Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Natureza da Revelação Espírita (VIII)

"Anúncio do Consolador"

   Retira ao homem o espírito livre, independen-te, sobrevi-vendo à matéria, e farás dele uma máquina organizada, sem objectivo, sem responsabili-dade, sem outro travão para além da lei civil e boa para ser explorada como animal inteligente. Nada esperando depois da morte, nada o impede de aumentar os prazeres do presente; se sofre, só tem como perspectiva o desespero e o nada como refúgio. Tendo a certeza do futuro, a de reencontrar os que amou, o receio de rever os que ofendeu, todas as suas ideias se modificam. Se o Espiritismo não tivesse feito mais do que retirar ao homem a dúvida quanto à vida futura, teria contribuído para o seu aperfeiçoamento moral mais que todas as leis disciplinares que por vezes o peiam mas não modificam.

  Sem a pré-existência da alma, a doutrina do pecado original não seria só irreconciliável com a justiça de Deus, que tornaria todos os homens responsáveis pelo erro de um único: seria um contra-senso, tanto mais injustificável quanto, segundo esta doutrina, a alma não existiria na época a que se pretende remontar a sua responsabilidade. Com a pré-existência, o homem traz ao renascer o germe das suas imperfeições, dos defeitos que não corrigiu e que se traduzem nos seus instintos inatos, nas suas propensões para tal ou tal vício. Reside aí o verdadeiro pecado original de que sofre muito naturalmente as consequências, mas com a diferença capital de que sofre o castigo dos seus próprios pecados e não o de um pecado de outro. E há outra diferença, simultaneamente consoladora, encorajadora e soberanamente equitativa: a de que cada existência lhe oferece os meios para se redimir através da reparação e para evoluir, quer despojando-se de alguma imperfeição, quer adquirindo novos conhecimentos, e isto até que, ao estar suficientemente purificado, deixe de necessitar da vida corporal e possa viver exclusivamente da vida espiritual, eterna e bem-aventurada.

  Pelo mesmo motivo, o que evoluiu moralmente traz, ao renascer, qualidades inatas, tal como o que evoluiu intelectualmente traz ideias inatas; identifica-se com o bem, pratica-o sem esforço, sem cálculo e, por assim dizer, sem pensar. O que é obrigado a combater as suas más tendências está ainda a lutar: o primeiro já venceu, o segundo vai a caminho de vencer. Existe, portanto, virtude original tal como há saber original e pecado ou, melhor vício original.

  O Espiritismo experimental estudou as propriedades dos fluidos espirituais e a sua acção sobre a matéria. Demonstrou a existência do perespírito, presumido desde a antiguidade e designado por São Paulo sob o nome de Corpo espiritual, isto é, corpo fluídico da alma após destruição do corpo tangível. Sabemos hoje que esse invólucro é indissociável da alma; que é um dos elementos constituintes do ser humano; que é o veículo de transmissão do pensamento e que, durante a vida do corpo, serve de ligação entre o Espírito e a matéria. O perespírito representa um papel tão importante no organismo e numa quantidade de afecções, que se aproxima da fisiologia tão bem como da psicologia.

  O estudo das propriedades do perespírito, dos fluidos espirituais e dos atributos psicológicos da alma, abre novos horizontes à ciência e fornece a chave de um conjunto de fenómenos até então incompreendidos por não se conhecer a lei que os rege; fenómenos negados pelo materialismo porque se prendem à espiritualidade, qualificados por outros como milagres ou sortilégios, consoante as crenças. São assim, entre outros, os fenómenos da dupla visão, da visão à distância, do sonambulismo natural ou artificial, dos efeitos psíquicos da catalepsia e da letargia, da presciência, dos pressentimentos, das aparições, das transfigurações, da transmissão de pensamento, do fascínio, das curas instantâneas, das obsessões e possessões, etc. Ao demonstrar que estes fenómenos assentam sobre leis tão naturais como os fenómenos eléctricos e as condições normais em que se podem produzir, o Espiritismo destruiu o império do maravilhoso e do sobrenatural e, por consequência, a fonte da maior parte das superstições. Se faz com que se acredite em certas coisas consideradas por alguns como quiméricas, impede que se acredite em muitas outras de que demonstra a impossibilidade e a irracionalidade.

  O Espiritismo, muito longe de negar ou de destruir o Evangelho, vem antes pelo contrário confirmar, explicar e desenvolver, através das novas leis da natureza que revelam tudo o que Cristo fez e disse; traz luz aos pontos obscuros do seu ensino, de tal modo que alguns daqueles para quem certas partes do Evangelho eram ininteligíveis, ou pareciam ser inadmissíveis, as compreendem e as admitem sem dificuldade com a ajuda do Espiritismo; entendem-lhe melhor o alcance e podem separar a realidade da alegoria; Cristo parece-lhes maior: já não é simplesmente um filósofo, mas sim um Messias divino.

  Se, além disso, considerarmos o poder do Espiritismo pelo objectivo que confere a todas as acções da vida, pelas consequências do bem e do mal que deixa bem claras, a força moral, a coragem, os consolos que confere nas aflições através da ideia de termos perto de nós os entes que amámos, a garantia de os revermos, a possibilidade de conversar com eles, enfim, pela certeza de que de tudo o que fazemos, de que de tudo o que adquirimos em inteligência, em ciência, em moralidade, até ao derradeiro momento da vida, nada está perdido, que tudo aproveita à evolução, reconhecemos que o Espiritismo realiza todas as promessas de Cristo relativamente ao Consolador anunciado. Ora, como é o Espírito de Verdade que preside ao grande movimento da regeneração, a promessa do seu advento encontra-se igualmente realizada, pois, de facto, é ele o verdadeiro Consolador (*).

  (*) Muitos pais de família deploram a morte prematura de crianças, pela educação das quais fizeram grandes sacrifícios, e dizem para consigo que tudo isso foi uma pura perda. Com o Espiritismo não lamentam estes sacrifícios e estariam prontos a fazê-los, mesmo tendo a certeza de verem morrer os filhos, pois sabem que, se estes não beneficiam dessa educação no presente, ela servirá primeiro para a sua evolução como Espíritos; depois, que será um conhecimento adquirido para uma nova existência e que, quando regressarem, possuirão uma bagagem intelectual que os tornará mais aptos a adquirir novos conhecimentos. São as crianças que ao nascer trazem ideias inatas, que sabem sem, por assim dizer, terem necessidade de aprender. Se os pais não têm a satisfação imediata de verem os filhos usufruírem dessa educação, certamente gozá-la-ão mais tarde, quer como Espíritos, quer como homens. Talvez venham a ser novamente os pais dessas mesmas crianças que consideramos afortunadamente dotadas pela natureza e que devem as suas aptidões a uma anterior educação; assim como também, se as crianças se desencaminham por negligência dos pais, estes podem vir a sofrer mais tarde com isso, devido aos aborrecimentos e desgostos dos pais, estes podem vir a sofrer mais tarde com isso, devido aos aborrecimentos e desgostos que provocarão numa nova existência. (Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo V, n.º 21: Perdas de Pessoas Amadas e Mortes Prematuras.)

  Se a estes resultados acrescentarmos a rapidez inerente à propagação do espiritismo, apesar de tudo o que foi feito para o abater, não poderemos sequer pensar que o seu advento não seja outra coisa que não providencial, na medida em que triunfa sobre todas as forças e sobre todas as más vontades humanas. A facilidade com que é aceite por um grande número de pessoas, e isso sem constrangimentos, sem outros meios de que o poder da ideia, prova que ele responde a uma necessidade: a de acreditar em qualquer coisa, após o vazio cavado pela incredulidade. Consequentemente, chegou no momento exacto.

 Os aflitos são em grande número: não é então surpreendente que tantas pessoas acolham uma doutrina consoladora, de preferência a doutrinas que desesperam, na medida em que é mais aos deserdados da sorte do que aos felizes que se dirige o Espiritismo. O doente vê chegar o médico com mais alegria do que aquele que não costuma ter problemas de saúde; ora, os aflitos são os doentes e o Consolador é o Médico.

  Vós que combates o Espiritismo, se queres que o deixem para vos seguirem, dá então mais e melhor que ele; cura mais garantidamente as feridas da alma. Dá mais consolações, mais satisfações ao coração, esperanças mais legítimas, certezas maiores; faz do futuro um quadro mais racional, mais sedutor; mas não penses em vencê-lo com a perspectiva do vazio; com a alternativa das chamas do Inferno ou da beata e inútil contemplação perpétua.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 37 a 44 (VIII), 10º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

sábado, 20 de dezembro de 2014

Inquietações Primaveris ~


A Consciência da Morte

Todos sabemos que morremos, que a morte é inevitável, mas estamos tão apegados à vida e fazemos uma ideia tão negativa e temerosa da morte que a rejeitamos na nossa consciência e a transformamos num mito, afastando-a para o Fim dos Tempos. Mito assustador, ela permanece à distância, envolta em névoas, de maneira que só a vemos como figura trágica de um conto de terror. Heideggard observou que só a aceitamos, para os outros, na expressão aleatória morre-se, que nunca se refere a nós. Fascinados pelo fluxo incessante da vida, mergulhados no torvelinho das nossas preocupações do dia a dia, temos a sensação inconsciente e agradável de que ela sempre se distancia de nós. Mesmo quando, conscientemente, pensamos na morte, o fazemos com a ilusão de que ela não chegará tão cedo, pois temos ainda muita coisa a fazer e sentimos que a vida borbulha em torno de nós sem permitir a entrada da morte no nosso meio. Essa é uma forma ingénua de protelarmos a nossa morte, segundo as exigências do instinto de conservação. Assim aliviamos o medo da morte, confiantes no poder da vida.

De nada valem essas pequenas trapaças. A morte chega quando menos o esperamos e não raro nos leva para a outra vida sem nos dar tempo para compreender o que aconteceu. As pesquisas psíquicas, em mais de dois séculos, mostraram o curioso espectáculo de muitas criaturas mortas que não sabem que morreram. Continuam vivas na matéria por conta das suas próprias ilusões e passam a assombrar sem querer e sem o saber os lugares em que viviam ou frequentavam. É claro que permanecem desajustadas no mundo espiritual.

Para evitar esses e outros inconvenientes, devemos desenvolver em nós a consciência da morte, sabendo positivamente que ela existe e é inevitável, sendo inútil qualquer ilusão nesse sentido, que só poderá prejudicar-nos. Temos de nos familiarizar com a morte, considerando-a com naturalidade, não a transformando em tragédia ou em espectáculos inúteis de desespero. Nas sessões espíritas cuida-se muito desses casos, procurando-se despertar os mortos de suas confusões produzidas pelo apego à Terra e integrá-los na nova forma de vida para a qual passaram. Eles não são tratados como almas do outro mundo, mas como companheiros da vida terrena que se libertaram do condicionamento animal por retornarem ao seu mundo de origem, que é o espiritual. Os adversários da doutrina criticam esse processo mediúnico, alegando que criaturas ainda encarnadas nada têm para ensinar às que já se livraram do corpo material. Mas desde as pesquisas de Kardec até aos nossos dias o processo de doutrinação tem dado os melhores resultados, tanto em favor de espíritos perturbados pela passagem súbita ao plano espiritual, quanto no esclarecimento de pessoas que sofrem as influências dessas entidades. Isso se explica por duas razões fundamentais:

1) A doutrinação é a transmissão de ensinos dos desencarnados superiores dados a Kardec, através da mediunidade, para a renovação moral e espiritual da Humanidade. Apoiados no conhecimento desses ensinos é que os médiuns e os doutrinadores atendem as entidades desencarnadas.

2) As pesquisas de cientistas eminentes como Richet, Crookes e Zöllner, no século passado, e Geley, Osty, Crawford, Soal, Carington, Pratt e Price, na actualidade, provaram que nos ambientes mediúnicos a emanação do ectoplasma ampara os espíritos desencarnados e inseguros no plano espiritual, dando-lhes a sensação de segurança física necessária para conversarem com os doutrinadores como se estivessem encarnados. A situação dos espíritos recém-desencarnados, no plano espiritual, não lhes permite a lucidez necessária para compreender facilmente os ensinos que recebem das pessoas que dirigem o trabalho mediúnico.

Esse intercâmbio processa-se em benefício dos espíritos e dos homens, sem nenhum sistema de evocações e rituais. Os espíritos manifestam-se por sua livre vontade, desejosos de comunicar-se após a morte do corpo físico, com familiares e amigos que deixaram na vida terrena. Essas manifestações naturais marcam toda a história da Humanidade, em todo o mundo e em todos os tempos, sem nenhuma interrupção. Não são descobertas modernas nem invenções de qualquer investigador; figuram nos livros sagrados de todas as religiões, na cultura de todos os povos e nas grandes obras literárias, filosóficas e científicas das grandes civilizações. Constituem, portanto, uma fenomenologia ao mesmo tempo arcaica e moderna, actualmente comprovada pelas pesquisas tecnológicas, tanto nas áreas espiritualistas como nas materialistas do mundo actual. Não se trata do produto de crenças ou superstições, mas de uma realidade fenoménica cientificamente provada e comprovada. As interpretações pessoais desses fenómenos, formuladas por clérigos interessados em negá-los ou subordiná-los a processos puramente psicológicos, nada representam, são apenas palpites ingénuos ou interesseiros, fartamente negados pelas grandes pesquisas científicas do passado e do presente.

A morte é um fenómeno natural, de natureza biológica, no qual se verifica o esgotamento da vitalidade nos seres pela velhice ou por acidente fisiológico. Não atinge a essência do ser, que é sempre de natureza espiritual, referindo-se apenas ao corpo material, o que vale dizer que ela não existe como extinção das formas de ser das plantas, dos animais e dos homens. Falar da morte como a nadificação, como faz Sartre, é simples ilogismo, tanto do ponto de vista puramente racional, quanto do científico. As condições actuais do desenvolvimento científico eliminaram totalmente qualquer possibilidade de sustentação da teoria do Nada, esse conceito vazio, como Kant o considerou. Os que insistem na destruição total do homem pela morte revelam ignorância do avanço das Ciências nos nossos dias. O que se fez neste século na investigação desse problema, directa ou indirectamente, liquidou as últimas esperanças dos que sonharam com a irresponsabilidade do nada, de um Universo inconsequente e sem finalidade. Indirectamente, a Física revelou as potencialidades ônticas da matéria e, nas suas entranhas, a eterna dinâmica dos átomos e as suas partículas, sendo que estas, mesmo quando livres, tendem sempre a formar estruturas atómicas definidas e plasmas orgânicos. As pesquisas da antimatéria revelaram a mesma tendência nos antiátomos, criadores de espaços novos e antiestruturas materiais. Os vazios espaciais mostraram-se carregados de campos de força que escapam ao nosso sensório, à precariedade dos sistemas de percepção humana, não raro superadas pela percepção animal. E, directamente, o avanço das pesquisas psicológicas, aprofundadas pela Parapsicologia, confirmaram a tese do avanço constante do inconsciente para o consciente, de Gustav Geley, confirmando a teoria da evolução criadora de Bergson. Cientistas soviéticos voltaram, nas pesquisas astronáuticas, a desvendar os mistérios dos sete véus de Ísis, como o fizeram M. Vassiliev e Sianiukovch, em Os Sete Estados do Cosmos. Nas captações e gravações do inaudível por Raudive, na Alemanha, nas pesquisas de Pratt sobre os fenómenos teta (avisos de morte e comunicações de espíritos de pessoas mortas) e nas pesquisas sobre a reencarnação por Ian Stevenson, Wladimir Raikov (este na Universidade de Moscovo) e por Barnejee na Universidade de Rajastam, temos uma constelação imponente de factos e dados positivos sobre a realidade, hoje inegável, da transitoriedade da morte. Ao mesmo tempo, ante esse panorama de revelações científicas, a morte adquire uma importância gigantesca na construção da génese moderna. Tornou-se impossível a sustentação lírica das teses materialistas dos nossos dias.

A necessidade de uma tomada universal de consciência sobre o sentido, o significado e o valor da morte, tornou-se imperiosa. É simplesmente inadmissível, neste século, qualquer doutrina que pretenda sustentar por simples argumentos que a morte é o fim e a frustração total dos seres vivos e especialmente da criatura humana. O panorama científico actual exige de todos nós o desenvolvimento da consciência da morte, cuja fatalidade inegável se explica pela necessidade de renovação das estruturas da vida em todos os planos da natureza. Em consequência, a presença de Deus, como Consciência Suprema que rege a toda a realidade, numa estrutura lógica, teleológica e antiteológica, firma-se como o imperativo categórico da compreensão do mundo, do homem e da vida. Os teólogos que proclamaram, ante a tragédia nazi num exíguo espaço-tempo do nosso pequenino planeta, a Morte de Deus, mataram a Teologia em que se amamentaram durante séculos, praticamente um matricídio vergonhoso e estúpido. Em última instância, suicidaram-se na porta do Céu, no momento exacto em que o Céu era conquistado pela Ciência mundial. Nunca se viu maior fiasco do que esse, que reduz a simples opereta a façanha de Prometeu e a sua morte no Cáucaso. Soou a hora final das Igrejas, o instante fatal da falência eclesiástica, transformada em toda a parte numa nova morte de Pã. A grande Deusa morreu aos nossos olhos, como já havia morrido o Deus Pã nos fiordes da Noruega, ante a capitulação dolorosa de Knut Hamsun. As Igrejas, universalmente transformadas em supermercados de quinquilharias sagradas, estão agora vendendo os seus saldos das existências aos missionários por conta própria que invadiram as nações para vender, nos submundos da ignorância falsamente ilustrada e do populacho ansioso por um céu de delícias pasmáticas made in Bizâncio. Porque Bizâncio foi o fim esquizofrénico do Mundo Antigo após a queda de Roma e hoje a Nova Roma, já também esclerosada, parece destinada a selar o fim do mundo do arbítrio e da violência em que vivemos.

Esse rápido olhar pelo passado de tentativas frustradas da implantação do Cristianismo na Terra basta para nos mostrar que precisamos de desenvolver em nós a consciência da morte, para aprendermos a morrer com decência e dignidade. Se esta civilização apoiada em arsenais atómicos nada mais pode esperar do que a sua própria explosão, que ao menos nos preparemos para morrer de mãos limpas, sem manchas de sangue e de roubo, a fim de podermos voltar nas futuras reencarnações, em condições de consciência que nos permitam realizar uma nova tentativa de cristianização do Planeta. Sem uma tomada de consciência do sentido e do valor da morte estaremos arriscados a continuar indefinidamente no círculo vicioso das vidas repetitivas e sem sentido. A vida só tem sentido quando serve de preparação para vidas melhores. O destino não é viver como as feras, mas viver para transcender-se, numa escalada do Infinito em busca das constelações superiores. Os segredos da morte nos são agora racionalmente acessíveis para podermos aprender a perder a nossa vida para reencontrar o Cristo.

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José Herculano Pires – Educação para a Morte, A Consciência da Morte, 18º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O Mundo Invisível e a Guerra ~


IX
O Espiritismo e as Religiões

|Fevereiro de 1917|

   O Espiritismo não é inimigo das religiões; ao contrário, fornece-lhe poderosos elementos de valor e de regeneração.

   Os conhecimentos que ele nos proporciona sobre a vida no Além e as condições em que se desenvolve a nossa existência após a morte, a certeza de leis justas e equitativas regendo o mundo invisível, formam outros tantos meios de análise e exame crítico, permitindo separar, nas religiões, o que é artificial e ilusório do que é real e imperecível.

   Não há dúvida de que os fenómenos do Espiritismo se encontram na origem de todas as religiões, porém estas lhes emprestam um carácter sobrenatural e milagroso, transferindo-os para um passado remoto e fazendo-os perder toda a importância sobre a vida moral e social.

   O intercâmbio com o invisível era apenas uma hipótese, uma vaga esperança; com o Espiritismo, torna-se certo e permanente.

   Estamos vivendo uma das maiores épocas de transição da História. Os factos que se estão desenrolando, as cruentas lutas dos povos e as subversões sociais são o começo, a preparação de uma nova ordem das coisas.

   Quando terminar a guerra (*), a mente humana analisará todos os seus aspectos e procederá a um exame profundo de todas as forças que agiram no decorrer desses trágicos anos. Então comprovaremos que são as ideias que conduzem o mundo. O patriotismo, ao unir os corações dos franceses, conteve a invasão, limitando os seus estragos.

   O amor pela terra natal acordou o heroísmo que, apoiado pelos auxílios poderosos do mundo oculto, salvou a França.

   Por isso a ideia de pátria terá que ocupar um lugar especial no ensino da educação popular. Entretanto, isso não será o bastante: para terminar com as nossas desavenças, as nossas rivalidades, as lutas de classes e de interesses é preciso, antes de tudo, unir inteligências e consciências, pois sem a harmonia das almas não poderá haver a harmonia social.

   Todavia, como se poderá preparar tal união? Trabalhe-se com ardor, com espírito de tolerância e concórdia, para aproximar os objectivos, as aspirações e as crenças. Dois poderosos meios se apresentam: A ciência e a fé.

   Antagónicos na aparência, essas tendências se conciliam e se completam mutuamente, como veremos no decurso deste livro. Elas podem fornecer facilmente uma concepção da vida e do destino, uma noção das leis superiores e uma base moral, estas coisas que são indispensáveis à nossa perturbada sociedade e sem as quais a existência seria vazia de sentido, sem finalidade e sem sanção.

   Dentro de toda a alma humana há um retiro, um ponto secreto, onde se instala a centelha divina, a parte do Infinito que garante a cada um de nós a indestrutibilidade do seu eu. Ali dormitam as forças invisíveis, os recursos psíquicos cujo desenvolvimento fará, mais tarde, do ser mesquinho, frágil e ignorante que somos no princípio de nossa evolução, um génio preparado para as grandes empresas e capaz de desempenhar um papel notável no Universo.

   A verdadeira religião consiste em utilizar esses recursos ocultos e valorizá-los. Ela tem que nos ensinar a colocar o ser interior em comunhão com o divino, expandindo-o, libertando-o de influências inferiores, fazendo-o adquirir a plenitude de sua irradiação.

   Conseguido esse estado espiritual, a alma humana poderá realizar as suas mais árduas missões e aceitar com alegria as provações mais duras. Saberá conservar nos dias mais difíceis um optimismo e uma confiança inquebrantáveis.

   Esse estado de espírito pode ser encontrado em todas as religiões, bem como fora delas. Atendo-se às práticas rituais da liturgia e aos diversos dogmas existentes dentro dos limites em que comummente se encontra a ideia religiosa, com frequência esquece-se da fé independente que paira acima de todos os cultos e não se sujeita ao “credo” de nenhuma igreja.

   Essa religião, pessoal e livre, talvez conte com maior número de membros do que as religiões reconhecidas, porém o número exacto de seus adeptos foge a todos cálculos.

   As descobertas científicas nos deram uma concepção do Universo vasta e grandiosa, mas diferente daquela que tínhamos na Idade Média e na antiguidade.

   A experimentação psíquica e o estudo do mundo invisível abriram perspectivas ilimitadas para a vida e para o destino do ser; o homem se sentiu ligado a todos os que pensam, amam e sofrem, na imensidão dos espaços.

   Os modelos das religiões caducas se romperam com o impulso triunfante do espírito, sequioso para conquistar a sua legítima parte de verdade e de luz. Quase não existem intelectuais que não tenham criado uma crença inspirada na observação directa da natureza, isenta das rotinas seculares, baseada na ciência e na razão.

   Os partidários dos dogmas não pretendem ver nesse sentimento senão o que denominam ironicamente de “religiosidade”. Realmente, ele possui em gérmen os elementos dessa religião universal, simples e natural que haverá, um dia, de reunir todos os povos do planeta e fundir as igrejas particulares, assim como os rios se fundem no oceano.

   Os actuais acontecimentos repercutirão profundamente por todas as formas da actividade social e, assim que a paz reinar novamente no mundo, haverá uma revisão de todas as causas que contribuem para o progresso humano, não escapando as religiões a uma análise crítica e rigorosa.

   Os terríveis factos que estão acontecendo darão a medida que permitirá calcular o poder ou a fraqueza moral das religiões.

   Verificar-se-à, não sem certo espanto, que a educação religiosa de povos que se intitulam cristãos, como a Alemanha e a Áustria, nada conseguiu fazer para impedir os mais condenáveis crimes que fazem a civilização se envergonhar.

   Ver-se-à com tristeza que, nestas horas cruéis, a Igreja Romana quase sempre colocou os seus interesses políticos acima das recomendações do Evangelho e dos sagrados direitos da consciência. Não foram melhores os adeptos do Islamismo e foi mais clara do que nunca a falência das religiões.

   No início da guerra a França foi sacudida por um grande movimento religioso e, após as nossas primeiras derrotas, as aspirações que moram no fundo de sua natureza lhe despertaram uma necessidade de crença, de saber que a morte não equivale ao nada e que, acima de tudo, existe um poder soberano, uma força inteligente e consciente, capaz de nos amparar e socorrer na provação e fazer prevalecer a justiça em um mundo de paixões descontroláveis.

   Se tal sentimento houvesse podido alcançar o ideal sonhado, seria o começo de uma renovação nacional, todavia as soluções apresentadas pelas igrejas, as poucas consolações que elas ofereciam aos corações dilacerados, as práticas ritualísticas impostas aos seus fiéis já não satisfaziam às necessidades do tempo e do meio. Foram julgadas insuficientes e assim, pouco a pouco, o movimento religioso se enfraqueceu.

   Todavia, o pensamento segue firme, voltado para o Além. Diante do perigo e do dilúvio de sofrimentos que nos ameaçam, no meio das ruínas e das mortes que se acumulam, a alma francesa procura sempre uma base sólida, uma certeza onde apoiar a sua fé e só as encontrará no moderno espiritualismo, o que equivale dizer no Espiritismo.

   A religião do futuro se apoiará na prova científica da sobrevivência, nas demonstrações experimentais e no testemunho dos sábios que estudaram os problemas da vida invisível.

   No decorrer desta guerra, o antropomorfismo das religiões se apresentou no seu aspecto mais monstruoso e o velho deus alemão não é mais do que uma evocação dos bárbaros deuses do paganismo germânico. Sob a máscara cristã mal ajustada, Odin, que comanda as cenas de carnificina, deixa entrever as suas feições.

   Esta noção da divindade é muito próxima do mais baixo materialismo e repugna às almas delicadas e aos espíritos refinados. Não se trata apenas das acções de um monarca ávido em dominar o mundo e dos chefes militares que o rodeiam; essa concepção é também encontrada nas obras dos pensadores alemães; professores, pastores e escritores a proclamam abertamente em discursos e publicações.

   Semelhante ao Jeová, do Antigo Testamento, o velho deus alemão protege somente uma raça, vendo nas outras apenas um rebanho de povos vis e corruptos, destinados à ruína e à morte.

   Esta feroz mentalidade faz dos alemães os pretensos instrumentos da vingança divina, impelindo-os a uma obra de destruição que eles continuam metodicamente.

   Essa grosseira mística aproxima-se das teorias de Nietzsche, relativas ao super-homem, tão difundidas na Alemanha, e podemos medir as funestas consequências de uma falsa religião unida a uma não menos falsa filosofia.

   É bom, sem dúvida, desenvolver a vontade de poder, segundo a expressão de Nietzsche, porém com a condição de se desenvolverem, ao mesmo tempo, a consciência e as outras faculdades do espírito e do coração: a piedade e a bondade, o respeito à verdade, ao direito e à justiça. Sem isto rompe-se todo o equilíbrio moral no ser humano e só se logrará produzir homens orgulhosos, déspotas, monstros que, para triunfarem, não vacilarão no emprego de todos os meios, mesmo os mais criminosos e odiosos.

   Daí essa terrível luta que se desenvolve à nossa volta, onde a Alemanha, em razão do seu feroz egoísmo, se desacredita e se desonra aos olhos do mundo e da História.

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(*) Primeira Guerra Mundial 1914-1918.


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, IX O Espiritismo e as Religiões 1, Fevereiro de 1917, (1 de 2), 24º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

sábado, 22 de novembro de 2014

Nas garras do pensamento crítico ~


O indivíduo e o meio ~

   Alguns espíritas não entendem esse imperativo histórico da doutrina. Pensam que a lei de causa e efeito explica e resolve todas as coisas, cabendo-nos apenas compreendê-la e aceitar passivamente a sua acção. Esse pensamento misoneísta, de fundo místico, aparece até mesmo em A Grande Síntese, o livro de Ubaldi, que já citamos algumas vezes, e que comete ainda o pecado filosófico de confundir o comunismo científico de Marx e Engels com o comunismo igualitário e ingénuo de Weitling. Outros entendem que a revolução espírita é essencialmente individualista, cabendo-lhe transformar o homem, para que a estrutura social, em consequência, se transforme. É novo equívoco de fundo místico, e Mariotti o menciona, chegando mesmo a tropeçar nele.

   Allan Kardec nos indica, entretanto, a necessidade do contínuo esforço do homem para se superar a si mesmo e às circunstâncias. A passividade diante das leis naturais caracteriza as formas inconscientes de vida. A consciência está submetida a uma nova lei, em plano mais alto: a lei do esforço próprio, a lei do trabalho e da actividade livre, que a fará progredir, a si mesma e ao todo a que pertence, à colectividade. Em O Livro dos Espíritos encontramos esse pensamento claramente definido, impregnando toda a obra, e podemos surpreendê-lo nos passos como o seguinte: “Tudo se deve fazer para chegar à perfeição, e o próprio homem é o instrumento de que Deus se serve para atingir os seus fins. Sendo a perfeição a meta da natureza, favorecer essa perfeição é corresponder aos propósitos de Deus.” (pergunta 692).

   Kardec não é misoneísta. Deus, para ele, é sinónimo de incessante actividade em direcção do bem, é o constante “vir-a-ser” do Universo, actuando por todos os meios e por todas as formas, para atingir o objectivo ideal. Vejamos, por exemplo, o seguinte trecho do seu comentário ao número 783 de O Livro dos Espíritos: “O homem não pode conservar-se indefinidamente na ignorância, pois tem de atingir a finalidade que a Providência lhe assinalou. Ele se instrui pela força das coisas. As revoluções morais, como as revoluções sociais, germinam durante séculos. Depois, irrompem subitamente e produzem o desmoronamento do carunchoso edifício do passado, que já não se encontra em harmonia com as necessidades novas e as novas aspirações.”

   A renovação do homem implica a renovação social – mas desde que o homem renovado se empenhe na transformação do meio em que vive, sendo esta, aliás, a sua indeclinável obrigação espírita. Ora, querermos ficar no conceito de uma renovação puramente individualista seria um contra-senso, simples ignorância da estrutura social como um todo. Que diríamos de um pedreiro que, para embelezar um edifício, não cuidasse do seu aspecto de conjunto, mas somente de cada um dos tijolos, isoladamente? E quem poderia negar, dentro da concepção espírita, que o homem não é um indivíduo abstracto, mas parte integrante do todo social, sobre o qual exerce a sua influência e pelo qual é influenciado, resultando, dessa constante simbiose, a sua evolução e a evolução colectiva? Como, pois, isolarmos o homem, para que o Espiritismo o trabalhe no espaço, independentemente das suas raízes gregárias?

   A função do Espiritismo é a renovação integral do homem, não apenas do homem na sua expressão individual e transitória, mas na sua permanente expressão colectiva. A propósito, aliás, poderíamos lembrar aos defensores do pensamento isolacionista, a lei maior do Evangelho, que é a do amor ao próximo. Não conheceriam eles o poder do ambiente sobre os indivíduos, mormente sobre os menos evoluídos? Não saberão que as influências mesológicas determinam, quase sempre, o próprio carácter individual? Não perceberão que uma vida social mais equilibrada, e portanto mais justa, será o grande e permanente estímulo do progresso individual?

   Por uma consciência humanista

   Se a experiência nos mostra que a formação de uma “consciência proletária” é praticamente inviável, pois, entre outros motivos, a própria revolução proletária vem sendo impulsionada e dirigida por forças estranhas ao proletariado; não somente desde os seus pródromos, mas ainda, hoje, e cada vez mais; se nos mostra que a “filosofia do proletariado” não consegue atraí-lo e empolgá-lo mais do que a demagogia fascista ou o diversionismo democrático dos países capitalistas mais altamente industrializados; se nos revela ainda que a vitória das chamadas “minorias conscientes” cria novos e violentos antagonismos internacionais, cada vez mais agressivos, é evidente que só nos resta procurar uma saída humana, e não proletária nem burguesa, para essa terrível situação. A saída não será a da submissão, a do pescoço entregue mansamente à canga, mas não será também a da violência e a da força.

   Se Marx reconhece no proletariado o potencial revolucionário, que a sua filosofia devia armar da necessária orientação para a luta, e se essa orientação só seria possível através da criação da “consciência de classe”, não teremos, nesse mesmo facto, o exemplo e a indicação do que nos cabe fazer? As massas que hoje se deparam à nossa frente, exploradas e sofredoras, não são apenas o proletariado, mas essa multidão heterogénea, que se chama povo, humanidade, e que as classes dividem de maneira formal, mas não substancial. Ao mesmo tempo, a situação das classes dominantes é de angústia e desespero, pesando sobre elas as consequências morais inevitáveis do usufruto indevido e da exploração dos semelhantes. O capital, o dinheiro, o poder, as comodidades, não bastam para salvá-las e, pelo contrário, cada vez mais as precipitam no pântano da corrupção moral e social.

   Diante disso, cabe-nos repetir o gesto de Marx, oferecendo agora uma filosofia, não a esta ou àquela classe, mas a toda a humanidade, para armá-la da orientação necessária, através da criação de uma “consciência humanista”. Entreguemos essa filosofia de libertação, essa arma de defesa moral, esse instrumento de luta social, ao homem de todas as latitudes e de todas as classes, e trabalhemos pela criação da “consciência humanista” nos indivíduos em particular e no meio social em geral.

   Elevar a Terra na escala dos mundos

   Não nos iludamos, porém, quanto aos métodos de acção que devemos empregar. A simples evangelização ou catequização, nos moldes religiosos, não dará resultados, porque nos amarram, pelo contrário, às antiquadas formas sectárias, que proliferam por toda a parte e criam divisionismos estéreis e perigosos. O Espiritismo tem de descobrir a sua própria maneira de agir, tem de forjar as suas próprias armas, inteiramente novas, tão diferentes das usadas pelo processo do religiosismo clássico quanto pelo materialismo-dialéctico. Talvez nesta altura nos pudessem servir de “pontos-de-referência” algumas longínquas tentativas históricas, como a da comunidade apostólica, de que nos dá notícia O Livro de Actos, ou ainda as recentes colónias de produção do Estado de Israel. O certo, porém, é que precisamos estabelecer os fundamentos sólidos e definidos do Espiritismo Dialéctico, aplicando-o, no plano sociológico ou histórico, rumo à sociedade futura.

   Ele mostrará, com base na experiência secular e no estudo objectivo da natureza humana, do homem psicológico, que não se pode construir um mundo social harmónico através da violência social, mas tão-somente do desenvolvimento do espírito colectivista de cooperação. E que a sociedade, como o homem – sem cairmos rigidamente no organicismo spenceriano –, tem as suas fases evolutivas bem definidas, que não poderemos deixar de considerar, pois Engels já nos ensinou que não desprezaríamos impunemente a dialéctica.

   Assim, se aquilo que o homem só podia resolver pelo emprego da força bruta, no seu estado primitivo, consegue fazê-lo pelo raciocínio e pela técnica, no estado de civilização, também a humanidade, superada a fase primitiva da sua elaboração social, pode caminhar, sem o uso da violência brutal e instintiva, para a revolução colectivista. Isso não quer dizer que a luta não se processe, que tenha sido interrompida no seu organismo, e que tenhamos de esperar o advento espontâneo da nova forma social, mas apenas que a luta se desenvolve de maneira diversa, em plano mais alto, como bem o definiu Ubaldi.

   Aproveitemos, pois, a oportunidade que Humberto Mariotti nos oferece, com a sua “interpretação espiritual da dialéctica”, para meditarmos sobre esses assuntos e buscarmos a forma que nos falta de oferecer ao mundo a solução espiritual do problema social. De fazermos, enfim, que o Espiritismo cumpra a sua missão histórica, vencendo a crise que o reduz, no momento, a uma luz bruxuleante no meio de densas trevas, a uma espécie de simples refúgio individual para as decepções e para as aflições humanas. Pois o seu destino, como assinalou sir Oliver Lodge, não é apenas o de consolar corações desalentados, mas o de rasgar para o mundo as perspectivas de uma nova era. Se a fé dogmática determinou o fanatismo religioso da Idade Média, com as suas fogueiras sinistras, a fé raciocinada criará o positivismo religioso do terceiro milénio, com as piras da fraternidade acesas em todos os quadrantes do planeta. Porque, como já o dissera Kardec, a tarefa do Espiritismo é a de elevar a Terra na escala dos mundos, transferindo-a da categoria expiatória para a de Mundo Regenerador.

                                                                                         J. Herculano Pires



José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico  O indivíduo e o meio – Por uma consciência humanista – Elevar a Terra na escala dos mundos, 14º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)

domingo, 16 de novembro de 2014

O sentido da vida ~


O Sentido da Vida ~

O fardo da existência torna-se demasiado pesado para a criatura humana, quando, vencendo os primeiros anos de ilusão e de fácil entusiasmo, ela se encontra envolvida na dura e monótona rotina quotidiana. Os dias e as noites se tornam iguais, ou variam muito pouco, e não raro da pior maneira. Sobrevém para o homem o cansaço das obrigações que o escravizam, o perigo constante da doença, do desemprego, dos acidentes e da morte, para ele mesmo e para os que lhe são mais caros, a incerteza dos dias futuros e a angústia das dificuldades financeiras.

Os ricos, bem aquinhoados pela fortuna, despreocupam-se de muitas dessas coisas, que pesam mais fortemente na vida obscura de milhares de pobres, de milhares de pessoas que vivem do suor de seu próprio rosto. Mas, mesmo para eles, a vida reserva o seu quinhão de desilusões e de amarguras. E não raro ela se torna tão amarga, através das dificuldades de família, das lutas inglórias com amigos e parentes, das decepções de toda espécie, que o homem aparentemente felizardo, senhor de grandes fortunas, se enche de tédio e procura uma saída no suicídio ou nas dissipações e no tumulto das paixões impuras.

Os cientistas e os artistas, dizia Goethe, empenham-se no caminho de suas conquistas e realizações, e de nada mais precisam. Os religiosos apegam-se à fé e conseguem superar os próprios dissabores. Entretanto, se analisarmos melhor esses velhos conceitos, à luz das experiências reais, veremos que nem a Ciência, nem a Arte, a Filosofia ou a Religião conseguem de facto salvar o homem do vazio da vida, quando esse vazio se lhe apresenta em todo o seu horror. O estímulo de viver, que esses ramos do conhecimento humano conseguem despertar, pode também esgotar-se, levando o cientista, o artista, o filósofo e o religioso ao desespero e à descrença.

Diante disso, procuram os homens construir várias espécies ou sistemas de explicações para a vida. Numerosos livros foram escritos, milhares de conferências são diariamente pronunciadas, no intuito de tornar suportável a existência para todos, aplainando o escarpado caminho dos desiludidos e descrentes.

Desses sistemas, há um que podemos chamar de heróico. É o materialista, que explica a vida como uma fatalidade natural a que não podemos fugir e que devemos enfrentar com energia e serenidade, sem nos atemorizarmos e sem cometermos a franqueza de uma deserção. Belo sistema para as almas fortes, dotadas da intuição inata de que a vida tem um objectivo oculto, embora intelectualmente o neguem. Mas de que serve todo o heroísmo desse sistema para a grande massa do povo, que não tem disposição para o heroísmo? Se nos fosse possível tornar materialista um povo inteiro, toda uma nação, veríamos a que extremos de desespero e de loucura esse belo sistema nos levaria.

Há um sistema que poderíamos chamar de superficial, e que se enquadra, na filosofia clássica, na corrente do cepticismo, que nos vem do filósofo grego Pirron (aproximadamente 360-270 a.C.). Este sistema nada explica nem quer explicar. Limita-se a considerar a vida como um facto consumado, diante do qual não nos resta fazer outra coisa senão suportá-la. Para os temperamentos frios, naturalmente indiferentes e egoístas, ele pode servir. Mas há momentos em que o próprio egoísta se vê apanhado num torniquete do qual não pode sair e não raro sente que o seu sistema de indiferença lhe escapa das mãos, deixando-o sozinho e desarmado diante do imenso mistério do mundo e da vida.

Há um sistema que chamaríamos de optimista, e que não se funda no pensamento de Epicuro porque é muito inconsequente para ter as suas raízes em tão esplêndida fonte. Segundo ele, a vida é bela, o mundo é magnífico e o homem nasceu para gozar as delícias da vida e os esplendores do mundo. Quando, premido pela doença ou por qualquer outros motivos imperiosos, não pode satisfazer a esse objectivo único da existência, deve ele corajosamente estourar os miolos com uma bala ou atirar-se do último andar do mais elegante arranha-céus. Este sistema encontra, hoje, intérpretes mais ou menos avançados em certos ramos da chamada filosofia existencialista.

Mas há outro sistema, que se enquadra na estrutura doutrinária das várias religiões dominantes no mundo, segundo o qual o homem nasceu para sofrer e o seu destino é a dor, a amargura, a desesperança, a luta constante com as adversidades insuperáveis. É o sistema doloroso do misticismo exasperante, que o povo, entretanto, procura sempre dosar com a sua esperança ilógica nos milagres e nas providências dos santos e dos anjos. Há um lema para este sistema, que todos nós conhecemos, e não raro repetimos, por força do hábito: “A felicidade não é deste mundo.”

O Espiritismo, entretanto, ao surgir na Terra, em forma de filosofia e, portanto, de interpretação da vida, em meados do século XIX, opôs-se desde logo a todos esses sistemas. Negou que a vida não tenha objectivo nem significação, combateu a teoria do prazer material como finalidade da existência humana e manifestou-se contrário à ideia de que o homem nasceu para sofrer. Os espíritos que deram a Allan Kardec a tarefa de codificar a doutrina ensinaram-lhe outro sistema, diferente de todos os anteriores. E abriram, com ele, perspectivas novas e mais amplas para a inteligência humana, horizontes mais vastos para o coração angustiado do homem terreno, que se debatia entre a crença empírica numa vida futura e a descrença científica, cada vez mais desesperada, em qualquer possibilidade de sobrevivência.

O Espiritismo renovou fundamentalmente a concepção humana da vida e do mundo, ensinando ao homem que ele não nasceu para gozar nem para sofrer, mas apenas para evoluir, para progredir, como tudo evolui e progride à nossa volta, na natureza e na própria sociedade. A dor deixou de ser um castigo imposto ao homem pela absurda vingança de Deus contra o casal primitivo; o prazer deixou de ser o objectivo aceitável da existência corpórea e ambos, prazer e dor, passaram a ser meras decorrências de um processo mais amplo e mais complexo, em que o homem se acha envolvido, para crescer e se desenvolver, em espírito e verdade.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, O Sentido da Vida 2º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

| o grande enigma ~


Solidariedade comunhão universal |||

Nas Almas evolvidas, o sentimento da solidariedade torna-se bastante intenso para se transformar em comunhão perpétua com todos os seres e com Deus.

A Alma pura comunga com a Natureza inteira; inebria-se nos esplendores da Criação infinita. Tudo – os astros do céu, as flores do prado, a canção do regato, a variedade das paisagens terrestres, os horizontes fugitivos do mar, a serenidade dos espaços – tudo lhe fala uma linguagem harmoniosa. Em todas essas coisas visíveis, a Alma atenta descobre a manifestação do pensamento invisível que cobre o Cosmos. Este reveste para ela um aspecto encantador. Torna-se o teatro da vida e da comunhão universais, comunhão dos seres uns com os outros e de todos os seres com Deus, seu pai.

Não há distância entre as Almas que se amam, porque se comunicam através da extensão.

O Universo é animado de vida potente: vibra qual uma harpa sob a acção divina. As irradiações do pensamento o percorrem em todos os sentidos e transmitem mensagens de Espírito a Espírito, através do Espaço. Esse Universo que Deus povoou de Inteligências, a fim de que o conheçam e o amem e cumpram a sua Lei, Ele o enche de sua presença, ilumina-o com a sua luz, aquece-o com o seu amor.

A prece é a expressão mais alta dessa comunhão das Almas. Considerada sob este aspecto, ela perde toda a analogia com as fórmulas banais, os recitativos monótonos em uso, para se tornar um transporte do coração, um acto da vontade, pelo qual o Espírito se desliga das servidões da Matéria, das vulgaridades terrestres, para perscrutar as leis, os mistérios do poder infinito e a ele submeter-se em todas as coisas: “Pedi e recebereis!” Tomada neste sentido, a prece é o acto mais importante da vida; é a aspiração ardente do ser humano que sente a sua pequenez e a sua miséria e procura, pelo menos por um instante, pôr as vibrações do seu pensamento em harmonia com a sinfonia eterna. É a obra da meditação que, no recolhimento e no silêncio, eleva a Alma até essas alturas celestes, onde aumenta as suas forças, onde a impregna das irradiações da luz e do amor divinos. Mas quão poucos sabem orar! As religiões nos fizeram desaprender a prece, transformando-a em exercício ocioso, às vezes ridículo.

Sob a influência do Novo Espiritualismo, a prece tornar-se-á mais nobre e mais digna; será feita com mais respeito ao Poder Supremo, com maior fé, confiança e sinceridade, em completo destaque das coisas materiais. Todas as nossas ansiedades e incertezas cessarão quando tivermos compreendido que a vida é a comunhão universal e que Deus e todos os seus filhos vivem, em conjunto, essa vida.

Então, a prece tornar-se-á a linguagem de todos, a irradiação da Alma que, nos seus transportes, agita o dinamismo espiritual e divino. Os seus benefícios se estenderão por todos os seres e particularmente por aqueles que sofrem, pelos ignorados da Terra e do Espaço.

Ela chegará àqueles em quem ninguém pensa, que jazem na sombra, na tristeza e no esquecimento, diante de um passado acusador. Ela originará neles inspirações novas, fortificar-lhes-á o coração e o pensamento – porque não tem limites a acção da prece, assim como as forças e os poderes que ela pode pôr em elaboração para o bem dos outros.

A prece, em verdade, nada pode mudar às leis imutáveis; ela não poderia, de maneira alguma, mudar os nossos destinos; o seu papel é proporcionar-nos socorros e luzes que nos tornem mais fácil o cumprimento da nossa tarefa terrestre. A prece fervente abre, de par em par, as portas da Alma e, por essas aberturas, os raios de força, as irradiações do foco eterno nos penetram e nos vivificam.

Trabalhar com sentimento elevado, visando a um fim útil e generoso, é, ainda, orar. O trabalho é a prece activa desses milhões de homens que lutam e penam na Terra, em benefício da Humanidade.

A vida do homem de bem é uma prece contínua, uma comunhão perpétua com os seus semelhantes e com Deus. Ele não tem mais necessidade de palavras, nem de formas exteriores para exprimir a sua fé: ela se exprime por todos os seus actos e por todos os seus pensamentos. Ele respira e se agita sem esforço numa atmosfera fluídica cheia de ternura pelos desgraçados, cheia de boa-vontade por toda a Humanidade. Essa comunhão constante se torna uma necessidade, uma segunda natureza. É graças a ela que todos os Espíritos de eleição se mantêm nas alturas sublimes da inspiração e do génio.

Os que vivem no organismo e na materialidade, e cuja compreensão não está aberta às influências do Alto, esses não podem saber que impressões inefáveis faculta essa comunhão da Alma com o Espírito Divino.

Todos aqueles que, vendo a espécie humana deslizar sobre os declives da decadência moral, procuram os meios de sustar a sua queda, devem esforçar-se por tornar uma realidade essa união estreita de nossas vontades com a vontade suprema! Não há ascensão possível, encaminhamento para o Bem, se, de tempos a tempos, o homem não se volta para o seu Criador e Pai, a fim de lhe expor as suas fraquezas, as suas incertezas, as suas misérias, para lhe pedir os socorros espirituais indispensáveis à sua elevação. E quanto mais essa confissão, essa comunhão íntima com Deus for frequente, sincera, profunda, mais a Alma se purifica e emenda. Sob o olhar de Deus, ela examina, expande as suas intenções, os seus sentimentos, os seus desejos; passa em revista todos os seus actos e, com essa intuição, que lhe vem do Alto, julga o que é bom ou mau, o que deve destruir ou cultivar. Ela compreende, então, que tudo quanto há de mal vem do eu e deve ser abatido para dar lugar à abnegação, ao altruísmo; que, no sacrifício de si mesmo, o ser encontra o mais poderoso meio de elevação, porque, quanto mais ele se dá, mais se engrandece. Deste sacrifício faz a lei de sua vida, lei que imprime no mais profundo do seu ser, em traços de luz, a fim de que todas as acções sejam marcadas com o seu cunho.

De pé sobre a Terra, meu sustentáculo, minha nutriz e minha mãe, elevo os meus olhares para o Infinito, sinto-me envolvido na imensa comunhão da vida; os eflúvios da Alma universal me penetram e fazem vibrar o meu pensamento e o meu coração; forças poderosas me sustentam, aviventam em mim a existência. Por toda a parte onde a minha vista se estende, por toda a parte a que a minha inteligência se transporta, vejo, discirno, contemplo a grande harmonia que rege os seres e, por vias diversas, os faz rumar para um fim único e sublime. Por toda a parte vejo irradiar a Bondade, o Amor, a Justiça!

Ó meu Deus! Ó meu Pai! Fonte de toda a sabedoria, de todo o amor, Espírito Supremo cujo nome é Luz, eu te ofereço os meus louvores e as minhas aspirações! Que elas subam a ti, qual um perfume de flores, qual sobem para o céu os odores inebriantes dos bosques. Ajuda-me a avançar na senda sagrada do conhecimento, para uma compreensão mais alta das tuas leis, a fim de que se desenvolva em mim mais simpatia, mais amor pela grande família humana; pois sei que, pelo meu aperfeiçoamento moral, pela realização, pela aplicação activa em torno de mim e em proveito de todos, da caridade e da bondade, aproximar-me-ei de ti, e merecerei conhecer-te melhor, comungar mais intimamente contigo na grande harmonia dos seres e das coisas. Ajuda-me a desprender-me da vida material, a compreender, a sentir o que é a vida superior, a vida infinita. Dissipa a obscuridade que me envolve; depõe na minha alma uma centelha desse fogo divino que aquece e abrasa os Espíritos das esferas celestes. Que a tua doce luz e, com ela, os sentimentos de concórdia e de paz se derramem sobre todos os seres!

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Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo, III Solidariedade | comunhão universal 3 de 3, 13º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Victor Hugo e o invisível ~

Coincidências Ideológicas com José Garibaldi e José Mazzini |

Todo o vocabulário filosófico de Victor Hugo se assemelha a esse tom dramático que possuem as comunicações mediúnicas. Se se fizesse um estudo das melhores páginas que constituem a literatura mediúnica, ver-se-ia que elas possuem o mesmo estilo do grande poeta francês. O vate de Jersey parecia estar continuamente em transe mediúnico. Por isso a sua doutrina é a do infinito, onde o Ser se mostra como uma partícula divina que electriza a essência cósmica e universal. Mensagens psicografadas como as que apresenta um livro intitulado "Símbolo ou o túmulo fala" (i), corroboram o que dissemos. Há nessa obra mediúnica páginas de um dramatismo espiritual que fazem pensar no estilo victorhugueano. É que no invisível está o mundo das almas onde o grande e majestoso tem as suas raízes.

De facto, a literatura mediúnica não é convencional nem fictícia; pelo contrário, brota dos abismos profundos do invisível, das mesmas raízes do imaterial, onde o génio só pode falar a linguagem do eterno. O poeta concebia na sua cosmogonia um homem imortal e predestinado e, como ele dizia, sábio, visionário, pensador, taumaturgo, navegante, arquitecto, mago, legislador, filósofo, herói, poeta. De sua ideologia espiritual e poética se desprendia a mesma teleologia existencial da codificação de Allan Kardec. A ideia do progresso infinito habitava no pensamento de Victor Hugo, pois a alma era para ele um ser que vem ao mundo pela enésima vez e não uma entidade biológica criada no instante da concepção. Sempre pressentiu que uma misteriosa pré-existência rege o destino do espírito; por isso perguntava: "Quem tem incubada essa águia? O abismo incubando o génio? Existe maior enigma? Terão visto outros mundos as grandes almas que transitoriamente se adaptam à terra? Chegarão alguns por isso com tantas intuições?"

Assim; pois, pressentia que o mistério histórico está entretecido pelos seres espirituais que lhes dão características pessoais a seu tempo. O seu génio se atirava frente a esses seres mecânicos e vazios quando negavam a pré-existência dos espíritos. A defesa que fazia da pedra, do burro, da flor e do anjo era baseada na unidade espiritual da criação. O pensamento de Deus estava para Victor Hugo em tudo o que existe, por isso, nada e ninguém estaria excluído do grande desenvolvimento da história natural e divina. A sua cosmovisão filosófica e religiosa respondia ao que lhe transmitiram os espíritos desencarnados durante o seu desterro na ilha de Jersey, ou seja, desde que Emília de Girardin o iniciara nas revelações dos tripés mediúnicos.

O seu trabalho poético e literário deixou de ser um artifício intranscendente, como acontece quando se escreve sem uma visão espiritual da vida. A obra de Victor Hugo, por suas raízes aprofundadas no eterno, foi uma defesa do homem ao considerá-lo como um espírito reencarnado na terra. A sua criação poética se colocou ao lado da maior revelação dos tempos modernos; por isso, disse: ''O Espiritismo é o acontecimento mais notável do século XIX".Coincidiu assim com José Garibaldi, que afirmou: "Esta religião da verdade e ciência se chama Espiritismo''. O seu pensamento também se relacionou com José Mazzini, que escreveu uma página admirável para definir a missão da Doutrina Espírita. Ela segue transcrita na íntegra para conhecimento do leitor.

''O Espiritismo científico, isto é, a alma humana analisada experimentalmente nas suas propriedades e manifestações dará tão inesperados conhecimentos nos estudos, que ante eles quedarão atónitos, abismados e se derrubarão todos os humanos edifícios políticos e morais que até ao presente têm dominado.

"Pela aplicação prática da resultante do estudo do Espiritismo, uma nova ética, pura, regenerada, potente surgirá da natureza. Será o potentíssimo credo que fará morrer as mais arraigadas instituições político-religiosas que reinam sobre a terra:

"Por uma maior e mais disciplinada apreciação das leis que regem o universo, mudará completamente a orientação da ciência e o barulho inevitável que isso haverá de produzir afectará todas as manifestações da vida, que, então, se explicarão pela razão do maior, do mais santo dos conceitos: o do dever.

"É isto que suporta o Espiritismo. A luta será áspera, fatigante; mas a consequência será inevitável. De que valerá o conluio contrário de todos os animais daninhos da terra: o mais forte, indomável Vetro avança a passos largos, saturado da sabedoria e da fé dos sábios e dos heróis de todas as épocas, e com os fulgores da ciência positiva caçará as feras até nas profundezas do seu mundo interior.

''Então soprará sobre a terra as auras da paz, de gozo; do peito dos homens surgirá espontâneo um hino de louvor, de amor a Deus; a humanidade, perdendo o último vestígio animal que possui, voltará qual nascente mariposa, bela e pura, à conquista das mais excelsas regiões, das puras esferas. " (ii)

Nestes mesmos pensamentos de José Mazzini se assentava o sentir filosófico de Victor Hugo quanto ao valor histórico e social da filosofia espírita. Esse mesmo sentir fez falar também outros pensadores como Emílio Castelar,José Pi y MargallCamille FlammarionAbrahan LincolnVictorien Sardou e outros mais, que eram solidários com a missão espiritual dos fenómenos mediúnicos. Sem dúvida, fez-se silêncio sobre o sentimento espírita de Victor Hugo, mas, nessa negação, nessa oposição sistemática é que está a origem do desastre espiritual da humanidade. Se, por um lado, querem negar que a alma é imortal, por outro, os que nela crêem negam que a alma imortal possa comunicar-se com os homens por razões já insustentáveis e que não vamos considerar aqui. Mas o certo é que somente pelo fenómeno mediúnico, como manifestação do espírito imortal é que a razão humana se inclinará reverente a Deus. Por isso, Victor Hugo aceitou o Espiritismo como mensagem salvadora para o Homem, a Verdade e a Beleza.

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(i) Obra editada em Paris, em 1933.
(ii) Revista Lumen, Tarrasa, Espanha, 1905. N. do Autor.



Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, COINCIDÊNCIAS IDEOLÓGICAS COM JOSÉ GARIBALDI E JOSÉ MAZZINI, 10º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo VII Síntese dos druidas. As Tríades; objecções e comentários (II)

   Pode, desde há muito tempo, notar-se que o movimento do pensamento e da ciência, as descobertas astronómicas e tudo o que tem ligação com a física do globo terrestre vem confirmar a concepção céltica sobre o Universo e sobre Deus.

   Os cantos bárdicos de Taliésin sobre os mundos e a evolução da vida, que datam do século V, os testemunhos dos autores antigos sobre a ciência profunda dos druidas são dignos de fé. As Tríades, em tempos mais recuados, após terem anunciado e previsto as conquistas futuras da ciência, abriram-lhe outros horizontes, que a ciência apenas pressente e hesita em abordar.

   À medida que o conhecimento do Universo se estende, a ideia de Deus se engrandece e as concepções teológicas da Idade Média se sombreiam. Ao mesmo tempo, a noção da força e do pensamento soberano torna-se mais imponente e mais bela; ela aumenta ao infinito e ao absoluto.

   Aqui, aparece uma dificuldade contra a qual se chocaram todas as filosofias espiritualistas. Nós não podemos, dizem elas, conhecer o Ser em si, mas somente pelas relações que temos com ele. Ora, qual relação pode existir entre o homem finito e relativo e o Ser infinito e absoluto? Não há aí uma contradição?

   Este escolho, que nenhuma filosofia moderna pode evitar, os druidas tinham afastado desde o princípio e nós achamos, nesse facto, a manifestação de uma intervenção sobre-humana. Com efeito, a Tríade nº 46 assim se exprime:

   46 – Três necessidades de Deus, ser infinito em si mesmo, ser finito em relação aos seres finitos, estar em relação com cada estado de existências no círculo de “Gwynfyd”.

   Sobre este último ponto nós possuímos os meios de controlo suficientes.

   Todos os espíritos elevados, que se comunicaram nas nossas reuniões de estudo, afirmam que eles percebem as radiações do pensamento e da força divina.

   Os mais puros – em pequeno número – percebem a luz do foco divino e as poderosas harmonias que se formam. Eles recebem as ordens, as instruções, tendo ligações com as missões a cumprir, as tarefas a realizar. Pode mesmo ir-se mais longe e dizer que, sobre o plano terrestre, os homens mais evoluídos sentem as radiações divinas, não mais directamente, mas como um reflexo que vem esclarecer a sua consciência.

   Em resumo, Deus é a causa suprema, a fonte eterna da vida. É o seu pensamento e a sua vontade que movem o Universo; eles projectam sem cessar, através do espaço, as ondas de moléculas, os feixes de centelhas vitais que as grandes correntes de ondas transportam e distribuem sobre o mundo. Daí, essas centelhas de vida se elevam através do ciclo imenso do tempo em direcção da fonte suprema, revestindo as formas rudimentares da natureza.

   Ao chegar ao estado humano, elas deverão adquirir, pelos seus trabalhos e os seus esforços, todos os atributos divinos: consciência, sabedoria, amor, participando cada vez mais da vida, da obra eterna num crescimento gradual de irradiação, potência e felicidade.

   Para tornar a concepção druídica completa e perfeita bastaria acrescentar-lhe a noção de solidariedade dos seres pela paternidade de Deus, a comunhão universal na qual cada um trabalha pela evolução de todos na sucessão das vidas, desde o infinitamente pequeno até as alturas divinas, até a possessão dos atributos que constituem a perfeição.

   Mas é, por excelência, uma doutrina de evolução, de progresso e de liberdade. No lugar da visão de uma imobilidade beata e estéril, é uma vida de actividade, de desenvolvimento das faculdades e das qualidades morais. É a felicidade de se dar a todos e de educar os outros educando-se a si mesmo.

   O ser evoluído é mais feliz em dar do que em receber, e por aí nós podemos compreender a felicidade de Deus em espalhar a sua própria substância sobre a sua obra, em benefício das suas criaturas e na medida dos seus esforços e dos seus méritos.

   A ideia capital do Druidismo é, portanto, a ideia de Deus, único, eterno, infinito. A primeira Tríade é formal, e a noção de Deus se desenvolve nas Tríades seguintes:

   1 – Há três unidades primitivas, e de cada uma não deveria existir mais do que uma: um Deus; uma verdade e um ponto de liberdade, isto é, o ponto onde se acha o equilíbrio de toda a oposição;

   2 – Três coisas procedem de três unidades primitivas: toda a vida, todo o bem e todo o poder;

   3 – Deus é necessariamente três coisas, a saber: a maior parte da vida, a maior parte da ciência e a maior parte do poder, e não deveria ter mais de uma grande parte de cada coisa;

   4 – Três coisas que Deus não pode deixar de ser: o que deve constituir o bem perfeito, o que deve querer o bem perfeito e o que deve cumprir o bem perfeito;

   5 – Três garantias do que Deus faz e fará: o seu poder infinito, a sua sabedoria infinita e o seu amor infinito; porque não há nada que não possa ser feito, que não possa tornar-se verdade e que não possa ser querido por esses atributos;

   6 – Três fins principais da obra de Deus, como criador de todas as coisas: diminuir o mal, reforçar o bem, esclarecer toda a diferença, de tal sorte que se possa saber o que deve ser, ou ao contrário, o que não deve ser;

   7 – Três coisas que Deus não pode deixar de cumprir: o que há de mais vantajoso, o que há de mais necessário e o que há de mais belo para cada coisa;

   8 – Três poderes da vida: não poder ser melhor pela concepção divina e é nisso que está a perfeição de toda a coisa;

   9 – Três coisas prevalecerão necessariamente: o supremo poder, a suprema inteligência e o supremo amor de Deus;

   10 – As três grandezas de Deus: vida perfeita, ciência perfeita e poder perfeito;

   11 – Três causas originais dos seres vivos: o amor divino de acordo com a suprema inteligência, a sabedoria suprema pelo conhecimento perfeito de todos os meios e o poder divino de acordo com a suprema vontade, o amor e a sabedoria de Deus.

   Quando se acrescenta que os judeus foram os primeiros do mundo a afirmar a unidade de Deus, esquece-se por demais que os druidas a ensinaram bem antes deles. Mas enquanto que a Bíblia nos apresenta Deus antropomórfico, isto é, semelhante ao homem por certas imperfeições, o Deus dos druidas está no ponto alto acima das misérias humanas.

   Eis como Jean Reynaud se exprime em sua obra magistral L’Esprit de la Gaule, página 45:

   “Relativamente ao conhecimento de Deus, a Gália se ergue, na realidade, por si mesma, não tendo jamais necessidade de recorrer a outrem quanto à essência e ao fundamento da vida. Em vez de ser obrigada a vir se enxertar sobre a cepa viva, como diz S. Paulo aos Gentios, ela era igualmente uma cepa viva.

   Em resumo, dizíamos, a doutrina dos druidas se baseia em três princípios fundamentais: a eternidade de Deus, a perpetuidade do Universo e a imortalidade das almas. A seus olhos, o Universo era o campo vasto onde se desenrolava o destino dos seres. A pluralidade dos mundos era o complemento necessário da sucessão das vidas, escala da ascensão que se elevava até Deus.

   Uma das coisas que mais abalavam os autores antigos era o saber dos druidas em matéria de Astronomia. O contraste era profundo, nesse ponto, com a maioria das doutrinas do oriente. Sobre esse conhecimento há muitas testemunhas. O próprio César nos informava em seus Comentários (das guerras Gálicas) que os druidas ensinavam muito sobre as coisas relativas à forma e à dimensão da Terra, à grandeza e às disposições das diversas partes do céu e ao movimento dos astros. Hecateu, Plutarco e outros dizem que, das Ilhas Britânicas, os druidas observavam cuidadosamente as montanhas e os vulcões da Lua e todo o relevo desse pequeno globo.

   Foi na Gália, diz Jean Reynaud, que se imaginou tornar os astros a sede da ressurreição. O paraíso, em vez de se reduzir a uma concepção mística, formava uma realidade sensível, oferecida de modo contínuo como espectáculo aos olhos dos homens. (i)

   Quanto à perpetuidade do Universo, ela se deduz desta passagem de Estrabão: “Os druidas ensinavam que a alma está livre da morte como também o mundo.” A imortalidade decorria da ideia de que a grandeza inerente ao indivíduo está acima de todas as forças materiais.

   “Tudo o que depende do mundo perece: as instituições, os monumentos, os impérios, mas no meio de todos esses objectos precários acha-se um ser que não é deste mundo a não ser passageiramente e que, sendo superior por sua imortalidade às realidades perecíveis no seio das quais ele se desenvolveu, se eleva até ao céu com uma sublimidade em que a Terra, apesar de seu fausto, não se aproxima.”

   Quando se compara a tradição céltica, tal como se exprime nos cantos bárdicos, com as teorias da Idade Média, antes de Galileu, fica-se surpreso com a ciência profunda dos nossos antepassados; lembremos somente o Canto do Mundo, de Taliésin, que data do século IV da nossa era. (ii)

   “Eu perguntarei aos bardos, e por que os bardos não me responderiam? Eu lhes perguntarei o que sustenta o mundo, visto que, sem suporte, o mundo não cai. Mas o que poderia servir-lhe de suporte? Grande viajante é o mundo! Enquanto desliza, sem repouso, ele permanece sempre na sua via, e quanto admirável é a forma dessa via para que o mundo dela não saia jamais!”

   “Ainda nos nossos dias – conclui Jean Reynaud – a Astronomia clássica limita-se a estudar o mecanismo material do Universo e acha-se bem afastada ainda da verdade moral, incapaz que ela é de vivificar o movimento dos astros pela circulação das existências; ela se perde na multiplicidade das estrelas como em uma vã poeira.” (iii)

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(i) Ver em L’Esprit de la Gaule, de Jean Reynaud, pp. 96 e 100.
(ii) Segundo Barddas, cad. Goddeu, em tradução do gaélico.
(iii) Ver em L’Esprit de la Gaule, p. 61.



LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Segunda Parte – O Druidismo Capítulo VII – Síntese dos druidas, As Tríades; objecções e comentários (2 de 2) 23º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)