O indivíduo e o meio ~
Alguns espíritas não entendem esse imperativo histórico
da doutrina. Pensam que a lei de causa e efeito explica e resolve todas as coisas, cabendo-nos apenas compreendê-la e aceitar passivamente a sua acção. Esse pensamento misoneísta,
de fundo místico, aparece até mesmo em A Grande Síntese, o livro de Ubaldi, que já citamos
algumas vezes, e que comete ainda o pecado filosófico de confundir o comunismo
científico de Marx e Engels com o comunismo igualitário e ingénuo de Weitling. Outros
entendem que a revolução espírita é essencialmente individualista, cabendo-lhe
transformar o homem, para que a estrutura social, em consequência, se transforme. É novo equívoco de fundo místico, e Mariotti o
menciona, chegando mesmo a tropeçar nele.
Allan
Kardec nos indica, entretanto, a necessidade do contínuo esforço do
homem para se superar a si mesmo e às circunstâncias. A passividade
diante das leis naturais caracteriza as formas inconscientes de vida. A
consciência está submetida a uma nova lei, em plano mais alto: a lei do esforço
próprio, a lei do trabalho e da actividade livre, que a fará progredir, a si
mesma e ao todo a que pertence, à colectividade. Em O Livro
dos Espíritos encontramos esse pensamento claramente definido,
impregnando toda a obra, e podemos surpreendê-lo nos passos como o seguinte:
“Tudo se deve fazer para chegar à perfeição, e o próprio homem é o instrumento
de que Deus se serve para atingir os seus fins. Sendo a perfeição a meta da
natureza, favorecer essa perfeição é corresponder aos propósitos de Deus.”
(pergunta 692).
Kardec não
é misoneísta. Deus, para ele, é sinónimo de incessante actividade em direcção
do bem, é o constante “vir-a-ser” do Universo, actuando por todos os meios e
por todas as formas, para atingir o objectivo ideal. Vejamos, por exemplo, o
seguinte trecho do seu comentário ao número 783 de O Livro dos
Espíritos: “O homem não pode conservar-se indefinidamente na ignorância,
pois tem de atingir a finalidade que a Providência lhe assinalou. Ele se
instrui pela força das coisas. As revoluções morais, como as revoluções
sociais, germinam durante séculos. Depois, irrompem subitamente e produzem o
desmoronamento do carunchoso edifício do passado, que já não se encontra em
harmonia com as necessidades novas e as novas aspirações.”
A renovação do homem implica a renovação social – mas desde
que o homem renovado se empenhe na transformação do meio em que vive, sendo
esta, aliás, a sua indeclinável obrigação espírita. Ora, querermos
ficar no conceito de uma renovação puramente individualista seria um
contra-senso, simples ignorância da estrutura social como um todo. Que
diríamos de um pedreiro que, para embelezar um edifício, não cuidasse do seu
aspecto de conjunto, mas somente de cada um dos tijolos, isoladamente? E
quem poderia negar, dentro da concepção espírita, que o homem não é um
indivíduo abstracto, mas parte integrante do todo social, sobre o qual exerce a
sua influência e pelo qual é influenciado, resultando, dessa constante
simbiose, a sua evolução e a evolução colectiva? Como, pois, isolarmos
o homem, para que o Espiritismo o
trabalhe no espaço, independentemente das suas raízes gregárias?
A função do Espiritismo é a
renovação integral do homem, não apenas do homem na sua expressão individual e
transitória, mas na sua permanente expressão colectiva. A propósito, aliás,
poderíamos lembrar aos defensores do pensamento isolacionista, a lei maior do
Evangelho, que é a do amor ao próximo. Não conheceriam eles o poder do
ambiente sobre os indivíduos, mormente sobre os menos evoluídos? Não saberão
que as influências mesológicas
determinam, quase sempre, o próprio carácter individual? Não
perceberão que uma vida social mais equilibrada, e portanto mais justa, será o
grande e permanente estímulo do progresso individual?
Se a experiência nos mostra que a formação de uma “consciência proletária” é praticamente inviável, pois, entre outros motivos, a própria revolução proletária vem sendo impulsionada e dirigida por forças estranhas ao proletariado; não somente desde os seus pródromos, mas ainda, hoje, e cada vez mais; se nos mostra que a “filosofia do proletariado” não consegue atraí-lo e empolgá-lo mais do que a demagogia fascista ou o diversionismo democrático dos países capitalistas mais altamente industrializados; se nos revela ainda que a vitória das chamadas “minorias conscientes” cria novos e violentos antagonismos internacionais, cada vez mais agressivos, é evidente que só nos resta procurar uma saída humana, e não proletária nem burguesa, para essa terrível situação. A saída não será a da submissão, a do pescoço entregue mansamente à canga, mas não será também a da violência e a da força.
Se Marx reconhece
no proletariado o potencial revolucionário, que a sua filosofia devia armar da
necessária orientação para a luta, e se essa orientação só seria possível
através da criação da “consciência de classe”, não teremos, nesse mesmo facto,
o exemplo e a indicação do que nos cabe fazer? As massas que hoje se
deparam à nossa frente, exploradas e sofredoras, não são apenas o proletariado,
mas essa multidão heterogénea, que se chama povo, humanidade, e que as classes
dividem de maneira formal, mas não substancial. Ao mesmo tempo, a
situação das classes dominantes é de angústia e desespero, pesando sobre elas
as consequências morais inevitáveis do usufruto indevido e da exploração dos
semelhantes. O capital, o dinheiro, o poder, as comodidades, não bastam para salvá-las
e, pelo contrário, cada vez mais as precipitam no pântano da corrupção moral e
social.
Diante disso, cabe-nos repetir o gesto de Marx, oferecendo agora uma
filosofia, não a esta ou àquela classe, mas a toda a humanidade, para
armá-la da orientação necessária, através da criação de uma “consciência
humanista”. Entreguemos essa filosofia de libertação, essa arma de defesa
moral, esse instrumento de luta social, ao homem de todas as latitudes e de
todas as classes, e trabalhemos pela criação da “consciência humanista” nos
indivíduos em particular e no meio social em geral.
Não nos iludamos, porém, quanto aos métodos de acção que devemos empregar. A simples evangelização ou catequização, nos moldes religiosos, não dará resultados, porque nos amarram, pelo contrário, às antiquadas formas sectárias, que proliferam por toda a parte e criam divisionismos estéreis e perigosos. O Espiritismo tem de descobrir a sua própria maneira de agir, tem de forjar as suas próprias armas, inteiramente novas, tão diferentes das usadas pelo processo do religiosismo clássico quanto pelo materialismo-dialéctico. Talvez nesta altura nos pudessem servir de “pontos-de-referência” algumas longínquas tentativas históricas, como a da comunidade apostólica, de que nos dá notícia O Livro de Actos, ou ainda as recentes colónias de produção do Estado de Israel. O certo, porém, é que precisamos estabelecer os fundamentos sólidos e definidos do Espiritismo Dialéctico, aplicando-o, no plano sociológico ou histórico, rumo à sociedade futura.
Ele mostrará, com base na experiência secular e no estudo
objectivo da natureza humana, do homem psicológico, que não se pode construir
um mundo social harmónico através da violência social, mas tão-somente do
desenvolvimento do espírito colectivista de cooperação. E que a sociedade,
como o homem – sem cairmos rigidamente no organicismo spenceriano –, tem
as suas fases evolutivas bem definidas, que não poderemos deixar de considerar,
pois Engels já
nos ensinou que não desprezaríamos impunemente a dialéctica.
Assim, se aquilo que o homem só podia resolver pelo emprego
da força bruta, no seu estado primitivo, consegue fazê-lo pelo raciocínio e
pela técnica, no estado de civilização, também a humanidade, superada a fase
primitiva da sua elaboração social, pode caminhar, sem o uso da violência
brutal e instintiva, para a revolução colectivista. Isso não quer dizer que a
luta não se processe, que tenha sido interrompida no seu organismo, e que
tenhamos de esperar o advento espontâneo da nova forma social, mas
apenas que a luta se desenvolve de maneira diversa, em plano mais
alto, como bem o definiu Ubaldi.
Aproveitemos, pois, a oportunidade que Humberto Mariotti nos
oferece, com a sua “interpretação espiritual da dialéctica”, para meditarmos
sobre esses assuntos e buscarmos a forma que nos falta de oferecer ao mundo a
solução espiritual do problema social. De fazermos, enfim, que o Espiritismo cumpra a
sua missão histórica, vencendo a crise que o reduz, no momento, a uma luz
bruxuleante no meio de densas trevas, a uma espécie de simples refúgio
individual para as decepções e para as aflições humanas. Pois o seu
destino, como assinalou sir Oliver Lodge, não é apenas
o de consolar corações desalentados, mas o de rasgar para o mundo as
perspectivas de uma nova era. Se a fé dogmática determinou
o fanatismo religioso da Idade Média, com as suas fogueiras sinistras, a fé
raciocinada criará o positivismo religioso do terceiro milénio, com as piras da
fraternidade acesas em todos os quadrantes do planeta. Porque, como já o
dissera Kardec, a
tarefa do Espiritismo é a de elevar a Terra na escala dos mundos,
transferindo-a da categoria expiatória para a de Mundo Regenerador.
José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico – O
indivíduo e o meio – Por uma consciência humanista – Elevar
a Terra na escala dos mundos, 14º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Vi o caçador levantar o
arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)
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