Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 27 de junho de 2014

O sentido da vida ~


Amar a Deus

Não somente um ilustre pastor protestante nos fez certa vez essa pergunta, como também o reverendo Otoniel Motta a explanou, do ponto de vista protestante, no seu livrinho Temas Espirituais, afirmando que os espíritas não podem amar a Deus, uma vez que não lhe atribuem nenhuma espécie de forma. Tivemos já a oportunidade de lembrar a ambos um outro mandamento bíblico, aliás tão invocado pelos presentes, o de que não devemos adorar imagens. Esse mandamento foi renovado por Jesus, quando disse que devíamos adorar a Deus em espírito e verdade. Analisando ambos, e tendo em vista o que dissemos no capítulo anterior, compreenderemos que o Espiritismo vem renovar também a compreensão desses mandamentos, abrindo a inteligência do homem para a compreensão de Deus em espírito e verdade, única maneira de ele o adorar independentemente de qualquer imagem.

De um ponto de vista material, sabemos que há imagens de madeira, de barro, de metal e de outros elementos. Entretanto, do ponto de vista espiritual, devíamos saber que há também outras espécies de imagens, e muito especialmente as imagens mentais. Por acaso podemos admitir que a adoração de uma imagem mental seja menos condenável do que a das imagens materiais? Podemos admitir que não seja idolatria a adoração de ídolos mentais, forjados pelo homem à sua imagem e semelhança?

Contra a idolatria mental, tão perniciosa quanto a material, se ergue o Espiritismo. Essa idolatria levou Antero de Quental a escrever o célebre soneto em que considera Deus como um ser criado pelo homem, à imagem e semelhança deste. Levou também Marx e Engels a considerarem o fenómeno Deus como a simples projecção do homem a um plano superior, no anseio natural de querer superar as circunstâncias que o dominam e escravizam, na Terra. Graças à idolatria mental, os filósofos materialistas conseguiram desferir profundos golpes na crença de muitos homens acostumados a pensar. E multidões de crentes, por sua vez, no mundo inteiro, desviaram o sentimento de amor que deviam dedicar a Deus, para o simples ídolo mental que a religião lhes oferecia. Com isso, tornaram morta a sua própria fé, tiraram-lhe todas as possibilidades de expansão dinâmica, reduzindo-a a uma expressão inferior de puro fetichismo.

Espiritismo apresenta-nos a seguinte constituição do Universo:

“Deus, espírito e matéria constituem o princípio de tudo o que existe, a trindade universal. Mas, ao elemento material, temos de juntar o fluido universal, que desempenha o papel de intermediário entre o espírito e a matéria...”

Como vemos, o Espiritismo é profundamente deísta, considerando Deus como elemento constitutivo e básico do Universo. O Deus do Espiritismo, entretanto, e por isso mesmo, não pode ser reduzido a uma simples imagem mental de forma humana.

Allan Kardec nos apresenta Deus, no O Livro dos Espíritos, como eterno, imutável, imaterial, único, omnipotente, soberanamente justo e bom. São atributos que as religiões também reconhecem no Criador, e que por si mesmos contradizem a forma humana que lhe dão. Negando-lhe essa forma ou qualquer outra que lhe quisermos dar, o Espiritismo nos coloca em face, tão-somente, dos atributos de Deus. É, pois, pelos seus atributos, que o devemos amar. E quem não percebe que, dessa maneira, o Espiritismo nos desvia da idolatria, para nos encaminhar ao amor de Deus em espírito e verdade?

Do ponto de vista espírita, aliás, compreendemos a lição do amar a Deus sobre todas as coisas, lição que, usando a faculdade de pensar, não poderíamos compreender, do ponto de vista idólatra. Mesmo porque seria um contra-senso colocarmos o nosso amor por uma imagem qualquer, fosse ela mental ou não, acima do amor que devemos aos nossos entes mais queridos. Só um desvio mental, uma anomalia psíquica, nos levaria a tal coisa.

O Espiritismo nos ensina que devemos amar a Deus sobre todas as coisas, segundo a lição dos textos sagrados, e nos mostra, aliás, que é absolutamente indispensável fazermos isso, se quisermos cumprir a nossa tarefa terrena, alcançar o objectivo supremo da nossa encarnação neste planeta expiatório. E isso pelo simples motivo de que sendo Deus eterno, imutável e imaterial, devemos colocar o nosso interesse acima das coisas transitórias, mutáveis e materiais, que nos cercam e nos prendem à existência terrena. Sendo Deus único e omnipotente, nele devemos confiar e esperar, e não em outros seres e outras coisas, por mais belas e fascinantes que elas nos sejam apresentadas.

Mas o que é mais importante para todos nós, pequenos bichos da terra, tão pequenos, como dizia Camões, é que, sendo Deus soberano, justo e bom, é evidentemente a suprema justiça e a suprema bondade, pelo que devemos amar a justiça e a bondade acima de toda a injustiça e de toda a maldade. Amando a Deus sobre todas as coisas, através daquilo que de Deus podemos conhecer, que são os seus atributos, seremos capazes de realmente colocar Deus acima de tudo e de todos.

Assim compreendemos também o ensinamento do Cristo, de que devemos abandonar até mesmo os nossos pais, a nossa mulher e os nossos filhos, se o quisermos seguir. Pois o homem que ama a Deus, em espírito e verdade, sobre todas as coisas, está sempre com a verdade, a justiça, o amor, a bondade, a pureza, contra mesmo os seus próprios interesses da vida material. Coloca o seu amor a Deus acima das vantagens que pode auferir na vida, sempre que prefere a verdade à mentira, por mais fascinantes que sejam as promessas desta. E não terá dúvidas em romper com os próprios pais, a mulher e os filhos, quando estes ficarem com a mentira ou a injustiça, pois ele, fiel ao seu amor a Deus, preferirá sempre a justiça e a verdade.

Neste caso, porém, até o materialista não poderia amar a Deus mais eficientemente do que muitos religiosos, e de maneira mais real?

Já nos dirigiram, certa vez, essa pergunta, a que vamos responder.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Amar a Deus 1º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

sexta-feira, 20 de junho de 2014

| o grande enigma ~


Solidariedade comunhão universal ||

Todos os seres estão ligados uns aos outros e se influenciam reciprocamente: O Universo inteiro está submetido à lei da solidariedade. Os mundos nas profundezas do éter, os astros que, a milhares de quilómetros de distância, entrecruzam os seus raios de prata, conhecem-se, chamam-se e respondem-se. Uma força, que denominamos atracção, os reúne através dos abismos do Espaço.

De igual maneira, na escala da vida, todas as Almas estão unidas por múltiplas relações. A solidariedade que as liga funda-se na identidade de sua natureza, na igualdade dos seus sofrimentos através dos tempos, na similitude dos seus destinos e dos seus fins.

A exemplo dos astros dos céus, todas essas Almas se atraem. A Matéria exerce sobre o Espírito os seus poderes misteriosos. Qual Prometeu sobre a sua rocha, ela o encadeia aos mundos obscuros. A Alma humana sente todas as atracções da vida inferior; ao mesmo tempo percebe os chamados do Alto.

Nessa penosa e laboriosa evolução que arrasta os seres, há um facto consolador sobre o qual é bom insistir: em todos os graus da sua ascensão, a Alma é atraída, auxiliada, socorrida pelas entidades superiores. Todos os Espíritos em marcha são auxiliados pelos seus irmãos mais adiantados e devem auxiliar, por sua vez, todos os que lhes estão abaixo.

Cada individualidade forma um anel da grande cadeia dos seres. A solidariedade que os liga pode muito bem restringir um tanto a liberdade de cada um; mas, se esta liberdade é limitada em extensão, não o é na intensidade.

Por mais limitada que seja a acção do anel, um só dos seus impulsos pode limitar toda a cadeia.

É maravilhosa essa fecundação constante do mundo inferior pelo mundo superior. Daí vêm todas as intuições geniais, as inspirações profundas, as revelações grandiosas. Em todos os tempos, o pensamento elevado irradiou no cérebro humano. Deus, na sua equidade, nunca recusou o seu socorro nem a sua luz a raça alguma, a povo algum. A todos tem enviado guias, missionários, profetas. A verdade é uma e eterna; ela penetra na Humanidade por irradiações sucessivas, à medida que o nosso entendimento se torna mais apto para assimilá-la.

Cada revelação nova é continuação da antiga. É este o carácter do Espiritualismo moderno, que traz um ensino, um conhecimento mais completo do papel do ser humano, uma revelação dos poderes recônditos que ele possui e também das suas relações íntimas com o pensamento superior e divino.

O homem, Espírito encarnado, tinha esquecido o seu verdadeiro papel. Sepultado na matéria, perdia de vista os grandes horizontes do seu destino; desprezava os meios de desenvolver os seus recursos latentes, de se tornar mais feliz, tornando-se melhor. A revelação nova lhe vem lembrar todas essas coisas. Vem despertar as Almas adormecidas, estimular a sua marcha, provocar a sua elevação. Ela ilumina os recônditos obscuros do nosso ser, diz as nossas origens e os nossos fins, explica o passado pelo presente e abre um porvir que temos a liberdade de tornar grande ou miserável, segundo os nossos actos.

A Alma humana só pode realmente progredir na vida colectiva, trabalhando em benefício de todos.

Uma das consequências dessa solidariedade que nos liga é que à vista dos sofrimentos de alguns perturba e altera a serenidade dos outros.

Assim, é preocupação constante dos Espíritos elevados levar às regiões obscuras, às Almas retardadas nos caminhos da paixão e do erro, as irradiações do seu pensamento e os transportes do seu amor. Nenhuma Alma pode perder-se; se todas tiverem sofrido, todas serão salvas. No meio das suas provas dolorosas, a piedade e o afecto das suas irmãs as enlaçam e as arrastam para Deus.

Como compreender, com efeito, que os Espíritos radiosos possam esquecer aqueles que outrora amaram, aqueles que partilharam as suas alegrias, as suas preocupações, e pensam ainda nas sendas terrestres? A queixa dos que sofrem, dos que o destino encadeia ainda nos mundos atrasados, chega até eles e suscita a sua generosa compaixão. Quando um desses apelos atravessa o Espaço, eles deixam as moradas etéreas para derramar os tesouros da sua Caridade nos escuros sulcos dos mundos materiais. Qual vibrações de luz, os transportes do seu amor se propagam na extensão, levando o consolo aos corações entristecidos, vertendo sobre as chagas humanas o bálsamo da Esperança.

Muitas vezes, também, durante o sono, as Almas terrestres, atraídas pelas suas irmãs mais adiantadas, lançam-se com força para as alturas do Espaço, para se impregnarem dos fluidos vivificantes da pátria eterna. Ali, Espíritos amigos as cercam e as exortam, reconfortam e acalmam as suas angústias; em seguida, extinguindo pouco a pouco a luz em torno delas, a fim de que as pungentes lamentações da separação não as acabrunhem, elas as reconduzem às fronteiras dos mundos inferiores. O seu despertar é melancólico, mas agradável, e, embora esquecidas da sua passagem pelas altas regiões, sentem-se elas reconfortadas e retomam mais alegremente os encargos da sua existência neste mundo.

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Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo, III Solidariedade | comunhão universal 2 de 3, 12º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)

sábado, 7 de junho de 2014

Victor Hugo e o invisível ~


Um Discurso Palingenésico para Materialistas e Ateus ~

   Depois de um jantar oferecido por Victor Hugo a amigos seus, foi ele convidado a expor os seus pensamentos. Entre os comensais encontravam-se ateus, agnósticos e materialistas, mas, apesar disto o poeta derramou o perfume poético e filosófico de suas ideias espirituais. Como sempre as suas asas de águia se abriram por cima de todos e de sua boca brotaram os mais excelsos conceitos, que foram reconhecidos pelo ilustre poeta Arsenio Houssaye (i). O autor de Os Miseráveis respondeu assim ao convite:

   "Quem pode dizer-nos que eu não volte a encontrar-me nos séculos futuros? Shakespeare escreveu: 'A vida é um conto de fadas que se lê pela segunda vez'. Poderia ter dito pela milésima vez. Porque não há século pelo qual eu não veja passar a minha sombra.

   "Vós não acreditais nas personalidades moventes, quer dizer, nas reencarnações, com o pretexto de que não recordais nada de vossas existências passadas, mas como as lembranças dos séculos desvanecidos poderiam estar impressas em vós quando não vos recordais nada das mil e uma cenas de vossa vida presente? Desde 1802 hei-de ter tido em mim dez Victor Hugo! Creis vós que me lembro de todas as acções e de todos os seus pensamentos?

   "Quando houver atravessado o túmulo para voltar a encontrar outra luz, todos esses Victor Hugo me serão um pouco estranhos, mas esta será sempre a mesma alma!

   "Sinto em mim toda uma vida nova, toda uma vida futura; sou como a selva que muitas vezes foi derrubada; os jovens rebentos são cada vez mais fortes e vivazes. Eu subo, subo, subo até ao infinito. Tudo é radiante à minha frente, a terra me dá a sua seiva generosa, mas o céu me ilumina com o reflexo dos mundos entrevistos.

   "Dizeis vós que a alma é a expressão das forças corporais: por que então a minha alma é mais luminosa quando as forças corporais irão já me abandonar? O inverno está sobre a minha cabeça, a primavera está na minha alma; aspiro aqui nesta hora às lilases e às rosas como se tivesse vinte anos. À medida que me aproximo da velhice, melhor escuto em meu redor as imortais sinfonias dos mundos que me chamam. É maravilhoso e sensível. É um conto de fadas, mas é uma história.

   ''Faz meio século que escrevo o meu pensamento em prosa e em verso, história e filosofia, drama, novela, legendas, sátira, ode, canção; de tudo tenho tratado, mas sinto que não disse mais que a milionésima parte do que é meu. Quando estiver no túmulo poderei dizer, como tantos outros: ''terminei a minha jornada!" e não "terminei a minha vida". A minha jornada recomeçará no outro dia, de manhã. O túmulo não é um labirinto sem saída; é uma avenida, que se fecha no crepúsculo e volta a abrir-se na aurora.

   "Se eu não perco um minuto é porque amo este mundo como a uma pátria, porque a verdade me atormenta, como atormentou Voltaire, esse deus humano. A minha obra não é mais do que um começo; meu monumento apenas saiu da terra; quisera eu vê-lo subir ainda; subir sempre. A sede de infinito prova o infinito. Que dizeis vós, senhores ateus?

   "Escuta-me. O homem não é mais do que um exemplar de Deus infinitamente pequeno, a edição em 32 do in-fólio gigantesco, mas o mesmo livro. Glória inaudita para o homem! Eu sou o homem, eu, uma partícula invisível, uma gota no oceano, um grão de areia na praia. Contudo, pequeno que sou, sinto-me deus porque também desenvolvo o caos que está em mim. Eu faço livros – quer dizer, sonhos – que são os mundos. Oh! falo sem orgulho porque já não tenho mais vaidade que a formiga que edificou a Babilónia, nem vaidade como o menor dos pássaros, que canta no coro universal.

   "Eu não sou nada. Jaz aqui Victor Hugo, um abismo, um eco que passa, uma nuvem que foi, uma onda que morre na praia. Eu não sou nada, mas deixa-me continuar a minha obra começada; deixa-me subir de século em século em todas as rochas, todos os perigos, todos os amores, todas as paixões, todas as angústias. Quem vos disse que um dia, depois de milhares de ascensões, não haveria eu, como todos os homens de boa vontade, conquistado um posto de ministro no supremo conselho desse adorável tirano que se chama Deus''.

   Como vemos, Victor Hugo falou de personalidades moventes, quer dizer, de seres dinâmicos que, sobrepujando as trevas do sepulcro, avançam para o verdadeiro Ser, para a aquisição da soberana personalidade espiritual. Essas personalidades moventes assinaladas pelo poeta representam a evolução palingenésica do espírito que, como vemos, constitui a base de sua obra poética e filosófica.

   Reconhece-se ele mesmo uma série de Victor Hugo, que vem ascendendo através da história espiritual do Ser. A perene evolução do seu Espírito aproximou-o de Deus até vencer as trevas do nada e da morte. Esta catarse não foi experimentada por Jean-Paul Sartre e o existencialismo ateu que ele encabeça, pois só o Espírito como entidade palingenésica poderá dar ao homem moderno o verdadeiro existencialismo: a existência baseada nas vidas sucessivas da alma.

   Frente ao nada, Victor Hugo proclamou a vida eterna; frente ao túmulo, aceitou a revelação mediúnica dos Espíritos, cuja valorização filosófica e religiosa se encontra na obra ''O Livro dos Espíritos", de Allan Kardec.

   De facto, o poeta das grandes iluminações espirituais era espírita porque não pôde ser um espiritualista sem bases reais nem mediúnicas. Foi espírita porque comprovou que a morte não aniquila o homem, cujo espírito imortal e divino é quem rege os processos do mundo material. Sentiu a presença dos mortos como uma protecção e inspiração que eleva e transforma a condição humana. Rebateu o mundo estático e fixo para aceitar a filosofia da vida universal, concebendo que almas e mundos se enlaçam dialécticamente à causa da lei da reencarnação a que tudo está submetido.

   Victor Hugo foi o gigante da visões cósmicas, o poeta dos salmos e odes que igualaram as mais belas páginas dos profetas bíblicos. Tinha no seu espírito a poesia e o saber da filosofia espírita. Sentiu de forma ampla os postulados da ciência da alma em relação com a ciência do céu. Foi assim que compreendeu que o ser passa de um mundo a outro mediante vidas e mortes sucessivas, para se transformar num colaborador do Plano Divino.

   Do pensamento filosófico e poético de Victor Hugo se deduz que não haverá autêntico espiritualismo sem as bases mediúnicas do Espiritismo. Toda a verdadeira concepção espiritualista deverá assentar-se sobre a concepção revelada pelo génio espiritual e religioso do mundo invisível. Para o poeta, as manifestações mediúnicas não eram o resultado de sombras larvais, de resíduos psíquicos do ser nem de sedutores demónios. As manifestações, para Victor Hugo, eram mensagens dos mundos imateriais destinadas a penetrar na natureza humana para iluminá-la pelo amor e pela beleza.

   No seu país, outro génio poético das vidas sucessivas foi Alfonso de Lamartine, que cantou a concepção da reencarnação da alma. A história espiritual que anima os seus dois livros - A queda de um anjo Jocelyn - está entretecida pelo amor entre dois seres que se buscam através dos tempos. Lamartine, na sua obra Uma viagem ao Oriente, revela as reminiscências palingenésicas de passado distante. Disse assim num dos seus capítulos: "Quando visitei a Judeia, não tinha nas mãos nem a Bíblia nem mapas, nada que me servisse de indicação de lugares, sequer uma pessoa capaz de me dar o nome actual dos lugares nem o antigo dos vales e montanhas. Apesar disso, reconheci imediatamente o Vale de Terebinto e o campo de batalha de Saul. Quando fomos ao convento, os padres me confirmaram a exactidão de minhas previsões. Os meus companheiros ficaram admirados e apenas davam crédito a isso.

   "Em Sephora, designei com o dedo e mencionei pelo nome uma colina coroada por um castelo arruinado, como o provável lugar do nascimento de Maria. No dia seguinte, ao pé de uma montanha árida, reconheci o túmulo dos macabeus, no que disse a verdade sem o saber. Exceptuando os vales do Líbano, não tenho encontrado na Judeia um lugar, uma coisa que não fosse para mim como uma recordação.

   "Temos vivido, pois, duas vezes ou mil? Nossa memória não é quiçá mais que uma imagem adormecida, que o sopro de Deus faz reanimar" (ii). Victor Hugo e Alfonso de Lamartine coincidem nesta concepção palingenésica do ser. Ambos sentiam ''misteriosos estremecimentos'' ao encontrarem-se frente a ruínas antigas; percebiam como a sombra de "outra sombra" se projectava sobre o presente. De facto, estes génios da gaia ciência somente pela ideia da pré-existência das almas puderam alcançar tão alto nível lírico e religioso. Isto nos mostra que a criação poética voltará às suas verdadeiras fontes quando o poeta se reconhecer como um ser que nasce, morre e renasce. Em suma, a poesia palingenésica será o que despertará a alma encarnada de seu sono terreno e que lhe fará recordar as suas vidas anteriores entretecidas de misteriosas longitudes espirituais.

/...
(i) Suzanne Misset-Hopes: Presença de Victor Hugo, Ed Amoure Vie, Bugnolet (Sense,
França). N. do Autor.
(ii) Citado por Petit de Juleville em sua Histoire de la literature française, t. VII. N. do Autor.



Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, UM DISCURSO PALINGENÉSICO PARA MATERIALISTAS E ATEUS, 9º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)