Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

o problema do | ser


(Quem sou... o que faço aqui... de onde vim... para onde vou...) 

O problema do Ser 

O primeiro problema que se apresenta ao pensamento é o do próprio pensamento, ou, seja, do ser pensante. É isso, para todos nós, assunto principal, que domina todos os outros e cuja solução nos reconduz às próprias origens da vida e do universo. 

Qual é a natureza da nossa personalidade? Comporta ela um elemento susceptível de sobreviver à morte? A esta questão estão afectas todas as apreensões, todas as esperanças da humanidade. 

O problema do ser e o problema da alma fundem-se num só. É a alma (ii) que fornece ao homem o seu princípio de vida e movimento. A alma humana é uma vontade livre e soberana, é a unidade consciente que domina todos os atributos, todas as funções, todos os elementos materiais do ser, como a Alma divina domina, ela coordena e liga todas as partes do universo para harmonizá-las. 

A alma é imortal, porque o nada não existe e coisa alguma pode ser aniquilada, nenhuma individualidade pode deixar de ser. A dissolução das formas materiais prova simplesmente uma coisa: que a alma ao ser separada do organismo por meio do qual comunicava com o meio terrestre. Não deixa, por esse facto, de prosseguir a sua evolução em novas condições, sob formas mais perfeitas e sem nada perder da sua identidade. De cada vez que ela abandona o corpo terrestre, encontra-se de novo na vida do espaço, unida ao seu corpo espiritual, do qual é inseparável, à forma imponderável que para si preparou com os seus pensamentos e as suas obras. 

Esse corpo subtil, essa duplicação fluídica existe em nós em estado permanente. Embora invisível, serve, entretanto, de molde ao nosso corpo material. Este não representa, no destino do ser, o papel mais importante. O corpo visível, ou corpo físico, varia. Formado de acordo com as necessidades da vida terrestre, é temporário e perecível; desagrega-se e dissolve-se quando morre. O corpo subtil permanece; preexistindo ao nascimento, sobrevive às decomposições da sepultura e acompanha a alma nas suas transmigrações. É o modelo, o tipo-original, a verdadeira forma humana, à qual vêm incorporar-se temporariamente as moléculas da carne. Essa forma subtil, que se mantém no meio de todas as variações e de todas as correntes materiais, mesmo durante a vida pode separar-se, em certas condições, do corpo carnal e, também agir, aparecer, manifestar-se à distância, como mais adiante veremos, de modo a provar de maneira incontestável a sua existência independente. (iii) 

As provas da existência da alma são de duas espécies: morais e experimentais. 

Vejamos primeiro as provas morais e as de ordem lógica; não obstante haverem servido muitas vezes, conservam toda a sua força e valor. 

Segundo as escolas Materialista e Monista, a alma não é mais do que a resultante das funções cerebrais. “As células do cérebro – disse Haeckel – são os verdadeiros órgãos da alma. Esta está-lhes ligada à integridade. Cresce, decai e desaparece com elas. O gérmen material contém o ser completo, físico e mental.” 

Responderemos em substância: A matéria não pode gerar qualidades que ela não tem. Os átomos, sejam eles triangulares, circulares ou aduncos, não podem representar a razão, o génio, o amor puro, a caridade sublime. O cérebro, dizem, cria a função. É coisa compreensível que uma função possa conhecer-se, possuir a consciência e a sensibilidade? Como explicar a consciência, a não ser pelo espírito? Vem da matéria? Quantas vezes não está a primeira em luta com a última! Vem do interesse e do instinto de conservação? Revolta-se ela contra eles e nos leva até ao sacrifício! 

O organismo material não é o princípio da vida e das faculdades; é, ao contrário, o seu limite. O cérebro é um simples instrumento que serve ao Espírito para registar as suas sensações. É comparável à execução de uma harmonia por um instrumento, em que cada tecla representaria um género especial de sensações. Quando o instrumento está perfeitamente afinado, as teclas dão, sob a acção da vontade, o som peculiar a cada uma delas e reina a harmonia nas nossas ideias e nos nossos actos; mas se as teclas estiverem estragadas, ou desfalcadas, o som produzido não será o que devia ser, a harmonia resultará incompleta. Resultará daí uma desafinação, por mais esforços que faça a inteligência do artista e, ao qual será impossível tirar do instrumento defeituoso uma combinação de manifestações regulares. Assim se explicam as doenças mentais, as neuroses, a idiotia, a perda temporária da palavra ou da memória, a loucura, etc., sem que, por isso, a existência da alma fique comprometida. Em todos esses casos o Espírito subsiste, mas as suas manifestações são contrariadas e, às vezes, até aniquiladas por falta de correlação com o seu organismo. 

Sem dúvida, o desenvolvimento do cérebro denota, de maneira geral, faculdades elevadas. Uma alma delicada e poderosa necessita de um instrumento mais perfeito, que se preste a todas as manifestações de um pensamento elevado e fecundo. As dimensões e circunvoluções do cérebro estão muitas vezes em relação directa com o grau de evolução do Espírito. (iv) Não se deve daqui deduzir que a memória seja um simples jogo das células cerebrais. Estas modificam-se e renovam-se sem cessar, diz a Ciência, a tal ponto que o cérebro e o corpo passam por uma completa mudança material em poucos anos. (v) 

Nestas condições, como explicar que nos possamos recordar dos factos que remontam a dez, vinte, trinta anos? Como relembram os velhos com surpreendente facilidade todos os pormenores da sua infância? Como podem a memória, a personalidade, o “eu” persistir e manter-se no meio das contínuas destruições e reconstruções orgânicas? Outros tantos problemas insolúveis para o materialismo! 

Os sentidos, dizem os psicólogos contemporâneos, são o único veículo da alma, a suspensão destes implica o desaparecimento daquela. Notemos, entretanto, que o estado de anestesia, isto é, a supressão momentânea da sensibilidade, não elimina, de modo nenhum, a acção da inteligência. Esta revela-se, ao contrário, em casos nos quais, segundo as doutrinas materialistas, deveria estar aniquilada. 

Buisson escrevia: “Se existe alguma coisa que possa demonstrar a independência do “eu”, é com certeza a prova que nos fornecem os pacientes submetidos à acção do éter. Neste estado as suas faculdades intelectuais resistem aos agentes anestésicos.” 

Velpeau, tratando do mesmo tema, dizia: “Que mina fecunda não são para a Fisiologia e para a Psicologia factos como estes, que separam o espírito da matéria, a inteligência do corpo!” 

Havemos de ver também por que forma, no sono comum ou no provocado, no sonambulismo (i) e na exteriorização, a alma pode viver, perceber e agir sem o auxílio dos sentidos. 

Se a alma, como diz Haeckel, fosse unicamente a soma dos elementos corporais, haveria sempre no homem, correlação entre o físico e o mental. A relação seria directa, constante e perfeito o equilíbrio entre as faculdades, as qualidades morais de um lado e, a constituição material, do outro. Os mais bem-dotados do ponto de vista físico possuiriam também as almas mais inteligentes e mais dignas. Sabemos que assim não é, porque, muitas vezes, almas de escol têm habitado corpos débeis. A saúde e a força não implicam, nos que as possuem, um espírito subtil e faculdades brilhantes. 

Mens sana in corpore sano, diz-se, é verdade; mas, há tantas excepções a esta máxima que não é possível considerá-la em regra geral. A carne cede sempre à dor; não sucede o mesmo com a alma, que, muitas vezes, resiste, exalta-se no sofrimento e triunfa dos agentes externos. 

Os exemplos de Antígono, de Jesus, de Sócrates, de Jeanne d'Arc, dos mártires cristãos, dos hussitas e de tantos outros que embelezam a História e enobrecem a raça humana aí estão para lembrar-nos que as vozes do sacrifício e do dever podem elevar-se muito acima dos instintos da matéria. Nas horas decisivas, a vontade dos heróis sabe dominar as resistências do corpo. 

Se o homem estivesse integralmente contido no gérmen físico, encontrar-se-iam nele unicamente as qualidades e os defeitos dos seus progenitores, na mesma proporção; mas, ao contrário, vêem-se por toda a parte crianças que diferem dos pais, são-lhes superiores ou inferiores. Irmãos, irmãos-gémeos, de uma semelhança física flagrante, apresentam, mental e moralmente considerados, caracteres dessemelhantes entre si e com os seus ascendentes. 

As teorias do atavismo e da hereditariedade são impotentes para explicar os casos célebres de crianças artistas ou sábias – músicos como Mozart ou Paganini, matemáticos como Mondeux e Inaudi, pintores aos dez anos como Van der Kerkhove e tantos outros meninos-prodígio, cujas aptidões não se encontram nos pais ou só se encontram em grau muito inferior, como, por exemplo, nos ascendentes de Mozart. 

As propriedades da substância material, transmitidas pelos pais, manifestam-se na criança pela semelhança física e pelos males constitucionais; mas a semelhança só persiste, quando muito, durante o primeiro período da vida. Desde que o carácter se define, desde que a criança se faz homem, vêem-se as feições modificar-se pouco a pouco, ao mesmo tempo que as tendências hereditárias vão diminuindo e dando lugar a outros elementos, que constituem uma personalidade diferente, um ser às vezes distinto, pelos gostos, pelas qualidades, pelas paixões, de tudo quanto se encontra nos ascendentes. Não é, pois, o organismo material o que constitui a personalidade, mas sim o homem interior, o ser psíquico. À medida que este se desenvolve e se afirma por sua própria acção na existência, vê-se a herança física e mental dos pais ir pouco a pouco enfraquecendo e, muitas vezes, desaparecer. 

A noção do bem, gravada no fundo das consciências, é, igualmente, prova evidente da nossa origem espiritual. Se o homem procedesse do pó ou fosse resultante das forças mecânicas do mundo, não poderíamos conhecer o bem e o mal, sentir remorso nem dor moral. 

“Essas noções – dizem-nos – provêm dos vossos antepassados, da educação, das influências sociais!” 

Mas, se essas noções são heranças exclusivas do passado, de onde foi que ele as recebeu? E por que se multiplicam em nós, não encontrando terreno favorável nem alimento? 

Se verdes o mal vos tem causado sofrimento, se tendes chorado por vós e pelos outros, haveis de ter podido entrever, nessas horas de tristeza, de dor reveladora, as secretas profundezas da alma, as suas ligações misteriosas com o Além e, deveis compreender o encanto amargo e o fim elevado da existência, de todas as existências. Esse fim é a educação dos seres pela dor; é a ascensão das coisas finitas para a vida infinita. 

Não, o pensamento e a consciência não derivam de um universo químico e mecânico. Ao contrário, dominam-no, dirigem-no e subjugam-no do Alto. Com efeito, não é o pensamento que pesa os mundos, mede a extensão e discrimina as harmonias do Cosmo? Só por um lado pertencemos ao mundo material. É por isso que tão vivamente padecemos com os seus males. Se lhe pertencêssemos completamente, sentir-nos-íamos muito mais no nosso elemento e ser-nos-iam poupados muitos sofrimentos. 

A verdade acerca da natureza humana, da vida e do destino, o bem e o mal, a liberdade e a responsabilidade não se descobrem no fundo das retortas nem na ponta os escalpelos. A ciência material não pode julgar coisas do espírito. Só o espírito pode julgar e compreender o espírito e, isso na razão do grau da sua evolução. É da consciência das almas superiores, dos seus pensamentos, dos seus trabalhos, dos seus exemplos, dos seus sacrifícios, que brotam a luz mais intensa e o mais nobre ideal que podem guiar a humanidade no seu caminho. 

O homem é, pois, ao mesmo tempo, espírito e matéria, alma e corpo; mas talvez espírito e matéria não sejam mais do que simples palavras, exprimindo de maneira imperfeita as duas formas da vida eterna, a qual dormita na matéria bruta, acorda na matéria orgânica, adquire actividade, se expande e se eleva no espírito. 

Não haverá, como admitem certos pensadores, mais do que uma essência única das coisas, forma e pensamento ao mesmo tempo, sendo a forma um pensamento materializado e o pensamento a forma do espírito? (vi) É possível. O saber humano é limitado e até os olhares do génio não são mais do que relâmpagos no domínio infinito das ideias e das leis. 

Todavia, o que caracteriza a alma e absolutamente a diferencia da matéria é a sua unidade consciente. Sob a acção da análise, a matéria dispersa-se e dissipa-se. O átomo físico divide-se em sub-átomos, que, por sua vez, se fragmentam indefinidamente. A matéria é inteiramente desprovida de unidade, como o estabeleceram as recentes descobertas de BecquerelMarie e Pierre Curie, Le Bon

No universo só o espírito representa o elemento uno, simples, indivisível e, por conseguinte, logicamente indestrutível, imperecível, imortal. 

/… 
(ii) Demonstra-lo-emos mais adiante com uma série completa de factos de observação, de experiência e de provas objectivas. 
(iii) A ciência fisiológica, à qual escapa ainda a maior parte das leis da vida, entreviu, no entanto, a existência do perispírito (i) ou do corpo fluídico, que é ao mesmo tempo o molde do corpo material, o vestuário da alma e o intermediário obrigatório entre eles. Claude Bernard escreveu (Recherches sur les Problèmes de la Physiologie): “Há como um desenho preestabelecido de cada ser e de cada órgão, de modo que, se considerado isoladamente, cada fenómeno do organismo é tributário das forças gerais da Natureza; em conjunto, parecem eles revelar um laço especial, parecem dirigidos por alguma condição invisível pelo caminho que seguem, na ordem que os concatena.” 
Sem a noção do corpo fluídico, a união da alma com o corpo material torna-se incompreensível. Daí o enfraquecimento de certas teorias espiritualistas, que consideravam a alma como “Espírito puro”. Nem a razão nem a Ciência podem admitir um ser sem forma. Leibnitz, no prefácio das suas – Nouvelles Recherches sur la Raison Humaine, diz: “Creio, com a maior parte dos antigos, que todos os Espíritos, todas as almas, todas as substâncias simples, activas, estão sempre unidas a um corpo e que nunca existem almas completamente desprovidas deles.” 
Enfim, existem numerosas provas, objectivas e subjectivas, da existência do perispírito. São, em primeiro lugar, as sensações chamadas “de integridade”, que acompanham sempre a amputação de qualquer membro. Alguns magnetizadores afirmam que podem exercer influência nos seus pacientes, magnetizando o prolongamento fluídico dos membros amputados (Carl du Prel, La Doctrine Monistique de l'Ame, cap. VI). Vêm depois as aparições dos fantasmas dos vivos. Em muitos casos, o corpo fluídico, concretizado, tem impressionado placas fotográficas, deixado impressões e moldagens em substâncias moles, traços no pó e na fuligem, provocado o deslocamento de objectos, etc. (Ver: No Invisível, caps. XII e XX.) 
(iv) A regra não é absoluta. O cérebro de Gambetta, por exemplo, não pesava mais do que 1.246 gramas, ao passo que a média humana é de 1.500 a 1.800 gramas. 
(v) Claude Bernard – La Science Expérimentale, Phénomènes de la Vie. 
(vi) Entendemos aqui por espírito o princípio da inteligência. 


Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor, Primeira Parte O Problema do Ser, [...] III – O problema do Ser, 4º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Sin título (detalhe), de uma pintura atribuída a Josefina Robirosa

terça-feira, 16 de agosto de 2022

O Homem e a Sociedade ~


O SIGNIFICADO ESPÍRITA do Materialismo Dialéctico
 
(II de III) 

  Mas, para explicar claramente essa lei dialéctica, será preciso interpretar o Ser como uma tese essencial que, segundo a filosofia espírita, contém o Universo inteiro e, que começa o seu desenvolvimento no inconsciente das coisas, até chegar, mais tarde, ao grau de consciência. Este estado alcançado pela tese do Ser se transformará mais adiante; no contrário do seu primeiro período evolutivo, isto é, negará a sua condição anterior ao penetrar na de antítese, que representa uma etapa mais desenvolvida que a primeira, até se situar na de síntese, resumo superior dos seus dois tempos primitivos e tudo isso nos dará o seguinte: O presente é o que não existia ontem, mas esse ontem é a negação da qual surgiu o hoje; logo, deste hoje resultará a negação da qual surgirá o amanhã. 

  Nisto consiste, pois, a lei chamada negação da negação ou evolução da involuçãoa interpretação espírita que nos mostra agora o desenvolvimento palingenésico como um processo dialéctico do Ser. Assim, vemos como o homem, ao nascer, é uma entidade espiritual de natureza dialéctica, chamada a desenvolver-se continuamente através do processo histórico. 

  Pelo exemplo seguinte, vejamos como se desenvolve a lei denominada negação da negação: 

  Tomemos um grão de trigo, o qual representa a tese. Que faremos, para que esse grão de trigo se torne o ponto de partida de um processo de desenvolvimento"? Enterramo-lo e, isso determina a etapa de antítese (ou de encarnação do Ser). Que sucederá então? Assistiremos à negação do grão de trigo, para que nasça a espiga. Primeira negação: o grão de trigo desapareceu, mas se transformou numa planta. Esta planta cresceu e produz grãos de trigo, como é natural e depois morre. Segunda negação: A planta desapareceu, depois de reproduzir o grão de trigo que a originou. Não nos esqueçamos, porém, de que não produziu um só grão de trigo, mas uma grande quantidade, que inclusive poderá suscitar novas qualidades. (*) 

  Transportada a ideia do processo dialéctico para o desenvolvimento do Ser, vemos que esta negação da negação só poderá efectuar-se pela parte psíquica de sua natureza e, que permitirá essa transformação. Estes processos dialécticos, que têm a virtude de revelar novas qualidades nas coisas de acordo com a filosofia espírita, explicam o desenvolvimento do dinamopsiquismo essencialmediante a evolução da involução, isto é, a essência evoluída, fazendo desenvolver a essência ainda não-evoluída. 

  O estado de antítese, ou de encarnação do Ser, Gustave Geley no-lo apresentou do seguinte modo: “Tudo acontece como se cada existência terrestre, cada objectivação orgânica, ou, podemos dizer, cada encarnação, seria para a actividade do Ser uma limitação no espaço e nos meios; seria como que uma sujeição a um trabalho limitado e especializado, a um esforço quase exclusivo, em uma única direcção.” 

  Por último, a antítese, ou estado de encarnação do Ser é, como bem disse Geley, um processo de análise. É, acrescentava ele, a subdivisão da consciência em faculdades diversas e, do sentido único em sentidos múltiplos, para facilitar o seu exercício e promover o seu desenvolvimento. 

  Como se verá, nesta limitação espiritual aparece o que se chama a etapa de antítese do Ser. Esta antítese consiste em não poder ele recordar o passado nem estender a visão além do físico e, ainda mais, em não dispor das faculdades metapsíquicas que o espírito possui em forma latente. Tudo isto corresponde ao que se chama antítese do Serdado que o mundo físico é como uma negação do mundo espiritual, receptáculo maravilhoso onde o indivíduo guarda todos os valores de sua evolução. 

  Impulsionado o Ser pelo processo dialéctico, entrará no seu terceiro tempo: a sua existência de síntese. Esta síntese está baseada na dialéctica da desencarnação ou da morte; representa a reunião de todas as faculdades espirituais numa só; é o que se chama, na linguagem espírita, estado do Ser desencarnado. Este estado, disse Geley, constitui uma espécie de produto sintético dos elementos diversos das personalidades anteriores. Em resumo, a desencarnação é um processo de síntese, de síntese orgânica e de síntese psíquica do Ser. 

  É nesta unidade, em que a tese e a antítese do indivíduo se transformam numa síntese, – que se opera na consciência por causa da desencarnação, – que o espírito se sente em toda a sua plenitude. Porque é nesta síntese que os valores humanos se convertem em valores divinos e onde se reconhece que a raiz de todos os fenómenos sociais e morais está no mundo espiritual. 

  Nesta análise sobre os três tempos dialécticos do espírito, podemos notar a profundidade da dialéctica hegeliana, destacando-se, em compensação, à limitação ideológica do materialismo dialéctico, no que respeita ao homem, ao considerá-lo, como o faz o existencialismo ateu, um ser para a morte e para o nada eterno. Entretanto, o marxismo pretende refutar ideologicamente o pensamento existencialista, sem levar em conta que os seus princípios estão baseados, também, sobre nada do ser

  Para a filosofia espírita, o processo histórico é produto da acção do espírito e não o resultado dos modos de produção; por conseguinte, ela não admite uma evolução exclusivamente material. Esta concepção é também sustentada pela lógica formal, na qual os seres e as coisas aparecem em estado imóvel e de repouso. Esta tese, porém, é inadmissível num tipo de materialismo considerado dialéctico, cuja doutrina sustenta que as coisas são e não são ao mesmo tempopela razão de que tudo está em perpétua transformação e que o movimento é que dá impulso aos fenómenos materiais. Sobre este ponto, convém fazer algumas reflexões. 

  Se o movimento da matéria, de acordo com Georgi Plekanov, destacado expositor do materialismo dialéctico, é a base de todos os fenómenos da natureza e, se as moléculas da matéria em movimento, ao se unirem umas às outras, formam determinadas combinações, que são os seres e as coisas; se estas combinações se distinguem por uma solidez menor ou maior e, existem durante um tempo mais ou menos longo, desaparecendo finalmente, para serem substituídas por outras e, se o que é eterno é somente o movimento da matéria e a matéria em si como substância indestrutível, podemos formular as seguintes perguntas: Que maravilhoso demiurgo é a matéria, para possuir tantas propriedades e, o que é o movimento em si mesmo? 

  Do ponto de vista espírita e metapsíquico, a matéria é uma objectivação que se traduz em movimento, mediante uma perimatériaa qual é a força que dá conformação e existência à matéria, mas nunca a matéria em si. O materialismo dialéctico, ao conceber o movimento como qualidade da matéria, admite a possibilidade de um princípio psíquico, já que o psíquico não é mais do que movimento, como o por ele atribuído à matéria. Daí que a filosofia espírita sustente que não podemos admitir nem o materialismo nem o espiritualismo puros

  Foi Geley quem disse que tudo nos induz a crer que não há matéria sem inteligência, nem inteligência sem matériaEsta é a razão pela qual o espiritismo pode oferecer um campo de reconhecimento entre o materialismo e o espiritialismo clássico. O mesmo Geley, para confirmar esta asserção, escreveu o seguinte: “Desde o momento em que, na teoria espírita, espírito, força e matéria estão sempre juntos e são inseparáveis; e que não podemos e não devemos supô-los com vida própria e isolados uns dos outros, a doutrina espírita pode ser desde logo admitida, tanto pelos que fazem da inteligência um produto da evolução avançada da matéria, como por aqueles que sustentam não ser a matéria nem mais nem menos do que uma manifestação do espírito.” A força, para Geley, nas duas hipóteses, constitui o princípio intermediário a que chamamos perimatéria

  Pelo exposto, se deduz que a filosofia espírita pode ser aceite, no seu aspecto palingenésico, tanto pelo pensamento materialista como pelo espiritualista, desde que o espírito fosse a causa de um movimento ascendente do Universo. Em consequência, poder-se-ia dizer que o materialismo só é admissível na sua concepção mecanicista, mas nunca do ponto de vista materialista dialéctico, o qual se baseia na lei do movimento e na dinâmica do Universo, gérmen de uma possível entidade inteligente. 

/… 
(*) A. Thalheimer, Introdução ao Materialismo Dialéctico. 


Humberto Mariotti (i)O Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo V – O Significado Espírita do Materialismo Dialéctico (II de III), 9º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali)

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Deus na Natureza ~


~ a vontade do homem ~
(III) 

  Buffon (iescreveu que génio é paciência. Lembrámo-nos, então, de Keple (i) procurando durante dezassete anos as três leis imortais que o recomendam à posteridade, leis que regem o sistema universal nos latifúndios celestes, onde se embalam as estrelas duplas, tanto quanto regulam o movimento da Lua em volta da Terra. Falaremos de Newton (i), comedido, respondendo a quem lhe perguntava como descobrira a gravitação: – foi pensando sempre nela. Citaremos todos esses ilustres sábios que nas suas lutas só tiveram por arma a inteligência. Invocaremos os trabalhos solitários de Harvey (i), Carlos Bonnet, Jenner (i) (*). Recontaremos as tremendas dificuldades que tiveram de vencer, animados do fogo sagrado, esses inventores que se chamaram Watt (i), Jacquard (i), Girard (i), Fulton (i), Stephenson (i)Diremos dos labores intelectuais que exigiram as nossas vias-férreas, a navegação a vapor, a telegrafia, magníficos inventos nos quais celebramos o espírito que não a matéria? Invocaremos os arroubos artísticos de um Miguel Ângelo (i), de um Ticiano (i), de um Cellini (i), de um Poussin (i)? Recordemos esta frase de Bayle (i), escrita de Milão, em 1820, a propósito de um artista chamado Meyerbeer: – “é homem de algum talento, mas não genial, vivendo solitariamente e trabalhando quinze horas por dia”. Contudo, se quiséssemos historiar as provas rudes que flagelaram os génios mais possantes, haveríamos de baixar aos nomes ignorados, de quantos mergulharam nessas águas revoltas, vítimas da sorte, não da descrença, como Chénier (i) decapitado, ou como Gilbert (i) lutando contra o egoísmo universal. 

  Haveríamos, também, de convocar os que sucumbiram gloriosamente. – Giordano Bruno (i) preferindo a morte a uma retratação fictícia, Campanella (i) sete vezes torturado e sucumbindo sem deixar de satirizar os seus algozes; Jeanne D'Arc (i) que salvou a França, Sócrates (i) que salvou a Filosofia e preferiu a cicuta à mentira, o velho Pedro Ramus (i) estrangulado na noite de São Bartolomeu, em que também teria perecido Ambrósio Paré (i), se Carlos IX não levasse em conta os seus préstimos pessoais e, enfim, todos os mártires da Ciência, da Religião, do progresso, inclusive os que tombaram nos circos romanos, devorados pelas feras e suplicando a Deus pelos seus irmãos. Fossem quais fossem as crenças, as ideias que essas criaturas defendiam até à morte, sem lhes apreciarmos o valor real das causas que abraçavam, a sua memória imperecível só nos merece respeitosa veneração. São vultos que nos mostram que o homem não é somente um composto de matéria orgânica e que a energia, a perseverança, a coragem, a virtude, a fé, não são atributos da composição químico-cerebral. Do fundo de seus sepulcros eles proclamam que os pretensos sábios, que ousam identificar o homem com a matéria inerte, não se rodeiam do valor humano e jazem na mais tenebrosa ignorância das verdades que fazem a glória e a felicidade do ser. 

  E supondes seja necessário interrogar a tradição histórica para responder, também com argumentos e exemplos irresistíveis, a essa pretensão cega de negar os factos de ordem puramente intelectual, conceituando tão superficialmente o Espiritualismo e a Moral? 

  Não; não é somente nas altas esferas que o observador admira esses edificantes exemplos. Em todas as camadas sociais, do prócere da Ciência ao rústico analfabeto, do trono ao grabato (i), a vida quotidiana oferece, no santuário da família, esses mesmos padrões de coragem e abnegação, de paciência e grandeza d'alma, de energia e virtude, que, por desconhecidos, não são menos meritórios no seu valor intrínseco, do que os precedentes. 

  Quantas almas padecem em segredo sem revelar os seus martírios, curvadas à injustiça, vítimas do destino, dessa fatalidade impenetrável que persegue tantas criaturas boas e justas? 

  Quantos corações magnânimos palpitam em silêncio e abafam chamas capazes de incendiar o verbo e levantar multidões, se, ao invés de definhar na sombra, se espanejassem ao sol da popularidade? Quantos génios ignorados por aí dormitam num isolamento infecundo? Quantas almas santas e puras a se consagrarem a uma vida inteira de abnegação, de amor, de caridade? E quantos, em recompensa de tamanhas virtudes, de tanta paciência e humildade, não recebem mais que ingratidão e desprezo daqueles mesmos a quem amam? 

  O último reduto dos nossos adversários assenta no sistema dos pendores naturais, como a declararem que estes factos de ordem mental não são mais que o resultado das inclinações dos espíritos credores de nossa admiração. Se Palissy se obstinou dezasseis anos à procura do esmalte, seria a isso arrastado por uma inclinação especial. Se Colombo não esmoreceu diante do cepticismo dos coevos e das revoltas de sua equipagem, é que uma tendência do seu cérebro o encaminhava irrevogavelmente para o Novo Mundo. Se Dante concluiu a Divina Comédia, ainda que posto a ferros e expatriado, é porque a lembrança de Beatriz e as guerras Civis italianas lhe espicaçavam a fibra poética. Se Galileu, septuagenário, se viu constrangido a abjurar de joelhos as suas convicções mais íntimas, assinando a sentença iníqua que proibia a Terra de girar, não pensem que houve em tudo isso humilhação, pois apenas teria experimentado uma ligeira contrariedade das suas inclinações. O facto de Carlota Corday partir de sua aldeia para apunhalar Marat em Paris não significa que tivesse a convicção íntima de salvar a pátria de um seu presumível salvador, mas, apenas, que tivesse uma exaltação cerebral. Se, durante as cenas monstruosas de terror, se viram mulheres que pediam aos carrascos a graça de morrer com os maridos, subindo firmes o patíbulo; se, em todos os tempos históricos, temos visto vítimas voluntárias oferecerem-se para salvar entes amados, ou com eles morrer, é tudo fruto de inclinação natural, ou resultado de certos movimentos cerebrais! 

  Resumindo: os actos mais sublimados de virtude, de piedade filial, devotamento, amor, grandeza d'alma, são oriundos de disposições orgânicas, ou de qualquer súbito desvio das funções normais do cérebro. Se o Cristo subiu ao Calvário, não se considere isso o sacrifício extraordinário de um ser divino, mas simples movimento revolucionário de algumas moléculas imprudentes... É, assim, a míseras escórias, que reduzem as mais ricas gemas da coroa que cinge a fronte da Humanidade. Esta, contudo, não se deixa assim degradar, não consentirá que mãos profanas lhe arrebatem a sua auréola. Para sustentar esses feitos de valor, algo mais se torna necessário do que uma agregação atómica de carbono ou de ferro. Algo mais que uma simples combinação molecular. Vade-retro, negadores insensatos, que pretendeis reduzir a fórmulas tão ocas a definição do valor e das forças intelectuais. Predisposições orgânicas, inclinações naturais, faculdades mentais, a própria educação, que representa tudo isso senão palavras, desde que nos limitemos a manifestações da matéria bruta e cega e neguemos a existência do espírito? Que representam a Química, a Física, a Mecânica, diante da vontade que dobra o mundo à sua lei e dirige a seu assentimento a matéria obediente? Ousam sustentar que o valor moral, a potência intelectual, o afecto profundo dos corações, o entusiasmo das almas fervorosas, a imensidade do olhar inteligente, as pesquisas do pensamento que sonda o espaço e faz resplandecer as leis universais, as meditações, as descobertas, as obras-primas da Ciência e da Poesia se explicam por transformações químicas – e quiméricas – da matéria em pensamento? Será que, para suportar essa energia anímica, não haja necessidade de uma força soberana, superior às alterações da substância, capaz de vencer todos os obstáculos, cuja influência se estenda muito além da vista física e seja mesmo a base desta força pensante, o seu substrato, o seu sustentáculo e a condição de sua potência? Será que a virtude resida noutro lugar que não na alma? – na alma independente, que os subterfúgios do mundo material não atingem; na alma espiritual, que ouve a voz da verdade e caminha em linha recta para o seu ideal, sejam quais forem os obstáculos que se interponham no caminho, as dificuldades que pretendam interceptar-lhe a marcha triunfal? 

  Toda a Humanidade protesta contra essas fúteis alegações e o faz já não com aquele critério baseado no testemunho dos sentidos, susceptível de enganar-se, como se dá, por exemplo, com o movimento dos astros, mas, com aquele senso íntimo que lhe vem da própria consciência. 

/… 
(*) A aceitação que teve a descoberta da vacina é um atestado típico dos obstáculos geralmente colocados a qualquer ideia nova, de maneira a desanimar inventores e sábios. Não faltou, diz Smiles, quem lhe caricaturasse a descoberta apresentando-a como susceptível de bestializar o próximo, com o introduzir no organismo matéria putrefacta, retirada das tetas de vacas doentes. Do alto das cátedras, foi a vacina denunciada como coisa “diabólica”. Chegaram a afirmar que as crianças vacinadas cresciam com “cara de boi” e que na testa lhes sobrevinham tumores, que “indicavam o lugar dos chifres e que a voz se alteraria com mugidos de touro”. 


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte; (3) A Vontade do Homem (3 de 6), 29º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)