, não deixará de ceder. O homem, superior a todos os seus irmãos da escala zoológica, é, por sua própria natureza, o ser que goza de liberdade no grau mais eminente. Só ele procura encadear efeitos e causas, comparar melhor o presente e o passado e, daí tirar conclusões para o futuro. Pesa as razões, detém-se nas que lhe parecem preferíveis, conhece a tradição. O seu raciocínio decide e perfaz a vontade esclarecida, muitas vezes contrariamente aos seus desejos. 

  Uma última condição da liberdade é a influência da volição sobre os instrumentos que devam operar as suas ordens pessoais. O homem não é responsável pelo desejo ou por faculdades afectivas dele independentes. A responsabilidade individual começa com a reflexão e com a possibilidade de proceder voluntariamente. No estado de saúde os instrumentos operatórios subordinam-se à influência da vontade. A fome é involuntária, mas, se ao senti-la, eu me abstiver de comer, exerço a influência da minha vontade sobre os instrumentos do movimento voluntário. A cólera é involuntária, mas eu não sou forçado a maltratar quem me provoque, só porque a minha vontade influi nos meus músculos. Perdido o domínio dessa influência, então sim, o homem já não é livre. É o que amiúde sucede com os alienados, que experimentam desejos, reconhecem a sua inconveniência, chegam a maldizê-los, mas não têm a força de restringir os movimentos involuntários, chegando mesmo, algumas vezes, a pedir que lhos embarguem. 

  A liberdade moral é a própria base da sociedade e se ela não passa de ilusão, todo o género humano, tanto as nações incipientes como as mais civilizadas, que cultivam a Ciência e governam a Matéria, bem como os povos remotos, toda a Humanidade, – repetimo-lo – ter-se-ia deixado iludir pelo mais colossal dos erros que ainda existiu, depois de enveredar pela senda mais falsa e injusta que possamos imaginar. Mas... que dizemos: – injusta? Neste sistema, essa palavra nada significa e visto que o bem e o mal não existem; uma vez não haver ordem moral, é claro que todas as palavras concernentes à descrição dessa ordem, todos os pensamentos e julgamentos carecem de sentido. E, contudo, a menos que abstraiamos a própria consciência, não podemos anuir a semelhantes conclusões. 

  Quaisquer que sejam as conclusões teóricas a que cheguem os lógicos na questão do livre-arbítrio – dizia Samuel Smiles –, todos sentimos que somos praticamente livres de escolher entre o bem e o mal. Não somos o seixo que, lançado na torrente, apenas pode seguir o curso das águas. Ao contrário, sentimos em nós a força do nadador, que pode escolher a direcção conveniente, lutar contra a corrente, ir mais ou menos aonde lhe agrada. Nenhum constrangimento absoluto nos impede a vontade. Sentimos e sabemos, no concernente aos nossos actos, que não somos encandeados por qualquer espécie de magia. Todas as nossas aspirações para o bem e para o belo ficariam paralisadas se pensássemos de modo diferente. Todos os negócios, a nossa conduta na vida, o regime doméstico, os contractos sociais, as instituições públicas, tudo, enfim se baseia na noção prática do livre-arbítrio. E sem ele, onde estaria a responsabilidade? De que serviria ensinar, aconselhar, predicar, reprimir, punir? Para quê as leis, se não houvesse uma crença universal como o próprio facto universal, de que dos homens e da sua determinação depende conformar-se ou não? O homem que melhor evidencia o seu valor moral é o que se observa a si mesmo, dirige as suas paixões, vive conforme a regra que se impôs, estuda as suas aptidões e as suas falhas. 

  Eis, verdadeiramente, o homem: a sua grandeza está na sua liberdade. Não fora livre o homem, não se lhe permitiria ter fome e sede, nem comer nem beber; nem senhorear, em coisa alguma, as tendências do seu corpo. A ordem social não se teria constituído. 

/… 
(ii) Systéme de la Nature, parte 1ª, capítulo 1º, página 223. (iii) É claro que sem liberdade não há moral nem virtude. Depois de falar em “forças soberanas”, “leis indestrutíveis que constrangem”, o Sr. Taine (i) acrescenta: Quem se revoltará contra a geometria, principalmente, contra uma geometria viva – Noutro lanço, pergunta, a propósito de um trecho de Byron (i) sobre os amores de Haydéa, como se pode deixar de reconhecer a divindade, não apenas na consciência e no acto, mas no próprio gozo? Quem há que tenha lido os amores de Haydéa – exclama ele – e experimentasse outro pensamento, que não o de invejá-la e deplorá-la? Quem pode, à margem das magnificências da Natureza que os acolhe e lhes sorri, imaginar por eles outra coisa além da sensação que os une!” Bayle (i) admite, por outro lado, que vícios e virtudes têm em nós a mesma origem – a força das paixões. A esse conceito, adita o casta est quam nemo rogavit, etc. A mulher mais virtuosa é detida, antes pela má reputação, do que pelo fruto proibido. – Nós nos regozijamos de pensar que a virtude é mais sólida do que estas teorias. (iv) Essai Phylosophique sur la Nature Morale et Intellectuelle de l’Homme


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte; (3) A Vontade do Homem (4 de 6), 30º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sábado, 12 de novembro de 2022

o grande desconhecido ~


Amor, sexualidade e casamento ~ 

No Espiritismo o problema do amor implica a relação directa do homem com Deus. O Criador e a criatura religam-se no desenvolvimento humano da lei de adoração. Quanto mais o homem desenvolve as suas potencialidades existenciais, mais o seu potencial ôntico se aproxima de Deus, mais o sente e mais o compreende. Nunca houve nem poderia haver um rompimento total e definitivo entre O Criador e a criatura. No próprio dogma da queda a expulsão do homem da face de Deus é apenas temporária. Por isso o Espiritismo é Religião, mas não é igreja. A diferença entre Igreja e Religião é a mesma que existe entre a alma e o corpo. O homem perde o corpo na morte, mas não perde a alma. A Religião anunciada por Jesus por não possui corpo, é alma pura, que sobrevive por si mesma. No diálogo com a Mulher Samaritana, Jesus desprezou o Templo de Jerusalém e o Templo do Monte Gerasin, referindo-se apenas à Religião Livre do Futuro. Porque a relação religiosa é puramente espiritual. A Religião não depende de formalismos, sacramentos, instituições e órgãos. É subjectiva e define-se como o Amor a Deus. Essa relação directa exclui naturalmente todas as formas de discriminação, pois o seu objectivo é a unidade. Quando uma criatura se liga a Deus, liga-se ao mesmo tempo a todas as criaturas e a todo o Universo, integra-se na realidade absoluta. Tudo o mais são coisas humanas, pertence à diáspora, ou seja, ao tempo do exílio, em que o homem se afastou de Deus. Esta simplificação da Religião só acontece na máxima complexidade, que é o mergulho do homem na sua essência, proveniente de Deus e que é o próprio Deus em nós. Exemplifiquemos humanamente esta questão. Conta-se que um sábio indiano mandou três filhos seus estudar na Inglaterra. Quando voltaram diplomados perguntou ao primeiro: “O que é Deus”? O rapaz fez uma longa e confusa digressão a respeito. O segundo vacilou na sua explicação e disse que precisava estudar melhor o assunto. O terceiro calou-se e os seus olhos se encheram de estranha névoa luminosa. Disse o pai aos três; por ordem das perguntas: “Você, meu filho, procurou Deus nas teologias e não conseguiu encontrá-lo; você, meu segundo filho, está tateando no escuro como um cego; e por último você, meu filho, que não me respondeu, encontrou Deus e nele mergulhou de tal maneira que não pode traduzi-lo por palavras. Você não perdeu tempo com as coisas exteriores e por isso foi o único que realmente aprendeu o que é Deus.” 

A contradição máxima complexidade e máxima simplicidade não é contradição, mas fusão. A complexidade infinita das coisas e dos seres no Universo aturde o homem que busca Deus, mas ao encontrá-lo o homem percebe, logo, que toda a complexidade se funde na Existência Única de Deus. É como o marinheiro que navegou por muitos mares, surpreendido com a variedade e as diferenciações formais de todos eles, mas ao terminar a sua navegação constata que todos os mares não são mais do que o Grande Mar. 

A religião em Espírito e Verdade é esse Mar Total em que todos os mares e todas as águas se reúnem numa só coisa. 

Todas as religiões nasceram da mediunidade, que é o fundamento de todas as religiões, que por sua vez se fundem na Religião em essência que é a Religião do Espírito ou o Espiritismo. Nela não se precisa de coisas específicas, pois todas as coisas se fundem numa só – o Amor a Deus. 

Um jovem e uma jovem se amam e o amor que os atrai é o Amor de Deus nas criaturas. A bênção do amor já os ligou e eles não necessitam de palavras, ritos ou sacramentos para se unirem, pois já estão unidos. Se não houver amor entre eles, não estão unidos e de nada valerá a união formal por meios sacramentais. É por isso que no Espiritismo não há sacramentos nem formalismo algum, pois tudo depende, em todas as circunstâncias, da essência única – e única verdadeira – que é o Amor. 

Mas o Espiritismo reconhece a necessidade humana de disciplinação social e, por isso recomenda apenas o casamento civil. Ainda por isso o Espiritismo reconhece a necessidade do divórcio, pois no plano ilusório da matéria as criaturas confundem-se e misturam sexualidade e desejo com o Amor. Jesus, respondendo aos judeus por que motivo Moisés permitia o divórcio, disse-lhes: “Por causa da dureza dos corações, mas no princípio não foi assim.” Kardec explica que no princípio da humanidade o amor era espontâneo, livre de injunções estranhas e, então não era necessário o divórcio. O Espiritismo não faz casamentos nem divórcios, nem a anulação de casamentos que a Igreja faz, pois esses problemas pertencem às leis humanas. Da mesma maneira o Espiritismo não faz baptizados – pois o baptismo é do espírito – nem recomenda defuntos ou distribui bênçãos, pois que todas essas coisas não são feitas pelos homens e sim por Deus. Todos os sacramentos e formalismos são substituídos no Espiritismo pela prece, que serve em todas as ocasiões da vida e da morte, pois é um momento de ligação do homem com Deus, o diálogo com o Outro, como queria Kierkegaard. Toda intervenção humana interesseira e venal é substituída pela serena confiança nas bênçãos gratuitas do Céu. Nesse acto humano de louvor ou de súplica, desprovido de aparatos exteriores, a presença da Divindade é o cumprimento da promessa de Jesus, sem nenhuma evocação formal. A solidariedade espiritual revela-se no esforço de transcendência vertical das criaturas, conscientes da lei da sublimação. Não há fórmulas orais nem gestos, nem signos ou mitos na tranquila vibração das consciências na intimidade de todos e de cada um. 

A prece espontânea brota das profundezas do ser com a naturalidade de uma flor que desabrocha. Não é um acto de vontade, mas um aflorar do espírito. Não é uma ficha arrancada do arquivo da memória, mas um impulso do coração. As raízes latinas: prex, precis, determinaram no tempo, através dos séculos e dos milénios, a forma leve e suave da palavra portuguesa prece, que soa nos lábios como um bater secreto de asas minúsculas. Prefere-se prece à oração, porque a primeira condiz e harmoniza-se com o acto interior e invisível com que a alma se lança na transcendência. Há um mistério subtil nessa escolha intuitiva desse par de sílabas poéticas que repercutem nos corações como o perpassar da brisa por entre as pétalas. Não tentamos fazer poesia nem divagar, mas descobrir pelas imagens e as palavras, o imponderável do instante da prece. 

Os que não se contentam com esse sopro do espírito, esse pneuma grego, esse frémito inaudível, captado mais pela alma do que pelos ouvidos, preferindo orações extensas e grandíloquas, estão ainda imantados dos formalismos sacramentais. Nada revela mais claramente a natureza intimista da religião espiritual do que essa preferência espírita pela prece. Livrar a criatura do peso da matéria, para que ela possa elevar-se a Deus no silêncio de si mesma é a finalidade da prece. 

Do problema da prece temos de passar à questão sexual, o que não seria recomendável ainda há pouco tempo. O tabu sexual fechava todas as passagens a atrevimentos dessa espécie. As marcas da era fálica haviam aterrorizado o Cristianismo Primitivo, que teve de lutar tenazmente contra a depravação romana e o paganismo em geral. As epístolas de Paulo mostram-nos o desespero do Apóstolo perante o comportamento animal dos conversos em certas igrejas, particularmente na de Corinto. Isso impediu o Apóstolo, já assustado com a corrupção grega e romana no próprio Judaísmo, a tomar uma atitude radical no tocante ao sexo. O falso conceito judeu da pureza (mais racial e religioso do que moral), provocava os seus brios de antigo Doutor da Lei contra o perigo da época. Das reacções de Paulo e do puritanismo hipócrita dos fariseus teria de nascer uma era anti-fálica e anti-sensual, voltada para o extremo oposto da castidade forçada e do celibato sacrificial. Foi tão violenta essa reacção que nem mesmo os exemplos de mentalidade aberta do Cristo puderam atenuá-la. Não somente o sexo, como instrumento de perdição, mas a própria sexualidade foram condenadas sumariamente. Por pouco a prática judaica da circuncisão, que alguns apóstolos mais afoitos, como Pedro, exigiam dos conversos pagãos, não se transformou na castração árabe dos haréns. É significativo o facto de Paulo, depois da circuncisão que praticou se recusar a continuar circuncidado e até mesmo a baptizar com água. 

Houve também, como teria de haver, reacções contrárias a essa posição extremada, com liberalidades também extremadas, que mais tarde resultariam no episódio dos Libertinos do Século XX, católicos e protestantes rejeitados pelas ideias renascentistas, precursores da fase actual de libertinagem que abalaram o mundo. A pornografia assustadora de hoje, que fomenta a indústria das perversões sexuais em revistas, jornais, cinema e televisão, é por sua vez um novo eclodir da sensualidade sem freio, desvirtuando o sentido natural da sexualidade. São esses os balanços de um barco de loucos atirado à fúria de tempestades marítimas, à semelhança do Barco dos Mortos de B. Traven. A contra-reacção da moral vitoriana inglesa não fez mais do que preparar a sua própria explosão, na fase actual do homossexualismo europeu desenfreado, que parece vingar a prisão de Oscar Wilde em Reading. 

A sexualidade afrontada encontrou em Marcuse o seu filosófico defensor, mas em termos exagerados. Desde o século passado o Espiritismo colocou nos fundamentos de toda a realidade terrena a questão do princípio vital, elemento mantenedor de toda a vida planetária. A sexualidade, que não é o sexo, mas a potência sexual geradora e mantenedora de vida, é a carga de energia vital do planeta, distribuída nos indivíduos de todas as espécies. Na era fálica essa força era cultuada mas não havia libertinagem nem pornografia nesse culto, pois não se considerava o sexo como pecado, mas como instrumento sagrado de reprodução da espécie. Na Suméria os casais uniam-se nos altares dos templos, na presença de sacerdotes que os abençoavam para a fecundação. Esse senso de dignidade do sexo perdeu-se nas civilizações teocráticas, esmagado sob as condenações do gozo, que impediam a alma de alcançar a salvação. Marcuse tem razão ao defender a teoria das civilizações suicidas, que condenam o sexo e a ele se entregam na exclusiva busca do prazer, desenvolvendo a indústria aviltante do gozo sexual, que reduz o sexo a instrumento de loucura e perversão. A colocação espírita desse problema é clara e precisa como vemos no capítulo sobre a Lei de Reprodução, de O Livro dos Espíritos

“As leis e costumes humanos que objectivam ou têm por efeito obstar à reprodução são contrários à lei natural?: Tudo o que entrava a marcha da Natureza é contrário à lei geral”. 

Todas as espécies devem reproduzir-se, mesmo as que parecem daninhas. O equilíbrio mesológico faz-se segundo as leis biomesológicas de cada área específica: o campo, o cerrado, a floresta, as águas, as cidades e assim por diante. Há espécies daninhas que são a sobrevivência de formas em extinção ou mutação, para adaptação a condições novas que estão a surgir. Como Kardec adverte: o homem, que só vê um canto do quadro geral da Natureza, não pode julgar o todo e confunde-se nas suas apreciações da harmonia natural. No tocante à população humana do planeta, que hoje preocupa os homens e os governos, o Espiritismo sustenta a tese do equilíbrio natural, governado pelas leis naturais. Afirma que a Terra está longe de possuir a população a ela destinada e que o homem não tem capacidade para impedir a progressão populacional. O recente Congresso Demográfico Mundial da ONU provou isso. Depois de vários dias de debates e da defesa de teses absurdas, o Secretário Geral da ONU advertiu os congressistas de que, durante as discussões, milhões de crianças haviam nascido em todo o mundo. Era impossível deter o aumento populacional através das medidas propostas, algumas delas ridículas, como a de um cientista inglês que propunha medidas para reduzir o tamanho actual dos homens, reduzindo-os a homúnculos, para se conseguir mais espaço e diminuir a necessidade de alimentos. Por outro lado, vários cientistas colocaram o problema da chamada explosão demográfica e a falta de alimentos em termos de crescimento local dos grandes centros urbanos e a falta de controlo da produção alimentícia, com o esbanjamento de grandes produções por falta de transportes, ganância exagerada de lucros e os transportes excessivamente caros de regiões produtoras distantes para as zonas consumidoras. Resta ainda considerar que todo o crescimento populacional não é permanente, seguindo uma curva estatística de ascensão que depois decai, ajusta-se em linha regular ou entra em declínio. Tudo isso confirma a posição espírita. Escapa ao homem o controle biomesológico em todo o conjunto de áreas populacionais animais e humanas, de maneira que as intervenções humanas só servem para provocar desequilíbrios perigosos. 

Passando desse problema para o da abstenção sexual e o do casamento e do celibato, vamos novamente verificar o acerto do Espiritismo na sua posição firmada desde meados do século passado. O casamento representa uma conquista na evolução social, disciplinando as relações humanas com vista à organização da família na estrutura mais ampla da sociedade. Se a maioria dos casamentos na Terra apresenta dificuldades e desajustes, isso decorre das condições inferiores do nosso mundo. O casal é uma unidade biológica que se forma por atracção afectiva recíproca desenvolvida em vidas sucessivas ao longo da temporalidade, que é a larga e profunda esteira dos tempos sucessivos. A afectividade que o liga no presente é positiva, mas está geralmente carregada de cargas negativas, provenientes de situações não resolvidas, de compromissos e dívidas morais recíprocas. Formada a unidade, ela funciona como um dínamo-psiquismo que atrai as entidades comprometidas com o par nas existências anteriores. O par sozinho enleia-se nos sonhos de felicidade dos anseios de amor. Mas as interferências dos comparsas causa disritmias e atritos na harmonia do dínamo, muitas vezes desde o namoro e o noivado, prenunciando tempestades magnéticas. São os filhos que procuram a reencarnação e os parentes do par e outros compromissados que chegam, cobradores de dívidas afectivas e de compromissos rompidos. Não é Deus que determina essas situações embaraçosas, mas os próprios envolvidos em complôs remotos e o próprio par, motivo de acções negativas anteriores que, segundo a lei de acção e reacção, formam o karma do grupo, ou seja, o conjunto de insolvências passadas, agora postas em resgate comum. (A palavra karma, de origem sânscrita, vem de arcaicas religiões indianas reencarnacionistas, mas é empregada no meio espírita pelo seu sentido prático e preciso). Se o casal se recusa a ter filhos, os compromissados reagem com vibrações mentais e psíquicas negativas, quebrando a harmonia do dínamo e provocando distúrbios biopsíquicos no casal e até mesmo ocasionando a interferência de reencarnados compromissados com o par. São essas as causas da maioria das situações difíceis resultantes de casamentos felizes. Os casos de aborto provocados no passado constituem pesados compromissos a resgatar e, os casos de aborto recentes (sem necessidade clínica real), vão acumular-se aos anteriores ou passam para débitos futuros. É por isso que os sentimentos de amor e o respeito ao próximo constituem elementos defensivos da felicidade futura de todos nós. A partir deste quadro podemos compreender com mais clareza as situações dolorosas em que se precipitam muitos casamentos felizes e, que as religiões explicam assustadoramente como castigos divinos ou influências diabólicas. Todas essas situações dependem exclusivamente das nossas relações humanas no passado e no presente. A consciência humana dispõe, em todos nós, dos recursos preventivos dessas situações. A nossa falta leviana de atenção às exigências e advertências da consciência respondem pelas situações negativas que criamos por nós próprios, contra os nossos interesses evolutivos. 


O problema do celibato ~ 

No tocante ao celibato a posição espírita é decisivamente contrária, considerando-o como fuga ao dever humano da reprodução da espécie, determinada por egoísmo. O celibato religioso, imposto pelas igrejas, vai além disso, pois representa uma violação consciente das leis divinas, sob o pretexto de dedicação exclusiva a Deus. Só é justificável o celibato obrigatório, motivado por questões orgânicas ou impedimentos decorrentes de doença ou mutilações. Admite-se o celibato por devotamento integral a uma causa social absorvente. Nestes casos o egoísmo está naturalmente excluído. No caso do sacerdócio e votos de castidade, o egoísmo reponta da pretensão de agradar a Deus violando as suas leis. Há mesmo, da parte do sacerdócio, como o demonstram as religiões em geral, conveniência no casamento dos sacerdotes, que não se vêem forçados à hipocrisia perante as exigências vitais do homem e da mulher. Uma grande causa pode levar uma criatura abnegada a não se casar para não causar sacrifícios à família que iria constituir. Essa é uma questão de consciência pela qual cada um responde individualmente. Mas o Espiritismo não o determina, pois não é uma igreja nem uma instituição secreta. A atitude espírita refere-se apenas aos deveres conscienciais da criatura perante as exigências da evolução humana. 

Há ainda o problema da poligamia, que o Espiritismo encara historicamente, lembrando que o casamento, com responsabilidades sociais definidas, superou as experiências poligâmicas do passado. Toda essa posição espírita está perfeitamente de acordo com as leis vigentes no mundo actual. Os movimentos actuais do próprio clero católico pela abolição do celibato sacerdotal e as concessões feitas pela Igreja em numerosos casos, confirmam a necessidade crescente de uma revisão pela Igreja dessa instituição contraditória em que se colocou, dividindo a sua posição em duas medidas antagónicas: o casamento de clérigos na Igreja do Oriente e o celibato obrigatório no Ocidente. O celibato das freiras é uma herança da castidade obrigatória das vestais romanas, sujeitas a serem enterradas vivas se violassem o voto. É interessante lembrar que as vestais, que mantinham o fogo da deusa Vesta nos templos, podiam casar-se sem problemas ao completarem 30 anos de idade. As medidas contrárias às leis naturais, que são as leis de Deus, tendem a desaparecer com a evolução cultural, moral e espiritual da Humanidade. 

Dizia o Apóstolo Paulo que há eunucos feitos pelos homens e os que se fazem eunucos por amor ao Reino de Deus. Há também os que nascem eunucos. Aplicando-se isso nos nossos dias, podemos dizer que há celibato forçado por deficiências orgânicas congénitas, por acidentes mutiladores e pelo desejo de servir a Deus. Mas o Espiritismo, colocando os antigos problemas místicos e as velhas superstições religiosas à luz da razão, mostra-nos a contradição da suposta dedicação a Deus através de violações egoístas das leis naturais. Se há, por assim dizer, todo um dispositivo natural de desenvolvimento das potencialidades humanas através de lento e complexo processo evolutivo, como pode o homem, sujeito a esse processo, fechado nas suas exigências condicionantes, querer modificá-lo, corrigindo Deus? A quem aproveita o sacrifício de uma jovem saudável na cela de um convento ou a negação por um jovem da sua própria virilidade? O móbil dessas atitudes revela-se na ambição egoísta de conquistar o céu para gozo próprio, adiantando-se aos demais e escapando às leis do processo evolutivo natural. Todas as formas de auto-flagelação, cilícios, abstenção exagerada, isolamento e quietismo são fugas à realidade que todos devem enfrentar, no cumprimento dos deveres inalienáveis de solidariedade humana e o amor ao próximo. E toda a fuga é um acto de desobediência à vontade divina. 

O mito de Adão e Eva tem a beleza poética do acto criador, mas a presença da serpente no Éden é uma advertência às pretensões humanas. Se não fosse a astúcia desse animal rastejante, a Obra de Deus ficaria reduzida, pela timidez do primeiro casal, a uma tentativa frustrada no meio do deserto. 

Desde que o homem atingiu, no processo da evolução criadora, segundo a tese de Bergson, a capacidade de pensar e julgar, o seu primeiro julgamento foi favorável a si mesmo, pois se julgou capaz de corrigir os erros de Deus. O despertar da inteligência faz o vinho subir à cabeça, mas é bom não esquecermos que a bebedeira de Noé depois do dilúvio atirou-o nu no fundo da tenda, escandalizando os seus próprios filhos. 

Por isso o Espiritismo adoptou os ensinamentos de Paulo, sobre a maior virtude, o seu lema de redenção racional: Fora da caridade não há salvação. As igrejas cristãs clamam até hoje que a salvação pela caridade excita a vaidade humana. Se ajudar os que sofrem e amar o próximo é um acto de orgulho, então a humildade deve estar como os que se entregam à ambição da fortuna pessoal e do poder, a tirar as suas correias das costas do próximo. 

/… 


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XIX – Amor, sexualidade e casamento / O problema do celibato21º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Léon Denis e o Cristianismo ~


Autenticidade dos Evangelhos ~

  Nos tempos afastados, muito antes da vinda de Jesus, a palavra dos profetas, qual raio velado da verdade, preparava os homens para os ensinos mais profundos do Evangelho.

  Mas, já desvirtuado pela Versão dos Setenta (i), o Antigo Testamento não reflectia, nos últimos séculos antes do Cristo, mais que uma intuição das verdades superiores (2).

  “As eternas verdades, que são os pensamentos de Deus – diz eminente individualidade do espaço – foram comunicadas ao mundo em todas as épocas, levadas a todos os lugares, postas ao alcance das inteligências, com paternal bondade. O homem, porém, as tem ignorado muitas vezes. Desdenhoso dos princípios ensinados, arrastado pelas suas paixões, em todos os tempos passou ele ao pé de grandes coisas sem as ver. Essa negligência do moral belo, causa de decadência e corrupção, impeliria as nações à própria perda, se o guante (i) da adversidade e as grandes comoções da História, abalando profundamente as almas, não as reconduzissem a essas verdades.”

  Veio, Jesus de Nazaré (i), espírito poderoso, divino missionário, médium (i) inspirado. Veio, encarnando-se (i) entre os humildes, a fim de dar a todos o exemplo de uma vida simples e, entretanto, cheia de grandeza – vida de abnegação e sacrifício, que devia deixar na Terra indeléveis traços.

  A grande figura de Jesus ultrapassa todas as concepções do pensamento. Eis por que não pode ter sido criada pela imaginação. Nessa alma, de uma serenidade celeste, não se nota mácula nenhuma, nenhuma sombra. Todas as perfeições nela se fundem, com uma harmonia tão perfeita que se nos afigura o ideal realizado.

  A sua doutrina, toda ela de luz e amor, dirige-se sobretudo aos humildes e aos pobres, a essas mulheres, a esses homens do povo curvados sobre a terra, a essas inteligências esmagadas ao peso da matéria e que aguardam, na provação e no sofrimento, a palavra de vida que as deve reanimar e consolar.

  E essa palavra é-lhes prodigalizada com tão penetrante doçura, exprime uma fé tão comunicativa, que lhes dissipa todas as dúvidas e os arrasta a seguir as pegadas do Cristo.

  O que Jesus chamava pregar aos simples “o evangelho do reino dos céus”, era pôr ao alcance de todos o conhecimento da imortalidade e do Pai comum, do Pai cuja voz se faz ouvir na serenidade da consciência e na paz do coração.

  Pouco a pouco essa doutrina, transmitida verbalmente nos primeiros tempos do Cristianismo, se altera e complica sob a influência das correntes opostas, que agitam a sociedade cristã.

  Os apóstolos, escolhidos por Jesus para lhe continuarem a missão, muito bem o tinham sabido compreender; haviam recebido o impulso da sua vontade e da sua fé. Mas os seus conhecimentos eram restritos e eles não puderam senão conservar piedosamente, pela memória do coração, as tradições, os pensamentos morais e o desejo de regeneração que lhes havia ele depositado no íntimo.

  Na sua jornada pelo mundo os apóstolos se limitam, pois, a formar, de cidade em cidade, grupos de cristãos, aos quais revelam os princípios essenciais; depois, vão intrepidamente levar a “boa nova” a outras regiões.

  Os Evangelhos, escritos no meio das convulsões que assinalam a agonia do mundo judaico (i), depois sob a influência das discussões que caracterizam os primeiros tempos do Cristianismo, ressentem-se das paixões, dos preconceitos da época e da perturbação dos espíritos. Cada grupo de fiéis, cada comunidade, tem os seus evangelhos, que diferem mais ou menos dos outros (3). Grandes querelas dogmáticas agitam o mundo cristão e provocam sanguinolentas perturbações no Império, até que Teodósio, conferindo a supremacia ao papado, impõe a opinião do bispo de Roma à cristandade. A partir daí, o pensamento, criador demasiado fecundo de sistemas diferentes, há de ser reprimido.

  A fim de pôr termo a essas divergências de opinião, no próprio momento em que vários concílios acabam de discutir acerca da natureza de Jesus, uns admitindo, outros rejeitando a sua divindade, o papa Damaso confia a São Jerónimo, em 384, a missão de redigir uma tradução latina do Antigo e do Novo Testamento. Essa tradução deverá ser, daí por diante, a única reputada ortodoxa e tornar-se-á a norma das doutrinas da Igreja: foi o que se denominou a “Vulgata”.

  Esse trabalho oferecia enormes dificuldades. São Jerónimo encontrava-se, como ele próprio o disse, na presença de tantos exemplares quantas cópias. Essa variedade infinita dos textos obrigava-o a uma escolha e a retoques profundos. É o que, assustado com as responsabilidades incorridas, ele expõe nos prefácios da sua obra, prefácios reunidos num livro célebre. Eis aqui, a exemplo, o que ele dirigiu ao papa Damaso, encabeçando a sua tradução latina dos Evangelhos:

  “De velha obra me obrigais a fazer obra nova. Quereis que, de alguma sorte, me coloque como árbitro entre os exemplares das Escrituras que estão dispersos por todo o mundo e, como diferem entre si, que eu distinga os que estão de acordo com o verdadeiro texto grego. É um piedoso trabalho, mas é também um perigoso arrojo, da parte de quem deve ser por todos julgado, julgar ele mesmo os outros, querer mudar a língua de um velho e conduzir à infância o mundo já envelhecido.

  “De facto, qual o sábio e mesmo o ignorante que, a partir do momento que tiver nas mãos um exemplar (novo), depois de o haver percorrido apenas uma vez, vendo que se encontra em desacordo com o que está habituado a ler, não se ponha imediatamente a exclamar que eu sou um sacrílego, um falsário, porque terei tido a audácia de acrescentar, substituir, corrigir alguma coisa nos antigos livros? Meclamitans esse sacrilegum qui audeam aliquid in veteribus libris addere, mutare, corrigere(4)

  “Um duplo motivo me consola desta acusação. O primeiro é que vós, que sois o soberano pontífice, me ordenais que o faça; o segundo é que a verdade não poderia existir em coisas que divergem, mesmo quando tivessem elas por si a aprovação dos maus.”

  São Jerónimo termina assim:

  “Este curto prefácio tão-somente se aplica aos quatro Evangelhos, cuja ordem é a seguinte: Mateus, Marcos, Lucas e João. Depois de haver comparado certo número de exemplares gregos, mas dos antigos, que se não afastam muito da versão itálica, combinamo-los de tal modo (ita calamo temperavimus) que, corrigindo unicamente o que nos parecia alterar o sentido, conservamos o resto tal qual estava.” (Obras de São Jerónimo, edição dos Beneditinos, 1693, t. I, col. 1425.)

  Assim, é conforme uma primeira tradução do hebraico (i) para o grego, por cópias com os nomes de Marcos e Mateus; é, num ponto de vista mais geral, conforme numerosos textos, cada um dos quais difere dos outros (tot sunt enim exemplaria quot codices) que se constitui a Vulgata, tradução corrigida, aumentada, modificada, como o confessa o autor, de antigos manuscritos.

  Essa tradução oficial, que devia ser definitiva segundo o pensamento de quem ordenara a sua execução, foi, entretanto, retocada em diferentes épocas, por ordem dos pontífices romanos. O que havia parecido bom, do ano 386 ao de 1586, o que fora aprovado em 1546 pelo concílio ecuménico de Trento (i), foi declarado insuficiente e erróneo por Sixto V, em 1590. Fez-se nova revisão por sua ordem; mas a própria edição que daí resultou e, que trazia o seu nome, foi modificada por Clemente VIII numa nova edição, que é a que hoje está em vigor e pela qual têm sido feitas as traduções francesas dos livros canónicos, submetidos a tantas rectificações através dos séculos.

  Entretanto, a despeito de todas estas vicissitudes, não hesitamos em admitir a autenticidade dos Evangelhos nos seus textos primitivosA palavra do Cristo aí se ostenta poderosa; toda a dúvida se desvanece à fulguração da sua personalidade sublime. Sob o sentido adulterado, ou oculto, sente-se palpitar a força da ideia primitiva. Aí se revela a mão do grande semeador. Na profundeza desses ensinos, unidos à beleza moral e ao amor, sente-se a obra de um enviado celeste.

  Ao lado, porém, dessa potente destraa frágil mão do homem se introduziu nessas páginas, nelas enxertando débeis concepções, muito mal ligadas aos primeiros pensamentos e que, a par dos arroubos da alma, provocam a incredulidade.

  Se os Evangelhos são aceitáveis em muitos pontos, é, todavia, necessário submeter o seu conjunto à inspecção do raciocínio. Todas as palavras, todos os factos que neles estão consignados não poderiam ser atribuídos ao Cristo.

  Através dos tempos que separam a morte de Jesus da redacção definitiva dos Evangelhos, muitos pensamentos sublimes foram esquecidos, muitos factos contestáveis aceites como reais, muitos preceitos, mal interpretados, desnaturaram o ensino primitivo. Para servir às conveniências de uma causa, foram decotados os mais belos, os mais opulentos ramos dessa árvore de vida. Sufocaram, antes do seu desabrochar, os fortalecedores princípios que teriam conduzido os povos à verdadeira crença, à que eles hoje em dia ainda visam.

  O pensamento do Cristo subsiste no ensino da Igreja e nos textos sagrados, mesclado, porém, de vários elementos, de opiniões ulteriores, introduzidos pelos papas e concílios, cujo intuito era assegurar, fortalecer, tornar inabalável a autoridade da Igreja. Tal foi o objectivo colimado através dos séculos, o pensamento que inspirou todos os retoques feitos nos documentos primitivos. A despeito de tudo o que na Igreja resta de espírito evangélico, verdadeiramente cristão, foi o suficiente para produzir admiráveis obras, obras de caridade que fizeram a glória das igrejas cristãs e que protestam contra o facto de se encontrarem associadas a tantos empreendimentos ambiciosos, inspirados no apego ao domínio e aos bens materiais.

  Seria preciso um grande trabalho para destacar o verdadeiro pensamento do Cristo do conjunto dos Evangelhos, tarefa possível, ainda que árdua para os inspirados, guiados por direcção segura, mas um labor impossível para os que só pelas suas próprias faculdades se dirigem nesse Labirinto em que com as realidades se misturam as ficções, com o sagrado o profano, com a verdade o erro.

  Em todos os séculos, impelidos por uma força superior, certos homens se aplicaram a essa tarefa, procurando desembaraçar o supremo pensamento das sombras em torno dele acumuladas.

  Amparados, esclarecidos por essa centelha divina que para os homens apenas brilha de um modo intermitente, mas cujo foco nunca se extingue, eles afrontaram todas as acusações, todos os suplícios, para afirmar o que acreditavam ser a verdade. Tais foram os apóstolos da Reforma.

  Na sua tarefa, eles foram interrompidos pela morte; mas do seio do espaço ainda sustentam e inspiram os que se batem por essa grande causa. Graças aos seus esforços, a noite que pesa sobre as almas começa a dissipar-se; raiou a aurora de uma revelação muito mais vasta.

  É com o auxílio dos esclarecimentos trazidos por essa nova revelação, científica e, ao mesmo tempo, filosófica, já espalhada em todo o mundo sob o nome de Espiritismo, ou moderno Espiritualismo, que procuraremos livrar a doutrina de Jesus das obscuridades em que o trabalho dos séculos a envolveu. Chegaremos, assim, à conclusão de que esta doutrina é simplesmente a volta ao Cristianismo primitivo, sob formas mais precisas, com um imponente cortejo de provas experimentais, que tornará impossível todo o monopólio, toda a reincidência nas causas que desnaturaram o pensamento de Jesus.

/…
(2) Ver nota complementar nº 1. ( link para aceder à nota), no fim do volume.
(3) Ver nota complementar n° 3. ( link para aceder...)
(4) A obra de S. Jerónimo foi, efectivamente, mesmo na sua vida, objecto das mais vivas críticas; polémicas injuriosas se travaram entre ele e os seus detractores.


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Autenticidade dos Evangelhos, 3º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

domingo, 16 de outubro de 2022

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Pluralidade das Existências e dos Mundos Habitados 

(Pelo Dr. Gelpke) 

Devemos à gentileza de um dos nossos correspondentes de Bordeaux a interessante passagem que se segue, extraída de uma obra intitulada: Exposição da grandeza da criação universal, pelo Dr. Gelpke, publicada em Leipzig, 1817. 

“.... Se, pois, a construção de todos os mundos que brilham acima de nós pudesse ser submetida ao nosso exame, de que admiração não seríamos tomados, vendo a diversidade desses globos, cada um dos quais organizado de modo diverso do seu mais próximo vizinho na ordem da criação! E, como já disse, sendo incalculável o número dos mundos, a sua construção também deve ser infinitamente diferente. 

“Além disso, como de cada mundo depende a organização dos seres que o habitam, estes devem, tanto interna como externamente, diferir essencialmente em cada globo. Agora, se considerarmos a multiplicidade e a imensa variedade das criaturas na nossa Terra, onde nem mesmo uma folha se assemelha à outra, e se admitirmos uma tão grande variedade de criaturas em cada mundo, quão prodigiosa nos parecerá a multidão no incomensurável reino de Deus! 

“Qual não será, pois, um dia, a plenitude de nossa felicidade, quando, sob invólucros sempre mais perfeitos, penetrarmos sucessivamente mais à frente os mistérios da criação e encontrarmos mundos sem-fim, a povoar um espaço infinito! Então, quanto Deus (inteligência organizadora) * não nos parecerá ainda mais adorável, ele que tirou tudo isso do nada, ele cuja bondade sem limites tudo criou apenas para a satisfação dos seres vivos e cuja sabedoria ordenou de maneira tão admirável! 

“Mas a nossa residência e a nossa conformação actuais podem proporcionar-nos tal felicidade? Para isso não necessitamos de outra morada, que nos coloque mais cedo no domínio da criação e, de um envoltório muito mais subtil e mais perfeito, que não entrave o nosso Espírito nos seus progressos para a perfeição e, por meio do qual ele poderá ver, sem auxílio, no todo universal, muito para além do que o podemos fazer daqui com os nossos melhores instrumentos? 

“Mas por que o Criador não nos daria, depois de vários degraus de existência, um envoltório que, semelhante ao relâmpago, pudesse elevar-se de mundos a mundos, permitindo-nos, assim, olhar tudo de mais perto e, ao mesmo tempo, abarcar melhor o conjunto pelo pensamento? Quem ousaria duvidá-lo, quando vemos a brilhante borboleta nascer da lagarta e, a árvore deslumbrante de flores provir de um caroço! Se Deus assim desenvolve pouco a pouco a lagarta e no-la mostra esplendidamente transformada, se também desenvolve o germe por graus, quanto não nos fará progredir a nós homens, reis da Terra e, avançar na Criação!” 

Pluralidade dos mundos habitados, pluralidade das existências (i)perispírito, progresso contínuo e infinito da alma, tudo está aí. 

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* Deus-Inteligência organizadora. Adenda desta publicação. 


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Pluralidade das Existências e dos Mundos Habitados, Pelo Dr. Gelpke. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Novembro de 1863, 15º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)