Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Da sombra do dogma à luz da razão ~


a | providência

   A Providência é a solicitude de Deus para com as suas criaturas. Deus está em todo o lado, vê tudo, preside a tudo, mesmo às mais pequenas coisas: é nisto que consiste a acção providencial.

«Como é que Deus, tão grande, tão poderoso, tão superior a tudo, se pode imiscuir nos pormenores ínfimos, preocupar-se com os mais pequenos actos e os mais pequenos pensamentos de cada indivíduo? É esta a questão que o incrédulo levanta, de onde conclui que, ao admitir a existência de Deus, a sua acção não deve estender-se senão às leis gerais do Universo; que o Universo funciona eternamente em virtude destas leis a que cada criatura está submetida na sua esfera de actividade, sem que seja necessário o concurso incessante da Providência.»

   No estado actual de inferioridade, os homens só dificilmente podem compreender Deus infinito, porque eles próprios são restringidos e limitados; é por isso que o imaginam restringido e limitado como eles; imaginam-no como um ser circunscrito e constroem-lhe uma imagem à sua imagem. Os nossos quadros que o representam com traços humanos não contribuem pouco para manter este erro no espírito das massas, que adoram nele a forma mais do que o pensamento. É para a grande maioria um soberano poderoso num trono inacessível, perdido na imensidão dos céus, e, porque as faculdades e as suas percepções são limitadas, não percebem que Deus possa e se digne intervir directamente nas pequenas coisas.

   Na situação de impotência em que o homem se encontra para perceber a essência da Divindade, só pode ter uma ideia aproximada com a ajuda de comparações necessariamente muito imperfeitas, mas que podem pelo menos mostrar-lhe a possibilidade do que, à primeira impressão, lhe parece impossível.

   Suponhamos um fluido suficientemente subtil para penetrar todos os corpos; este fluido, não sendo inteligente, age mecanicamente através das forças materiais. Mas, se supusermos esse fluido dotado de inteligência, de faculdades perceptivas e sensitivas, ele agirá já não cegamente mas com discernimento, com vontade e liberdade; ele verá, ouvirá e sentirá.

   As propriedades do fluido do perespírito podem dar-nos uma ideia. Ele em si não é inteligente, dado que é matéria, mas é o veículo do pensamento, das sensações e das percepções do Espírito.

   O fluído do perespírito não é o pensamento do Espírito, mas o agente intermediário deste pensamento: como é ele que o transmite, está de certa maneira impregnado dele e, dada a nossa impossibilidade de o isolar, parece fazer um só com o fluido, tal como o som parece fazer um só com o ar, de maneira a podermos, por assim dizer, materializa-lo. Tal como dizemos que o ar se torna sonoro, poderíamos, tomando o efeito pela causa, dizer que o fluido se torna inteligente.

   Quer seja assim ou não o pensamento de Deus, isto é, quer aja directamente ou por intermédio de um fluido para facilidade da nossa inteligência, representemo-lo sob a forma concreta de um fluido inteligente preenchendo o Universo infinito, penetrando todas as partes da Criação: toda a natureza está mergulhada no fluido divino; ora, devido ao princípio de que as partes de um todo são da mesma natureza, possuem as mesmas propriedades que o todo, se nos podemos exprimir assim. Possuindo o pensamento os atributos essenciais da Divindade e estando este fluido em todo o lado, tudo está submetido à sua acção inteligente, à sua providência, à sua solicitude; nem um ser, por muito ínfimo que o julguemos, deixa de estar de algum modo saturado dele. Estamos assim constantemente na presença da Divindade; não podemos esconder do seu olhar nem uma só das nossas acções; o nosso pensamento está em constante contacto com o pensamento dele e é com razão que dizemos que Deus lê no mais recôndito do nosso coração. Estamos nele tal como ele está em nós, segundo o dizer do Cristo.

   Para estender a sua solicitude a todos as criaturas, Deus não tem portanto necessidade de descer o seu olhar do alto da imensidade; as nossas orações, para serem ouvidas por ele, não precisam de atravessar o espaço nem de serem ditas em voz tonitruante porque, constantemente a nosso lado os nossos pensamentos repercutem-se nele. Os nossos pensamentos são como o som de um sino que faz vibrar todas as moléculas do ar ambiente.

   Longe de nós a ideia de materializar a Divindade; a imagem dum fluido universal inteligente não passa evidentemente de uma comparação, mas própria para dar uma ideia mais correcta de Deus que os quadros que o representam sob a figura humana; tem por objectivo fazer entender a possibilidade de Deus estar em todo o lado e ocupar-se de tudo.

   Temos constantemente debaixo dos olhos um exemplo que nos pode dar uma ideia da maneira como a vontade de Deus se pode exercer sobre as partes mais íntimas de todos os seres e, consequentemente, como as impressões mais subtis da nossa alma chegam até ele. Foi retirado duma instrução dada por um Espírito a este respeito.

«O homem é um mundo cujo dirigente é o Espírito e o corpo o princípio dirigido. Neste universo, o corpo representará uma criação em que o Espírito será Deus (percebereis que não se pode tratar aqui mais que de uma analogia e não de uma identidade). Os membros deste corpo, os diferentes órgãos que o compõem, os seus músculos, os seus nervos, as suas articulações são outras tantas individualidades materiais, se assim podemos dizer, localizadas num sítio especial do corpo; apesar de o número das suas partes constituintes, de natureza tão variada e tão diferente, ser considerável, não oferecer no entanto dúvidas a ninguém que não pode produzir movimentos, que uma qualquer impressão não pode dar-se num sítio particular sem que o Espírito tenha disso consciência. Há sensações diversas em vários sítios simultaneamente? O espírito sente-as todas, percebe-as, analisa-as, atribui a cada uma a sua causa e o seu lugar de acção por intermédio do fluido do perespírito.

»Um fenómeno análogo dá-se entre a Criação de Deus. Deus está em todo o lado no corpo; como os elementos da Criação estão em contacto com ele, tal como todas as células do corpo humano estão em contacto imediato com o ser espiritual; não há portanto razão nenhuma para que fenómenos da mesma ordem não se reproduzam da mesma maneira, num e noutro caso.

»Um membro agita-se: o Espírito sente; uma criatura pensa: Deus sabe-o. Todos os membros estão em movimento, os diferentes órgãos são postos em movimento: o Espírito sente cada manifestação, distingue-a e localiza-a. As diferentes criações agitam-se, pensam, agem de forma diversa e Deus sabe tudo o que se passa, atribuindo a cada uma o que lhe é particular.

»Podemos deduzir daqui igualmente a solidariedade da matéria e da inteligência, a solidariedade entre todos os seres de um mundo e, enfim, entre as criações e o criador.»

                                                                                                           Quinemant, Sociedade Espírita de Paris, 1867


   Percebemos o efeito já é muito; do efeito passamos à causa e avaliamos a sua dimensão pela dimensão do efeito; mas a sua essência íntima escapa-nos, tal como a da causa de uma quantidade de fenómenos. Conhecemos os efeitos da electricidade, do calor, da luz, da gravitação; calculamo-los e, no entanto, ignoramos a natureza íntima do princípio que os produz. Será então mais racional negar o princípio divino porque não o compreendemos?

   Nada impede que se admita, para o princípio da inteligência soberana, um centro de acção, um fogo principal irradiante sem parar, inundando o Universo com os seus eflúvios, tal como o Sol com a sua luz. Mas onde fica essa fogueira? É o que ninguém sabe dizer. É provável que não esteja fixado num ponto determinado, como não o está a sua acção, e que percorra constantemente as regiões do espaço sem barreiras. Se simples Espíritos têm o dom da ubiquidade, esta faculdade, em Deus, não deve ter limites. Enchendo Deus o Universo, poder-se-ia ainda admitir como hipótese que esta fogueira não tenha necessidade de se deslocar e que se forme em todos os pontos onde a soberana vontade considere propositado produzi-la; daí podermos dizer que está em todo o lado e em lado nenhum.

   Perante estes problemas insondáveis, a nossa razão deve tornar-se humilde. Deus existe; não podemos duvidar; é infinitamente justo e bom: é a sua essência; a sua solicitude estende-se a tudo: compreendemo-lo; só pode portanto querer o nosso bem e é por isso que devemos ter confiança nele: é isto o essencial. Quanto ao resto, esperemos até sermos dignos de o compreender.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo II | Deus, A natureza divina, A Providência, A visão de Deus – A Providência (de 20 a 30) 17º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

pensamento espírita argentino ~


CAPÍTULO I

Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história ~

Que somos?

Há vinte e quatro séculos (470 a.C.), o imortal Sócrates viu inscrita na fachada do templo de Delfos esta profunda sentença: “Conhece-te a ti mesmo”, que tomou como fundamento da sua filosofia. Transcorreram os séculos sem que a humanidade, absorvida pelos interesses da vida material, se preocupasse com aquela afirmação. Conhecer-se a si mesmo: saber o que somos, de onde viemos e para onde vamos! Eis aí o problema, o formidável problema, que inclui o princípio da verdadeira sabedoria.

As religiões e as diversas filosofias perderam-se em conjecturas, numa metafísica infecunda e cheia de contradições, sem nos dar a chave do problema: o Nosce te ipsum (Conhece-te a ti mesmo) guardava a sua incógnita.

O positivismo materialista, iludido pelas falsas perspectivas de um conhecimento incompleto, acreditou conhecer o homem, estudando-o: com a biologia, no desenvolvimento da célula e no processo biológico, do óvulo fecundado até ao completo desenvolvimento do seu complicado organismo; com a fisiologia e a anatomia, no funcionamento orgânico e estrutura celular; com a histologia, na delicada constituição dos seus tecidos, das suas fibras e neurónios; com a química, na composição íntima dos seus elementos constitutivos e, com a antropologia, nas suas relações de origem e descendência, nas influências hereditárias etnológicas, mesológicas, etc.; e como não pôde agarrar a alma com o bisturi, descobri-la nas suas análises químicas, nem vê-la desprender-se do organismo no momento da morte, passou-lhe atestado de óbito, dando o problema por solucionado, concluindo que não há pensamento sem cérebro, nem percepção sem órgãos materiais, nem alma individual ou sobrevivência anímica, e o conhece-te a ti mesmo ficou prejudicado perante o conceito da ciência materialista.

Mas eis que “os mortos se levantam dos seus túmulos” e, enquanto os seus corpos se decompõem e os elementos constitutivos se desagregam e se infiltram na terra, dando vida às plantas e aos insectos que os circundam e deles adquirem corpo e se nutrem, a entidade psíquica, o eu espiritual que constitui a nossa verdadeira personalidade, vive, sente, pensa e actua num plano de vida superior, rodeado, ou melhor dizendo, revestido de um corpo etéreo, verdadeiro receptáculo das energias sensoriais e psíquicas e o potencial gerador das forças vitais, sensitivas e motoras, vínculo perispiritual, indispensável para a manifestação das nossas faculdades anímicas e espirituais e para a relação entre o espírito e a matéria, segundo se depreende dos factos acumulados pela psicologia experimental, pela metapsíquica e pelo Espiritismo.

Necessitava-se, pois, para que se resolvesse o problema do conhecimento do ser, dos factos e manifestações espíritas, capazes de explicar todo o alcance da sentença socrática.

Sábios de grande renome, mestres em todas as ciências, pensadores profundos, robustas mentalidades que se têm destacado em todos os ramos do saber humano, abraçaram o estudo do Espiritismo e depois de largas e pacientes investigações, de contínuas experiências e de terem acumulado enorme caudal de factos, que formam hoje um mosaico variado das suas manifestações e detalhes como sólido na base do conjunto, capaz de resistir aos embates da crítica mais minuciosa e exigente, provaram, positivamente, que a alma é uma entidade substancial, que pode actuar dentro e fora do organismo e, em circunstâncias determinadas e condições psíquicas especiais, ver sem os olhos e ouvir sem os ouvidos, não por uma hiperestesia do sentido da visão ou da audição, mas por um sentido interior, psíquico, mental; que pode, enfim ter pressentimentos e visões telepáticas verídicas, ver, em estado sonambúlico, através dos corpos opacos e a muitos quilómetros de distância e descrever minuciosamente o que se está a passar, desprender-se parcial ou totalmente do seu corpo material, e perante a destruição deste, manifestar-se no mundo dos vivos, de diferentes modos, valendo-se ou não do organismo de um médium.

As experiências do físico William Crookes, descobridor da matéria radiante, do tálio e inventor dos tubos que levam o seu nome, as do físico não menos célebre Cromwell Varley, inventor do condensador eléctrico; as do naturalista Alfred Russel Wallace, autor da teoria da selecção natural (simultaneamente com Darwin), as do fisiólogo Charles Richet, as do antropólogo-criminalista Cesare Lombroso, as do ilustre físico Oliver Lodge, as do professor Ernesto Bozzano, as dos astrónomos ZöllnerFlammarion, Porro (do Observatório de La Plata), Schiaparelli etc., as dos doutores Otero Acevedo, GibierGustave Geley, dos Osty, Hamilton, Schrenck Notzing, as dos psicólogos da importância de William James, de Weber e Fechner, as de Aksakof e mil outras, realizadas por sábios de fama mundial, sobram em factos tão rigorosamente controlados, que provam por si sós a verdade das afirmações precedentes.

Seria difícil dar aqui uma ideia, ainda que aproximada, da quantidade e variedade dos fenómenos psíquicos supranormais que registaram os anais do Espiritismo. Desde meados do século passado até aos nossos dias, se têm acumulado tantos factos em favor da tese espírita que só a ignorância, o misoneísmo ou a negação sistemática poderão desconhecê-los ou atribuí-los a sofisticações ou fraudes.

Outros sábios, outros homens, ávidos de conhecer o mistério do além-túmulo, enquanto a caravana do mundo se agita no torvelinho de suas paixões e interesses materiais, seguem esquadrinhando serena e silenciosamente as sombras do além e tratam, por todos os meios ao seu alcance, de furar o túnel da morte e chegar ao pleno conhecimento do mundo espiritual. Dos seus trabalhos pacientes, perseverantes, assaz ásperos e um tanto ingratos, há hoje indícios seguros dessa nova vida que se estende além do plano terrestre, a um mundo infinito que nos assedia e do qual até agora temos tido apenas presunções. Vozes amigas, palavras de consolo, lembranças longínquas, lamentos, remorsos, ódios inauditos, carícias, recriminações, almas que sentem e pensam, testemunhos patentes de seres que viveram e vivem ainda acreditando-se ligados à terra, chegam através desse grande túnel, aberto por quase um século de investigação científica, a anunciar-nos a aurora de um glorioso despertar, cheio de agradáveis e fundadas perspectivas, de alentadoras esperanças.

Nunca como na nossa época se sentiu a imperiosa necessidade de descerrar o véu do desconhecido; jamais esta ansiedade da alma foi tão funda e absorvente como neste século, em que os conhecimentos mais positivos se sentem fraquejar na sua própria base perante os grandes e maravilhosos descobrimentos da ciência contemporânea e a observação audaz e penetrante da filosofia. Dir-se-ia que chegaram os tempos da revelação científica das eternas verdades que alentaram a humanidade desde a infância.

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Manuel S. Porteiro (i)Espiritismo Dialéctico, CAPÍTULO I Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história, – Que somos? 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Cada Mañana, óleo sobre tela (1968) de Josefina Robirosa | MUSEO DE LA SOLIDARIDAD SALVADOR ALLENDE (i))

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

o sentido da vida ~


Imortalidade Pessoal ~

No seu avanço para a frente, o Espiritismo condena a volta ao realismo medieval, as explicações empíricas dos modernos filósofos, da era científica, mostrando-lhes a incoerência da sua posição intelectual, e indica ao pensamento filosófico actual a única recta segura para a solução da incógnita humana. Essa recta é a da investigação dos fenómenos anímicos e espíritas, com o livre espírito científico, despojado de todos os obstáculos de preconceitos, que hoje embaraçam e perturbam os que tentam aventurar-se nesse terreno. Frederic MyersWilliam CrookesCharles Richet e todos aqueles que prosseguiram a obra desses pioneiros, até Oliver Lodge, e presentemente o trabalho obscuro mas sereno e fecundo, das sociedades de pesquisas psíquicas da Europa e da América, das instituições metapsíquicas e das mais recentes sociedades de parapsicologia, estabeleceram suficientemente as linhas dessa tarefa gigantesca de aclaramento do passado, do presente e do futuro do homem terreno.

De nada valem e nada significam, para todo aquele que for capaz de um pouco de raciocínio livre, as comuns alegações dos nossos cientistas e filósofos, com referência às dificuldades de trabalho. Essas alegações podem ser divididas em três grupos distintos, fora dos quais dificilmente poderíamos colocar uma só das desculpas apresentadas:

a) a natureza vaga e imprecisa dos fenómenos, que não se prestam a verificações concretas de laboratório, nem se subordinam às condições específicas que permitam a sua produção sistemática;

b) a dificuldade de aplicação dos métodos científicos ao elemento mediúnico, geralmente empolgado por concepções religiosas, e aos círculos místicos em que eles actuam;

c) a inexistência dos fenómenos, que decorrem de simples actos de prestidigitação, de ilusionismo e de esperteza, de acordo com as indicações das numerosas fraudes já descobertas e denunciadas.

A primeira dessas alegações não tem sentido algum, do ponto de vista científico, embora a encontremos quase sempre associada à segunda, na maioria das justificativas dos homens de ciência, pelo seu desinteresse com referência ao assunto. No livro de Eva Curie sobre a vida de sua ilustre mãe, madame Curie, encontramos a alegação de que o famoso casal descobridor do polonium e do radium se teria desinteressado das pesquisas psíquicas, em virtude unicamente daquelas razões.

É interessante notar que cientistas habituados a todas as subtilezas das mais avançadas teorias científicas, empenhados em pesquisas e soluções que vão dos problemas esquivos da física nuclear até às fórmulas matemáticas, mas nem por isso menos complexas, da teoria da relatividade, aleguem subtilezas e dificuldades para fugir ao terreno das pesquisas metapsíquicas e espíritas. Mais interessante ainda é verificar-se a insistência daqueles que podemos classificar, em geral, como negativistas, sejam homens de ciência, filósofos, intelectuais ou homens comuns, no afã de procurar, sempre e a todo custo, qualquer outra explicação para os fenómenos, que não a espírita. Há uma verdadeira fobia, da parte dessas pessoas, pelo Espiritismo.

Carlos Imbassahy, no final do seu valioso livro Ciência Metapsíquica, em que analisa a conferência de Richet, de despedida da Academia, pronunciada na Faculdade de Medicina de Paris, a 24 de Junho de 1925, traça um rápido estudo dos motivos dessa fobia.

Diz na sua última consideração, o sr. Imbassahy:

“Não iremos buscar no subconsciente os fenómenos espiríticos, mas, pelo contrário, a aversão que eles causam. Nela é que se encontrará a razão pela qual a hipótese dos espíritos é tão violentamente afastada. Os que a afastam, nem sempre têm consciência do motivo pelo qual o fazem.”

Parece-nos a mais justa tese proposta por Imbassahy. Os meandros do subconsciente, que tudo explicam para certas pessoas, e que nunca lhe pareceram mais difícil de devassar do que o “mistério” dos fenómenos objectivos do Espiritismo, encerra os motivos múltiplos, as causas alérgicas desse desinteresse “científico” pela hipótese espírita. Um trabalho mais aprofundado, nesse terreno, mostrará mais hoje, mais amanhã, qual a verdadeira posição dos homens que acham impossível tratar-se cientificamente matéria já tratada dessa mesma maneira por homens como Crawford, Hyslop, Osty, Geley, Myers, Aksakof e tantos outros nomes, que seria fastidioso enumerá-los.

No seu livro Raymond, sir Oliver Lodge, um dos nomes de maior evidência na física moderna, declara taxativamente:

“Estou convencido da sobrevivência da personalidade depois da morte, como o estou da minha existência na Terra. Poderão alegar que essa convicção não se baseia na experiência dos meus sentidos. Responderei que sim. Um cientista especializado em física não está sempre limitado pelas impressões sensoriais directas; lida com uma multidão de coisas e conceitos para os quais os seus sentidos são como inexistentes. A teoria dinâmica do calor, por exemplo, e a dos gases; as teorias da electricidade, do magnetismo, das afinidades químicas, da coesão e até o conceito do éter, nos levam a regiões onde a vista, o ouvido, o olfacto e o tacto são impotentes para qualquer testemunho directo. Em tais regiões tudo tem de ser interpretado em termos do insensível, do não-substancial, do imaginário. Não obstante, essas regiões de conhecimento tornam-se-nos tão claras e vivas como as coisas materiais. Fenómenos comuníssimos requerem interpretações baseadas nas ideias mais subtis – a própria solidez aparente da matéria pede explanação – e as entidades não materiais com que os físicos jogam, gradualmente revelam tanta realidade como tudo quanto eles conhecem sensorialmente. Como lord Kalvin costumava dizer, “nós, de facto, sabemos mais a respeito da electricidade do que da matéria.”

A essas afirmativas de Lodge, podemos juntar o testemunho científico e poderoso de Richet, com o seu Tratado de Metapsíquica, o de William Crookes, nos Factos Espíritas, e o de Imoda, nas suas Fotografias de Fantasmas, para mostrar que a existência dos espíritos e a sua comunicabilidade se revestem, muitas vezes, de carácter mais decisivamente material do que a de muitos dos próprios elementos comummente tratados pela ciência. E isto, para ficarmos apenas nesses, entre as centenas de testemunhos da mesma natureza e do mesmo valor.

Esses testemunhos revelam ainda a insustentabilidade das alegações de que os fenómenos espíritas não se prestam a verificações concretas de laboratório. Se os fantasmas foram apalpados por Crookes e Richet, fotografados por Imoda e por aqueles dois cientistas, e por muitos outros e continuam a ser fotografados, e se o próprio ectoplasma, extraído do médium, foi submetido à análise química, é evidente que tais alegações não passam de escusas sem fundamento.

Quanto às condições, também não procedem as desculpas. Um pouco mais de interesse e de persistência no terreno das pesquisas dariam aos interessados, por certo, as linhas seguras da produção do fenómeno. Basta dizer que, apesar desse desinteresse, já sabemos hoje que certas coisas são necessárias para a produção de certos fenómenos. Alegar que, apesar disso, muitas vezes os fenómenos não se realizam, é procurar outra desculpa. Se os fenómenos não se realizam, alguns dos elementos necessários devem estar em falta. O experimentador consciencioso e paciente, e por isso mesmo cientista, ao invés de se afastar do terreno por supor a existência de tal dificuldade, procuraria descobrir as razões da falha. Pois é evidente que até mesmo nas reacções químicas mais comuns não podemos desprezar os elementos indicados, e que a simples deterioração de um desses elementos poderia impedir a produção do fenómeno.

No tocante à alegação de que o misticismo do médium ou dos componentes do grupo a que ele pertence impede a aplicação dos métodos científicos, é também absolutamente desprovida de razão. Os factos já relatados, os trabalhos realizados por grandes cientistas, demonstram o contrário. E seria mais ou menos como afirmar que o espírito místico do povo impediria a aplicação de métodos científicos no estudo de casos religiosos, das manifestações de histeria, das chamadas auras milagrosas e dos fenómenos de estigmatização. A verdade é bem outra.

Muitos médiuns não possuem esse espírito místico e religioso. O doutor Luiz Parigot de Sousa, médico paranaense, um dos maiores médiuns de efeitos físicos e de voz-directa já conhecidos no Brasil, tinha dúvidas a respeito da existência de Deus e manifestava má vontade pelas manifestações religiosas, segundo o testemunho dos jornalistas Odilon Negrão, Wandyck Freitas e outros, que com ele privaram. Não obstante, foi esse médium quem, através de suas poderosas faculdades, convenceu o doutor Osório César, anatomo-patologista do hospital de Juquery, em São Paulo, de que o seu trabalho, Misticismo e loucura, contra o Espiritismo, estava errado nas premissas e nas conclusões. Outro médium, ainda jovem, residente em São Paulo, José Correa das Neves, conhecido por Zezinho, possuidor de faculdades semelhantes, não tem podido ser suficientemente estudado em virtude da sua falta de firmeza e de orientação no terreno religioso. Fosse ele um dos místicos a que se referem os inimigos do Espiritismo, e talvez se submetesse mais facilmente, sem tanta relutância, a experiências sistemáticas. Há outros que, muito religiosos, nem por isso se esquivam a trabalhos científicos. É evidente também que nenhum verdadeiro cientista alegará como motivo de impossibilidade para a realização de estudos o facto de alguns médiuns se mostrarem arredios e esquivos. O papel da ciência é justamente o de superar todas as dificuldades opostas pela natureza às suas investigações.

A terceira série de alegações procede de poucos cientistas e de muitos clérigos. Dizer que os fenómenos não existem, que não passam de fraudes e mistificações, é simplesmente querer tapar o sol com peneira. Os fenómenos não somente existem – e são facilmente constatáveis por milhares de pessoas, em todo o mundo –, como constam de trabalhos científicos de fôlego, irrefutáveis com uma simples negativa.

Mas há ainda uma quarta ordem de alegações contra o Espiritismo. Essa, parte exclusivamente do clero, seja de protestantes ou de católicos, e atribui a existência dos fenómenos à intervenção do demónio. É tão pueril essa atitude, que não vemos necessidade alguma de refutá-la. Entretanto, como Kardec, podemos lembrar que também aos ensinamentos e aos milagres de Jesus, os clérigos da época respondiam com a mesma acusação. Veja-se, por exemplo, a admirável descrição evangélica da cura de um jovem cego junto ao tanque de Siloé (João, IX: 1-34) e o que disseram os sacerdotes judeus a respeito.

Devemos, entretanto, assinalar nesse terreno o facto auspicioso de que alguns sacerdotes já começam a compreender a inconveniência de tal acusação. Ainda agora nos chega de Inglaterra a notícia de que a Igreja Anglicana, a velha igreja oficial do império, acaba de publicar um relatório, elaborado por vários sacerdotes, que confirma a existência das comunicações espíritas, sem atribuí-las ao demónio. O conhecido pastor protestante, rev. Otoniel Motta, publicou recentemente um opúsculo intitulado Temas espirituais, em que descreve as suas incursões pelo mundo dos fenómenos espíritas, confirmando a existência da comunicação de espíritos, e não de simples artimanhas do Diabo. E o ex-padre católico, Huberto Rohden, figura que foi do mais alto destaque do clero brasileiro, hoje afastado da igreja e “refugiado” em Washington, onde lecciona numa grande Universidade, acaba de publicar algumas notas biográficas, nessa capital, na revista protestante Unitas, números de Julho e Agosto de 1950, relatando as suas pesquisas psíquicas, sob a orientação do padre jesuíta Aloísio Gatterrer, na Áustria, para chegar à mesma conclusão de que não se trata simplesmente de artimanhas do Diabo.

Assim, como vemos, a sobrevivência individual, a imortalidade pessoal, em contradição à tese reaccionária do panteísmo-realista, a que nos referimos no capítulo anterior, firma-se através de todas as evidências. É ela confirmada pelo cientista insuspeito e liberto de injunções dogmáticas ou de fobias subconscientes, reconhecida pelos clérigos de pensamento mais arejado, constatada por todos os que lidam com sessões práticas de Espiritismo, reafirmada gloriosamente nas obras de estudos metapsíquicos e espíritas. Só mesmo os cegos que não querem ver – e são, como se sabe, os piores cegos – teimam na expectativa, já agora sem razão, de um desmentido da ciência oficial a essa grande esperança da humanidade.

Entretanto, como dissemos acima, se querem os cientistas considerar inócua, suspeita, cientificamente inaceitável, toda a obra de investigação realizada até agora, só lhes resta um caminho honesto: o da realização de investigações sistemáticas, insistentes e profundas, nesse terreno. Que se armem as academias do espírito necessário a essa grande tarefa, mostrando, de uma vez por todas, que, se dizem não acreditar, também podem provar que não temem os fantasmas.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Imortalidade Pessoal, 9º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)