Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O Homem e a Sociedade


Capítulo III 

Marx e Kardec 
(I de II) 

Karl Marx e Allan Kardec encarnam, nos tempos actuais, as duas grandes inquietudes do pensamento: o fenómeno social e o fenómeno espiritual. Marx traçou uma imagem do homem em desacordo com a realidade espiritual. Entretanto, no campo social, expressou verdades que, postas em prática, dariam solução à mais renhida luta de classes que, actualmente, no seu conjunto, chamamos capitalismo e comunismo. 

Marx viu o homem como um composto físico-químico, isto é, como um organismo material, governado e conduzido pelos modos de produçãoKardec, pelo contrário, compreendeu o homem como um espírito encarnado num corpo físico, para demonstrar a sua evolução e a sua realidade espiritual. Mas o homem de Marx e o homem de Kardec, iguais entre si quanto ao aspecto material e diferentes na sua realidade espiritual, constituem agora uma pessoa humana ou entidade existencial, com novos direitos e iguais deveres, diante dos progressos da sociedade moderna. 

Nessa pessoa existencial e humana, onde cabem tanto o homem marxista como o homem kardecista, devemos procurar a verdadeira filosofia Social. Nela se encontram os elementos indispensáveis para estabelecermos uma relação entre o problema social e o problema espiritual. Entretanto, Marx nos mostrou um homem melhor que o homem velho dependente do regime capitalista. O homem de Marx é um ser liberto da exploração económica, mas sem perspectivas metafísicas. As suas dimensões espirituais estão sujeitas ao terrestre, o que vale dizer que desaparecem com o corpo. Disso resulta ser o homem de Marx um Ser incapaz de satisfazer o anseio de imortalidade que o Espírito leva no seu íntimo. 

Marx, com efeito, legou-nos um homem sem espírito. Não obstante, exigiu-lhe mais do que podia dar. Esqueceu-se de que um homem chamado a efectuar a transformação do mundo, em todos os seus aspectos, não deveria morrercomo sustenta a desoladora teoria do materialismo histórico, sobre a qual fundamentou todo o seu sistema social. Como se verá, o homem de Marx morre para sempre, depois de se sacrificar pela instituição de um mundo melhor. É um tipo de homem que não tem vinculações palingenésicas com o processo histórico: nasce e morre sem saber qual o sentido do drama do planeta. 

Apesar do erro no tocante ao Ser do homem, Marx teve acertos extraordinários ao julgar o regime capitalista e com ele a “exploração do homem pelo homem”. O seu génio demonstrou à inteligência humana que o sistema de propriedade privada está obrigado a se transformar em sistema de propriedade colectiva. Fez ver à humanidade que o socialismo, ou regime de propriedade colectiva, corresponde a um novo sentido da vida e, assim o admite a doutrina social espírita, considerando-o como um avanço para o verdadeiro advento do cristianismo. Porque no dia em que a sociedade cristã for uma realidade, ela estará assente sobre as bases da propriedade colectiva. Vejamos o que diz o Evangelho: “Em verdade vos digo que um rico — ensinava Jesus aos seus discípulos, — dificilmente entrará no Reino dos Céus. em verdade vos digo que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no Reino de Deus.” (Mateus XIX, 23-24). 

homem velho, que geralmente está representado no rico de que falava o Nazarenoé o que resiste à evolução do sistema social e, deverá ler e meditar profundamente este ensinamento do Divino Mestre. Porque são os ricos e poderosos, mesmo sendo cristãos, os menos concordes com a essência revolucionária do cristianismo. Recordemos o seguinte ensinamento evangélico: “Certa vez, um jovem rico perguntou a Jesus o que deveria fazer para conquistar a vida eterna e, o Mestre lhe respondeu: Se quiseres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres e, terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me. Ouvindo o jovem estas palavras, retirou-se triste, porque tinha muitos haveres”. (Mateus XIX, 21-22). 

Esta a razão pela qual o cristianismo nunca poderá ser a doutrina ou a religião dos ricos, potentados, latifundiários e poderosos. O cristianismotal como o interpreta a sociologia espírita, é uma ideia que jamais se acomodará com os interesses das classes poderosas, nem com a exploração dos humildes e o luxo desmedido dos endinheirados. 

O cristianismo possui em si mesmo tudo o que Marx atribuiu (por culpa dos próprios cristãos) ao socialismo de tipo materialista. No dia em que o cristianismo se dedicar totalmente à organização social do mundo, a própria revolução comunista, tão temida na actualidade, aparecerá como um acontecimento insignificante e sem transcendência. 

A comunhão de bens ou propriedade colectiva, antes do socialismo, pertenceu ao cristianismo, como sistema social. Nos Actos dos Apóstolos lê-se o seguinte: “E todos os que acreditavam estavam juntos; e tinham todas as coisas em comum (11-44). E não havia entre eles nenhum necessitado, porque todos os que possuíam herdades e casas vendiam-nas e depunham o valor aos pés dos apóstolos, para ser distribuído a cada um, segundo as suas necessidades.” (IV-34-35)

Esta doutrina do cristianismo primitivo mostra-nos que a ideia de propriedade colectiva, principal instrumento do socialismo moderno, já era praticada pelas primeiras comunidades cristãs. Portanto, a cristandade deverá renovar a presente estrutura social, aplicando o ideal económico ensinado por Jesus e os seus apóstolos e, evitando assim a implantação de um conceito materialista do homem e da sociedade. 

Marx esboçou um indivíduo sem vinculações com o espiritual e o eterno. Acreditou que o Espírito constituía um embaraço para o advento de uma sociedade sem classes, porque tanto o filósofo como o religioso aplacavam as reivindicações dos oprimidos, falando-lhes de uma felicidade ultraterrena. Deste modo, o poderoso se livrava das reclamações de servos e servidores, hoje trabalhadores e obreiros em geral. 

O autor de O Capital, conhecedor deste jogo, desliga-se do Espírito e atém-se unicamente à realidade objectiva das coisas. Concebe por isso um homem material, cujo destino termina com a sua morte física. Sente repulsa pelo espiritual e metafísico, porquanto a oligarquia e a opressão de todos os tempos têm submetido os homens, prometendo-lhes recompensas no além. 

Daí o homem marxista estar desvinculado de todo o conceito espiritual e religioso. Marx acreditava que a verdade jamais escraviza o homem, mas o eleva e melhora nas condições da vida social. Viu, entretanto, que a verdade espiritual praticada por cristãos, clérigos, sociólogos e filósofos, até meados do século 19, era uma verdade espiritual que exaltava os poderosos e lhes submetia os humildes e deserdados, isto é, a todos os que seguiam Jesus. O cristianismo eclesiástico, que não é o cristianismo do Espírito de Verdade, hoje proclamado pela Terceira Revelaçãoprestou-se a esse jogo aviltante, que consistia em sufocar toda a ideia de rebeldia entre os explorados. E Marx, por essa razão, negou aquela verdade espiritual, chegando à conclusão de que a única realidade se encontra no mundo físico e na vida material do homem. Terminou sustentando que a verdade sempre libertará os indivíduos e, que toda a ideia religiosa, que tratasse de subjugá-los com promessas ultraterrenas, representaria uma falsa verdade ou um argumento das forças reaccionárias, para impedir a justiça social e a democracia. 

Hoje, é reconhecida a razão de Marx, no que respeita ao socialismo, mas quanto à interpretação materialista do homem e da história, como se vem a comprovar, Marx permanece num plano de absoluto equívoco. É este o motivo que dá argumentos aos misoneístas para combaterem Marx, não tanto com o fim de refutar a sua ideologia materialista, mas para defender o regime capitalista, onde os seus instintos possessivos possam continuar a obra de avareza e de egoísmo. 

Se Marx nos legou uma falsa imagem do homem, foi devido ao procedimento moral, que já assinalamos, dos que se chamaram espiritualistas e cristãos e, que em vez de estarem com a mensagem de Cristo e, consequentemente com os pobres, despojados e explorados, estiveram com os poderosos e os afortunados. No nosso tempo, continua ainda este jogo de religiosos, espiritualistas e cristãos, que se protegem sob o poder estatal para defender os seus interesses de classe afortunada. Esta atitude dos poderosos frente aos humildes destrói, a cada momento, na vida dos povos, a ideia de Deus e do Espírito, ao ponto de serem consideradas inexistentes e, repetindo o que dizia Marx, se continua a considerá-las como instrumentos mentais para aplacar os anseios de justiça. 

Mas se o homem marxista é um erro no seu aspecto espiritual e, uma verdade na sua face social, o homem kardecista é uma verdade integral: o homem de Kardec é verdadeiro tanto no espiritual como no social. Estes mundos, na concepção espírita, não se excluem entre si, segundo afirma a mentalidade religioso-materialista. Para Kardec, estes dois mundos estão representados por dois elementos: o material e o espiritual, que deverão unir-se para revelar uma única realidade: a da vida universal. 

Kardec nos assinala que esses elementos, o material e o espiritual, constituem as duas realidades através das quais deverá passar o Espírito do homem. Esta concepção confirma-nos que a justiça social e a justiça espiritual deverão desenvolver-se de forma paralela, já que tanto o processo visível como o invisível do homem e da história contribuem para o processo que conduz ao amor e à fraternidade sociais. Isso nos mostra que o mundo material e o mundo espiritual se relacionam mutuamente e, que o desenvolvimento histórico se efectua mediante estas relações materiais e espirituais, ao lado do desenvolvimento da forma e da vida. 

/... 


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, PRIMEIRA PARTE, O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo III, MARX E KARDEC (I de II) / 4º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea (imagem parcial) uma pintura de Salvador Dali, 1936)

domingo, 6 de dezembro de 2020

Deus na Natureza ~


 ~ a 
origem dos seres ~ 
(III de III) 

  “O corpo humano – diz o naturalista inglês Wallace –, estava nu e desprotegido e foi o espírito que o aprovisionou de vestuário para o preservar das intempéries. O homem não teria podido competir em agilidade com o gamo, nem em força com o touro selvagem e, foi o espírito que lhe deu armas para domar e utilizar esses animais. Ele era menos apto que os outros animais para alimentar-se de ervas e de frutos que a Natureza espontaneamente oferecia e foi essa faculdade admirável que o ensinou a governar e a adequar a Natureza aos seus fins, dela extraindo o alimento quando e onde quisesse. 

  “Desde o momento em que se utilizou da primeira pele para a sua indumentária, da primeira lança na caça, da primeira semente no plantio, da primeira vara na enxertia, uma grande revolução se operou na Natureza, revolução que não teve semelhança em qualquer fase da história do mundo, uma vez que um ser existia guarnecido para as mutações do Universo; um ser, até certo ponto superior à Natureza, possuía pois os meios para controlá-la, para regular-lhe as actividades e, podendo manter-se em harmonia com ela, não lhe modificando a sua forma corporal, porém, aperfeiçoando-lhe o espírito.” 

  É nisso, tão-só, que vemos a verdadeira grandeza e dignidade do homem. (ii) 

  O homem ocupa um grau anatomicamente superior, ao em que assenta o chimpanzé; a diferença entre os cérebros do negro e do primata não é maior que a que separa o chimpanzé do saju e, sobretudo, dos lemurianos. Depois do chimpanzé (trogloditas) vêm, na ordem decrescente, o orango (pitécus), o gibon (hilobatos), o seninopíteco, o bugio, etc. Tal como escreveu Geoffroy Saint-Hilaire em polémica célebre com Cuvier, o homem é a primeira família da ordem dos primatas, estabelecida por Linnaeus no século passado. Cabe dizer que aqui falamos do ponto de vista anatómico, unicamente. Qualquer outro raciocínio invalidaria estas classificações. Somos, porém, de opinião que quando versamos anatomia, temos de fazer anatomia. 

  No capítulo seguinte, teremos oportunidade de prosseguir na comparação do homem com o macaco, pelo estudo do cérebro. 

  O lugar geológico do homem remonta à origem da nossa espécie a época longínqua em que viviam as raças antediluvianas, hoje desaparecidas: o veado de grandes chifres, o urso das cavernas, o rinoceronte tricorne, o elefante primigéneo, o mamute, a rena fóssil, etc. A mais antiga data conhecida e que atesta a presença do homem, é muito posterior à fauna e à flora actuais. Entretanto, verifica-se não existirem já, nos nossos dias, umas tantas espécies contemporâneas do homem. Os fósseis humanos encontrados nos recifes coralíneos da Flórida, nas cavernas do Languedoc e da Bélgica, o esqueleto exumado nas redondezas de Dusseldorf, o crânio da caverna de Êngis, o de Barreby, na Dinamarca, o homem fóssil de Puy e de Natchez, no Mississipi, os restos humanos em Loes, indiciam nas variedades humanas primitivas um estado de manifesta inferioridade, aproximando-as singularmente dos selvagens contemporâneos e mesmo dos símios antropóides. Hoje ninguém contesta que a existência do homem seja anterior ao período glaciário e desde o começo da época quaternária. 

  O lugar arqueológico do homem concorda com os precedentes, a favor da teoria progressiva. Quem duvidaria, hoje, da idade da pedra e do bronze, pelas quais transitou a Humanidade antes que inventasse qualquer arte ou indústria, cujos vestígios se encontram por toda a parte? Que ancianidade poderíamos atribuir a esses períodos? A idade da pedra, na Dinamarca, coincidia com o período da primeira vegetação, seja a dos pinheiros da Escócia e, em parte, com a segunda vegetação – a do carvalho. A idade do bronze desenrolou-se durante a época do carvalho, pois foi nas camadas da turfa, onde abunda o carvalho, que se encontraram espadas e escudos desse metal. Antes dele não havia faias. A idade do ferro, menos pristina, corresponde à bétula. Quanto tempo duraria a primeira idade? Sendo o bronze um composto de mais ou menos nove partes de cobre e uma de estanho, o aparecimento dos primeiros utensílios denota uma indústria já não elementar. A fusão dos minerais, a decoração lenta dos objectos moldados, só poderiam ser conseguidas depois de longo tacteamento. 

  A que época devemos atribuir as cidades lacustres da Suíça e as quarenta mil estacas de Wangen? As escavações nos têm revelado vinte povoações no lago de Genebra, doze no de Neufchâtel, dez no de Bienne, contemporâneas das idades da pedra e do bronze. 

  As da Irlanda (Crammoges) parecem provir da mesma época. Essas povoações castoreanas deviam oferecer alguma semelhança com as da Nova-Guiné, descritas por Dumont d’Urville. Os ossos encontrados por Lartet na caverna de Aurignac (i) são contemporâneos das hienas das cavernas e do rinoceronte de narinas separadas. 

  Foi muito tempo depois que Tebas e Mênfis, capitais do alto e do baixo Egipto, atingiram o seu grande esplendor e que as quarenta pirâmides foram erigidas, tipificando uma civilização lentamente desenvolvida, com uma forma especial de culto, de cerimónias esplêndidas, um estilo singular de arquitectura e inscrições, barragens dos rios, etc. Essas glórias, entretanto, estavam desvanecidas muito tempo antes de Homero. “Foi preciso – diz Lyell – para formação lenta e gradual de raças como a caucasiana, a mongol ou a negra, um lapso de tempo bem mais longo que o possível para ser abrangido por qualquer sistema de cronologia popular.” 

  Ao problema cronológico do aparecimento do homem na Terra, a Ciência nada responde por enquanto. Ao demais, se o homem não apareceu espontaneamente, tal data não existe. Quanto aos vestígios de humanidade, ou do homem em si mesmo, as opiniões (pois que se não trata, no caso, senão de opiniões) são vagas quão variáveis. Um tijolo de carvão encontrado entre Assouan e o Cairo, a uma profundidade de 18 metros, contaria treze mil anos de existência, admitindo-se um aumento de 15 centímetros por século, no depósito de vasa, no delta do Nilo. A estimativa mais baixa do tempo necessário para formar o delta do Mississipi é de cem mil anos. 

  O esqueleto humano encontrado perto de Nova-Orleans, a cinco metros de profundidade e sob uma camada de quatro florestas extintas, não contaria menos de cinquenta mil anos, na opinião do Dr. Dower (é um número exagerado, no nosso entender). Agassiz calculou que a formação dos recifes de coral da Flórida representam cento e trinta e cinco mil anos. Os sílex talhados e recolhidos em diversas regiões do globo, particularmente no vale do Somme, parece terem servido de armas a uma raça distanciada de cem séculos. 

  A Arqueologia concorda com os historiadores e os poetas da antiguidade, quais HeródotoDiodoro, Éschylo Vitrúvio, Xenóphontes, Plínio, no concernente ao primitivismo bárbaro da raça humana e à sua predilecção pelas cavernas. Mas, esse estado nós o podemos considerar fora dos domínios históricos e a cronologia, que remonta à época já misteriosa das grandes migrações arianas, a mais de cem séculos passados, mergulha na noite profunda, quando tenta sondar a nossa verdadeira origem. 

  Tudo quanto podemos afirmar é que a Humanidade é muito mais antiga do que se supôs até agora, tendo começado por graus inferiores, até que se elevasse à noção de justiça e de moral. Se nos fosse permitido remontar a essas épocas, não poderíamos reconhecer a civilização da nossa era na caligem das idades bárbaras, quando a inteligência nos seus primórdios se esforçava por desprender das possantes constrições da matéria. 

  Preferimos confessar essa ancianidade e essa possível origem da nossa espécie, sem escrúpulos para com o Espiritualismo e sem acompanhar o mau exemplo dos que intrometem as crenças religiosas a propósito de tudo e, mesmo sem propósito. Constatamos os factos e a nossa ignorância, com sincera franqueza, persuadidos de que não se podendo antepor duas verdades entre si, a Ciência da Natureza não pode afectar a causa do Ser supremo. Como diz Helmholtz, os homens costumam medir a grandeza e a sabedoria do Universo pela duração e vantagem que daí lhes advêm; mas a história dos séculos transcorridos nos mostra quão insignificante é o período do advento da existência humana, em relação com a idade do planeta. 

  A Ciência não admite de bom grado a aparição miraculosa do primeiro casal humano. Diz Charles Lyell que “se a fonte original da espécie humana tivesse sido realmente dotada de faculdades intelectuais superiores de natureza perfectível, como a da sua posteridade; se a Ciência lhe tivesse sido inspirada, o progresso atingido seria simplesmente muito mais expressivo. No curso dos evos teria havido tempo de realizar conquistas inimagináveis e os mais diferentes caracteres teriam sido impressos nos utensílios que agora procuramos interpretar. Nos areais de Saint-Acheul, como na porção de leito do Mediterrâneo aflorada nas costas da Sardenha, ao contrário da mais grosseira cerâmica e dos sílex de feitura tão defeituosa e incompleta, que mal indiciam ao observador bisonho um esforço manual voluntário, encontraríamos esculturas superiores às obras-primas de Fídias e Praxiteles, caminhos de ferro e telégrafos nos quais os nossos engenheiros colheriam inestimáveis apontamentos; microscópios e telescópios aperfeiçoados como os não conhecemos na Europa e inúmeras outras provas, de perfeição artística e científica, que o nosso século XIX ainda não logrou testemunhar. Em vão esgotaríamos a imaginação para adivinhar a utilidade de relíquias que tais. Talvez maquinaria de locomoção aérea ou destinada a cálculos aritméticos, aparelhos desproporcionados às necessidades quiçá à concepção dos matemáticos vivos.” 

  Esta explicação física da origem das espécies não arrebata o ceptro das mãos do Governador do mundo. Já assinalamos acima a declaração de Darwin a favor do sentimento religioso e parece-nos que, sobre as consequências imediatas de qualquer doutrina, devemos reportar-nos antes à opinião do mestre que à dos discípulos. Charles Lyell emite os mesmos conceitos, citando a seguinte declaração do geólogo Asa Grey, em que este evidencia claramente que a doutrina da variação e da selecção natural não tende a destruir os alicerces da Teologia natural e que a hipótese da derivação das espécies em nada contraria qualquer dos sãos princípios da História Natural. 

  “Podemos imaginar que os acontecimentos e em geral as operações da Natureza ocorrem, simplesmente, em virtude de forças comunicadas desde o início e sem qualquer ulterior intervenção, ou podemos admitir tenha havido, de tempos a tempos e, somente de tempos a tempos, uma intervenção da Divindade. E podemos, enfim, supor ainda que todas as mudanças produzidas resultem da acção metódica e constante, mas, infinitamente variada, da causa inteligente e criadora. 

  “Os que pretendem, de um modo absoluto, que a origem de um indivíduo, tanto quanto a de uma espécie ou de um género, não se possa explicar senão por acto directo de uma causa criadora, podem, sem renunciar à teoria favorita, admitir a teoria da transmutação, que lhe não é incompatível. O conjunto e sucessão dos fenómenos naturais podem não ser mais do que a aplicação material de um plano preconcebido; e se essa sucessão de factos pode explicar-se pela transmutação, a perpétua adaptação do mundo orgânico a condições novas deixa, mais valioso que nunca, o argumento de um plano e, consequentemente, de um arquitecto.” 

  Parece-nos, com efeito, que a obstinação nada de mais tem a ganhar com esta hipótese do que com qualquer outra teoria natural. 

  Quanto à pecha de materialismo imputada a todas as modalidades da teoria transformista, já vimos mais acima que a teoria da gravitação e grande número de outras descobertas foram consideradas de subversivas da Religião. Mas, onde iríamos parar se houvéssemos de ouvir os lamentos de todos os teólogos sobressaltados? 

  Longe de possuir tendência materialista, esta hipótese da intermissão na Terra, em épocas geológicas sucessivas, primeiramente da vida, depois da sensação, do instinto e da inteligência dos mamíferos superiores convizinhos da racionalidade e, finalmente, da razão perfectível do próprio Homem, parece-nos, ao contrário, o desdobramento de um plano grandioso, apresentando-nos o quadro de predominância crescente do espírito sobre a matéria. 

  Temos sido assaz prolixos em encarar as relações do homem com os animais que o precederam, sem embargo da névoa de mistério que ainda as envolve. É que acreditamos, com Pascal; essas comparações sempre têm algum valor. 

  “É perigoso – dizia o autor de Pensamento – demonstrar ao homem o quanto ele se iguala aos animais, sem lhe mostrar ao mesmo tempo a sua grandeza. Perigoso, também, mostrar-lhe a sua grandeza, sem lhe fazer sentir a sua baixeza. Mais perigoso, ainda, é deixá-lo na ignorância de ambas.” 

  Ainda que o problema da antiguidade e a origem da espécie humana varie para o geólogo, para o arqueólogo e para o etnólogo, nem por isso deixa de se averiguar que a Humanidade procede de época muito mais remota do que se pode crer. Ainda que esse mesmo problema se definisse divergente para a Zoologia ou para a Teologia, não é menos provável, tampouco, que os nossos antepassados fossem inferiores a nós e que o progresso se manifestou na Humanidade tal como na escala de toda a Criação. Perguntamos, então, aos espíritos de boa fé: – em que, a crença na ancianidade do homem e, mesmo na sua origem simiesca, colide com a crença num absoluto? Que a vida tenha surgido na Terra, que se tenha desenvolvido mediante leis orgânicas e que, do vegetal ao homem, a criação antidiluviana não tenha formado senão uma unidade, em que pode esta hipótese destruir a acção divina? Aqui, como no que precede, a matéria não obedeceu às suas forças? E a vida dos seres não é uma força especial, regente de átomos, directora de todos os movimentos? Particularmente, na teoria da selecção natural, não é a força vital que dirige a marcha do mundo? Aqui, como por toda a parte, a matéria não é a escrava e a força a soberana? 

  Mesmo admitindo-se a mais alta influência dos meios na transformação dos órgãos, essa transformação não será, sempre, o efeito da vida e a vida regida pela inteligência e dotada de uma espécie de obediência activa à lei intelectual do progresso? 

  Abordando a tese da apropriação dos órgãos às funções que lhes incumbe executar, bem como da construção homogénea de cada espécie, dos dentes aos pés, segundo o seu papel no cenário do mundo, entramos nos domínios da destinação dos seres e das coisas. O nosso quarto livro objectivará este vasto problema. 

  Assim, em resumo, vimos de demonstrar que, seja do ponto de vista da circulação na matéria dos seres vivos, seja no da origem e da perpetuidade da vida, esta se constitui de uma Força única e central para cada ser, que dispõe a matéria organizável segundo um plano, do qual o indivíduo deve ser a expressão física. Nesta segunda, como na primeira parte, temos refutado todos os pontos dos nossos adversários. Eles já não sustentam a sua hipótese materialista e, com os seus exageros mais temerários, antes auxiliam a nossa tese, pois conceituando a matéria capaz de tudo fazer, mal se precatam que apenas substituem a ideia da força. Esperamos que esses inconsequentes negadores fiquem agora mais satisfeitos com este capítulo. E antes de passar ao seguinte, pedimos-lhes notar, para edificação de sua vaidadezinha, que os gregos e o próprio Arístoto lhes marchara à frente (*), visto que para eles as radicais força e vida eram sinónimos. O filósofo de Stagira já tinha sustentado que – “a alma é a causa eficiente e o princípio organizador do corpo vivo”. 

  Não vale a pena fazer tão grande alarde de ciência, para ficar abaixo dos Gregos. 

/… 
(*) Dos conceitos da harmonia das esferas dos gregos... à avaliação de Dominique Proust, astrofísico e organista... Adenda desta publicação.
(ii) Grandes homens contemporâneos não compartilham destas ideias e consideram a Humanidade como uma raça degenerada. Permitimo-nos citar aqui como exemplos, que o Sr. Cousin, com quem conversamos ao iniciar esta obra (1865), sustentava essa opinião e o Sr. de Lamartine (i), a quem propusemos a mesma questão quando corrigíamos estas provas (1867), encara as raças arianas como tendo sido superiores à sociedade actual. O problema ainda está longe de solução, mas a verdade é que nem por isso a característica do homem deixa de consistir na sua inteligência progressiva. 


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Segunda Parte – 2/ A Origem dos Seres […] (III de III), 24º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

o grande desconhecido ~


A Morte de Deus e o Século XX 

Depois da Filosofia Existencial, nascida da angústia e da solidão do teólogo dinamarquês Kierkegaard, explodiu no mundo convalescente das primeiras explosões atómicas em Hiroshima e Nagasaki, a espantosa novidade da Morte de Deus. Imitando o louco do Nietzsche (i), teólogos jovens e de formação universitária, europeus e norte-americanos, fizeram o comunicado fúnebre ao público mundial: “Deus morreu!” Como ninguém foi convidado para o enterro, nem se efectuou nenhum registo funerário da ocorrência nos cartórios civis do mundo, acreditou-se que tudo não passava de uma alucinação. Mas os teólogos insistiram com uma série de livros transbordantes de erudição e cultura, o que perturbou os espíritos crentes em Deus. Para tranquilizar os assustados, os teólogos agoireiros obedeceram ao velho preceito: “Rei morto, Rei posto” e, colocaram Jesus de Nazaré (i), o Cristo, provisoriamente no Trono do Império Cósmico. “Agora – diziam os teólogos, na euforia de herdeiros ambiciosos perante o Cadáver Sagrado – agora temos de instalar o Cristianismo Ateu à espera de um Novo Deus que deve surgir.” 

Não se trata de uma brincadeira nem de galhofa, mas de coisa sumamente séria, pois, como diziam os nossos avós: “Com Deus não se brinca!” Mas os livros dos teólogos cortadores de mortalha não convenceram ninguém, a não ser a eles mesmos. É fácil compreender-se que houve um engano. O que havia morrido não era Deus, que não pode jamais ser enterrado no cemitério em ruínas dos deuses mitológicos. Quem na verdade estava a agonizar e, continua em lenta agonia, sustentada por milhões dos seus beneficiários do profissionalismo religioso, era a generosa sabidíssima senhora chamada Teologia. Essa pretensiosa dama de certezas absolutas e irrevogáveis estava em estado de coma, mas continua a resistir às tentativas impiedosas da morte. A maioria dos teólogos viu-se em dificuldades e apenas alguns aderiram à estranha ideia. Seria uma hecatombe mundial, ficarem todos eles órfãos e sem qualquer herança, pois só Deus lhes havia prometido a partilha do seu Reino. Jesus-Cristo, herdeiro directo e filho consanguíneo de Deus, não tomou conhecimento deste assunto e não assumiu o Trono do Universo. A situação tornou-se caótica e as brigas dos herdeiros acabaram reduzindo a espantosa novidade num bate-boca de neuróticos de guerra. Andam por aí os livros dos teólogos do complô deicista, lidos por eles mesmos e alguns curiosos retardatários, pois só eles entendem o que escreveram, se realmente entendem. São livros tecidos em teses de filigranas brilhantes e sofismas escorregadios, como as de Bizâncio na sua hora final. Dão-nos a impressão do jogo dos velórios da civilização utópica de Hermann Hesse, onde a face gelada de um lago alpino enregelava um teólogo de vez em quando. 

Não nos interessam essas lamentações de carpideira em torno de um hipotético cenotáfio (i), túmulo vazio construído no pós guerra, sobre terreno impuro de ossadas sem sepultura. Esta hora não é de morte, mas de ressurreição. Cumprindo a promessa do Cristo, o seu ensino puro ressuscita das criptas de envelhecidas catedrais e anuncia por toda a parte a nova Alvorada da Verdade. William Hamilton, Thomas Altizer, Paul Van Brune, Gabriel Vahamtaan e todo o bando necrófilo da Morte de Deus não conseguiram até agora dizer mais do que isto: que Deus morreu no nosso século e que esse é um episódio histórico. Mas onde estão as provas históricas dessa morte ideológica e alógica? Só o louco do Nietzsche (i), de quem eles herdaram a loucura, ouviu as pancadas soturnas do coveiro que abria a cova e, esse louco era uma ficção. Se os teólogos continuam a ensinar as suas teologias fanadas, os místicos a destilar os seus óleos sagrados, os sacerdotes a cobrar mais caro os seus sacramentos, o populacho a arrastar-se de joelhos nas velhas escadarias das igrejas, judeus e cristãos a manter os seus cultos por toda a parte, nem mesmo o Deus da Bíblia deixou de existir. Se não aconteceu a morte física de Deus e nem mesmo a morte metafísica, se na mente dos intelectuais e na fé popular Deus continua imperando, é claro que o bando necrófilo está a delirar. 

Mas esse episódio serve para ilustrar a esquizofrenia catatónica deste século estranho, em que vacilamos entre a paranóia e o sadismo, com furacões de obsessão individuais e colectivas a varrerem a face poluída do planeta. A todo o momento os vendavais arrancam os homens do chão e os atiram ao ar em cambalhotas alucinantes. Os espíritas, que conhecem o problema da obsessão e sabem que não são encenações do exorcismo, mas a lógica persuasiva da doutrinação evangélica o remédio certo e eficaz para este momento, precisam, mais do que nunca, firmar-se nas obras de Kardec para não serem também virados de pernas para o ar. Muitos já se deixaram levar pelas rajadas da invigilância, caindo no ridículo e chegando até mesmo à profanação da doutrina. Outros aceitaram e propagam, na teimosia característica da fascinação, obras e doutrinas absurdas, carregadas de malícia das trevas, ludibriando criaturas ingénuas com a falsa importância das suas posições em organismos doutrinários ou o falso brilho dos seus títulos universitários. Outros se aboletam na sua arrogância de pseudo-sábios, pretendendo superar a doutrina com livros encharcados pelo barro escuro das regiões umbralinas. É incrível como todas essas tolices empolgam pessoas desavisadas por toda a parte, formando os quistos de mistificação que minam o movimento doutrinário.

Se mesmo fora do campo doutrinário e, entre pessoas de inegável cultura e brilho intelectual, surgem loucuras como essa da Morte de Deus e da criação do Cristianismo Ateu, pode avaliar-se ao que estamos expostos no Espiritismo, onde só a advertência do Cristo: “Vigiai e orai,” poderá livrar-nos de quedas desastrosas. Mas não basta vigiar montado nas cavalgaduras da pretensão e da vaidade, porque o inimigo não ataca de frente, insinua-se subtil no nosso íntimo, excitando o vírus da vaidade e  infestando-nos por dentro. Desde então, pensamos com as ideias de outrem e aceitamos a sua colaboração, senão o seu Comando, com a ingenuidade dos defensores de Tróia que aceitaram o presente grego do cavalo de pau. Pedro capitulou, por medo, na hora do testemunho. Por vaidade, ignorância e interesses secundários muitos espíritas estão capitulando nesta hora decisiva. A nossa vigilância tem de ser interna, sobre nós mesmos, sobre a nossa fauna interior que o inimigo utiliza contra nós. Se os teólogos necrófilos aceitaram a sugestão da morte de Deus e caíram no ridículo, porque haveriam os espíritas de rejeitar a sugestão de deturpar os textos doutrinários para actualizá-los, prestando enorme serviço à doutrina? As sugestões das trevas são assim: falam-nos do dever para nos lançar na traição. Caímos facilmente porque não vigiamos e não oramos. O orgulho e a ambição substituem em nós as palavras humildes da recomendação do Mestre. E depois reclamamos dos Espíritos Superiores o auxílio que nos faltou na hora crucial, como se já não devêssemos estar há muito preparados para enfrentar essa hora.

Se os teólogos realmente compreendessem Deus e os Espíritas conhecessem de facto a sua doutrina, as entidades sombrias não encontrariam uma nesga de treva para se ocultarem nos seus corações iluminados pelo amor. Não somos traídos, traímo-nos. A traição não vem da malícia, brota da nossa mente transviada e do nosso coração orgulhoso. Se não compreendermos isso profundamente estaremos sempre expostos aos ventos malignos. A fidelidade ao bem tem um preço que pagamos aos poucos, nas moedinhas tilintantes do dia-a-dia, rejeitando os sopros da vaidade que tentam acender a fogueira do arrependimento. Um elogio discreto que nos agrada, uma palavra de estímulo que nos estufa, um gesto de cortesia que nos comove, um ingénuo cartão de saudações, um abraço de fingida gratidão são essas e muitas outras as moedas que não caem como o óbulo da viúva, mas como as moedas envenenadas dos cambistas. Ao som dessa música subtil cresce em nós a mandrágora do orgulho, a flor roxa e perigosa dos filtros mágicos. Acreditamos na nossa grandeza com euforia, para mais tarde cairmos na nossa insignificância com desespero.

Por que motivo Deus, se tivesse de morrer, haveria de escolher o Século XX da Era Cristã? Para morrer cristão, Ele que é o Senhor do Cristo? Por que razão os Espíritas haveriam de escolher o nosso século (XX)* para revisar e corrigir Kardec, justamente quando as Ciências, a Filosofia, a Religião e toda a Cultura Humana estão a comprovar o acerto absoluto de Kardec e seguindo o seu esquema de pesquisa numa realidade sempre vitoriosa? A resposta a essas duas perguntas é uma só: Porque é nas horas de entusiasmo, de vitória, de renovações em marcha, que estamos desprevenidos e confiantes em nós mesmos, certos de que tudo vai bem e de que – (este é o motivo da queda) – chegou o momento em que os nossos esforços serão reconhecidos e nos porão na fronte a coroa de louros que nos negaram. Não é a hora do Cristo nem a da Doutrina, mas a nossa hora, pessoal, que nos fascina.

Vejamos a triste figura desses teólogos, filósofos, historiadores da Cultura, exegetas da Palavra de Deus, que de repente, decepcionados com as atrocidades dos homens (que sempre foram atrozes) proclamam em orações brilhantes e livros falaciosos o absurdo da Morte de Deus, que não conseguem explicar nem justificar, por mais que escrevam. Charles Bent dá-nos uma informação valiosa: William Hamilton foi apresentado como uma espécie de Billy Graham da Morte de Deus. Numa de suas prédicas em São Paulo o famoso Billy, que empolga multidões, respondeu à pergunta de um assistente com a maior leviandade: “O Espiritismo é obra do Demónio.” A glória de Hamilton define-se neste episódio. Hamilton é o novo Billy. Não se precisa dizer mais nada. E Bent considera-o como sendo, talvez, o mais inteligível dos expositores do problema da Morte de Deus. Sobre o cadáver suposto de Deus os camelôs da hecatombe divina disputam a túnica do Cristo. É evidente o fogaréu de vaidade que arde na frágil carne dos homens. Se o Espiritismo, que cumpre a promessa do Consolador na Terra, é obra do Diabo, o que será essa obra de demagogia e sofisma que pretende renovar a concepção cristã de Deus na prática de Brutus, assassinando Deus pelas costas? 

Os homens enrolam-se nas suas próprias palavras, como as abelhas domésticas na barba do seu tratador. Os sofistas gregos provavam todas as contradições, mostrando que a verdade não passava de um jogo de palavras. Mas entre eles estava Sócrates, protegido pelo seu daemon, o seu espírito amigo, que de repente começou a perguntar aos sofistas: O que é isso? Todos os sofismas se esboroavam, como castelos de areia, quando Sócrates pedia a definição dos conceitos. Sim, porque ele descobrira que a verdade estava nos conceitos e não nas palavras. Quando Billy e Hamilton perguntarem a si mesmos o que estão a dizer, terão a verdade, mas enquanto continuarem a jogar com palavras perante as multidões de basbaques e fanáticos, não passarão de sofistas modernos que enganam a si mesmos e aos outros. O mal mais ameaçador da nossa civilização é o desenvolvimento excessivo da mente-oral. O abuso desse processo mental aviltou o mundo das palavras. Vem de longe esse mal, desde os judeus palradores que assustavam os romanos com as suas infindáveis querelas, o matraquear atordoante dos clérigos medievais, as trapaças doiradas dos bizantinos e a demagogia burguesa que produziu o Terror na França e se espalhou pelo mundo no papagaiar político e religioso que estourou em matanças inomináveis na boca de Hitler, Mussolini e as suas quintas-colunas genocidas. Depois das explosões atómicas de Nagasaki e Hiroshima e da escalada norte-americana no Vietname, não era de admirar o assassinato misterioso de Deus, pois quem odeia a Criação deve odiar também o Criador. 

No meio espírita os faladores fazem sucesso, como em toda a parte, pois os espíritas são criaturas humanas contagiadas, como toda a espécie, pelo mal verborrágico (i). Tem sido difícil convencer o povo ingénuo de que os grandes faladores não passam de mistificadores. Falam com atitudes teatrais, de olhos fechados para convencer os basbaques de que estão sendo inspirados por elevadas entidades espirituais, quando na verdade repetem palavrórios decorados ou simplesmente destrambelham os mecanismos repetitivos de sua mente-oral. 

Este é um problema grave num meio interessado numa doutrina lógica, profundamente conceitual, onde a insensatez palavresca funciona como tóxico mental, encobrindo e aviltando a Verdade. Precisamos de expositores doutrinários conscientes da sua responsabilidade e não apenas interessados em fascinar as massas. Não temos nem devemos ter tribunos eloquentes nas nossas assembleias, mas estudiosos (i) da doutrina que procurem transmitir os seus princípios racionais aos adeptos pouco acostumados a raciocinar. Não há lugar para sofistas num movimento que busca unicamente a Verdade, que não está nos sofismas e sim na limpidez dos conceitos. Também os espíritas se comprometem com o complô da Morte de Deus quando dão apoio e estímulo criminoso aos palradores inveterados. 

/… 
* Adenda desta publicação.


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XVI – A Morte de Deus e o Século XX, 16º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

agonia das religiões ~


~~ Rito e Palavra 

O formalismo das igrejas caracteriza-se principalmente pelos seus rituais. Mas todo o rito implica o uso da palavra. Trata-se de uma conjugação de dois sistemas complementares de comunicação. A eles se junta o instrumento, na explicação clássica da evolução humana. Foi graças ao rito e à palavra que o homem ascendeu do primata ao sábio. Mas, para dar mais alcance ao processo de comunicação, o homem teve de inventar o instrumento. O fogo, a fumaça, as penas de aves nas árvores, as estacas no chão foram os precursores de todos os meios de comunicação à distância de que hoje nos orgulhamos. Mas pouca gente sabe, além dos círculos restritos de especialistas, que os animais também se utilizam de ritos e até mesmo de palavras nos seus processos de comunicação. No tocante aos instrumentos, eles os trazem no próprio corpo, o que não impede que animais superiores se utilizem também de instrumentos naturais, como pedras e varas. Rémy Chauvin, biólogo e entomologista francês da actualidade, no seu livro Les Societés Animales, oferece-nos abundantes informações com este objecto. 

A teoria da evolução criadora, de Henri Bergson, propõe-nos a tese da infiltração do impulso vital na matéria em duas direcções: uma que leva ao desenvolvimento dos insectos sociais, outra que resulta no aparecimento das sociedades humanas. Chauvin chega mesmo a referir-se à civilização das abelhas, advertindo naturalmente que se trata de civilização de insectos e não humana. Ortega y Gasset discorda do uso do termo social para os insectos, mas Chauvin, que pesquisou o problema a fundo, não encontra explicação para o facto de não haverem os insectos sociais alcançado o plano do pensamento criador. Chega mesmo a supor que talvez em outro planeta o tenham feito. Tudo isso pode ser pouco lisonjeiro para o orgulho humano, mas nem por isso deixa de ser significativo para os estudiosos da evolução humana na terra. Chauvin é director de pesquisas do Instituto de Altos Estudos de Paris. Menciono este dado a seu respeito para dizer da sua qualificação científica. 

O que nos é útil neste problema é verificar, através de dados científicos, que o formalismo religioso, como o social e o das chamadas sociedades ocultas não provêm de uma revelação divina, mas do impulso vital que, passando através das espécies animais, se projectou e desenvolveu no homem. O sacerdote que se paramenta para uma cerimónia religiosa, o maçom que veste os seus símbolos para uma sessão da loja, o universitário que enverga a sua beca para a formatura, todos, talvez não saibam que repetem processos antiquíssimos – evidentemente refinados pela tradição humana –, que procedem de ritos animais de milhões de anos antes da aparição do homem no planeta. Isso pode desapontar a nossa vaidade, mas servirá para nos lembrar a humildade. Não somos seres privilegiados na Terra. Somos os últimos rebentos de uma evolução multimilenar daquilo que, no Espiritismo, se chama princípio inteligente, o espírito que estrutura a matéria e através dela se desenvolve, despertando as suas potencialidades ocultas e fazendo-as passar de potência a acto, da possibilidade à realidade. 

Num trabalho curioso sobre a origem dos rituais na Igreja e na Maçonaria, Helena Blavatsky explica a procedência agrária dos ritos principais das religiões e das ordens ocultas. Os estudos de James Frazer, François Berge, René Hubert e outros mostram a relação directa dos ritos humanos com os ritmos da Natureza: a sucessão dos dias e das noites, dos anos, das estações, das gerações. Esses ritmos naturais parecem reflectir-se nos mecanismos da vida em formação e da inteligência em desenvolvimento. O instinto de imitação produz os ídolos grotescos das tribos e mais tarde as imagens artísticas das igrejas, enriquecidos pela imaginação criadora. Pestalozzi tinha razão em dividir as religiões em duas: as animais e as sociais, que correspondem às primitivas e às civilizadas. Nas primeiras ainda imperam os instintos animais, nas segundas as forças centrípetas da aglutinação social, gerando o sócio-centrismo das culturas antigas. Todas essas religiões são de elaboração telúrica, ligadas aos ritmos da terra. Mas Pestalozzi, mestre de Kardec, admitia uma religião superior, desligada dos elementos materiais, a que chamava apenas de Moralidade, para a não confundir com as anteriores. Essa, a religião espiritual que o seu discípulo iria formular, com base nas revelações dos espíritos. Nela, por ser espiritual, não há ritos nem mitos, nem sacerdotes nem altares, nem mesmo dogmas de fé, pois a religião espiritual fundamenta-se na razão e liberta-se dos ritmos telúricos que impregnam a emotividade humana. Bergson aflorou o mesmo problema no seu estudo sobre as fontes naturais da moral e da religião. 

Passar do rito à palavra é rodar no mesmo círculo. Ambos pertencem ao campo da linguagem. Quando falamos de linguagem abrangemos todas as formas de expressão. Se perguntarmos como nasceu a linguagem, a resposta leva-nos à mesma origem do rito. A diferença é apenas de forma. Enquanto o rito pertence ao campo da mímica, da gesticulação e portanto das expressões por meio de sinais corporais, a palavra pertence ao campo do som, da voz articulada. Por isso, a partir das pesquisas de Pavlov sobre psicologia animal e da formulação teórica de Watson sobre a psicologia do comportamento (Behaviorismo) predominou a tese da linguagem corporal, segundo a qual não falamos apenas com palavras, mas também com os movimentos do corpo. Não obstante, a palavra conserva o domínio da expressão do pensamento, tendo a mímica e a gesticulação como elementos acessórios de expressão. Não importa que a mímica ou a atitude de quem fala possa, não raro, modificar o própria sentido da palavra. No centro do processo de comunicação permanece a palavra como o seu elemento essencial. 

O problema da origem da palavra confunde-se com o da origem da mímica e do rito. Ao apontamos com o dedo um objecto estamos referindo-nos a ele. A palavra faz o mesmo: refere-se a um objecto. Surgiu, portanto, com o desenvolvimento da inteligência e a necessidade de comunicação. Cada palavra é um signo, um sinal, um gesto oral. Não apareceu milagrosamente na Terra, mas pelo esforço do homem na elaboração dos seus instrumentos de comunicação. 

As religiões formalistas dão à palavra um carácter divino e consideram os textos religiosos como a Palavra de Deus. Mas é evidente que Deus, o Ser Absoluto, não necessita dos meios relativos de comunicação de que necessitamos. No Espiritismo considera-se a linguagem dos seres superiores como apenas mental. Os espíritos falam por telepatia. A linguagem telepática é a do pensamento puro que costumamos traduzir em palavras. Por sinal que a palavra telepatia não quer dizer apenas transmissão mental de palavras, mas transmissão do pathus individual de cada um, dos seus pensamentos e das suas emoções, de todo o seu estado psíquico num dado momento. Bastaria isso para nos mostrar a riqueza da linguagem telepática. A palavra de Deus, ou seja, a sua forma de expressão, teria de ser ainda muito mais rica e complexa. 

Psicologicamente podemos figurar assim o mecanismo da palavra: temos uma sensação provocada por um estímulo exterior ou interior, essa sensação produz no nosso íntimo, na nossa afectividade, uma emoção e na nossa vontade uma volição, um impulso de expressá-la, que provoca na mente uma ideia daquilo que sentimos, um conceito que se traduz em um ou em vários sons articulados que constituem uma palavra. Se quisermos gravar essa palavra temos de recorrer às letras de um alfabeto. Servimo-nos assim da linguagem oral e da linguagem escrita para dizermos alguma coisa. O pensamento foi traduzido em sons e depois em letras. – Como é que podemos aceitar que a palavra de Deus esteja num livro? Isso equivaleria a submeter Deus ao nosso condicionamento humano. 

Por outro lado, costumamos dizer que a palavra é criadora, tem o poder de criar. Por isso se acredita que Deus criou o mundo pela palavra. Trata-se de uma alegoria, de uma simples imagem, mas as igrejas exigem que aceitemos essa imagem como realidade. A imagem é bela e podemos aceitá-la coma imagem. Deus disse: Faça-se a Terra e ela se fez. Mas se tomarmos isso à letra caímos no absurdo. Deus fala na nossa consciência e no nosso coração, mas não fala por palavras, nem em linguagem humana. Fala na sua linguagem divina, na sua linguagem de Deus. Podemos compreender isso? Sim, se dermos atenção à voz de Deus em nós, que nos fala por intuições, pressentimentos, emoções. Ele toca as nossas teclas internas e soamos como um piano. Mas quem poderia escrever o que Ele nos diz. Nós, propriamente, não o poderíamos fazer. 

Muitas pessoas ilustradas, doutoradas, ordenadas em cerimónias religiosas não compreendem isso. Esperam a voz de Deus como a de alguém que falasse através da linguagem humana. E, podem ouvir uma voz que lhes fala no silêncio, como ouvem milhões de pessoas diariamente. As pesquisas actuais da telepatia mostram que isso é possível e até mesmo natural. Podemos receber comunicações telepáticas de criaturas vivas e de criaturas que já morreram. Porém, se esperamos a voz de Deus como voz humana, certamente aceitaremos que Deus nos falou... E, esse é o perigo dos que procuram comunicar-se com Deus através de processos artificiais. Deus fala-nos naturalmente, quando estamos em condições de ouvir a sua voz. Mas, só ele sabe quando estamos nessas condições. Os que querem ouvir a voz de Deus a qualquer preço geralmente acabam pagando o alto preço do fanatismo ou da obsessão pela voz de um espírito inferior. Uma experiência de Deus que pode mandar-nos para o inferno das perturbações aqui mesmo, na Terra. 

Mas se estamos a pensar em Deus, dirá o leitor, como podemos ser assediados por vozes intrusas? Quando pensamos em Deus com pretensões descabidas, desejando ser melhores que os outros, separar-nos do rebanho dos impuros, arriscamo-nos a ficar sozinhos. Os fariseus orgulhosos oravam no Templo e nas esquinas das ruas, julgando-se os privilegiados de Deus, mas Jesus chamou-os de hipócritas, sepulcros caiados e cheios de podridão por dentro. Deus não faz acepção de pessoas. 

De nada valem os rituais pomposos que só nos lembram as épocas de falso esplendor dos homens que se diziam ungidos e coroados por Deus. De nada vale a leitura dos livros sagrados para nossa salvação pessoal, ajeitando-nos comodamente no carro particular dos eleitos. Deus não quer a fidelidade forçada dos filhos que ele criou para herança divina através das experiências da vida. O seu plano mostra-se evidente no espectáculo do mundo. Passam as gerações e as civilizações na roda das ilusões, mas Deus espera paciente por cada um de nós. Precisamos compreender que somos criaturas em evolução e que se Deus nos colocou no mundo não foi pelo pecado ingénuo de Adão e Eva, mas porque precisamos evoluir através das experiências da vida. Todos nós fomos feitos do mesmo barro, segundo a alegoria bíblica que o Espiritismo explica de maneira tão grandiosa e tão lógica. – Somos parte da obra de Deus e não fomos destinados à perdição, mas à salvação. Mas não é através de ritos e palavras que podemos livrar-nos dos nossos erros. Temos de acertar, de corrigir-nos. Deus espera-nos. 

Não devemos extraviar-nos nas ilusões da Terra, para não retardar a nossa evolução para Deus. Entre essas ilusões estão a da santidade fácil, a da hipocrisia que nos leva a considerar-nos melhores que a maioria, a da pretensão de podermos passar através de ritos e sacramentos ao mundo dos eleitos, a audácia de querermos ouvir a voz de Deus em particular, enquanto ela soa no mundo para todos ouvirem. O maior pecado é o da fuga à vida, às experiências que nos desafiam. Nascemos para viver a vida e precisamos vivê-la sem apego às coisas do mundo, mas sem rejeição ao mundo, que é obra de Deus. Esse equilíbrio difícil é o objectivo da nossa ginástica existencial. Jesus preferiu Zaqueu e Madalena aos doutores do Templo, não condenou a mulher adúltera nem a enviou aos juízes do Sinédrio, aconselhando-a apenas a afastar-se da vida desregrada. Não adianta procurarmos Deus em longas meditações, recusando o caminho que ele mesmo nos deu para irmos ao seu encontro: o da vida honesta e cheia de amor e compreensão para com todos os nossos companheiros de existência terrena. A Terra é a nave celeste que Deus nos deu para alcançarmos as muitas moradas da Casa do Pai. 

/… 


José Herculano Pires, Agonia das Religiões, Capítulo 12,  Rito e Palavra, 12º fragmento desta obra 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

~ em torno do mestre


Soou a hora ~ 

O método de pesquisar a verdade científica é o mesmo que deve ser empregado na conquista da verdade religiosa. 

Não há dois processos diferentes de aprendizagem. O natural é um só. Indagar, deduzir, experimentar, confrontar, observar  eis os meios para chegarmos à solução dos problemas científicos e religiosos. 

Não há religião fora da Ciência e, não há ciência fora da Religião. Se é certo que há ciência na Física, na Química, na Astronomia e nas Matemáticas, há sabedoria e, muito grande, na bondade de coração, na integridade de carácter, no espírito de justiça, no cumprimento do dever, no altruísmo, na renuncia e no sacrifício próprio em prol do bem colectivo e da felicidade de todos. E estas coisas são o fruto da árvore da redenção plantada no cume do Calvário pelo Cristo de Deus. A ciência que proscreve a virtude não é ciência: é vaidade. A religião que proscreve a Ciência não é religião: é superstição. 

Já não estamos no tempo dos dogmas e dos rituais. O imperialismo já não domina, quer na Ciência, quer na Política, quer na Religião. O homem ambiciona agir com liberdade, um direito inalienável que Deus concede a todos. O mundo reclama uma religião que melhore as condições sociais, regenerando o indivíduo. A Humanidade está farta de Borlas e de promessas falaciosas: ela quer os frutos. 

A salvação e a condenação já se tornaram termos vazios de sentido. O mundo actual pede factos concretos que possam ser observados na esfera social, no cenário terreno; A religião que não melhora e o homem não salva o espírito; O credo que não tem poder para reformar os costumes, que é incapaz de conter a onda do vício e do crime que ora invade a sociedade, já não merece crédito, nem pode ser levado a sério; Não garante o futuro quem não tem acção sobre o presente; Quem não faz o menos, não fará, com maior razão, o mais. 

Não importa que certas instituições hajam conseguido prestígio no passado e disso se vangloriem na actualidade. O momento actual reclama uma nova fé, uma força nova, viva, forte, capaz de conjurar os males e os flagelos que arrastam a Humanidade ao abismo. 

"Águas passadas não movem moinho." Não será com as tradições que venceremos os inimigos do homem desta época: o vício, o crime, a cobiça, a ambição, a fraude, a hipocrisia, a ociosidade. A religião que se torna estática e estéril é religião morta que pede o Requiescat in pace. Necessitamos de fé, dessa fé que é dinamismo, que é energia incoercível e cuja eficácia se revela em factos palpáveis, concretos. 

A época não é de discussões, nem de controvérsias, é de factos. Quem é bom, trate de ser melhor; e quem é mau há de revelar no mais alto grau as suas maldades. Todos os homens são convidados agora a se manifestarem tais quais são na realidade. "Nada há encoberto que não seja descoberto." "É preciso que haja escândalos, mas ai daqueles por quem o escândalo vem." As máscaras vão cair. Não se tolerará a hipocrisia. O que houver oculto, no coração do homem, virá à luz meridiana. Dai porque as organizações, baseadas nas exterioridades e nas encenações, cairão por terra. Mas geraram corrupção, fanatismo e hipocrisias. Os chamados intelectuais chegaram, por isso, a negar a eficiência e o valor da fé. Encaram a religião e as demais instituições sociais como coisas que se prestam unicamente a iludir a credulidade dos simples e serem explorados pelos sábios e entendidos. 

"A hora vem e agora é", em que o Filho do homem reivindicará os legítimos direitos que lhe são devidos, pois esses direitos foram conquistados com a efusão do seu sangue. 
~

A crise ~ 

O mundo, todo, está em crise e, crise original. Original e paradoxal, visto tratar-se de crise de abundância. 

Há excesso de produtos em toda a parte. Todos os países estão com os seus mercados a abarrotar. A crise provém exactamente dessa estagnação. 

O mundo está doente e, gravemente: é portador de adiantada esclerose. As suas artérias estão enferrujadas. A circulação faz-se penosamente. Os aneurismas ameaçam romper a todo o momento. Estamos diante de um doente que os médicos classificam como — caso perdido. 

Não haverá, de facto, remédio para o estado actual da Humanidade? — Pensamos que sim. Basta que se procure a causa e sobre ela se actue, ao contrário de tratar somente dos efeitos, como se tem feito até aqui. Sublata causa, tolitur effectus. (Eliminada a causa, desaparece o efeito). 

A nosso ver, a origem do mal, ou, pelo menos — uma das causas — está na política económica fundamentalmente egoísta adoptada pelas nações, em geral. 

Inspirados nesta política desastrosa, cada país pretende defender os seus interesses particulares, com menosprezo do interesse colectivo. 

Na questão económica, não há interesse particular, ou isolado, é por isso que todas as nações são igualmente interessadas. Há, realmente, um interesse único: o interesse colectivo. 

O egoísmo impede que se veja com clareza esse facto tão simples. É assim que o egoísmo de cada nação, pretendendo defender-se, se vai comprometendo; pretendendo juntar, vai espalhando; pretendendo fortificar e sustentar a obra financeira, se vai escondendo  nas suas bases e fundamentos. 

Exemplifiquemos: 

As leis naturais, que são divinas, revelam-nos o seguinte: Os países, pelas suas condições geográficas, topográficas e climatéricas, fornecem-nos determinados produtos. O Brasil produz café, a Argentina trigo, Espanha, Portugal e França produzem frutas, azeite, vinhos, etc. O México tira do seu subsolo gasolina, querosene, óleos lubrificantes. 

Certas nações, pela exiguidade do seu território, pela densidade das suas populações e por outras circunstâncias, tornam-se manufactureiras, fazendo da indústria a sua fonte principal de riqueza. 

Ora, assim sendo, o bom senso está a indicar que o modus vivendi entre os povos deve ser o da livre troca de produtos. É a lição da própria Natureza. Tudo o que contribua para atrapalhar a circulação das diferentes produções, acabará por afectar os organismos internacionais na sua parte económico-financeira. Outra coisa não tem feito a egoística política vigente. Cada nação se fortifica nos seus domínios, fechando virtualmente os seus portos aos produtos estrangeiros. Todas querem vender, nenhuma quer comprar. Exportar, sim; importar, nunca. Os impostos proibitivos de parte a parte determinaram a esclerose e os aneurismas de que se encontram atacados os organismos económico de todos os povos. 

De tal sorte se explicam as superabundâncias de produtos a abarrotar nos mercados mundiais, como também, a seu turno, o número crescente de desempregados. 

Desobstruam-se as artérias, promova-se a livre circulação dos produtos e, ver-se-á, com espanto, que o moribundo abre os olhos, desperta, dando, desde logo, sinais de melhoras e esperança no restabelecimento. 

Está visto que, dada a gravidade do mal, o remédio deve ser aplicado com justeza e proficiência, o estado do doente é melindroso. A terapêutica deve ser ministrada por mãos hábeis e competentes. 

Uma das soluções para o caso não pode deixar de ser esta: Temos que mudar de política económica. Da política vesga, materialista, estreita e mesquinha, inspirada no egoísmo, cumpre evolvermos para a política da solidariedade, altruísta, natural e cristã. 

Sem a luz dos factores morais, nenhum problema da vida humana se resolverá satisfatoriamente. 
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Deus, Justiça, Evolução ~ 

Que significado pode ter a evolução se os seres inferiores não evolvem para espécies superiores? Onde está a eficiência desta lei eterna e incoercível se os seres tiverem de permanecer eternamente ligados ao estado e às condições em que os conhecemos no momento actual? 

Não temos, por acaso, para refutar aquela hipótese, o facto incontestável das profundas modificações verificadas entre os animais de hoje, em comparação com os do passado? Mesmo o género humano não escapa a estas alterações. Os homens, como os animais da actualidade, divergem dos homens e dos animais de outrora. Destes últimos, várias espécies desapareceram do teatro terreno, existindo apenas exemplares nos museus. Outras variedades há que existiram em épocas remotas e só lograram chegar ao nosso conhecimento através de vestígios fósseis. 

A criação é uma cadeia infinita cujos elos se entrelaçam num movimento ascensional constante. Não podemos, naturalmente, ver e palpar esse entrelaçamento gradual e progressivo dos seres, porque o orbe em que habitamos não passa de uma nesga ou fracção diminuta do Universo. 

Os elos da infinita cadeia se conjugam no incomensurável cenário da vida universal. Podemos imaginar este fenómeno, podemos concebê-lo, mercê da nossa inteligência e do nosso raciocínio, mas não nos é dado comprová-lo neste mísero recanto que agora nos hospeda. 

A escada que Jacob (i) viu nos sonhos, quando a caminho da Mesopotâmia, é a imagem fiel da evolução. Por essa escada, cujas extremidades se apoiavam, respectivamente, uma na Terra, outra no Céu, subiam e desciam os Espíritos. A escada com os seus múltiplos degraus, alegorizava, claramente as várias etapas do progresso que os Espíritos vão galgando na conquista aurifulgente dos seus destinos. 

A Terra não está insulada no céu. Tudo, na criação, é solidário, como solidárias são as células do nosso corpo. 

Os mundos e os sóis, os planetas e os astros, os anjos e os homens, animais e plantas — todas as modalidades de vida, da mais simples e rudimentar à mais complexa e elevada, sobe a escada maravilhosa da evolução como hino triunfal que a Natureza entoa à sabedoria infinita e ao amor incomparável de Deus. 

O grande naturalista Darwin, conquanto se mantivesse exclusivamente no terreno da Biologia, averiguou a veracidade da evolução através das variadas espécies animais anatomicamente estudadas. Gabriel Delanne, o pensador profundo, o espiritualista abalizado, na sua obra majestosa — Evolução Anímica — firma, com dados positivos, o conceito, hoje indiscutível, do progresso de todos os seres numa empolgante peregrinação pela senda interminável do aperfeiçoamento. Wesley, protestante, fundador da igreja metodista, era partidário da evolução. Raciocinando, certa vez, sobre a sorte dos animais, teve este pensamento, próprio de uma alma cristã, de um coração amorável e justo: "Meu Deus! certamente tens concedido aos animais a faculdade de melhorar. Acredito que eles não permanecerão no estado de inferioridade em que hoje os conhecemos." 

A evolução é um facto que se impõe e, que em tudo se verifica. No campo do subjectivo ela se ostenta também nas demonstrações e testemunhos irrefutáveis. A imprensa de Gutenberg evoluiu para as Marinoni, essas máquinas admiráveis, verdadeiros prodígios da mecânica moderna. Os barcos de Fulton evolveram, a seu turno, para essas naus possantes, para os transatlânticos que são cidades flutuantes unindo os continentes. A ideia de Gutenberg e a de Fulton, para citar apenas dois exemplos, emigraram de cérebro em cérebro de geração em geração, subindo, ascendendo aos altos paramos do aperfeiçoamento. E, certamente não se cristalizarão aí. O futuro, em todos os tempos trouxe sempre no seu bojo surpresas maravilhosas. 

Creio na evolução porque creio na justiça. Creio na justiça porque creio em Deus! 

/... 

"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra. 
                                                                                     Pedro de Camargo “Vinícius” 

Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, Primeira Parte / Seixos e Gravetos; – Soou a hora, – A crise, – Deus, Justiça, Evolução, 9º fragmento da obra. 
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela, pintura de Johannes Vermeer)

domingo, 11 de outubro de 2020

Hippolyte Léon Denisard Rivail


A Caridade 
(Sociedade de Estudos Espíritas, Paris, sessão de 8 de Junho de 1858) 

Pelo Espírito São Vicente de Paulo (*) 

Sede bons e caridosos, eis a chave do Céu, posta em vossas mãos. Toda a felicidade eterna está contida nesta máxima: “Amai-vos uns aos outros.” Não pode a alma elevar-se às regiões espirituais senão pela dedicação ao próximo; ela não encontra felicidade e consolação senão nos arroubos da caridade. Sede bons, ajudai os vossos irmãos, ponde de lado essa horrível chaga do egoísmo. Esse dever cumprido vos abrirá as vias da felicidade eterna. Aliás, quem dentre vós não sentiu já o coração pulsar e a sua alegria íntima se expandir pela prática de uma obra de caridade? Não deveríeis pensar senão nesta espécie de volúpia proporcionada por uma boa acção, com o que permaneceríeis sempre no caminho do progresso espiritual. Não vos faltam exemplos. Só a boa vontade é que é rara. 

Vede a multidão de homens de bem, cuja lembrança piedosa a vossa história relembra. Eu poderia citar aos milhares aqueles cuja moral não tinha por objectivo senão melhorar o vosso globo. Não vos disse o Cristo tudo quanto concerne às virtudes da caridade e do amor? Por que são postos de lado os seus divinos ensinamentos? Por que os ouvidos são tapados às suas divinas palavras e o coração é fechado para todas as suas máximas suaves? 

Eu gostaria que a leitura do Evangelho fosse feita com mais interesse pessoal. Mas abandonam esse livro; transformam-no em expressão vazia e letra morta; deixam no esquecimento esse código admirável. Os vossos males provêm do abandono voluntário em que deixais esse resumo das leis divinas. Lede, pois, essas páginas de fogo do devotamento de Jesus e meditai-as. Eu mesmo me sinto envergonhado de ousar prometer-vos um trabalho sobre a caridade, quando penso que nesse livro encontrais todos os ensinamentos que vos devem levar às regiões celestes. 

Homens fortes, armai-vos; homens fracos, forjai as vossas armas da vossa doçura e da vossa fé; tende mais persuasão, mais constância na propagação da vossa nova doutrina. Nós só vimos trazer-vos um encorajamento; é apenas para vos estimular o zelo e as virtudes que Deus permite nos manifestemos a vós. Mas, se quisésseis, não necessitaríeis senão do auxílio de Deus e da vossa própria vontade. As manifestações espíritas não foram feitas senão para os olhos fechados e para os corações indóceis. Há, entre vós, homens que devem realizar missões de amor e de caridade: escutai-os, exaltai a sua voz; fazei resplandecer os seus méritos e vós próprios sereis exaltados pelo desinteresse e pela fé viva de que vos impregnarão. 

Muito extensos e detalhados seriam os conselhos que vos deveriam ser dados sobre a necessidade de alargamento do círculo de caridade; sobre a inclusão nesse círculo de todos os infelizes cujas misérias são ignoradas; sobre todas as dores que devem ser procuradas nos seus próprios redutos, para consolá-los em nome dessa virtude divina, a caridade. Vejo com satisfação quantos homens eminentes e poderosos colaboram na busca desse progresso que deve reunir todas as classes humanas: os felizes e os desgraçados. Coisa estranha! Todos os infelizes se dão as mãos e se ajudam reciprocamente na sua miséria. Por que os felizes demoram tanto para ouvir a voz do infeliz? Por que se torna necessária uma poderosa mão terrena para dar impulso às missões de caridade? Por que não respondem com mais ardor a esses apelos? Por que permitem que a miséria, como por prazer, macule a imagem da Humanidade? 

A caridade é a virtude fundamental que deve sustentar todo o edifício das virtudes terrenas. Sem ela não existem as outras. Sem caridade não há fé nem esperança, porque sem a caridade não há esperança de uma sorte melhor nem interesse moral que nos guie. Sem a caridade não há fé, porque a fé é um raio puro que faz brilhar uma alma caridosa; ela é a sua consequência decisiva. 

Quando deixardes que o vosso coração se abra à súplica do primeiro infeliz que vos estender a mão; quando lhe derdes sem lhe perguntar se a sua miséria é fingida ou se o seu mal tem um vício como causa; quando deixardes toda a justiça nas mãos de Deus; quando deixardes a cargo do Criador o castigo de todas as falsas misérias; enfim, quando praticardes a caridade só pelo prazer que ela proporciona, sem questionardes a sua utilidade, então sereis os filhos que Deus amará e que chamará para si. 

A caridade é a âncora eterna de salvação em todos os globos; é a mais pura emanação do próprio Criador; é a sua própria virtude, que ele dá às criaturas. Como poderíeis desconhecer essa suprema bondade? Com tal pensamento, qual seria o coração suficientemente perverso para recalcar e repelir esse sentimento divino? Qual seria o filho suficientemente mau para se rebelar contra a doce carícia da caridade? 

Não ouso falar daquilo que fiz, porque os Espíritos também têm pudor das suas obras. Mas penso que a obra que iniciei é uma daquelas que devem contribuir, muito, para aliviar os vossos semelhantes. Com frequência vejo Espíritos que pedem a missão de continuar a minha obra; vejo as minhas suaves e queridas irmãs no seu piedoso e divino ministério; vejo-as a praticar a virtude que vos recomendo, com toda a alegria proporcionada por essa existência de devotamento e de sacrifícios. É para mim grande felicidade ver quanto o seu carácter é honrado; quanto a sua missão é apreciada e docemente protegida. Homens de bem, de boa e forte vontade, uni-vos para continuardes ampliando a obra de propagação da caridade. Encontrareis a recompensa dessa virtude pelo seu próprio exercício. Não há alegria espiritual que ela não proporcione, já na presente existência. Sede unidos; amai-vos uns aos outros, conforme os preceitos do Cristo. Assim seja. 

(Dirigindo-nos à entidade comunicante). 

─ Agradecemos a São Vicente de Paulo a boa e bela comunicação que teve a bondade de nos dar. 
Resp. ─ Gostaria que fosse proveitosa a todos. 

─ Poderíeis permitir-nos algumas perguntas complementares a respeito do que acabastes de dizer? 
Resp─ Certamente, pois o meu objectivo é esclarecer-vos. Perguntai o que quiserdes. 

1. ─ A caridade pode ser compreendida de duas maneiras: a esmola propriamente dita e o amor aos semelhantes. Quando nos dissestes que era necessário abrir o coração ao pedido do infeliz que nos estende a mão, sem lhe perguntar se a sua miséria é fingida, não quisestes falar da caridade do ponto de vista da esmola? 
Resp. ─ Sim, apenas nesse parágrafo. 

2. ─ Dissestes que deveríamos deixar à justiça de Deus a apreciação de falsa miséria. Entretanto, parece-nos que dar sem discernimento àqueles que não necessitam ou que poderiam ganhar a vida por um trabalho honesto, é encorajar o vício e a preguiça. Se os preguiçosos encontrassem facilmente aberta a bolsa alheia, multiplicar-se-iam ao infinito, em prejuízo dos verdadeiramente necessitados. 
Resp. ─ Podeis identificar os que podem trabalhar e então a caridade vos obriga a tudo fazer para lhes proporcionar trabalho. Entretanto, também há pobres mentirosos, que sabem muito bem simular misérias que não padecem. Esses é que devem ser deixados à justiça de Deus. 

3. ─ Aquele que pode dar apenas um centavo e que pode escolher entre dois infelizes que lhe pedem, tem o direito de inquirir qual deles é realmente necessitado, ou deve dar sem exame ao que chega primeiro? 
Resp. ─ Deve dar àquele que parece sofrer mais. 

4. ─ Não se deve considerar como parte da caridade a maneira de a fazer? 
Resp. ─ É sobretudo na maneira de a fazer que está o mérito da caridade. A bondade é sempre indício de uma alma bela. 

5. ─ Que tipo de mérito reconheceis naqueles geralmente chamados benfeitores rabugentos? 
Resp. ─ Fazem o bem apenas pela metade. Os seus benefícios são recebidos, mas não comovem. 

6. ─ Disse Jesus: “Que a vossa mão direita não saiba o que faz a esquerda.” Têm algum mérito aqueles que dão por ostentação? 
Resp. Têm apenas o mérito do orgulho, pelo qual serão punidos. 

7. ─ A caridade cristã, na sua mais larga acepção, não compreende também a doçura, a benevolência e a indulgência para com as fraquezas alheias? 
Resp. ─ Fazei como Jesus. Ele vos disse tudo isso. Escutai-o mais do que nunca. (**) 

8. ─ É bem entendida a caridade, quando exclusiva entre as criaturas da mesma opinião ou do mesmo partido? 
Resp. ─ Não. É sobretudo o espírito de seita e de partido que deve ser abolido, porquanto todos os homens são irmãos. É sobre isso que concentramos os nossos esforços. 

9. ─ Admitamos que uma pessoa veja dois homens em perigo, mas não possa salvar senão um. Um é seu amigo e o outro, inimigo. A quem deve ele salvar? 
Resp. ─ Deve salvar o amigo, pois esse amigo poderia acusá-lo de não lhe ter amizade. Quanto ao outro, Deus (inteligência directriz)*** se encarregará. 

/… 
(*) Esta instrução de São Vicente de Paulo, com algumas modificações que a reduziram, foi inserida por Allan Kardec em O Evangelho segundo o Espiritismo. Corresponde, na edição definitiva de 1866, ao capítulo XIII, item 12. 
(**) Vide questão 886, de O Livro dos Espíritos
(***) Adenda desta publicação.


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, A Caridade, pelo Espírito São Vicente de Paulo (Sociedade de Estudos Espíritas, sessão de 8 de Junho de 1858 / Publicada na Revista de Agosto), Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, 8º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)