O formalismo das igrejas caracteriza-se principalmente pelos
seus rituais. Mas todo o rito implica o uso da palavra. Trata-se de uma
conjugação de dois sistemas complementares de comunicação. A eles se junta o
instrumento, na explicação clássica da evolução humana. Foi graças ao rito e à
palavra que o homem ascendeu do primata ao sábio. Mas, para dar mais alcance ao
processo de comunicação, o homem teve de inventar o instrumento. O
fogo, a fumaça, as penas de aves nas árvores, as estacas no chão foram os precursores
de todos os meios de comunicação à distância de que hoje nos orgulhamos. Mas
pouca gente sabe, além dos círculos restritos de especialistas, que os animais
também se utilizam de ritos e até mesmo de palavras nos seus
processos de comunicação. No tocante aos instrumentos, eles os trazem no
próprio corpo, o que não impede que animais superiores se utilizem também de
instrumentos naturais, como pedras e varas. Rémy Chauvin, biólogo e entomologista
francês da actualidade, no seu livro Les Societés Animales,
oferece-nos abundantes informações com este objecto.
A teoria da evolução criadora, de Henri
Bergson, propõe-nos a tese da infiltração do impulso vital na matéria em
duas direcções: uma que leva ao desenvolvimento dos insectos sociais,
outra que resulta no aparecimento das sociedades humanas. Chauvin chega mesmo a referir-se à civilização das abelhas, advertindo
naturalmente que se trata de civilização de insectos e não humana. Ortega
y Gasset discorda do uso do termo social para os
insectos, mas Chauvin, que pesquisou o problema a fundo, não encontra
explicação para o facto de não haverem os insectos sociais alcançado o plano do
pensamento criador. Chega mesmo a supor que talvez em outro planeta o tenham feito.
Tudo isso pode ser pouco lisonjeiro para o orgulho humano, mas nem por isso
deixa de ser significativo para os estudiosos da evolução humana na terra.
Chauvin é director de pesquisas do Instituto de Altos Estudos de Paris.
Menciono este dado a seu respeito para dizer da sua qualificação científica.
O que nos é útil neste problema é verificar, através de
dados científicos, que o formalismo religioso, como o social e o das chamadas
sociedades ocultas não provêm de uma revelação divina, mas do impulso
vital que, passando através das espécies animais, se projectou e
desenvolveu no homem. O sacerdote que se paramenta para uma cerimónia
religiosa, o maçom que veste os seus símbolos para uma sessão da loja, o
universitário que enverga a sua beca para a formatura, todos, talvez não saibam que
repetem processos antiquíssimos – evidentemente refinados pela tradição humana
–, que procedem de ritos animais de milhões de anos antes da
aparição do homem no planeta. Isso pode desapontar a
nossa vaidade, mas servirá para nos lembrar a humildade.
Não somos seres privilegiados na Terra. Somos os últimos rebentos de
uma evolução multimilenar daquilo que, no Espiritismo, se chama princípio
inteligente, o espírito que estrutura a matéria e através dela se
desenvolve, despertando as suas potencialidades ocultas e fazendo-as
passar de potência a acto, da possibilidade à realidade.
Num trabalho curioso sobre a origem dos rituais na Igreja e
na Maçonaria, Helena Blavatsky explica a procedência agrária dos
ritos principais das religiões e das ordens ocultas. Os estudos de James
Frazer, François Berge, René
Hubert e outros mostram a relação directa dos ritos humanos com
os ritmos da Natureza: a sucessão dos dias e das noites, dos anos, das
estações, das gerações. Esses ritmos naturais parecem
reflectir-se nos mecanismos da vida em formação e da inteligência em
desenvolvimento. O instinto de imitação produz os ídolos grotescos das tribos e
mais tarde as imagens artísticas das igrejas, enriquecidos pela imaginação criadora. Pestalozzi tinha razão em dividir as religiões em duas: as animais e
as sociais, que correspondem às primitivas e às civilizadas. Nas
primeiras ainda imperam os instintos animais, nas segundas as forças
centrípetas da aglutinação social, gerando o sócio-centrismo das
culturas antigas. Todas essas religiões são de elaboração telúrica,
ligadas aos ritmos da terra. Mas Pestalozzi, mestre de Kardec,
admitia uma religião superior, desligada dos elementos materiais, a
que chamava apenas de Moralidade, para a não confundir com as
anteriores. Essa, a religião espiritual que o seu discípulo iria formular, com
base nas revelações dos espíritos. Nela, por ser espiritual, não há ritos nem
mitos, nem sacerdotes nem altares, nem mesmo dogmas de fé, pois a religião
espiritual fundamenta-se na razão e liberta-se dos ritmos telúricos que
impregnam a emotividade humana. Bergson aflorou o mesmo problema no seu estudo sobre as fontes naturais da moral e da religião.
Passar do rito à palavra é rodar no mesmo círculo. Ambos
pertencem ao campo da linguagem. Quando falamos de linguagem abrangemos todas
as formas de expressão. Se perguntarmos como nasceu a linguagem, a resposta
leva-nos à mesma origem do rito. A diferença é apenas de forma. Enquanto o rito
pertence ao campo da mímica, da gesticulação e portanto das expressões por meio
de sinais corporais, a palavra pertence ao campo do som, da voz articulada. Por
isso, a partir das pesquisas de Pavlov sobre
psicologia animal e da formulação teórica de Watson sobre
a psicologia do comportamento (Behaviorismo)
predominou a tese da linguagem corporal, segundo a qual não falamos
apenas com palavras, mas também com os movimentos do corpo. Não obstante, a
palavra conserva o domínio da expressão do pensamento, tendo a mímica e a
gesticulação como elementos acessórios de expressão. Não importa que a mímica
ou a atitude de quem fala possa, não raro, modificar o própria sentido da
palavra. No centro do processo de comunicação permanece a palavra como o seu
elemento essencial.
O problema da origem da palavra confunde-se com o da origem
da mímica e do rito. Ao apontamos com o dedo um objecto estamos referindo-nos a
ele. A palavra faz o mesmo: refere-se a um objecto. Surgiu, portanto, com o
desenvolvimento da inteligência e a necessidade de comunicação. Cada palavra é
um signo, um sinal, um gesto oral. Não apareceu milagrosamente na Terra, mas
pelo esforço do homem na elaboração dos seus instrumentos de
comunicação.
As religiões formalistas dão à palavra um carácter divino e
consideram os textos religiosos como a Palavra de Deus. Mas é
evidente que Deus, o Ser Absoluto, não necessita dos
meios relativos de comunicação de que necessitamos. No Espiritismo
considera-se a linguagem dos seres superiores como apenas
mental. Os espíritos falam por telepatia. A linguagem telepática é
a do pensamento puro que costumamos traduzir em palavras. Por sinal que a
palavra telepatia não quer dizer apenas transmissão mental de
palavras, mas transmissão do pathus individual de cada um, dos
seus pensamentos e das suas emoções, de todo o seu estado psíquico num dado
momento. Bastaria isso para nos mostrar a riqueza da linguagem telepática. A
palavra de Deus, ou seja, a sua forma de expressão, teria de ser ainda muito
mais rica e complexa.
Psicologicamente podemos figurar assim o mecanismo da
palavra: temos uma sensação provocada por um estímulo exterior ou interior,
essa sensação produz no nosso íntimo, na nossa afectividade, uma emoção e na
nossa vontade uma volição,
um impulso de expressá-la, que provoca na mente uma ideia daquilo
que sentimos, um conceito que se traduz em um ou em vários sons articulados que
constituem uma palavra. Se quisermos gravar essa palavra temos de recorrer às
letras de um alfabeto. Servimo-nos assim da linguagem oral e da linguagem
escrita para dizermos alguma coisa. O pensamento foi traduzido em sons e depois
em letras. – Como é que podemos aceitar que a palavra de Deus esteja num livro?
Isso equivaleria a submeter Deus ao nosso condicionamento humano.
Por outro lado, costumamos dizer que a palavra é criadora,
tem o poder de criar. Por isso se acredita que Deus criou o mundo pela palavra.
Trata-se de uma alegoria, de uma simples imagem, mas as igrejas exigem que
aceitemos essa imagem como realidade. A imagem é bela e podemos aceitá-la coma
imagem. Deus disse: Faça-se a Terra e ela se fez. Mas se tomarmos
isso à letra caímos no absurdo. Deus fala na nossa consciência e
no nosso coração, mas não fala por palavras, nem em linguagem humana. Fala na
sua linguagem divina, na sua linguagem de Deus. Podemos compreender isso?
Sim, se dermos atenção à voz de Deus em nós, que nos fala
por intuições, pressentimentos, emoções.
Ele toca as nossas teclas internas e soamos como um piano. Mas quem poderia
escrever o que Ele nos diz. Nós, propriamente, não o poderíamos fazer.
Muitas pessoas ilustradas, doutoradas, ordenadas em
cerimónias religiosas não compreendem isso. Esperam a voz de Deus como a de
alguém que falasse através da linguagem humana. E, podem ouvir uma voz que lhes
fala no silêncio, como ouvem milhões de pessoas diariamente. As pesquisas
actuais da telepatia mostram que isso é possível e até mesmo natural. Podemos
receber comunicações telepáticas de criaturas vivas e de criaturas que já
morreram. Porém, se esperamos a voz de Deus como voz humana, certamente aceitaremos que
Deus nos falou... E, esse é o perigo dos que procuram comunicar-se com Deus através de processos artificiais. Deus fala-nos naturalmente, quando estamos em condições de ouvir a sua voz. Mas, só ele sabe quando estamos nessas
condições. Os que querem ouvir a voz de Deus a qualquer preço geralmente acabam pagando o
alto preço do fanatismo ou da obsessão pela voz de um espírito inferior. Uma
experiência de Deus que pode mandar-nos para o inferno das perturbações aqui mesmo,
na Terra.
Mas se estamos a pensar em Deus, dirá o leitor, como podemos
ser assediados por vozes intrusas? Quando pensamos em Deus com pretensões
descabidas, desejando ser melhores que os outros, separar-nos do rebanho
dos impuros, arriscamo-nos a ficar sozinhos. Os fariseus orgulhosos oravam no
Templo e nas esquinas das ruas, julgando-se os privilegiados de Deus, mas Jesus
chamou-os de hipócritas, sepulcros caiados e cheios de podridão por dentro.
Deus não faz acepção de pessoas.
De nada valem os rituais pomposos que só nos lembram as
épocas de falso esplendor dos homens que se diziam ungidos e coroados por Deus.
De nada vale a leitura dos livros sagrados para nossa salvação pessoal, ajeitando-nos
comodamente no carro particular dos eleitos. Deus não quer a fidelidade
forçada dos filhos que ele criou para herança divina através das
experiências da vida. O seu plano mostra-se evidente no espectáculo do mundo.
Passam as gerações e as civilizações na roda das ilusões, mas Deus
espera paciente por cada um de nós. Precisamos compreender que somos
criaturas em evolução e que se Deus nos colocou no mundo não foi pelo pecado
ingénuo de Adão e Eva, mas porque precisamos evoluir através
das experiências da vida. Todos nós fomos feitos do mesmo barro, segundo a
alegoria bíblica que o Espiritismo explica de maneira tão grandiosa e tão
lógica. – Somos parte da obra de Deus e não fomos destinados à perdição, mas à
salvação. Mas não é através de ritos e palavras que podemos livrar-nos dos
nossos erros. Temos de acertar, de corrigir-nos. Deus espera-nos.
Não devemos extraviar-nos nas ilusões da Terra,
para não retardar a nossa evolução para Deus. Entre essas ilusões estão a da
santidade fácil, a da hipocrisia que nos leva a considerar-nos melhores que a
maioria, a da pretensão de podermos passar através de ritos e sacramentos ao
mundo dos eleitos, a audácia de querermos ouvir a voz de Deus em particular,
enquanto ela soa no mundo para todos ouvirem. O maior pecado é o da fuga à
vida, às experiências que nos desafiam. Nascemos para viver a vida e
precisamos vivê-la sem apego às coisas do mundo, mas sem rejeição ao mundo, que
é obra de Deus. Esse equilíbrio difícil é o objectivo da nossa
ginástica existencial. Jesus preferiu Zaqueu e Madalena aos doutores do Templo,
não condenou a mulher adúltera nem a enviou aos juízes do Sinédrio,
aconselhando-a apenas a afastar-se da
vida desregrada. Não adianta procurarmos Deus em longas meditações, recusando o
caminho que ele mesmo nos deu para irmos ao seu encontro: o da vida honesta e
cheia de amor e compreensão para com todos os nossos companheiros de existência
terrena. A Terra é a nave celeste que Deus nos deu para alcançarmos as muitas
moradas da Casa do Pai.
/…
José Herculano Pires, Agonia das Religiões, Capítulo
12, – Rito e Palavra, 12º fragmento desta obra
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis
e giz de Alexandre
Cabanel)
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