Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 30 de julho de 2018

~ em torno do mestre


Marta e Maria ~

Marta e Maria eram irmãs de Lázaro, a quem Jesus ressuscitara. Residiam em Betânia (i), a aldeia onde o Senhor, de vez em quando, se refugiava em busca de descanso.

Ambas eram boas e tementes a Deus; entretanto, havia entre elas certo traço particular de carácter que as distinguia. O Mestre excelso apreciou devidamente esse facto, legando-nos, nessa apreciação, um elevado ensinamento, conforme o que se verifica na seguinte passagem:

"Quando iam de caminho, entrou Jesus em uma aldeia; e uma mulher chamada Marta o hospedou. Esta tinha uma irmã por nome Maria, a qual, sentada aos pés do Senhor, lhe ouvia o ensino. Marta, porém, andava preocupada com muito serviço e absorvida nas contínuas lides domésticas; e, aproximando-se do divino hóspede, lhe disse: Senhor, a ti não se te dá que minha irmã me deixe só a servir? Mas, respondeu-lhe o Senhor: Marta, Marta, estás ansiosa e te ocupas com muitas coisas; entretanto, poucas são necessárias, ou antes uma só; pois Maria escolheu a boa parte que lhe não será tirada."

Marta era sensata, laboriosa e ponderada; agia sempre com método e cálculo, de maneira que em todos os seus actos se podia descobrir o predomínio de uma razão amadurecida.

Maria tinha um temperamento apaixonado; descuidada, talvez, daquilo que o mundo classifica de coisas práticas, vivia num ambiente algo místico e de puro idealismo.

Em Marta, se a razão de todo não predominava, tinha acentuada influência na sua conduta. Em Maria, o coração quase que reinava discricionariamente. Marta oferece-nos o tipo da mulher exemplar, impecável, verdadeira encarnação do bom senso, Maria é um astro que resplende no além e só de longe pode ser contemplado.

Marta, recebendo Jesus, teria pensado em cercá-lo do máximo conforto no seu modesto lar. Maria, defrontando o Mestre amado, esquecia-se de tudo, embalada ao som mágico da palavra da vida. A existência terrena com os seus cuidados e tribulações, o lar, o mundo mesmo se fundiam no fogo sagrado do seu ardente entusiasmo. A palavra do Senhor exercia na sua mente verdadeira fascinação: ela sorvia o divino verbo como a planta ressequida se embebe do orvalho matutino. Jesus representava para Maria o alfa e o ómega.

E, afinal, como não ser assim, se foi sob a influência incoercível daquele Verbo que Maria ressurgiu para a vida imortal? Como não ser assim, se foi daqueles lábios que Maria ouviu a voz maravilhosa que, lhe penetrando a consciência e o coração, a transformou radicalmente? Como não ser assim, se foi ao influxo maravilhoso daquelas mesmas palavras que o lírio de Magdala se transplantou dos pântanos da terra para os jardins siderais onde vicejam flores cujo mimo, frescor e perfume permanecem para sempre!

Resumindo, definiremos com acerto as duas irmãs, nas palavras de Victor HugoMarta está onde termina a terra; Maria, onde começa o céu.

O mundo vê no idealismo de Maria uma espécie de desequilíbrio; e no idealista, um insano. O critério de Jesus, contrastando com o dos homens, classifica esse estado de alma como sendo a boa parte que será sempre mantida. Poucas coisas são necessárias, ou antes uma só — afirma o Profeta da verdade. Realmente, que justifica, e que espécie de benefício proporciona ao homem as mil preocupações que o absorvem? Nada justifica, e nenhum bem lhe outorga; é, antes, a causa das suas tribulações, desenganos e angústias.

As necessidades reais da vida são poucas, enquanto que as fictícias, puros caprichos forjados pelas paixões desenfreadas e pelos vícios, são infinitas. Rigorosamente falando, como estatui o soberano Mestre, uma só necessidade realmente existe: o conhecimento de nós próprios, de nossa origem e de nossos destinos. Em tal importa a magna questão da vida; para no-la revelar, enviou Deus o seu Cristo ao mundo. Desse conhecimento depende tudo. De nada vale ao homem alcançar largos cabedais representados na riqueza ou mesmo nos bens intelectuais acumulados pelo estudo, se ele ignora aquele assunto. Ser pobre ou ser rico, errar ou acertar em todas as matérias, sabê-las ou não, são coisas de importância relativa: o que importa é que o homem se inteire em "primeiro lugar do reino de Deus e de sua justiça, por isso que tudo o mais lhe será dado por acréscimo".

A posse da verdade acima é que valoriza, de facto, tudo quanto o homem venha a possuir. Sem aquele requisito, as nossas conquistas serão vãs e estéreis. Uma inteligência de escol, verdadeiro repositório de erudição, desacompanhados da luz que aclara os horizontes da vida, não passam de fogo de artifício que entretêm a vista por alguns momentos.

O mesmo progresso que se verifica na vida complicada, artificial e enervante dos grandes centros, é pura ficção, pois o verdadeiro progresso é aquele de cujo surto advém tranquilidade, segurança e bem estar para a sociedade. Exactamente o contrário, no entanto, é o que se observa: vida febril, excitada, inquieta, áspera, complexa e confusa, originando indivíduos impacientes, neurasténicos e nevropatas; criando, de outra sorte, terreno propício à eclosão de todas as formas do vício e de todas as modalidades do crime.

Será isso progresso ou insânia?

Aprendamos com Maria a escolha da boa parte que não nos será tirada, isto é, daquela parte que transportaremos connosco além do túmulo. Sonho? Ilusão? Não importa; há sonhos que se convertem em realidade e há realidades que se transformam em sonhos e mesmo em pesadelos!


Ecce Homo (*)

Que melhor apresentação nos é dado fazer de Jesus senão aquela que ele próprio revelou? Consideremos, pois, a sua auto-apresentação:

"João Baptista enviou dois dos seus discípulos ao Senhor para perguntar: És tu aquele que há de vir, ou havemos de esperar outro? Quando estes homens chegaram a Jesus, disseram:

João Baptista (i) enviou-nos para indagar de ti se és o Cristo esperado? Na mesma ocasião Jesus curou a muitos de moléstias, de flagelos e de espíritos malignos; e deu vista a muitos cegos. Então lhes respondeu: Ide contar a João o que vistes e ouvistes: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, aos pobres anuncia-se-lhes o Evangelho; bem-aventurado é aquele que em mim não encontrar motivo de tropeço."

Tal é o Cristo: o amigo e defensor dos humildes e dos oprimidos sofredores. O objecto de sua paixão é o pecador. A individualidade humana representa para ele um valor infinito. Deus é pai dos pecadores. Quanto mais abatido e vexado pela dor física ou moral, mais interesse o homem lhe desperta. Haja vista estes dois exemplos: o leproso e a mulher adúltera.

Os leprosos, no tempo em que Jesus passou pela Terra, eram corridos a pedradas das cidades e aldeias. A lei de Moisés os condenava à lapidação (i), se tentassem penetrar nos povoados. Sobre a crueldade dessa lei que visava a evitar a propagação da lepra, havia ainda a superstição com carácter religioso, segundo a qual os leprosos eram réprobos a quem Deus punia com o terrível mal.

E que fez Jesus com relação àqueles infelizes? Curou-os. As chagas humanas não lhe causavam asco nem pavor, mas comiseração e piedade. E não só as mazelas do corpo lhe inspiravam aqueles sentimentos, como também as da alma. O seu gesto de compaixão pela mísera adúltera apupada pela horda de fariseus, aliado à sublime lição contida no "aquele que se julgar isento de culpa atire a primeira pedra" — é outro atestado eloquente do quanto lhe interessava a sorte dos pecadores, particularmente dos aflitos e oprimidos.

O Cristianismo é a historio do Cristo junto do pecador. Na sua maneira de agir está a sua doutrina. Conta Stanley Jones, missionário que há vinte anos (estamos em 1947) vive na Índia, que naquele país, quando se fala em Cristianismo, o povo se mostra céptico e completamente desinteressado. Quando, porém, se faz referência à vida do Cristo no seio da Humanidade, defendendo os explorados, suavizando as angústias alheias, ensinando ao povo o meio de viver feliz, então os hindus se tornam atenciosos e, ávidos de curiosidades, pedem que se fale mais nesse Jesus amorável e bom.

Esse facto é muito significativo. Quer dizer que as lendas forjadas pelas escolas sectárias em torno do Cristianismo estão comprometendo o surto daquele credo. Cumpre, portanto, deixar de lado as teorias, o escolasticismo, os dogmas, os rituais, e anunciar Jesus-Cristo tal como ele é, qual ele próprio se apresentou aos emissários do Baptista, sarando os enfermos e anunciando aos humildes o Evangelho do amor. E bem-aventurados aqueles que se não escandalizarem nesse Jesus que é o real e verdadeiro Cristo de Deus.

Não estamos nos tempos das teorias, mas na era dos factos. O Cristianismo não é uma teoria: é o mesmo Cristo revelando as leis divinas à Humanidade. Jesus é um facto histórico e, ao mesmo tempo, uma necessidade de todos os momentos, porque ele sintetiza, na moral em si mesmo personificada, a solução de todos os problemas da vida humana: Ecce Homo!

O método para ensinar a verdade religiosa é o mesmo que se emprega para ensinar a verdade científica: dedução e indução. Ora temos que partir dos factos para os seus efeitos, ora destes somos levados a remontar àqueles. Não se pode mais impor crenças: temos que convidar o povo a raciocinar connosco. A fé oficializada está nos últimos estertores; não tem prestígio moral, não tem vigor, jaz de há muito na esterilidade.

O momento reclama uma religião que melhore o mundo. Jesus não é inimigo da sociedade. Conviveu com os homens, tomando parte nas suas reuniões e festividades. Ele é adversário do vício, do crime, da corrupção e da maldade.

Se não tivermos desde já o céu em nós mesmos, não poderemos encontrá-lo depois da morte; Jesus não veio tão pouco livrar-nos desse inferno localizado não se sabe onde: veio tirar o inferno de dentro de nós. Como? Ensinando-nos a conhecer e vencer as paixões egoísticas e animalizadas que nos torturam o espírito e nos aviltam o carácter.

Jesus curava e prevenia as enfermidades. A sua terapêutica era curativa e profilática. "Vai, e não peques mais." A saúde do corpo e do espírito é a lei da Natureza, é o normal. As doenças físicas e morais são as anomalias, o distúrbio na vida. Sarando o leproso, Jesus não fez milagres: restabeleceu no pecador a ordem natural. As curas maravilhosas que operou foram todas no sentido de fazer voltar, à Natureza, o que dela estava divorciado.

O pecado está na vida anormal que o homem leva no mundo, Jesus veio normalizá-la. A sua fé é um canto de louvor à Natureza.

Outro característico peculiar a Jesus é a sua atitude de servidor da Humanidade. Não veio para ser servido, mas para servir: todos os seus actos comprovam esta frase. A sua vida terrena foi toda de dedicação pelo homem. Viveu para outrem. Viver para outrem, como ele viveu, não é uma teoria: é um facto que impressiona profundamente os pensadores. Os seus próprios adversários — Strauss e Renan —, analisando as suas pegadas, acabaram rendendo-se à evidência do seu altruísmo e do seu poder de atracção, reconhecendo em tudo que ele fez o fruto do seu imenso amor pela Humanidade. Ecce Homo!

O eclesiasticismo ou imperialismo na esfera religiosa, está em franca decadência. O tempo não comporta mais imperialismos em qualquer terreno. Jesus quer ser o que ele é, e não o que a clerezia pretende à viva força que ele seja. Jesus se revela por si mesmo àqueles que o procuram. Precisamos sair do Paganismo, buscando com Jesus a saúde, a pureza, o valor, a bondade, a alegria de viver e a imortalidade. Ele é o modelo a ser imitado. É o médico do corpo e da alma. É o pastor deste rebanho. Onde houver lágrimas a enxugar, chagas e dores a lenir, aí está Jesus no desempenho de sua missão. Ele é por excelência o servidor da Humanidade. "Vinde a mim todos vós que vos encontrais aflitos e sobrecarregados e eu vos aliviarei" Ecce Homo!

A frase de Pilatos, que nos serve de epígrafe, tornou-se célebre.

E a quem se referia o pró-consul romano?

A Jesus açoitado, escarnecido, trazendo aos ombros um manto de púrpura como usavam os reis, à cabeça uma coroa de espinhos e na destra uma cana à guisa de ceptro. O Cristo de Deus assim ultrajado e envilecido, sangrando pela fronte e pelo dorso, coberto de pó, suarento e todo em desalinho, foi conduzido ao pretório, e dali apresentado, ao poviléu enfurecido, pelo representante de César na Palestina.

Essa figura trágica, do Filho do Homem, sendo uma realidade histórica, é também eloquente símbolo.

Vemos através daquela matéria flagelada, daquele corpo contundido, chagado e lastimoso, refulgir em todo o seu esplendor um Espírito varonil que se alteia imponente e sublime sobre os troféus da carne abatida e mortificada!

Jesus vilipendiado é a imagem do soldado que volta de encarniçada luta, descalço, magro, olhos macilentos, maltrapilho, mas vitorioso, repassado de glória, sobraçando virentes louros colhidos através de sua bravura, de seu heroísmo mil vezes comprovado no ardor das refregas e dos combates cruentos.

Realmente, em síntese, que nos veio ensinar e que nos exemplificou tão ao vivo o Mestre excelso, senão a luta do espírito com a matéria, o que vale dizer da vida com a morte?

Ciúmes, invejas, rivalidades e ambição; orgulho, pruridos de domínio, de ostentação e de grandeza; luxúria, comodismo, ócios intermináveis, prazeres que só gratificam os sentidos, inclinações que tendem para a materialidade; vícios que deleitam e embriagam, que fascinam, que desfibram e amolentam (cortejos dos ministros da morte) devem ser tragados na vitória.

Imitar a Jesus — é servir a Humanidade; conservar a vida é permanecer no seu ideal; e vencer cada um a si mesmo, à viva força, é penetrar o reino dos céus, que é o reino do Espírito, o reino da imortalidade.

O Ecce Homo de Pilatos tornou-se frase de renome, cumprindo assinalar que é ao mesmo tempo profundamente simbólica, pois, na realidade, só deve ser apresentado como HOMEM aquele que venceu.


"ECCE HOMO"
(VINÍCIUS)

A quem se referia a epígrafe, Pilatos?
A Jesus, a sofrer todos os desacatos,
tendo à cabeça em sangue a coroa de espinhos,
pensado pelo pó que voara dos caminhos,
a espádua chicoteada, a púrpura do manto,
e para completar o escárnio, metro a metro,
pusera-se-lhe à destra humílima de santo
a cana recurvada à guisa então de ceptro.

E vemos-lhe, através do corpo flagelado,
refulgir, nesse dia, o espírito elevado,
no máximo da dor,
no máximo esplendor,
imponente, pairando, na escalada,
sobre os troféus da carne, assim, dilacerada.

Ciúme, inveja, ambição, a sede de extermínio,
o orgulho a ostentação, pruridos de domínio,
os prazeres da vida transitória,
só gratos aos sentidos,
é assim que devem ser vencidos,
e como o fez Jesus, tragados na vitória.

Imitá-lo é dever nosso, ainda que a esmo,
aprender cada um a vencer-se a si mesmo.

O "Ecce Homo" de Pilatos,
além de frase de renome
que nada mais consome,
é um símbolo que os factos
enriqueceu:

pois que só deve ser apresentado,
como HOMEM, quem assim, vilipendiado, torturado,
venceu!

Arnaldo Barbosa

/…
(*) Eis aqui o homem!


"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra."
                                                                                Pedro de Camargo “Vinícius”


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do MestrePrimeira Parte / Seixos e Gravetos; Marta e Maria / Ecce Homo / "ECCE HOMO", 4º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), de Johannes Vermeer)

domingo, 15 de julho de 2018

Hippolyte Léon Denisard Rivail

~~~ período psicológico ~

Se bem que as manifestações espíritas tenham acontecido em todas as épocas, é incontestável que hoje se produzem de maneira excepcional. Interrogados sobre esse facto, os Espíritos foram unânimes na sua resposta: “Os tempos – dizem eles – marcados pela Providência para uma manifestação universal são chegados. Estão encarregados de dissipar as trevas da ignorância e dos preconceitos; é uma era nova que começa e prepara a regeneração da Humanidade.” Esse pensamento encontra-se desenvolvido de maneira notável numa carta que recebemos de um dos nossos assinantes, da qual extraímos a seguinte passagem:

“Cada coisa tem o seu tempo; o período que acaba de escoar-se parece ter sido especialmente destinado pelo Todo-Poderoso ao progresso das ciências matemáticas e físicas e, provavelmente, foi tendo em vista dispor os homens aos conhecimentos exactos que ele se opôs, durante muito tempo, à manifestação dos Espíritos, como se tal manifestação pudesse ser prejudicial ao positivismo, que requer o estudo da Ciência; numa palavra, quis habituar o homem a procurar, nas ciências de observação, a explicação de todos os fenómenos que deviam produzir-se a seus olhos.

“Hoje, o período científico parece ter chegado ao seu termo. Depois dos imensos progressos realizados, não seria impossível que o novo período que deve suceder-lhe fosse consagrado pelo Criador às iniciações de ordem psicológica. Na imutável lei de perfectibilidade que estabeleceu para os seres humanos, o que poderá fazer depois de havê-los iniciado nas leis físicas do movimento e ter-lhes revelado os motores com os quais muda a face do globo? O homem sondou as profundezas mais longínquas do espaço; a marcha dos astros e o movimento geral do Universo já não têm segredos para ele; lê nas camadas geológicas a história da formação do globo; à sua vontade, a luz se transforma em imagens duráveis; domina o raio; com o vapor e a electricidade suprime as distâncias e o pensamento transpõe o espaço com a rapidez do relâmpago. Chegado a esse ponto culminante, do qual a história da Humanidade não oferece nenhum exemplo, qualquer que tenha sido o seu grau de avanço nos séculos recuados, parece-me racional pensar que a ordem psicológica lhe abre um novo caminho na via do progresso. É, pelo menos, o que se poderia deduzir dos factos que se produzem nos nossos dias e se multiplicam por todos os lados. Esperemos, pois, que se aproxime o momento, se é que ainda não chegou, em que o Todo-Poderoso venha iniciar-nos em novas, grandes e sublimes verdades. Cabe-nos compreendê-lo e secundá-lo na obra da regeneração.”

Esta carta é do Sr. Georges, do qual havíamos falado no nosso primeiro número. Não podemos senão felicitá-lo pelos seus progressos na Doutrina; os elevados pontos de vista que desenvolve demonstram que a compreende no seu verdadeiro sentido; para ele a Doutrina não se resume na crença nos Espíritos e nas suas manifestações: é toda uma filosofia. Como ele, admitimos que entramos no período psicológico e achamos perfeitamente racionais os motivos que nos apresenta, sem crer, todavia, que o período científico tenha dito a sua última palavra; ao contrário, acreditamos que ainda nos reserva muitos outros prodígios. Estamos numa época de transição, em que os caracteres dos dois períodos se confundem.

Os conhecimentos que os Antigos possuíam sobre a manifestação dos Espíritos não serviriam de argumento contra a ideia do período psicológico que se prepara. Com efeito, notamos que na Antiguidade esses conhecimentos estavam circunscritos ao estreito círculo dos homens de elite; sobre eles o povo possuía somente ideias falseadas pelos preconceitos e desfiguradas pelo charlatanismo dos sacerdotes, que delas se serviam como meio de dominação. Como já o dissemos alhures, jamais esses conhecimentos se perderam e as manifestações sempre se produziram; mas ficaram como factos isolados, certamente porque o tempo de os compreender não havia ainda chegado. O que se passa hoje tem um carácter bem diverso; as manifestações são gerais; impressionam a sociedade desde a base até ao cume. Os Espíritos não mais ensinam nos recintos fechados e misteriosos de um templo inacessível ao vulgo. Esses factos se passam à luz do dia; falam a todos uma linguagem inteligível por todos. Tudo, pois, anuncia, do ponto de vista moral, uma nova fase para a Humanidade.

/…


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, La Revue Spirite, Período Psicológico, Jornal de Estudos Psicológicos de Abril de 1858, 3º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

quinta-feira, 5 de julho de 2018

O Mundo Invisível e a Guerra ~


XV
O Futuro do Espiritismo ~

(Julho de 1918)

  No desenrolar dos trágicos acontecimentos, o pensamento ansioso procura vencer as brumas e as sombras do futuro, levantando o véu que o esconde dos nossos olhos, perguntando a si mesmo como será o amanhã. Quando tudo parece desmoronar-se à nossa volta, o pensamento sonha com uma reconstituição da ordem política e social. 

  Há 50 anos que trabalhamos, preparando um mundo onde os homens aprendam a amar-se, vivendo na santa comunhão da inteligência com o coração, mas assistimos a uma interminável série de lutas selvagens, aos gigantescos esforços que fazem o espírito de dominação (i) para escravizar os povos, colocando-os debaixo do seu jugo! 

  Quem, então, ensinará as verdadeiras leis aos homens, quem os ensinará a progredir livremente na paz e na harmonia? Neste momento a Doutrina dos Espíritos (i) aparece como um raio consolador, um astro novo, que se ergue sobre um mundo de escombros e ruínas.

  Os incrédulos nos responderão com um sorriso de zombaria e nos perguntarão se o Espiritismo é realmente capaz de desempenhar um papel regenerador. Como argumento, será suficiente para nós medir o caminho que a nossa doutrina percorreu e os progressos que realizou desde a morte de Allan Kardec. Podemos afirmar que não foram inúteis os nossos esforços comuns, porque já se começa, por toda a parte, a conhecer a verdade e a grandeza das ideias que defendemos.

  No decorrer das minhas inúmeras viagens por todos os lugares e da minha presença num número incontável dos mais diversos ambientes, pude acompanhar os notáveis e crescentes progressos da ideia espírita na opinião geral.

  Há três anos, sob o impacto dos actuais acontecimentos, no meio do grande drama que sacode o mundo, muitas almas se entristecem e os seus pensamentos se dirigem para o Além, ávidos de consolações e de esperanças.

  No mesmo grau, se sente, por toda a parte, a insuficiência e a pobreza dos ensinamentos dogmáticos, a sua incapacidade para curar as chagas, consolar a dor e explicar o destino humano.

  Qual deve ser o objectivo principal do Espiritismo? Antes de tudo, provocar, pesquisar e coordenar as provas experimentais sobre a sobrevivência da alma depois da morte.

  Tal pesquisa da verdade deve fazer-se através de uma fiscalização rigorosa e metódica, porque as justas exigências do espírito moderno obrigam-nos a passar todos os factos pelo crivo de um exame imparcial, prevenindo-nos contra os perigos da credulidade e das afirmações precipitadas.

  Charles Richet e outros nos têm acusado de falta de rigor nas nossas pesquisas e experiências, mas o Espiritismo, baseando-se em provas bem estabelecidas, deve preparar e renovar a educação científica, racional e moral do homem por todos os meios. A sua acção tem que exercer-se em todos os sectores: experimental, doutrinário, moral e social, porque existe nele um elemento restaurador (i) do qual podemos esperar tudo.

  Pode afirmar-se que ele será chamado o grande libertador do pensamento que está escravizado há muitos séculos e que lançará no mundo, cada vez mais, sementes de bondade e fraternidade humana que, cedo ou tarde, haverão de frutificar.

  Ficamos impacientes porque a vida é curta e parece que os progressos são lentos, todavia podemos garantir que, em 50 anos, o Espiritismo fez muito mais do que qualquer outro movimento do pensamento humano em igual período de tempo e, em qualquer outra época da História.

  Sim, estamos impacientes e a nossa piedade se comove com o espectáculo da ignorância, da rotina, dos preconceitos, dos sofrimentos e misérias da humanidade, principalmente no momento actual. Queríamos obter resultados imediatos.

  Entretanto já podemos ver que, paulatinamente, tudo muda em torno de nós, tudo evolui sob a pressão dos acontecimentos e o sopro das novas ideias.

  Muitas trevas se desfazem e muitas resistências desaparecem. Os ódios que as nossas crenças despertavam à nossa volta alteram-se, muitas vezes, em simpatia e até em amizade, visto que os homens só se combatem e só se desprezam porque se desconhecem...

  A magnífica obra do Espiritismo será a de aproximar os seres humanos, as nações e as raças, formando os corações e desenvolvendo as consciências; para isso, porém, são necessários o trabalho, a perseverança, o espírito de dedicação e o auto-sacrifício.

  A guerra não nos revelou apenas um perigo exterior que nos acompanhará por muito tempo, mas também nos mostrou as feridas vivas e os males interiores de que padece a nossa infeliz pátria. Contrastando com as heróicas virtudes dos nossos soldados, com a espera estóica e laboriosa do pessoal da retaguarda, rebentaram escândalos políticos que descobriram a falência de certas consciências, o completo esquecimento da lei do dever, bem como da lei de responsabilidades.

  Não vacilamos em atribuir a causa destes males à educação confusa que o Estado dispensa às gerações; um ensino sem ideal, sem grandeza, sem beleza moral e incapaz de retemperar as almas, preparando-as para as duras necessidades da vida, resultando daí que, no nosso mundo coberto de tristeza e afogado em sangue e lágrimas, muitas almas se entregaram às vacilações da dúvida, da paixão e, com muita frequência, ao desespero.

  É certo que sob o jugo das provações sentimos nascer, por toda a parte, um vago desejo de crer, de acreditar, mas ninguém sabe qual a fé que deve seguir.

  As afirmações dogmáticas, baseadas em textos de autenticidade contestável, já não se aceitam mais e só o Espiritismo, pelas provas que fornece da sobrevivência da alma, pela demonstração experimental que oferece no sentido de que a vida é um dever renascente e de que sobre nós recaem as consequências de todos os nossos actos, poderá introduzir no ensino nacional elementos suficientes de renovação.

  Tornou-se evidente, para todo o pensador, que as sociedades humanas nunca atingirão um estado de paz e harmonia por processos políticos (i), mas sim pela reforma interior e individual, isto é, por uma educação moral (i) que aperfeiçoe a colectividade ao aperfeiçoar cada criatura (i) que dela faça parte.

  Não são suficientes as leis, os decretos e as convenções; é necessário um ensino que determine o papel e o lugar do homem no Universo, que garanta a disciplina moral e social, sem a qual não há força, nem estabilidade para uma nação. O mesmo acontece com a liberdade que só é possível obter quando a ela se juntam a prudência e a razão.

  Nos seus elementos fundamentais, a Doutrina dos Espíritos (i) proporciona-nos os recursos necessários para se estabelecer esse ensino, demonstrando que a liberdade tem o seu princípio no livre-arbítrio (i) do homem e que esse livre-arbítrio é sempre proporcional aos nossos méritos e ao nosso grau de evolução. Dessa forma, o Espiritismo lhe dá uma espécie de consagração. As lutas bárbaras que, periodicamente, banham de sangue o nosso atrasado planeta só cessarão quando a doutrina dos espíritos se irradiar pelo mundo.

  Pode, portanto, dizer-se que os divulgadores do Espiritismo são os melhores obreiros da paz universal pela tarefa a que se consagram, da qual só conhecem as dificuldades, sem recolher ainda as suas alegrias e os seus frutos.

  Todavia, quando houver terminado o reinado do ódio na Terra, a história saudará esses bons operários do pensamento e, a liberdade guardará a memória dos que lhe fixaram as suas bases, traçando-lhe o caminho e facilitando-lhe o voo.

/…


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XV O Futuro do Espiritismo, Junho de 1918, 30º fragmento desta obra.
(imagem: Dois soldados um alemão e o outro britânico, no dia de Natal durante a primeira guerra mundial (1914), quando fizeram um cessar-fogo não oficial entre soldados alemães e britânicos e, que, ao longo de uma semana, trocaram saudações, cantaram músicas e até trocaram presentes com os seus inimigos)