Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 9 de agosto de 2011

~~~Párias em Redenção~~~


1. O DUQUE DI BICCI DI M.

   O catafalco ergue-se em meio ao salão nobre do palácio senhorial e os pesados crepes descem pelas paredes de pedras e argamassa, sob tecto de cedros envernizados, sustentados por esguias colunas góticas. Flâmulas em cor de ouro, com seis bolas

vermelhas (palle) – emblema da casa – arrancadas de muitas lanças, em seda fartalhante, descem dos capitéis e guarnecem os fustes das colunas pardas e altaneiras. Na porta de entrada, trabalhado em pedra lavrada, destaca-se o brasão com as armas da família, que descende dos remanescentes M., dominadores até há pouco do grão-ducado da Toscana.

   A noite sombreada de nuvens precursoras de tormenta, que logo desabará, tudo envolve. Ventos fortes vergastam lá fora, ululantes…

   Dos arredores, afluem agricultores humildes e senhores da terra, grandes plantadores de vide e oliveiras; chegam, pressurosos, representantes das autoridades governamentais da Casa de Lorena e as diversas ordens religiosas da cidade fazem-se destacar com as roupas coloridas e os estandartes dispostos ao lado dos tocheiros fumegantes.

   Círios e archotes untados de óleo e breu ardem esfuziantes, dando a coloração amarelo-avermelhada a se projectar por toda a parte, enquanto servos diligentes, em pesados trajes, e senhores enlutados passam em ruidosa movimentação por entre carpideiras profissionais adrede contratadas para lamentarem o extinto, exaltando-lhe as qualidades e posses…

   Fora, no pátio de pedras quadrangulares e largas, em volta do importante chafariz que exibe gracioso cavalo marinho capturado por Vénus levantando-se de concha ampla, os cocheiros arrumam os carros variados e conduzem os animais relinchantes às cavalariças, para os defender da tempestade.

   Sobre a essa, atapetada de vermelho e negro, ergue-se o ataúde de madeira preciosa alcochoada de veludo, no qual repousam os despojos carnais do duque Giovanni di Bicci di M., descendente de Cosme III, em mortalha característica da Ordem de Santo Sepulcro, a que pertencia, e que, desde a paz de Viena, se recolhera a singular abatimento…

   Viúvo há três anos aproximadamente, fechara-se em áspera reclusão no seu palácio situado nos arredores de Siena, entre bosques frondosos e seculares, ao lado dos filhos do casal, cuja primogénita, Grazziella, que contava apenas 7 anos, não conseguia afugentar da sua alma os fantasmas da dor e da saudade.

   Dona Ângela, a senhora duquesa, partira subitamente, vítima de “febres” (*) estranhas que assolaram a região, situada nos alagamentos das planuras, despedaçando o coração do nobre esposo, que ainda não completara quarenta anos de idade. O sofrimento, que desde então o enlutara, fez-se-lhe cruel verdugo, esmagando-o continuamente.

   Com o matrimónio, Dona Ângela trouxera para o Solar di Bicci um sobrinho órfão, de quem cuidava com extremada abnegação desde antes que lhe houvessem chegado os próprios filhos, incluindo-o, logo após; entre os “rebentos” da sua vida, graças à generosa aquiescência do consorte.

   De carácter fraco, o filho adoptivo do casal revelou, desde cedo, tendências para a dissolução, a aventura, os prazeres violentos, como, aliás, eram habituais na época em que se destacavam as ambições guerreiras, as disputas pelo favoritismo artístico e as concessões religiosas no jogo para a dominação dos homens.

   Conquanto a austeridade dos senhores, que se dedicavam à agricultura, proprietários que eram de extensas áreas próximas à cidade, havia na herdade educadores que se encarregavam da preparação dos descendentes da família e especialmente de Girólamo, o qual todavia, passara a residir em Siena logo após a desencarnação da tia, a fim de prosseguir os estudos.

   Alto e vigoroso, Girólamo possuía porte empertigado e atraente, agraciado com os requisitos da beleza física, de que se utilizava indevidamente para explorar moçoilas inexperientes e triunfar socialmente onde se apresentava.

   Como era natural, por impositivo das leis das afinidades, o moço frequentava as reuniões alegres da cidade nas bisca e betolla (**) mal afamadas, nas quais aprimorava as inclinações negativas da personalidade infeliz.

   Não perdoava a arrogância do tio que o expulsara, sob o ardiloso pretexto do programa de estudos, da villa impotente, onde, conforme ambicionava, esperava dominar algum dia.

   Rebelde e irascível, possuía temperamento voluntarioso e apaixonado, insistindo até ao desvario, quando arquitectava possuir uma presa para os aguçados instintos. Insinuante, sabia fazer-se estimar, e, ao consegui-lo, golpeava os que dele se acercavam, com certeira e segura manobra.

   Dessa forma conquistara Assunta, jovem aia da duquesa, que lhe fascinara o apetite e que dele, a seu turno, se enamorara. Frívola e irrequieta, a moça se lhe entregara à desgovernada paixão, constituindo-se segura e fiel informante de quanto ali ocorria, quando ele se demorava em Siena.
/…

(*) Maremma toscana – impaludismo.
(**) Bisca e betolla: tasca e cabaré.


VICTOR HUGO, Espírito "PÁRIAS EM REDENÇÃO" – LIVRO PRIMEIRO 1. O DUQUE DI BICCI DI M. (fragmento 1 de 3) psicografia de DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

1 comentário:

palavra luz disse...

Caríssimo Lugar Azul,

Escutando uma destas preciosidades musicais que, aqui ao lado, convidam o visitante à espiritualidade mais pura, porque mais suavemente livre de conotações explicitas, dei-me ao intenso gosto da leitura desta psicografia de Divaldo Franco.
Aqui, pelo contrário, a contaminação literária (ia a dizer intensamente teatral...) remetem-nos para um mundo crispado de paixões e tendências vitais duma tremenda intensidade.
O já confirmado (requintado!) bom gosto do autor do sítio, acrescentam preciosidade plástica mediante a escolha de uma ilustração carregada do peso solene dos brocados, da palidez palaciana dos rostos compenetrados e do efeito hipnótico do insenso.
Esta publicação confere a este lugar uma dimensão invulgarmente complexa e uma vocação de referências que me encurtam o espaço-tempo para dela tirar toda a sua enorme riqueza de significados.
Só um mínimo condimento: com uma psicografia deste teor e desta categoria, fica demonstrado o potencial de recursos testemunhais da comunicação mediúnica, capaz de tocar variadíssimos aspectos da expressão da história, do drama e de todos cambiantes da complexa alma humana.
Regressemos pois, por agora, a mais um belo trecho musical...
Paz, doçura e fraternidade para todos os visitantes e cumprimentos ao meu distinto amigo lugar@zul.