Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O Mundo Invisível e a Guerra ~

XI 
A Hora do Espiritismo

|Junho de 1917|

  A visão do espaço e a contemplação dos céus, nas horas serenas da noite, despertam em nós uma espécie de temor respeitoso.

  A noção das distâncias, a quantidade dos focos luminosos que nele resplandecem, o pensamento de que cada um desses focos é um sol, um sistema planetário e que para além dos limites que a nossa vista pode alcançar existem outras legiões de astros que se movem no meio dos abismos, tudo isso nos domina e esmaga. Compreendemos então quanto é grande a nossa fraqueza e a nossa impotência, face ao vasto Universo.

  Igual ideia, misturada de angústia, sentimos diante dos grandes acontecimentos que se desenrolam à nossa volta e no meio da borrasca, nós nos sentimos quais fragmentos de palha agitados pelos vagalhões do oceano.

  A razão aparente de todas essas desgraças é a Alemanha ambiciosa e feroz; porém, acima do livre-arbítrio das nações, há uma intuição segura que nos revela a existência de algo misterioso e muito poderoso que fará surgir, do caos das paixões desencadeadas, a ordem e a regeneração para a humanidade.

  Os impérios saqueadores planeavam dominar e escravizar o mundo, entretanto, violentas correntes impulsionam todos os povos para a liberdade. Até mesmo entre eles os tronos e as instituições milenares são abalados surdamente.

  O desejo dos nossos inimigos era garantir para sempre a riqueza e a glória dos alemães, mas prepararam para si próprios a vergonha e a ruína. Do meio das trevas que caem sobre nós, entrevê-se a aurora nascente de um novo dia e uma vegetação nova vai surgir e florescer sobre os destroços e os túmulos.

  É chegada a hora do Espiritismo, pois que nos tempos de provações em que vivemos ele apresenta a consolação e a esperança para as almas tristes, para todos os que lamentam os entes desaparecidos e todos aqueles que têm filhos na frente de batalha, os queridos filhos pelos quais tiveram tantos cuidados, solicitude e temor.

  São incontáveis os oprimidos pela dor e que sentem a necessidade de um conforto, de um socorro moral.

  Todos os países que lutam pela liberdade do mundo, pelos direitos dos fracos e pela justiça, viram a sua juventude metralhada e essas perdas cruéis se repercutem em profundas e dolorosas vibrações dentro do coração da nossa raça.

  A humanidade jamais teve tanta necessidade de uma doutrina que a amparasse e consolasse nas horas dolorosas e só o Espiritismo oferece; esses raios de luz a todas as almas colhidas pela tristeza e pelo desespero, estendendo-lhe o bálsamo consolador a todas as chagas.

  A guerra, ao mesmo tempo que é causa incontável de ruínas, poderá tornar-se, pelo excesso de sofrimento que provoca, a causa de um ressurgimento moral. Uma das suas consequências imprevistas é a de tornar mais sensível a comunhão entre o mundo dos vivos e o dos mortos.

  A maior parte dos soldados das linhas de combate sabe do socorro poderoso que vem do Alto e que lhes inspira o estado de ânimo experimentados nos momentos de perigo, a coragem e a confiança inabaláveis que não os abandonam nunca, criando neles uma mentalidade bem diversa da que imperava na retaguarda. A esse respeito recebi muitas cartas comprobatórias.

  Existe um episódio célebre que torna este facto ainda mais concreto: No meio de um tenebroso combate nas trincheiras, o tenente Péricard lançou um grito sublime, dizendo: “De pé, os mortos!”

  Numa sua carta a Maurice Barrès, ele explica o significado destas palavras:

  “O grito não é só meu, mas de todos nós. Quanto mais identificarem o meu papel com o da multidão dos soldados, mais se aproximarão da realidade. Tenho a certeza de que fui apenas um instrumento nas mãos de um poder superior.”

  Encontramos já esse sentimento em muitos dos nossos contemporâneos, começa a compreender-se que existem dois mundos no nosso. Para além daquele que se vê, existe um outro – mais verdadeiro, mais seguro e mais duradouro – onde todos os esplendores da vida imortal se expandem. Dessa forma se comprova, cada vez mais; a necessidade do saber e do crer, apegando-se ao que existe de elevado, estável e permanente no Universo.

  Por toda a parte me falam da formação de grupos espíritas, formados, principalmente, por intelectuais: professores e professoras, oficiais aposentados, etc. A circulação de novos livros, brochuras e revistas tem-se tornado mais intensa, abalando assim os nossos adversários tal estado de coisas.

  A Igreja Católica mobilizou os seus melhores pregadores, mas as conferências do padre Coubé, juntamente com as actividades de Dickson, combinadas previamente, não lograram o resultado desejado.

  A tese sobre a intervenção do demónio e os artifícios de Dickson provocaram o desdém dos seus audientes, despertando-lhes curiosidade pública e atiçando neles o desejo de estudar a nossa doutrina e experimentar-lhe os fenómenos que temos conseguido.

  Dessa forma, os nossos contraditores, na sua malevolência, marcharam contra o que se haviam insurgido; desejando sufocar a verdade, lograram, tão-só, dar-lhe mais liberdade.

  Há mais ou menos 50 anos, o bispo de Barcelona mandou incinerar na praça pública os livros de Alan Kardec com o que só conseguiu com isso, chamar mais à atenção para o Espiritismo. Naquele tempo os espíritas espanhóis eram raros, sendo hoje a Catalunha uma das regiões do mundo, onde os espíritas são mais numerosos.

  Por seu turno, a Inglaterra nos mostra um grande contributo; a iniciativa, a pertinácia e o espírito de continuidade que ela consegue para a guerra, também são encontrados na área científica, na pesquisa metódica das causas e efeitos dos fenómenos mediúnicos. As suas sociedades de estudos psíquicos são as mais bem organizadas e as que conseguem os melhores resultados.

  Os sábios ingleses que se declararam favoráveis ao Espiritismo já formam uma verdadeira plêiade, bastando citar o nome de Oliver Joseph Lodge que, neste momento, brilha com vivo fulgor.

  Após notáveis discursos ele acaba de publicar um livro sobre o seu filho Raymond, morto na Flandres e acerca das manifestações espíritas ocorridas depois da morte do jovem oficial. Essa obra causou profunda sensação em toda a Inglaterra, trazendo para a nossa causa muitas almas que a guerra submeteu a provas cruéis como a perda dos seus entes queridos durante as batalhas.

  Devemos, em grande parte, aos ingleses, a vitória definitiva do espiritualismo no mundo, todavia não podemos ser injustos para com os nossos próprios sábios.

  É verdade que a ciência francesa foi por muito tempo hostil aos trabalhos psíquicos, ocupando-se deles apenas para modificá-los e lhes atribuir causas fantasiosas, todavia apareceram clarividentes, precursores no seu meio, mostrando-lhe o caminho certo. À sua frente encontramos o notável astrónomo Camille Flammarion e depois dele o professor Charles Richet, o director Boirac e o advogado J. Maxwell.

  Não esqueçamos aqueles que já se transferiram para o Além e continuam ajudando-nos: o coronel de Rochas e o doutor Paul Gibier. Com o seu exemplo e influência crescentes das afirmativas provenientes do outro lado do Canal da Mancha, é impossível que os nossos sábios não abandonem a sua indiferença e a sua rotina, entrando francamente no terreno da experimentação leal e sincera. É a voz do povo que a isso os conclama, exigindo a sua parte de verdade e de luz.

  Dos seus contraditores, o Espiritismo nada tem a temer, mas deve temer de si mesmo, isto é, dos exageros que podem advir de uma falsa interpretação dos fenómenos ou da má direcção dada às experiências.

  Ao mesmo tempo em que as nossas crenças se espalhavam e se difundiam, apareceram sérias dificuldades. Com milhares de almas consoladas e reconfortadas, chamadas para o sentimento de uma vida mais elevada e para a noção dos deveres e das responsabilidades, havia casos de obsessão, de exaltação e desordenação mentais e, por vezes, gritos de alarme chegaram até nós em razão desses factos.

  O Espiritismo possui perigos, assim como todas as forças da natureza. Tudo quanto é poderoso para o bem pode tornar-se poderoso para o mal, conforme o uso que dele se faça.

  Certos críticos só vislumbram os maus aspectos do Espiritismo e exageram em combatê-los, não levando em consideração a benéfica influência que emana da sua doutrina e dos seus ensinamentos. Compete aos espíritas esclarecidos desmascarar esse procedimento, fazendo justiça à nossa causa e pondo em relevo o seu nobre e elevado carácter.

  O bem e o mal, tanto no mundo invisível como no nosso, equilibram-se e espalham a sua acção sobre os homens que a provocam ou atraem. O estudo sério do Espiritismo depende de certas qualidades: espírito culto, juízo seguro, autodomínio, perseverança incansável, não nos esqueçamos de que só a pesquisa dos fenómenos e a paixão e preferência pelos factos psíquicos, sem o seu complemento moral, são apenas uma profanação de morte.

  O Espiritismo não é apenas uma ciência, é também uma revelação, uma obra de verdade e de luz, falando simultaneamente à inteligência e ao coração.

  Ele tem, como um edifício, os seus sucessivos andares. Os seus alicerces repousam na rocha sólida dos factos criteriosamente examinados e constatados. Nos seus porões os espíritos inferiores se alegram com os fenómenos vulgares, em ambiente marcado pelas obsessões, alucinações e as tendências para a fraude e as trapaças. Porém, à medida que subimos para os andares superiores, vão surgindo as manifestações intelectuais e as mais puras revelações. As actividades das almas elevadas realizam-se nos lugares mais altos que, como as torres pontiagudas de uma catedral, se lançam para o azul infinito.

  Cada um, no Espiritismo, se coloca no lugar de preferência e do adiantamento do seu espírito. Uns se apegam só aos factos, que são apenas a sua superfície; outros preferem os frutos, isto é, a sua filosofia e a sua moral.

  Principalmente, nesse sentido, é que o Espiritismo está conclamado a representar um papel regenerador, porque a sua doutrina atende a todas as necessidades do pensamento e preenche todas as dúvidas do conhecimento; resolve os enigmas da vida, os problemas do mal e do sofrimento.

  Nestes tempos de provações e desordem, dá-nos confiança no futuro, mostra-nos que o Universo é dirigido por leis harmónicas e que a última palavra, em todas as coisas, cabe sempre ao direito e à justiça. Proporciona também, à nossa existência, uma razão de ser e uma finalidade: conquistar a verdade, a sabedoria e a virtude.

  Ele nos conforta nas nossas desilusões e nos nossos fracassos com a explicação de que, se o bem é quase sempre ignorado neste mundo, pelo menos reina, sem restrições, nas elevadas esferas que temos de alcançar um dia. Afasta os espíritos das preocupações egoístas e materiais e das actividades estéreis, mostrando-nos o real objectivo da nossa vida. Consta, portanto, de uma tarefa essencial para reestruturar o homem interior, sem a qual qualquer reforma social seria inútil ou precária.

  O valor de tais soluções, aparecerá aos nossos olhos no dia em que, depois da guerra, se desejar criar um objectivo nacional, fazendo-o entrar na alma francesa por meio de uma educação popular, pois qualquer nação está ameaçada de morrer moralmente, quando está desprovida de um ideal que a inspire e oriente nas horas difíceis: foi o caso da França e a razão da sua passageira queda.

  Já podemos calcular quanto o sombrio e feroz ideal alemão foi gerador de poder e energia, fundamentando-se em ideias falsas que só podiam acabar na queda e no fracasso.

  No lugar das nobres qualidades morais, que formam a verdadeira civilização, ele desenvolveu na alma alemã o orgulho, a arrogância e a crueldade. A tal doutrina do super-homem que pretende dominar toda a Terra, não obedecendo senão às suas próprias leis, a Alemanha buscou nos seus filósofos materialistas.

  Foi intoxicada pelo seu ensino nas universidades, por meio de uma falsa cultura que, em verdade, era somente a negação do que existe de mais nobre e mais sagrado na humanidade.

  Os graves acontecimentos que se passaram são a pedra de toque que garante avaliar os homens e as coisas, as teorias e os sistemas.

  Ao vento do tufão, o que havia de convencional, de fictício e de mentiroso dissipou-se, sobressaindo, na sua beleza ou na sua fealdade, toda a verdade. Podemos avaliar o alcance das diversas doutrinas, se não pelos seus princípios, pelo menos pelas suas consequências e, o ideal germânico provocou indignação e horror na consciência mundial.

  Quanto a nós, a indiferença e a incredulidade, resultantes do ensino oficial, revelaram-se insuficientes nos dias de provações.

  As doutrinas do orgulho e do terror mostraram a sua nulidade. Crenças abandonadas e desprezadas mostraram-se, ao contrário, plenas de consolação e de esperança, capazes de alentar os corações e reerguer as almas esmagadas pelo peso da dor.

  O Espiritismo leva-nos às grandes tradições da nossa raça, embelezadas ainda pelas conquistas da ciência e pelo trabalho dos séculos.

  Ao domínio através da força bruta, da espoliação e do assassinato, o Espiritismo contrapõe a liberdade e a fraternidade das almas, em paz e harmonia.

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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XI A Hora do Espiritismo / Junho de 1917, 27º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

O sentido da vida ~


Negativas da Ciência

A natureza profundamente deísta do Espiritismo e a sua posição filosófica ao lado do dualismo de Descartes, contra o monismo de Espinoza, no que se refere às relações entre o corpo e o espírito, suscitam contra ele as negativas da ciência académica. E o dizemos, ciência académica tendo em conta que muitos cientistas, do maior renome mundial, constituindo uma plêiade suficiente para a organização da verdadeira academia da ciência espírita, já demonstraram publicamente, até mesmo através de obras científicas como o Tratado de Metapsíquica, de Charles Richet, a evidência dos factos espíritas e a legitimidade de sua interpretação doutrinária.

A tendência moderna da biologia é a de considerar o homem do ponto de vista de Espinoza, a que acima aludimos, ou seja, como um todo de corpo e espírito, em que um não actua sobre o outro, pela simples razão de que são ambos diferentes aspectos de uma só e a mesma coisa. Mas há uma diferença, que devemos lembrar. Espinoza ia muito além na sua concepção das coisas, dos simples limites orgânicos, materiais, a que se prende a biologia moderna.

A ciência académica, porém, prefere o monismo de Espinoza naquele sentido restrito, negando a possibilidade, já tantas vezes comprovada, da existência independente do espírito. Para ela, morto o corpo, estará extinto o espírito. Também a existência de Deus para ela é uma simples hipótese.

Dessa maneira e, uma vez que os atributos de Deus estão ao alcance de todos, o materialista e o descrente podem amar a Deus e, consequentemente, chegar à crença e ao espiritualismo através do amor a Deus por um dos seus atributos, ou seja, do amor à verdade.

A ciência também pode ser definida, neste caso, como um acto de amor a Deus. Pois o que procura a ciência, senão descobrir a verdade? As suas negativas actuais decorrem apenas das suas próprias limitações, da sua temporária impossibilidade de atingir o conhecimento da verdade mais ampla, que ela deseja atingir e atingirá fatalmente no futuro. Para isso, a ciência terá de juntar aos seus dados os conseguidos através da experiência filosófica e da busca religiosa. No dia em que isso se fizer, não mais veremos cientistas materialistas, esforçando-se ao máximo para negar a evidência das manifestações espíritas. Nesse dia, o pensamento humano, que partiu da análise científica, chegará à síntese filosófica, pela reunião de todos os dados do conhecimento, hoje divididos em campos opostos e até mesmo antagónicos.

Mas, assim como um homem que avança pela estrada vai aos poucos descortinando o panorama das regiões que atingirá mais tarde, assim também a humanidade tem vislumbres e visões antecipadas das suas conquistas futuras. O Espiritismo é bem uma dessas visões, perfeitamente delineadas nos seus contornos. Na sua estrutura doutrinária ele já nos oferece a síntese daqueles três ramos do conhecimento humano. Apoiando-se na ciência, que observa e regista os fenómenos considerados supranormais, ele ergue ante os nossos olhos o edifício de uma filosofia que é a interpretação do mundo e da vida em espírito e verdade, culminando, por isso mesmo, naquilo que Kardec chamou de consequências religiosas, isto é, na religião espírita, que não depende de aparatos exteriores porque é todo um processo interior de sentimento e compreensão.

Friedrich Engels, na Dialética da Natureza, depois de fazer várias críticas a Russel Wallace e a William Crookes, não perdoando mesmo a interpretação do apocalipse feita por Isaac Newton, chega à conclusão, por sua conta e risco, de que o Espiritismo é a mais estéril de todas as superstições (aliás, trata-se de um artigo de Engels, adicionado ao manuscrito do livro). Para Engels, os cientistas espíritas pertencem todos à classe dos empíricos ingleses, que só se ocupam com o assunto na decrepitude. Engels, porém, era o defensor de uma nova teoria nascente, a da interpretação materialista do mundo, sendo justo que assim reagisse, diante da teoria que surgia para combater a sua, a da interpretação espiritualista racional, científica e não empírica. Engels defendia a sua posição por amor à verdade, e nesse sentido, embora não crendo em Deus, ele o amava, através do seu atributo “verdade”.

Muitos anos mais tarde, Leonidio Ribeiro e Murillo de Campos, no Brasil, apossaram-se dos argumentos de Engels. Mais tarde ainda, Osório César tentou fazer o mesmo, com o seu livro Misticismo e loucura, que foi forçado a negar. E ainda mais tarde, já agora, nos nossos dias, quando quase cem anos se passaram sobre a Dialéctica de Engelsa ciência tomou novos rumos, aproximando-se cada vez mais das verdades espirituais, agora que entramos no campo aberto da desintegração atómica, provando que a matéria não é mais do que uma condensação de energia, agora que Einstein rasga os horizontes da Física, através da sua nova teoria, da gravitação generalizada e do campo unificado, outro médico brasileiro, o prof. Silva Mello, escreve e publica o seu livro Mistérios e realidades deste e do outro mundo, repetindo os mesmos e encanecidos argumentos de Engels.

É claro que, do nosso ponto de vista, estes doutores não estão incluídos no número dos materialistas que podem amar a Deus, pelo menos através do amor à verdade.
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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Negativas da Ciência, 5º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

| o grande enigma ~

necessidade da ideia de | Deus

Demonstrámos nos capítulos precedentes a necessidade da ideia de Deus. Ela se afirma e se impõe, fora e acima de todos os sistemas, de todas as filosofias, de todas as crenças. É também livre de todo o liame com qualquer religião, a cujo estudo nos entreguemos, na independência absoluta do nosso pensamento e da nossa consciência.

Deus é maior que todas as teorias e todos os sistemas. Eis a razão por que não pode Ele, ser atingido, nem minorado pelos erros e faltas que os homens têm cometido em seu nome.

Deus é soberano a tudo.

O Ser divino escapa a toda a denominação e a qualquer medida, e se lhe chamamos Deus é por falta de um nome maior, assim o disse Victor Hugo.

A questão de Deus é o mais grave de todos os problemas suspenso sobre as nossas cabeças e cuja solução se liga, de maneira estrita, imperiosa, ao problema do ser humano e do seu destino, ao problema da vida individual e da vida social.

O conhecimento da verdade sobre Deus, sobre o mundo e a vida é o que há de mais essencial, de mais necessário, porque é Ele que nos sustenta, nos inspira e nos dirige, mesmo à nossa revelia. E essa verdade não é inacessível, como veremos; é simples e clara; está ao alcance de todos. Basta procurá-la, sem preconceitos, sem reservas, ao lado da consciência e da razão.

Não lembraremos aqui as teorias e os sistemas inúmeros que as religiões e as escolas filosóficas arquitectaram através dos séculos. Pouco nos importam hoje as controvérsias, as cóleras, as agitações vãs do passado.

Para elucidar tal tema, temos agora recursos mais elevados que os do pensamento humano; temos o ensino daqueles que deixaram a Terra, a apreciação das Almas que, tendo franqueado o túmulo, nos fazem ouvir, do fundo do mundo invisível, os seus conselhos, os seus apelos, as suas exortações.

Verdade é que nem todos os Espíritos são igualmente aptos a tratar dessas questões. Acontece com os Espíritos do Além-Túmulo o mesmo que com os homens. Nem todos estão igualmente desenvolvidos; não chegaram todos ao mesmo grau de evolução. Daí as contradições, as diferenças de vistas. Acima, porém, da multidão das Almas obscuras, ignorantes, atrasadas, há Espíritos eminentes, descidos das altas esferas para esclarecer e guiar a Humanidade.

Ora, que dizem esses Espíritos sobre a questão de Deus?

A existência da Potência Suprema é afirmada por todos os Espíritos elevados. Aqueles, dentre nós, que têm estudado o Espiritismo filosófico sabem que todos os grandes Espíritos, todos aqueles cujos ensinamentos têm reconfortado as nossas almas, mitigado as nossas misérias, sustentado os nossos desfalecimentos, são unânimes em afirmar, em repetir, em reconhecer a alta Inteligência que governa os seres e os mundos. Eles dizem que essa Inteligência se revela mais brilhante e mais sublime à medida que se escalam os degraus da vida espiritual.

O mesmo se dá com os escritores e filósofos espíritas, desde Allan Kardec até aos nossos dias. Todos afirmam a existência de uma causa eterna no Universo.

Não há efeito sem causa – disse Allan Kardec – e todo o efeito inteligente tem forçosamente uma causa Inteligente.” Eis o princípio sobre o qual repousa o Espiritismo. Esse princípio, quando o aplicamos às manifestações do Além-Túmulo, demonstra a existência dos Espíritos. Aplicado ao estudo do mundo e das leis universais, demonstra a existência de uma causa inteligente no Universo. Eis por que a existência de Deus constitui um dos pontos essenciais do ensino espírita. Acrescento que é inseparável do resto desse ensino, porque, neste último, tudo se liga, tudo se coordena e se encadeia. Que não nos falem de dogmas! O Espiritismo não os comporta. Ele nada impõe; ensina. Todo o ensino tem os seus princípios. A ideia de Deus é um dos princípios fundamentais do Espiritismo.

Dizem-nos frequentemente: – “Para que nos ocuparmos dessa questão de Deus? A existência de Deus não pode ser provada!” Ou ainda: – “A existência de Deus ou a sua não existência é sem predomínio sobre a vida das massas e da Humanidade. Ocupemo-nos de alguma coisa mais prática; não percamos o nosso tempo em dissertações vãs, em discussões metafísicas.” Pois bem! Em que pese àqueles que mantêm essa linguagem, repetirei que é questão vital por excelência; responderei que o homem não se pode desinteressar dela, porque o homem é um ser. O homem vive e importa-lhe saber qual é a fonte, qual é a causa, qual é a lei da vida. A opinião que tem sobre a causa, sobre a lei do Universo, quer queira quer não, quer saiba ou não, reflecte-se nos seus actos, em toda a sua vida pública ou particular.

Qualquer que seja a ignorância do homem no que respeita às leis superiores, na realidade – e segundo a ideia que forma dessas leis, por mais vaga e confusa que possa ser tal concepção – é em conformidade com essa ideia que a criatura age. Desta opinião – sobre Deus, sobre o mundo e sobre a vida (notareis que esses três assuntos são inseparáveis) –, as sociedades humanas vivem ou morrem! É ela que divide a Humanidade em dois campos.

Por toda a parte vêem-se famílias em desacordo, em desunião intelectual, porque há muitos sistemas acerca de Deuso padre inculca um à mulher; o professor ensina outro ao homem, quando não lhe sugere a ideia do Nada.

Essas polémicas e essas contradições explicam-se, entretanto. Têm a sua razão de ser. Devemos lembrar-nos que nem todas as inteligências chegaram ao mesmo ponto de evolução; que nem todos podem ver e compreender de igual modo e no mesmo sentido. Daí, tantas opiniões e crenças diversas.

A possibilidade que temos de compreender, de julgar e de discernir só se desenvolve lentamente, de séculos em séculos, de existências em existências. O nosso conhecimento e nossa compreensão das coisas se completam e se tornam claros à medida que nos elevamos na escala imensa dos renascimentosTodos sabem que alguém, colocado ao pé da montanha, não pode descortinar o mesmo panorama aberto ao que já chegou ao vértice; mas, prosseguindo a sua ascensão, um chegará a ver as mesmas coisas que o outro. O mesmo acontece com o Espírito na sua ascensão gradual. O Universo não se revela senão pouco a pouco, à medida que a capacidade de lhe compreender as leis se desenvolve e engrandece no indivíduo.

Daí vem o sistema, as escolas filosóficas e religiosas, que correspondem aos diversos graus de adiantamento dos Espíritos que nuns e noutros se fiam e, muitas vezes, aí se insulam.

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Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo, V Necessidade da ideia de Deus, 16º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)