Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

~~~Párias em Redenção~~~


~~ O JULGAMENTO SOB O AÇODAR* DA CONSCIÊNCIA
(III de III) 

Na mente de Girólamo, em crescente desejo de reparar e diminuir as dores excessivas, surgiu um intercâmbio benéfico, de cuja continuidade resultariam os planos libertadores, para o futuro, de todos os implicados nas sucessivas tragédias. 

Assim, algumas décadas passadas, a duquesa conseguiu dos Espíritos Superiores que Dom Giovanni e Girólamo fossem recolhidos das penosas circunstâncias em que se encontravam, para reiniciarem a caminhada, recuperarem o tempo e a se reaparelharem para a vida. Na mesma dimensão de misericórdia foi o apelo estendido a Assunta e a Carlo, que sofriam noutros recintos a desídia da loucura pessoal decorrente das desregradas existências. 

Considerados os títulos da benigna senhora, os infelizes foram, cada um a sua vez, recolhidos dos tormentos em que se debatiam e levados a esferas de refazimento, pois que enxameiam, também, os pousos de paz e os redutos de reconforto, onde os trânsfugas se retemperam para o amanhã, lares de amor e misericórdia onde vigem as concessões da ventura, multiplicados em nome do Sumo Pai para o exercício da virtude e as experiências do bem, quais escolas de luz e hospitais de recuperação, em que se amparam todos aqueles que, mesmo inveterados criminosos, aspiram à redenção, dispostos ao tributo do recomeço na Terra da sua anterior desventura. 

Recebidos em recintos próprios, considerando as diversas enfermidades de que se faziam portadores, face ao desrespeito das Leis, passaram a tratamento generoso, através dos tempos, enquanto se lhes refaziam os centros do perispírito desgovernado e se medicavam as imensas feridas da alma. 

O sacerdócio da cura exige largo período junto ao leito dos portadores dos profundos males que destroçam os tecidos delicados da estrutura perispiritual. 

Vivendo os pesadelos dos antros em que se encontravam anteriormente, traduziam a loucura que deles se apossara e que deveria ser dirimida à força de muita caridade, para que o reinício na Terra, em nova provação, lhes concedesse o retempero de ânimo, porquanto, se a Justiça da Terra invariavelmente tem a preocupação de punir, sem nunca retribuir ao amor e à rectidão, por considerar que tal é dever, a Justiça Divina objectiva corrigir e amparar, estimulando todos os pródromos da esperança, a fim de que se multiplique e transforme em sementeira de abundante reconforto e paz. 

Só a pouco e pouco Girólamo passou a dormir, recolhido a longa hibernação, na qual se apagariam as impressões gravadas na mente desvairada. 

O duque, igualmente hospitalizado, foi tratado pelo carinho de enfermeiros sábios que buscaram frenar a ardência e a volúpia do ódio sob os pensos do sono refazedor e calmante. 

Assunta, devidamente atendida, começou a experimentar assistência maternal e amiga, a fim de despertar-lhe os sentimentos superiores da feminilidade, em promessas redentoras para o futuro. 

E Carlo, igualmente socorrido, ele que se permitira penetrar na trama daqueles destinos, foi medicado nas lesões danosas que o martirizavam, preparando-se todos, sem o saberem, para novas incursões na carne bendita, onde expungiriam, pelo imperativo do renascimento, os erros, formando a família da fraternidade, que é o primeiro passo para a família do amor. 

Graças ao sublime concurso do amor, através do paulatino transcorrer do tempo, aqueles espíritos rebeldes, à semelhança de milhões de outros tantos, mergulhavam nas dúlcidas águas dos rios do sono, para que fossem diminuídas, a princípio, e apagadas depois, quanto possível, as impressões muito dolorosas causadas pelos períodos longos de perversidade a que se entregaram. 

Enfermeiros abençoados, que fazem da existência o miraculoso recurso do auxílio ao próximo, desdobravam-se nas enfermarias em que se encontravam internados, aplicando-lhes recursos múltiplos de refazimento, atenuando no perispírito os efeitos das calamidades vividas, especialmente em Girólamo, de modo a reajustá-lo para o tentame futuro sem violento comprometimento da matéria de que deveria revestir-se, resgatando, em etapas, os graves compromissos firmados com a ferocidade e o vandalismo. 

Quando lhe permitiam os deveres superiores, a senhora os visitava, oferecendo-se para atendê-los, aplicando-lhes valiosos fluidos de refazimento e meditando à cabeceira do esposo profundamente hibernado – tratamento de grande significação para o estado de desvario a que o mesmo se permitia entregar. 

Naqueles momentos, conquanto a elevação de que era portadora, não adormecia as lágrimas, e pérolas transparentes rolavam, falando das suas dores perante os lances de agonia e sombra por onde deveriam recomeçar aqueles amores. 

Acontece que não há céu para quem tem na retaguarda os seres queridos, perdidos nos dédalos da treva. 

O Reino de Venturas seria um lugar deserto, caso ali não estivessem os anelos do coração, representados por aqueles outros espíritos amados, a quem todos nos entregamos e em cujo concurso sublime defrontamos a alegria de lutar e o estímulo constante para crescer. 

Dir-se-á que a felicidade é uma conquista pessoal e intransferível. Todavia, ninguém suporta vencer os múltiplos estágios da purificação se não colocar o ideal do amor como meta próxima e remota. Próxima, na representação do ser vinculado ao sentimento superior e, remota, na dimensão do Cristo, representando o Excelso Amor. 

Face a essa inatingida meta, aquela veneranda mulher, que alcançara a ventura de ser feliz, descia dos Cimos aos baixios, fazendo recordar o sol jornaleiro visitando as furnas, para ministrar luz e vida, sem contaminar-se com a emanação pestilencial do charco que oscula e depura. 

Vendo-a em atitude de reflexão profunda, perante o leito alvinitente do enfermo amado, em que a inconsciência arrancava, de período a período, estertores patológicos que reflectiam as profundas intoxicações espirituais absorvidas no largo período de quase um século, graças ao ódio corrosivo, emanado e absorvido pela fonte mental dele mesmo, não se poderia negar que a felicidade jamais se expressa em regime de solidão, de individualismo, de personificação única. É hálito de luz que se transfunde, enquanto clarifica e liberta das trevas envolventes. 

Os enfermos, todavia, não obstante o carinho de que eram alvo, não conseguiam facilmente anular todo o passado de choques violentos e conúbios degradantes, a que se fixaram fortemente, com outros seres infelizes dos recintos donde procediam. Assim, mesmo amparados, recebiam, não poucas vezes, a visita mental dos antigos comparsas e, nesses momentos, eram dominados por singulares pesadelos que os atormentavam, fazendo-os reviver, através do intercâmbio dos pensamentos afins, as antigas torturas das furnas… 

/… 
* priberam, dicionário: açodar (i). Adenda desta publicação. 


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO SEGUNDO, 2. O JULGAMENTO SOB O AÇODAR DA CONSCIÊNCIA (III de III), 39º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO. 
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

O Mundo Invisível e a Guerra ~


XX 
Nascimento de um Mundo Novo ~ 

(1 de Dezembro de 1918) 

  A análise que acabamos de fazer nos nossos últimos cinco artigos mostrou-nos como, ao longo de 50 anos, o Espiritismo criou para si um lugar de destaque em todos os domínios da actividade humana. 

  A grande onda que varreu tantos erros e ilusões recolocará muita coisa no seu lugar e a França recuperará o seu papel, a sua missão histórica e a compreensão de seus verdadeiros rumos, isto é, espalhará ideias, verdades e luzes pelo mundo. 

  Os nobres espíritos que zelam por ela e a livraram do perigo aguardam apenas o momento apropriado para utilizar todo o seu poder e então encaminhá-la na rota do seu destino. 

  Como já vimos, já se anuncia enorme reacção espiritualista contra o materialismo e a indiferença do passado e, dentro desse movimento intelectual, o Espiritismo está conclamado a desempenhar um grande papel. 

  Os estudos que ele promove e as convicções que estabelece nunca foram tão oportunas como agora, porque só uma elevada compreensão do mundo, da alma e da vida pode propiciar a serenidade de espírito e a força moral indispensáveis para suportarmos as provações do tempo actual, olhando confiantes para o futuro. 

   Ao iniciar a guerra, a Alemanha e a Áustria não calculavam o abismo de dores que iam produzir e hoje não são apenas os gritos das vítimas que se ouvem, mas também surgem vozes de reprovação de todos os quadrantes do mundo; todas as potências morais se levantaram para acusar e condenar os autores de tantos males. 

    A consciência humana lançou a sua opinião infalível e deseja uma paz baseada na justiça, que garanta a punição dos culpados e impeça a repetição de calamidades semelhantes. 

   Graças ao socorro espiritual, o horizonte se aclara, pouco a pouco e, os acontecimentos tomam direcção favorável à causa do direito. O actual conflito, que poderia ter trazido para a humanidade uma fase de decadência e aviltamento, promete ser um meio de recuperação, desempenhando a França, nessa obra, um importante papel. Ela se destaca aos olhos do mundo pela extensão de seus padecimentos e sacrifícios. 

   Há muito tempo que os seus inimigos lhe haviam preparado a ruína e o esmagamento. Todavia a França está de pé; renascendo sempre, ela segue levando ainda nas dobras de sua bandeira uma grande parte do futuro humano. Resgatada de seus erros e de suas ambições desregradas, ela hoje representa o direito dos fracos e os sagrados direitos do pensamento. 

   Dessa forma todos os povos livres voltam os seus olhos e as suas esperanças para a França e os seus aliados. Se ela fosse vencida, seria o fim da independência de todos, mas com a vitória francesa, o pensamento adquirirá o seu livre curso e se espalhará com intensidade sobre a Terra ensanguentada. 

   Vemos também o nascer de um novo mundo; tudo quanto está reservado para viver e crescer se realiza com sangue e lágrimas, vendo-se surgir as formas ainda vagas e imprecisas de uma humanidade restaurada pela dor, no meio das convulsões de uma terrível guerra. 

   As grandes nações aliadas, no início divididas por interesses económicos e que, sem os actuais acontecimentos nunca se compreenderiam, aglutinaram todos os seus recursos e meios de acção para enfrentar o perigo comum, chamando para seu lado a maior parte dos povos do mundo. 

   Isso determina um entendimento das inteligências e dos pensamentos, uma reunião de caracteres e vontades, plenas de consequências para o futuro do mundo. 

   Os povos dirigem-se para uma solidariedade verdadeira e activa, para uma organização mundial que parece ser a última fase da evolução e do direito. Uma ordem de coisas se estabelece, primeiro uma ordem económica, depois política e, mais tarde, filosófica e moral.

   Em virtude dos rápidos progressos feitos pelo Espiritismo na Inglaterra e na América, há a promessa de que ele se tornará uma doutrina universal, fortalecendo a união de todos num ideal comum. Até a Alemanha, decepcionada e obrigada a renunciar ao seu sonho de dominação brutal, será constrangida a participar do concerto das nações, ocupando apenas o lugar que merecer.

   Aí então a paz e a justiça poderão reinar sobre a Terra. Dia virá em que teremos orgulho de haver vivido numa época que está a preparar tão grandes coisas.

   Louvemos a Deus que sabe extrair a harmonia desse conflito de paixões e de ódios. Lutemos, cada um no limite de suas forças, para preparar melhores tempos para a humanidade. 

/…


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XX Nascimento de um Mundo Novo, 1 de Dezembro de 1918, 35º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)