Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 24 de abril de 2015

O Mundo Invisível e a Guerra ~


IX
O Espiritismo e as Religiões

|Março de 1917|

   A ideia de Deus, na nossa pátria obscurecida e alterada pelas religiões, apagou-se em muitas almas.

   Já há muito tempo que se formara na França uma corrente de incredulidade que tem minado, secretamente, os alicerces da religião e até de toda a ordem social.

   As horas trágicas chegaram e, sob uma devastadora tempestade de ferro e de fogo, a França conheceu a necessidade de um ideal nobre e de uma força moral que torne possível olhar a morte frente a frente, suportando, sem vacilações, todos os golpes da adversidade. A proximidade do perigo impôs, mesmo para os mais frívolos, uma gravidade concentrada e muitos pensamentos se voltaram para o Além.

   Tudo isso parecia ser outro tanto dos indícios de renovação espiritual. Do fundo do abismo de sofrimentos em que caímos, um grito de súplica se eleva para o céu; aspirações ascendem a formas religiosas mais altas e mais puras, proporcionando ao homem meios eficientes, capazes de desenvolver nele o que existe de imortal e divino.

   As ideia do passado poderão influir para essa recuperação, porém, já o afirmamos, na nova ciência, enaltecida e espiritualizada, é que se encontrará a religião do futuro, os princípios das sua crença e os elementos de convicção, porque a religião e a ciência não são antagónicas, excepto quando as consideramos nos seus aspectos inferiores. Elas se identificam e se fundem na sua directriz fundamental, no seu objectivo maior, que são o conhecimento do Universo e a comunhão íntima com a causa de todas as coisas: Deus!

   Talvez, na sua evolução, a religião enfraqueça no seu carácter colectivo, mas se fortalecerá em cada um de nós pelo desenvolvimento do conhecimento e da consciência individuais.

   É importante dirigirmos um olhar de conjunto para o Universo, para nos encontrarmos na presença de leis majestosas, que dominam os seres e as coisas sob a acção de um soberano poder. Ora, não existe lei alguma sem uma mente que a crie e sem uma vontade que zele pelo seu cumprimento.

   Nas silenciosas vastidões do abismo da vida onde gravitam os mundos uma Inteligência preside à ascensão das almas e à eterna harmonia do cosmo. (i)

   As anomalias e as contradições que muitos crêem descobrir no estudo do Universo nascem simplesmente da pobreza de suas observações. Os nossos grosseiros sentidos, mesmo ajudados pelos instrumentos que a tecnologia nos oferece, não nos podem dar senão uma pálida ideia do conjunto das coisas.

   A nossa ignorância sobre o mundo invisível mais ajuda a enfraquecer os nossos julgamentos e somente a revelação dos espíritos vem, oportunamente, preencher as principais lacunas do nosso entendimento, mostrando-nos, por exemplo, que as leis morais e as leis físicas se inter-relacionam e se fundem num todo harmónico, o mesmo ocorrendo com a ideia de Deus que se aperfeiçoa e se engrandece.

   Para o espírito que abandona as formas materiais e os limites dos cultos, Deus já não é um ser antropomórfico, isto é, o homem divinizado de que nos falam os livros sagrados e as crenças de idades antigas.

   Não! Deus é pura essência, é um princípio e uma meta, uma causa e um fim.

   Os espíritos bastante evoluídos para o poderem contemplar (e, neste caso, só conheço um), descrevem-no como um imenso foco de luz, cujo brilho e esplendor quase não se pode suportar e de onde partem as vibrações poderosas que animam o Universo inteiro. 

   Dele resulta uma impressão majestosa, mesclada por eflúvios de amor que penetram e comovem a quantos se aproximem dele.

   Com as asas do pensamento e da oração, no recolhimento dos sentidos, qualquer alma pode comunicar-se com esse foco eterno e sentir as suas irradiações. Todos os impulsos do pensamento religioso se permutam em contemplação e em êxtase, quando chegam a tais alturas.

   Realmente, no seu começo e no seu nobre fim, todas as crenças estão irmanadas e convergem para um único ponto.

   Assim como a fonte límpida e o regato murmurante, vão, finalmente, reunir-se no mar imenso, também o Bramanismo, o Budismo, o Cristianismo, o Judaísmo, o Islamismo e os seus derivados, nas suas mais nobres e puras formas, poderiam fundir-se numa vasta síntese e as suas orações, unindo-se às harmonias do mundo, se transformariam em um hino universal de adoração e de amor!

   Inspirado nesse sentimento de ecletismo espiritualista, muitas vezes me aconteceu juntar-me às orações de irmãos de outras religiões, sem me agarrar às fórmulas usadas em semelhantes meios, podendo orar com fervor, tanto nas grandes catedrais góticas, como nos templos protestantes, nas sinagogas ou mesmo nas mesquitas.

   No entanto, a minha oração consegue maior impulso e ardor à beira do mar, quando o embala o ritmo das ondas, assim como nos altos cumes, ante o panorama das planícies e dos montes, ou sob o domo imponente das florestas ou, à noite, sob a abóbada estrelada do firmamento, porque a natureza é o único templo verdadeiramente digno do Eterno.

   A necessidade, existente em cada um de nós, de criar um meio interior onde a alma possa encontrar refúgio contra as preocupações exteriores, contra os cuidados materiais, fortalecendo-se e voltando a tomar contacto com a pura essência de onde ela provém, é uma das condições indispensáveis da vida moral.

   No momento em que a idade e as doenças me privam dos grandes espectáculos da natureza, construí, por minha vontade, um templo interior onde o meu pensamento se alegra em ficar, nos momentos de calma e de isolamento, para render culto aos nobres espíritos cujo génio revelador aclarou, com a sua luz, os caminhos da humanidade.

   Nesse templo interior, por um esforço de imaginação, erigi as estátuas ideais, as imagens augustas dos messias, dos profetas e dos filósofos mais merecedores de respeito e admiração.

   No meio do santuário brilha o símbolo sagrado da Divindade, a quem, em primeiro lugar, as minhas adorações se dirigem. À sua direita, me aparece a grande figura do Cristo, meu venerável mestre, e à esquerda os mestres asiáticos: Krishna, Buda, Lao-Tse e Zoroastro, aos quais sucedem as estátuas dos filósofos gregos, desde Pitágoras a Platão. Diante deles me alegro, recitando os maravilhosos versos da sabedoria antiga.

   Por detrás do Cristo aparecem os mais autorizados representantes da doutrina cristã e, junto deles, repito para mim próprio o Sermão da Montanha, que é o resumo e a essência do próprio Cristianismo: “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados”, assim como os conceitos evangélicos reconhecidos como autênticos. Muito longe fiquei de me esquecer do grupo dos druidas e dos bardos. À frente deles se ergue a alta silhueta, a imponente figura de Taliesin e diante dele recito, com muita alegria, As Tríades, que são um maravilhoso monumento das tradições celtas, cuja ciência se iguala à profunda sabedoria do Oriente.

   Por último, depois, vem Allan Kardec, a quem considero o continuador e o renovador das grandes tradições de nossa raça.

   Peço ao leitor que me desculpe, prendendo-o com coisas tão pessoais, porém só lhe quis dar um exemplo de que pode conseguir ensinamentos úteis e inspirações salutares. Realmente, nas minhas visitas costumeiras a esses grandes espíritos, nos exercícios que a recordação deles provoca, isto é, no facto de recitar trechos de suas mais célebres obras, sempre encontrei a serenidade e o reconforto para o espírito.

   Não vejam, na diversidade das suas concepções, qualquer contradição, porque debaixo das suas formas variadas, em cada uma delas encontramos o mesmo impulso, a mesma aspiração para o bem e para a suprema beleza, que são outros tantos atributos de Deus, uma irradiação divina.

   De todo o conjunto se desprende uma síntese magnífica que resume o pensamento de todo um mundo no que ele possui de mais nobre e puro; síntese que narra, precisa e fecunda, o moderno espiritualismo, numa comunhão universal que um dia ligará todas as consciências e todos os corações.

   Lançando um olhar panorâmico sobre a história dos tempos modernos, parece que uma das missões da França é criar correntes de ideias para o mundo.

   Após dezoito séculos da vinda do Cristo, a França despertou a noção de fraternidade que dormitava no fundo das almas. Nenhuma outra nação trabalhou mais ardentemente para libertar o pensamento dos grilhões seculares e assegurar os direitos da consciência. Ela comunicou a chama de seu génio a várias teorias humanitárias e sociais.

   Na actual luta, o papel da França cresceu mais ainda, porque arrisca a sua liberdade e a sua própria existência para salvar a Europa da sua volta à barbárie. Assim obteve a simpatia e a admiração dos neutros, e até mesmo a consideração dos seus inimigos. Antes da guerra, acreditavam e afirmavam que se encontrava em franca decomposição, porém ela se sublimou, com um verdadeiro holocausto.

   Assim que acabar o sangrento drama a que assistimos, outra missão caberá à nossa pátria e essa concórdia, que une todos os seus filhos na hora do perigo, será mantida e garantida por outros meios, isto é, por novos processos de ensino e educação.

   A França deve ensinar ao mundo as regras da religião do futuro, dessa religião ampla e tolerante que terá por base a ciência dos factos e por coroamento as mais altas e mais puras aspirações do ideal espiritualista.

   Nessa religião, a fé e a ciência encontrarão um campo comum, uma possibilidade de comunhão de todos os espíritos e corações. Essa obra haverá de ser, entre todas, a mais preciosa para a humanidade, porque fará desaparecer a maior parte dos motivos de separação e de ódio, unindo os pensamentos e as vontades para esse “caminho real da alma”, do qual nos falou Platão, visando o fim elevado da alma, conforme a Doutrina dos Espíritos nos revela.

   Tal iniciativa garantiria que a França completasse a vitória das armas com uma vitória intelectual e moral mais bela e ainda mais frutífera. Dessa forma, o nosso país se elevaria à primeira classe das nações, merecendo o reconhecimento de todos os séculos futuros.

   Os tempos nunca foram mais favoráveis que agora para uma renovação religiosa, que excluiria qualquer espírito de sectarismo e de reacção. Da presente luta, assim esperamos, aparecerá uma nova sociedade, doutrinada pela provação, fortalecida pelo infortúnio e mais unida, disciplinada, consciente de seus deveres e responsabilidades.

   Parece que o progresso já se produz nos espíritos e que os homens compreenderam a natureza precária das coisas deste mundo, encarando com mais satisfação o problema dos destinos.

   Já faz três anos que a morte tem batido a tantas portas, tem visitado tantas casas que até os mais indiferentes a encararam, indagando a si mesmos, quem era esse misterioso hóspede e, pelas reflexões que a sua presença ditou, abriu-se nesses seres um caminho para o Infinito, para o Divino.

   No calor dos sofrimentos, a alma humana tornou-se mais apta a receber e compreender as verdades superiores e, de agora em diante, as futilidades e a sensualidade de outrora e as obras decadentes não poderiam mais satisfazê-la. Ela exige alimentos mais substanciais e mais fortes.

   Os estudos psíquicos, os testemunhos dos sábios com relação à sobrevivência da alma, lhe oferecerão condições mais sólidas para erguer um edifício mais digno dela e dos seus objectivos.

   A filosofia se aclarará com novas luzes, tiradas da doutrina de Allan Kardec. Em certas escolas já se compreende e se admite que a personalidade humana não se formou de um só golpe, porém lentamente e através dos séculos. A concepção apressada e insuficiente de uma única vida é trocada, paulatinamente, pela da evolução da alma através de existências sucessivas no infinito dos tempos.

   O nosso destino não é determinado por um favor particular ou pelo sacrifício de um salvador, mas por nós próprios. O ser consciente se constrói a si mesmo, tal como o escultor aperfeiçoa a sua estátua: a sua forma representativa só tem como valor a soma de seus esforços e cuidados. Ele se ilumina ou se obscurece conforme a natureza de seus pensamentos e de seus actos: a fonte das alegrias, das penas ou das recompensas reside nele, nas suas faculdades, nas suas percepções, aumentadas ou diminuídas.

   O destino não é senão o resultado das nossas obras boas ou más e recai sobre nós em forma de raios ou de chuva. Todo o sofrimento que se suporta com paciência é qual um golpe do cinzel do escultor que colabora para aperfeiçoar a sua obra.

   O resultado do nosso progresso é um desfrutar crescente de tudo que é grande, de tudo que é beleza, esplendor, luz e harmonia. É uma progressiva participação na vida universal, uma cooperação com a obra soberana, sob a forma de tarefas e missões que aumentam, gradualmente, de importância e extensão. Finalmente, é a plenitude da felicidade nas suas três formas importantes: virtude, génio e o amor...

   A nossa meta principal deve ser nos aproximarmos do foco supremo, deixando-nos penetrar pelas irradiações do pensamento divino, tornando cada vez mais estreita e mais profunda a comunhão com Deus, e, assim, atingirmos o conhecimento de todas as coisas, porque tudo se resume nele e vive nele.

   Tal é, na sua essência, o ensino que decorre da revelação dos grandes espíritos e que é bem conhecido dos que viveram na sua intimidade e deles receberam o pão da vida. Só participa desse ensino, por enquanto, um pequeno número de pessoas, mas ele deve ser estendido com profusão, para que as inteligências se aclarem, os caracteres se aperfeiçoem e as almas se elevem.

   Aí está por que, depois da guerra, os espíritas deverão divulgar essas verdades às mãos cheias, porque o terreno já estará admiravelmente bem preparado para a semeadura e eles não estarão sós no seu trabalho, porque a multidão imensa dos invisíveis os ampara e alenta.

   Sobre nós pairam, espiritualmente, os que deram a sua vida em sacrifício pela França e tombaram mortos na defesa da causa e do direito.

   Eles nos inspiram e nos exortam a não esquecermos do seu nobre exemplo e, por nossa vez, trabalharmos, de outras formas, para a salvação e fortalecimento da pátria.

   Eles se debruçam sobre os corações angustiados e as almas enlutadas, a fim de depositar nelas o bálsamo das consolações e das esperanças; asseguram-lhe que a sua afeição não se extinguiu e que a sua actividade não decresceu, mas que, pelo contrário, os seus sentimentos e a sua vida são mais intensos, mais reais e mais poderosos que os nossos.

   De toda a parte se levanta a voz dos espíritos para nos afirmar que sobre a atmosfera de ódio, vingança e pavor que pesa sobre o nosso infeliz planeta há um mundo superior onde reina a eterna justiça, onde os que lutaram e sofreram na Terra recolhem os frutos dos males que suportaram; um mundo no qual nos reuniremos algum dia para juntos comungarmos da paz serena e na divina harmonia!

/...
   Primeira Guerra Mundial 1914-1918.

   (i) Os nossos telescópios captaram mais de cem milhões de estrelas que, como sabemos, são outros tantos sóis, a maior parte dos quais superam o nosso em poder e brilho, arrastando, cada um deles, um maravilhoso cortejo de mundos.
Qual é a força que sustenta esses milhares de astros e planetas no vazio dos espaços, dirigindo a sua marcha interminável? É a mesma que regula o agrupamento dos átomos e as afinidades químicas, isto é, a lei da atracção. Pois bem, essa lei pertence ao domínio do invisível.



LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, IX O Espiritismo e as Religiões 2, Março de 1917 (2 de 2), 25º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

quarta-feira, 15 de abril de 2015

O sentido da vida ~


a formação do homem ~

O grande físico inglês, sir Oliver Lodge, escreveu uma pequena obra, sintetizando as conquistas da ciência e da filosofia, no terreno do conhecimento do homem em si mesmo, para concluir, de acordo com as novas perspectivas abertas pelo Espiritismo, em favor da tese renovadora de que o homem é ainda um processo em desenvolvimento. Essa tese contradiz os dogmas religiosos que definem o homem como obra consumada de Deus, mas não contradiz os ensinamentos mais profundos e mais antigos das escrituras sagradas, em que as religiões procuram assentar as suas bases, nem contradiz o resultado das modernas pesquisas científicas e a mais avançada concepção filosófica da origem e do destino do homem.

A teoria do transformismo, da evolução das espécies, de Charles Darwin, simultaneamente apresentada pelo grande botânico e zoólogo Alfred Russel Wallace, que mais tarde escreveu o seu famoso livro Os Milagres e o Moderno Espiritualismo, apresenta o homem como descendente directo de espécies inferiores, dos animais, e mais proximamente, do macaco.

Segundo essa teoria, o homem é um ser que vem sendo elaborado pela natureza através de longo processo, passando pelas mais variadas experiências biológicas, para chegar ao seu estado actual, e daqui avançar para a frente. Assim, a vida não é mais do que um trabalho constante de elaboração, e o homem é o mais elevado produto desse esforço multimilenar de todas as forças conhecidas e desconhecidas do universo que habitamos.

A teoria da selecção das espécies e da origem animal do homem ainda não está cientificamente comprovada, mas é geralmente aceite como a única explicação razoável do aparecimento da espécie humana na Terra, do ponto de vista científico. Os teólogos das várias religiões cristãs, e ultimamente alguns teósofos e ocultistas, levantam objecções teológicas e filosóficas a essa teoria, mas todas elas destituídas de qualquer fundamento científico. A tendência geral da ciência moderna é favorável a essa teoria e a maior parte dos biólogos a aceita e a endossa, sem qualquer restrição fundamental.

Há pessoas que entendem não ser possível tão estreito parentesco entre os homens e os animais, considerando tal facto depreciativo para a espécie humana. Puro e simples orgulho de um animal mais adiantado na escala evolutiva. E incoerência também, pois já não bastaria, para a satisfação desse orgulho, a suposição de que é o homem o máximo expoente do universo por ele habitado?

Em O Livro dos Espíritos, obra básica da doutrina, Allan Kardec deixou essa questão em aberto. Espírito cauteloso, que Flammarion chamou de bom senso encarnado, não quis o sábio professor de Lyon adiantar mais do que devia, no momento em que lançou aquele livro, já de si tão profundamente revolucionário. Deu, porém, as duas correntes de opiniões que havia encontrado no mundo dos espíritos, uma das quais favorável à origem animal do homem, e deixou a escolha ao critério dos leitores. Em A Génese - os milagres e as predições segundo o Espiritismo, Kardec define, porém, a posição do Espiritismo, no capítulo X, referente à génese orgânica, afirmando taxativamente:

“Ainda que isso lhe fira o orgulho, o homem deve resignar-se a não ver no seu corpo material senão o último anel da vida animal na Terra. O inexorável argumento dos factos aí está, contra o qual ele protestará em vão, mas, quanto mais o corpo diminui de valor aos seus olhos, mais ganha em importância o princípio espiritual. Vemos o círculo em que se fecha o animal, mas não vemos o limite a que poderá chegar o espírito do homem.”

Um dos grandes pioneiros e mestres do Espiritismo, que auxiliaram a tarefa esclarecedora de Allan Kardec, foi Gabriel Delanne. Com Léon Denis e Kardec, forma ele a trilogia dos construtores do moderno espiritualismo. Na sua obra A Evolução Anímica, dá-nos uma visão ainda mais ampla e minuciosa desse lento processo através do qual o homem vem sendo elaborado, na face da Terra. Darwin e os seus émulos e seguidores apresentaram-nos o problema do ponto de vista exclusivamente orgânico, materialista. O Espiritismo mostra-nos a outra face da questão, e por certo a mais importante, que é a espiritual, uma vez que o homem é espírito e não matéria. Kardec e Delanne colocam-nos a par dos princípios de um novo ramo da ciência biológica, a psicologia-fisiológica, que sir Oliver Lodge estuda no seu trabalho sobre a formação do homem.

Toda a natureza é um imenso e penoso trabalho de construção. A geologia nos mostra a formação da Terra, através dos séculos e dos milénios, como um lento e laborioso desenvolvimento de forças latentes. Vemos, graças aos estudos e às pesquisas científicas já agora indiscutíveis, que as várias classes de seres vivos estão todas ligadas numa ampla cadeia, descendendo umas das outras. Por que estranho motivo apenas o homem seria uma excepção à regra geral? E que estranha excepção seria essa, em detrimento de si próprio, ao invés de engrandecê-lo? Sim, pois se o homem não se enquadrasse nesse vasto panorama da evolução terrena, que hoje podemos abarcar num golpe de pensamento, qual seria a sua posição, num mundo de constante evolução? Tudo progrediria à sua volta, menos ele, o enteado da criação, abandonado às suas próprias fraquezas e encerrado no estreito limite da vida orgânica, entre o berço e o túmulo.

Vemos, assim, que o Espiritismo nos apresenta um quadro geral do Universo como um processo contínuo de evolução. Tudo flui e tudo se transforma, já dizia Heráclito, de Éfeso. Nesse imenso processo, o homem representa, segundo o Espiritismo, o ponto culminante da natureza. Poderemos dizer que ele é o momento do Universo mais próximo de Deus.

Mas Ele – Deus – não foi esquecido ou diminuído por essa nova concepção da vida e do mundo? Deus não ficou à margem, dando lugar a um simples entrechoque de forças desconhecidas, para a produção do mundo e das formas vivas, no espaço e no tempo?

/…


José Herculano Pires, O Sentido da Vida, A Formação do Homem, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

domingo, 5 de abril de 2015

| o grande enigma ~


as harmonias do Espaço ~

Uma das impressões que nos causa, à noite, a observação dos céus, é a de majestoso silêncio; mas esse silêncio é apenas aparente; resulta da impotência dos nossos órgãos. Para seres mais bem aquinhoados, portadores de sentidos abertos aos ruídos subtis do Infinito, todos os mundos vibram, cantam, palpitam, e as suas vibrações, combinadas, formam um imenso concerto. Esta lei das grandes harmonias celestes podemo-la observar na nossa própria família solar.

Sabe-se que a ordem de sucessão dos planetas no Espaço é regulada por uma lei de progressão, chamada lei de Bode(') As distâncias dobram, de planeta a planeta, a partir do Sol. Cada grupo de satélites obedece à mesma lei. Ora, esse modo de progressão tem um princípio e um sentido. Esse princípio liga-se ao mesmo tempo às leis do número e da medida, às matemáticas e à harmonia. ('') 

As distâncias planetárias são reguladas segundo a ordem moral da progressão harmónica; exprimem a própria ordem das vibrações desses planetas e as harmonias planetárias; calculadas segundo estas regras, resultam em perfeito acordo. Poder-se-ia comparar o sistema solar a uma harpa imensa, da qual os planetas representam as cordas. Seria possível, diz Azbel, “reduzindo a cordas sonoras à progressão das distâncias planetárias, construir um instrumento completo e absolutamente afinado”. (i)

No fundo (e nisso reside a maravilha), a lei que rege as relações do som, da luz e do calor é a mesma que rege o movimento, a formação e o equilíbrio das esferas, de igual maneira que lhes regula as distâncias. Essa lei é, ao mesmo tempo, a dos números, das formas e das ideias. É a lei da harmonia por excelência: é o pensamento, é a acção divina vislumbrada!

A palavra humana é muito pobre, insuficiente, para exprimir os mistérios adoráveis da harmonia eterna. A escrita musical somente pode fornecer a sua síntese, comunicar a sua impressão estética. A música, idioma divino, exprime o ritmo dos números, das linhas, das formas, dos movimentos. É por ela que as profundezas se animam e vivem. Ela enche com as suas ondas o edifício colossal do Universo, templo augusto onde retine o hino da vida infinita. PitágorasPlatão acreditavam já perceber “a música das esferas”.

No Sonho de Cipião, narrado por Cícero numa das suas belas páginas, que nos legou a antiguidade, o sonhador entretém-se com a Alma de seu pai, Paulo Emílio, e a de seu avô, Cipião, o africano; contempla com elas as maravilhas celestes e o diálogo seguinte se estabelece:

– ”Que harmonia é essa, tão poderosa e tão doce que me penetra?” – pergunta Cipião. Responde-lhe o avô:

– ”É a harmonia que, formada de intervalos desiguais, mas combinados, de acordo com justa proporção, resulta do impulso e do movimento das esferas; fundidos os tons graves e os tons agudos num acorde comum, faz de todas essas notas, tão variadas, um melodioso concerto. Tão grandes movimentos não se podem executar em silêncio.”.

Quase todos os compositores de génio que ilustraram a arte musical, assim os Bach, os Beethoven, os Mozart, etc., declararam que percebiam harmonias muito superiores a tudo que se pode imaginar, harmonias impossíveis de serem descritas. Beethoven, enquanto compunha, ficava fora de si, arrebatado numa espécie de êxtase, e escrevia febrilmente, ensaiando em vão reproduzir essa música celeste que o deslumbrava.

É preciso uma faculdade psíquica notável para possuir a tal ponto o dom da receptividade. Os raros humanos que a possuem afirmam que, quantos já surpreenderam o sentido musical do Universo, encontraram a forma superior, a expressão ideal da beleza e da harmonia eternas. As mais elevadas concepções do género humano são, apenas, um eco longínquo, uma vibração enfraquecida da grande sinfonia dos mundos.

É a fonte dos mais puros gozos do Espírito, o segredo da vida superior, cuja potência e intensidade os nossos sentidos grosseiros nos impedem, ainda, de compreender e sentir.

Para aquele que os pode gozar plenamente, o tempo não tem medida e a série dos dias inumeráveis não parece mais que um dia.

Mas essas alegrias, ainda ignoradas, no-las dará a evolução, à medida que nos formos elevando na escala das existências e dos mundos.

Já conhecemos médiuns que percebem, em estado de transe, suaves melodias. As lágrimas abundantes que vertem testemunham não serem ilusórias as suas sensações.

Voltemos ao estudo dos movimentos das esferas e notemos que não há, até mesmo tratando-se das próprias excepções à regra universal de harmonia e dos desvios aparentes dos planetas, nada há que não se explique e não seja assunto de admiração. Esses movimentos constituem espécies de “diálogos de vibrações tão aproximados quanto possível do uníssono” e apresentam um encanto estético a mais nesse prodígio de beleza que é o Universo.

Um exemplo, dos mais incisivos, é o dos pequenos planetas, chamados telescópicos, que evolvem entre Marte e Júpiter, em número de cerca de 520, ocupando um espaço de oitava inteiro, dividido em outros tantos graus; de onde a probabilidade de que esse conjunto de mundículos não constitua, como se tem acreditado, um universo de destroços, mas o laboratório de muitos mundos em formação, mundos dos quais o estudo do céu nos dirá a génese futura.

As grandes relações harmónicas que regulam a situação respectiva dos planetas de nosso sistema solar são em número de quatro e encontram a sua aplicação:

Em primeiro lugar: do Sol a Mercúrio; neste ponto também as forças harmónicas estão em trabalho; planetas novos se esboçam.

Depois, de Mercúrio a Marte. É a região dos pequenos planetas, em que se move a nossa Terra, representando o papel de dominante local, com tendência a afastar-se do Sol para se aproximar das harmonias planetárias superiores. Marte, componente desse grupo e do qual podemos distinguir, ao telescópio, os continentes, os mares, os canais gigantes, todo o aparelho de uma civilização anterior à nossa, embora menor, é mais bem equilibrado que a nossa morada.

Os 500 planetas telescópicos constituem, em seguida, um intervalo de transição; formam uma espécie de colar de pérolas celestes ligando o grupo de planetas inferiores à imponente cadeia dos grandes planetas, de Júpiter a Neptuno, e além. Tal cadeia forma a quarta relação harmónica, de notas decrescentes qual o volume das esferas gigantescas que a compõem. Nesse grupo, Júpiter tem o papel de dominante; os dois mundos, maior e menor, nele se combinam.

“Semelhante à inversão harmónica do som – diz Azbel (ii) –, é por uma progressão constante que o grupo antigo de Neptuno e Júpiter afirma a formação de seus volumes. O caos de corpúsculos telescópicos que segue fez estacar bruscamente essa progressão. Júpiter lá ficou qual um segundo sol, no limiar dos dois sistemas. Dos registos de oitava e de segunda dominante, passou ao de tónica secundária e relativa, para exprimir o carácter de registo especial, evidentemente menor e relativo, em paralelo ao do Sol, que ia preencher, enquanto formações mais novas se dispunham aquém, afastando-o, pouco a pouco, e aos mundos seus tutelados, do astro de que é o mais robusto filho.”

Robusto, com efeito, e bem imponente no seu curso, esse colossal Júpiter, que gosto de contemplar na calma das noites de verão, mil e duzentas vezes maior que o nosso globo, escoltado pelos seus cinco satélites, dos quais um, Ganimedes, tem o volume de um planeta. Ereto sobre o plano de sua órbita, de maneira a gozar de igualdade perpétua de temperatura sob todas as latitudes, com dias e noites sempre uniformes na sua duração, é, além disso, composto de elementos de densidade quatro vezes menor que os da nossa maciça morada, o que permite entrever, para os seres que habitam ou terão de habitar Júpiter, facilidades de deslocamento, possibilidades de vida aérea que devem fazer dele uma vivenda de predilecção. Que teatro magnífico da vida! Que cena de encanto e de sonho esse astro gigante!

Mais estranho, mais maravilhoso ainda é Saturno, cujo aspecto se faz tão impressionante ao telescópio; Saturno é igual a oitocentos globos terrestres amontoados, com seu imenso diadema, em forma de anel, e os seus oito satélites, entre os quais Titã, igual em dimensões ao próprio Marte.

Saturno, com o cortejo rico que o acompanha em sua lenta revolução através do Espaço, constitui, por si só, um verdadeiro universo, imagem reduzida do sistema solar. É um mundo de trabalho e de pensamento, de ciência e de arte, onde as manifestações da inteligência e da vida se desenvolvem sob formas de variedade e riqueza inimagináveis. A sua estética é sábia e complicada; o sentimento do belo tornou-se ali mais subtil e mais profundo pelos movimentos alternantes, pelos eclipses dos satélites e dos anéis, por todos os jogos de sombra, de luz, de cores, em que as nuançes se fundem em gradações desconhecidas à vista dos habitantes da Terra, e também por acordes harmónicos, bem comoventes nas suas conclusões analógicas com os do universo solar por inteiro!

Vêm depois, nas fronteiras do império do Sol, Urano e Neptuno, planetas misteriosos e magníficos, cujo volume é igual a quase uma centena de globos terrestres reunidos. A nota harmónica de Neptuno seria “a culminante do acorde geral, o cimo do acorde maior de todo o sistema”. Depois, são outros planetas longínquos, sentinelas perdidas do nosso agrupamento celeste, ainda despercebidos, mas pressentidos e até calculados, segundo as influências que exercem nos confins do nosso sistema, longa cadeia que nos liga a outras famílias de mundos.

Mais longe se desenvolve o imenso oceano estelar, voragem de luz e de harmonia, cujas vagas melodiosas por toda a parte envolvem, a embalá-lo, o nosso universo solar, esse universo para nós tão vasto e tão mesquinho em relação ao Além. É a região do desconhecido, do mistério, que atrai sem cessar o nosso pensamento, sendo este impotente para medir, para definir os seus milhões de sóis de todas as grandezas, de todas as potências, os seus astros múltiplos, coloridos, focos terríficos que iluminam as profundezas, vertendo em ondas a luz, o calor, a energia, transportados na imensidão com velocidades formidáveis, com os seus cortejos de mundos, terras do céu, invisíveis, mas suspeitadas, e as famílias humanas que os habitam, os povos e as cidades, as civilizações grandiosas de que são teatro.

Por toda a parte maravilhas sucedem às maravilhas: grupos de sóis animados de colorações estranhas, arquipélagos de astros, cometas desgrenhados, errando na noite de seu afélio, focos moribundos que se acendem de repente e fulgem no fundo do abismo, pálidas nebulosas de forma fantástica, fantasmas luminosos cujas irradiações – diz Herschel – levam 20.000 séculos para chegar até à nossa Terra, formidáveis géneses de universos, berços e túmulos da vida universal, vozes do passado, promessas do futuro, esplendores do Infinito!

E todos esses mundos unem as suas vibrações numa poderosa melodia... A alma livre dos raios terrestres, chegada a essas alturas, ouve a voz profunda dos céus eternos!
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(') Johann Elert Bode, astrónomo alemão (1747-1826). 
('') Vide Azbel, Harmonia dos Mundos. 
(i) Vide Azbel, Harmonia dos Mundos, pág. 29. 
(ii) Azbel, Harmonia dos Mundos, pág. 13.


Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo, IV As harmonias do Espaço 1 de 2, 14º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)