Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

agonia das religiões ~


~~ Rito e Palavra 

O formalismo das igrejas caracteriza-se principalmente pelos seus rituais. Mas todo o rito implica o uso da palavra. Trata-se de uma conjugação de dois sistemas complementares de comunicação. A eles se junta o instrumento, na explicação clássica da evolução humana. Foi graças ao rito e à palavra que o homem ascendeu do primata ao sábio. Mas, para dar mais alcance ao processo de comunicação, o homem teve de inventar o instrumento. O fogo, a fumaça, as penas de aves nas árvores, as estacas no chão foram os precursores de todos os meios de comunicação à distância de que hoje nos orgulhamos. Mas pouca gente sabe, além dos círculos restritos de especialistas, que os animais também se utilizam de ritos e até mesmo de palavras nos seus processos de comunicação. No tocante aos instrumentos, eles os trazem no próprio corpo, o que não impede que animais superiores se utilizem também de instrumentos naturais, como pedras e varas. Rémy Chauvin, biólogo e entomologista francês da actualidade, no seu livro Les Societés Animales, oferece-nos abundantes informações com este objecto. 

A teoria da evolução criadora, de Henri Bergson, propõe-nos a tese da infiltração do impulso vital na matéria em duas direcções: uma que leva ao desenvolvimento dos insectos sociais, outra que resulta no aparecimento das sociedades humanas. Chauvin chega mesmo a referir-se à civilização das abelhas, advertindo naturalmente que se trata de civilização de insectos e não humana. Ortega y Gasset discorda do uso do termo social para os insectos, mas Chauvin, que pesquisou o problema a fundo, não encontra explicação para o facto de não haverem os insectos sociais alcançado o plano do pensamento criador. Chega mesmo a supor que talvez em outro planeta o tenham feito. Tudo isso pode ser pouco lisonjeiro para o orgulho humano, mas nem por isso deixa de ser significativo para os estudiosos da evolução humana na terra. Chauvin é director de pesquisas do Instituto de Altos Estudos de Paris. Menciono este dado a seu respeito para dizer da sua qualificação científica. 

O que nos é útil neste problema é verificar, através de dados científicos, que o formalismo religioso, como o social e o das chamadas sociedades ocultas não provêm de uma revelação divina, mas do impulso vital que, passando através das espécies animais, se projectou e desenvolveu no homem. O sacerdote que se paramenta para uma cerimónia religiosa, o maçom que veste os seus símbolos para uma sessão da loja, o universitário que enverga a sua beca para a formatura, todos, talvez não saibam que repetem processos antiquíssimos – evidentemente refinados pela tradição humana –, que procedem de ritos animais de milhões de anos antes da aparição do homem no planeta. Isso pode desapontar a nossa vaidade, mas servirá para nos lembrar a humildade. Não somos seres privilegiados na Terra. Somos os últimos rebentos de uma evolução multimilenar daquilo que, no Espiritismo, se chama princípio inteligente, o espírito que estrutura a matéria e através dela se desenvolve, despertando as suas potencialidades ocultas e fazendo-as passar de potência a acto, da possibilidade à realidade. 

Num trabalho curioso sobre a origem dos rituais na Igreja e na Maçonaria, Helena Blavatsky explica a procedência agrária dos ritos principais das religiões e das ordens ocultas. Os estudos de James Frazer, François Berge, René Hubert e outros mostram a relação directa dos ritos humanos com os ritmos da Natureza: a sucessão dos dias e das noites, dos anos, das estações, das gerações. Esses ritmos naturais parecem reflectir-se nos mecanismos da vida em formação e da inteligência em desenvolvimento. O instinto de imitação produz os ídolos grotescos das tribos e mais tarde as imagens artísticas das igrejas, enriquecidos pela imaginação criadora. Pestalozzi tinha razão em dividir as religiões em duas: as animais e as sociais, que correspondem às primitivas e às civilizadas. Nas primeiras ainda imperam os instintos animais, nas segundas as forças centrípetas da aglutinação social, gerando o sócio-centrismo das culturas antigas. Todas essas religiões são de elaboração telúrica, ligadas aos ritmos da terra. Mas Pestalozzi, mestre de Kardec, admitia uma religião superior, desligada dos elementos materiais, a que chamava apenas de Moralidade, para a não confundir com as anteriores. Essa, a religião espiritual que o seu discípulo iria formular, com base nas revelações dos espíritos. Nela, por ser espiritual, não há ritos nem mitos, nem sacerdotes nem altares, nem mesmo dogmas de fé, pois a religião espiritual fundamenta-se na razão e liberta-se dos ritmos telúricos que impregnam a emotividade humana. Bergson aflorou o mesmo problema no seu estudo sobre as fontes naturais da moral e da religião. 

Passar do rito à palavra é rodar no mesmo círculo. Ambos pertencem ao campo da linguagem. Quando falamos de linguagem abrangemos todas as formas de expressão. Se perguntarmos como nasceu a linguagem, a resposta leva-nos à mesma origem do rito. A diferença é apenas de forma. Enquanto o rito pertence ao campo da mímica, da gesticulação e portanto das expressões por meio de sinais corporais, a palavra pertence ao campo do som, da voz articulada. Por isso, a partir das pesquisas de Pavlov sobre psicologia animal e da formulação teórica de Watson sobre a psicologia do comportamento (Behaviorismo) predominou a tese da linguagem corporal, segundo a qual não falamos apenas com palavras, mas também com os movimentos do corpo. Não obstante, a palavra conserva o domínio da expressão do pensamento, tendo a mímica e a gesticulação como elementos acessórios de expressão. Não importa que a mímica ou a atitude de quem fala possa, não raro, modificar o própria sentido da palavra. No centro do processo de comunicação permanece a palavra como o seu elemento essencial. 

O problema da origem da palavra confunde-se com o da origem da mímica e do rito. Ao apontamos com o dedo um objecto estamos referindo-nos a ele. A palavra faz o mesmo: refere-se a um objecto. Surgiu, portanto, com o desenvolvimento da inteligência e a necessidade de comunicação. Cada palavra é um signo, um sinal, um gesto oral. Não apareceu milagrosamente na Terra, mas pelo esforço do homem na elaboração dos seus instrumentos de comunicação. 

As religiões formalistas dão à palavra um carácter divino e consideram os textos religiosos como a Palavra de Deus. Mas é evidente que Deus, o Ser Absoluto, não necessita dos meios relativos de comunicação de que necessitamos. No Espiritismo considera-se a linguagem dos seres superiores como apenas mental. Os espíritos falam por telepatia. A linguagem telepática é a do pensamento puro que costumamos traduzir em palavras. Por sinal que a palavra telepatia não quer dizer apenas transmissão mental de palavras, mas transmissão do pathus individual de cada um, dos seus pensamentos e das suas emoções, de todo o seu estado psíquico num dado momento. Bastaria isso para nos mostrar a riqueza da linguagem telepática. A palavra de Deus, ou seja, a sua forma de expressão, teria de ser ainda muito mais rica e complexa. 

Psicologicamente podemos figurar assim o mecanismo da palavra: temos uma sensação provocada por um estímulo exterior ou interior, essa sensação produz no nosso íntimo, na nossa afectividade, uma emoção e na nossa vontade uma volição, um impulso de expressá-la, que provoca na mente uma ideia daquilo que sentimos, um conceito que se traduz em um ou em vários sons articulados que constituem uma palavra. Se quisermos gravar essa palavra temos de recorrer às letras de um alfabeto. Servimo-nos assim da linguagem oral e da linguagem escrita para dizermos alguma coisa. O pensamento foi traduzido em sons e depois em letras. – Como é que podemos aceitar que a palavra de Deus esteja num livro? Isso equivaleria a submeter Deus ao nosso condicionamento humano. 

Por outro lado, costumamos dizer que a palavra é criadora, tem o poder de criar. Por isso se acredita que Deus criou o mundo pela palavra. Trata-se de uma alegoria, de uma simples imagem, mas as igrejas exigem que aceitemos essa imagem como realidade. A imagem é bela e podemos aceitá-la coma imagem. Deus disse: Faça-se a Terra e ela se fez. Mas se tomarmos isso à letra caímos no absurdo. Deus fala na nossa consciência e no nosso coração, mas não fala por palavras, nem em linguagem humana. Fala na sua linguagem divina, na sua linguagem de Deus. Podemos compreender isso? Sim, se dermos atenção à voz de Deus em nós, que nos fala por intuições, pressentimentos, emoções. Ele toca as nossas teclas internas e soamos como um piano. Mas quem poderia escrever o que Ele nos diz. Nós, propriamente, não o poderíamos fazer. 

Muitas pessoas ilustradas, doutoradas, ordenadas em cerimónias religiosas não compreendem isso. Esperam a voz de Deus como a de alguém que falasse através da linguagem humana. E, podem ouvir uma voz que lhes fala no silêncio, como ouvem milhões de pessoas diariamente. As pesquisas actuais da telepatia mostram que isso é possível e até mesmo natural. Podemos receber comunicações telepáticas de criaturas vivas e de criaturas que já morreram. Porém, se esperamos a voz de Deus como voz humana, certamente aceitaremos que Deus nos falou... E, esse é o perigo dos que procuram comunicar-se com Deus através de processos artificiais. Deus fala-nos naturalmente, quando estamos em condições de ouvir a sua voz. Mas, só ele sabe quando estamos nessas condições. Os que querem ouvir a voz de Deus a qualquer preço geralmente acabam pagando o alto preço do fanatismo ou da obsessão pela voz de um espírito inferior. Uma experiência de Deus que pode mandar-nos para o inferno das perturbações aqui mesmo, na Terra. 

Mas se estamos a pensar em Deus, dirá o leitor, como podemos ser assediados por vozes intrusas? Quando pensamos em Deus com pretensões descabidas, desejando ser melhores que os outros, separar-nos do rebanho dos impuros, arriscamo-nos a ficar sozinhos. Os fariseus orgulhosos oravam no Templo e nas esquinas das ruas, julgando-se os privilegiados de Deus, mas Jesus chamou-os de hipócritas, sepulcros caiados e cheios de podridão por dentro. Deus não faz acepção de pessoas. 

De nada valem os rituais pomposos que só nos lembram as épocas de falso esplendor dos homens que se diziam ungidos e coroados por Deus. De nada vale a leitura dos livros sagrados para nossa salvação pessoal, ajeitando-nos comodamente no carro particular dos eleitos. Deus não quer a fidelidade forçada dos filhos que ele criou para herança divina através das experiências da vida. O seu plano mostra-se evidente no espectáculo do mundo. Passam as gerações e as civilizações na roda das ilusões, mas Deus espera paciente por cada um de nós. Precisamos compreender que somos criaturas em evolução e que se Deus nos colocou no mundo não foi pelo pecado ingénuo de Adão e Eva, mas porque precisamos evoluir através das experiências da vida. Todos nós fomos feitos do mesmo barro, segundo a alegoria bíblica que o Espiritismo explica de maneira tão grandiosa e tão lógica. – Somos parte da obra de Deus e não fomos destinados à perdição, mas à salvação. Mas não é através de ritos e palavras que podemos livrar-nos dos nossos erros. Temos de acertar, de corrigir-nos. Deus espera-nos. 

Não devemos extraviar-nos nas ilusões da Terra, para não retardar a nossa evolução para Deus. Entre essas ilusões estão a da santidade fácil, a da hipocrisia que nos leva a considerar-nos melhores que a maioria, a da pretensão de podermos passar através de ritos e sacramentos ao mundo dos eleitos, a audácia de querermos ouvir a voz de Deus em particular, enquanto ela soa no mundo para todos ouvirem. O maior pecado é o da fuga à vida, às experiências que nos desafiam. Nascemos para viver a vida e precisamos vivê-la sem apego às coisas do mundo, mas sem rejeição ao mundo, que é obra de Deus. Esse equilíbrio difícil é o objectivo da nossa ginástica existencial. Jesus preferiu Zaqueu e Madalena aos doutores do Templo, não condenou a mulher adúltera nem a enviou aos juízes do Sinédrio, aconselhando-a apenas a afastar-se da vida desregrada. Não adianta procurarmos Deus em longas meditações, recusando o caminho que ele mesmo nos deu para irmos ao seu encontro: o da vida honesta e cheia de amor e compreensão para com todos os nossos companheiros de existência terrena. A Terra é a nave celeste que Deus nos deu para alcançarmos as muitas moradas da Casa do Pai. 

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões, Capítulo 12,  Rito e Palavra, 12º fragmento desta obra 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

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