Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

metapsíquica | e depois


~~~ Prólogo ~~~

(A Crise da Morte)

Conforme já tive oportunidade de dizer muitas vezes, desde há alguns anos que me consagro ao exame dos principais apanhados de revelações transcendentais, aplicando-lhes os processos de análise comparada e obtendo resultados tão inesperados quão importantes. As pesquisas que empreendi fazem emergir a prova de que as numerosíssimas informações obtidas mediunicamente, a respeito do meio espiritual, concordam admiravelmente entre si, no que concerne às indicações de natureza geral, que, aliás, são as únicas necessárias para que se conclua a favor da origem das revelações de que se trata, origem que se manifesta estranha aos médiuns, pelos quais tais revelações se obtêm.

Com efeito, os desacordos aparentes, de natureza secundária, que se notam nessas revelações, provêm evidentemente de causas múltiplas, que são fáceis de ser apreendidas e são inteiramente justificáveis. Acrescentarei, a este propósito, que algumas categorias desses supostos desacordos contribuem eficazmente para nos dar uma visão nítida e sintética dos modos pelos quais se desenvolve a existência espiritual, pois que parecem determinados pelas condições psíquicas especiais de cada personalidade de defunto que se comunica.

Creio mesmo ser necessário insistir sobre o facto de que, se persisto em me ocupar com um tema condenado ao ostracismo pela Ciência, é que, graças às minhas laboriosas investigações, adquiri a certeza de que, em futuro não distante, a secção metapsíquica das revelações transcendentais alcançará grande valor científico e, por conseguinte, constituirá o ramo mais importante das disciplinas metapsíquicas. Que importa, pois, seja esse ramo actualmente repudiado pelos metapsiquistas de orientação rigorosamente científica e totalmente desprezado por grande parte dos próprios espíritas, entre os quais eu mesmo me encontrava, não há mais de três anos?

Reconheço que não podia ser de outra maneira, porque é conforme à evolução mental nas pesquisas metapsíquicas; que o investigador comece por se ocupar com as manifestações supranormais de natureza especialmente física, para depois cogitar das manifestações de natureza especialmente inteligente, contendo indicações verificáveis de identificação pessoal dos defuntos. Segue-se que, só quando se haja chegado à certeza científica, com relação à origem espírita da parte mais interessante dos fenómenos metapsíquicos, se compreenderá o grande valor científico, moral, social, das revelações transcendentais estudadas sistematicamente. Elas então se elevarão rapidamente ao lugar de honra, na classificação das manifestações metapsíquicas. A alvorada desse dia ainda não despontou. Mas, isso não impede que um pesquisador insulado possa adiantar-se à sua época, de maneira a formar para si uma opinião precisa a tal respeito, fundando-se nos factos coleccionados. Nestas circunstâncias, esse pesquisador está obrigado, em consciência e para o bem de toda a gente, a ter a coragem da sua opinião, embora os tempos ainda não amadurecidos o exponham a críticas mais ou menos severas. Ora, eu me sinta com essa coragem: mudei de parecer, relativamente ao valor teórico das colecções de revelações transcendentais e, não hesito um só instante em declará-lo.

A isso, aliás, me vejo animado pelo exemplo de alguns pesquisadores eminentes, que não vacilaram em publicar declarações análogas. Eis como a propósito se exprime o professor Oliver Lodge:

Estas revelações são ditas inverificáveis, por não ser possível fazerem-se pesquisas para se verificar o que elas afirmam, como se faz para a verificação das informações concernentes a negócios pessoais, ou acontecimentos mundanos... De todas as formas, sou levado a crer, da mesma maneira que outros pesquisadores cujo número é cada vez maior, que vem próximo o tempo em que se deverá recolher sistematicamente e discutir o material metapsíquico de natureza inverificável, material que se presta a ser examinado e analisado com fundamento na sua consistência intrínseca, que lhe confere um grau notável de probabilidade, da mesma forma que as narrações dos exploradores africanos se prestam a ser analisadas e verificadas, com fundamento nas suas concordâncias...

Lembrarei que, do ponto de vista filosófico, se tem notado que tudo contribui para dar a supor que, em última análise, a prova real da sobrevivência dependerá do estudo e da comparação dessas narrações de exploradores espirituais, mais do que das provas resultantes das informações pessoais fornecidas acerca de acontecimentos do passado, relativamente aos quais — enquanto não se chegar a penetrar fundo na natureza da memória — será sempre possível conjecturar que todo o passado é potencialmente acessível às faculdades supranormais da consciência humana... embora eu não considere racional a hipótese de uma memória impessoal... (Raymond, págs. 347-348)

O professor Hyslop, a propósito da publicação de duas colecções de revelações sobre o Além, ponderou, a seu turno:

Nada há de impossível nas informações que essas mensagens contêm... A maioria das pessoas ridiculariza o conceito de um meio espiritual tal como o que se desenha nas revelações; porém, esses senhores, que gastam o ridículo com tanta leviandade, não se lembram de que, assim fazendo, supõem conhecer toda a verdade a respeito do mundo espiritual... Não me pronuncio nem por um lado, nem pelo outro, mas declaro não ter objecção alguma a opor à existência de um meio espiritual, como o que se nos descreve, ainda que devesse parecer mais absurdo do que o nosso meio terrestre. Não chego a compreender por que se exige que o mundo espiritual seja mais ideal do que o nosso. Os dois mundos são obra do mesmo Autor, quer este se chame Matéria, ou Deus. Ninguém o pode afirmar ou negar a priori. O facto de negar ou de lançar no ridículo as revelações transcendentais equivale a pretender conhecer, de modo certo, o mundo espiritual, o que constitui presunção indigna de um céptico que raciocine...

Em suma, os livros desta espécie são importantes, pois que nos dão uma primeira ideia sobre o mundo espiritual, oferecendo-nos assim oportunidade de comparar os detalhes contidos nas diferentes revelações obtidas... Ora, no nosso caso, comprova-se que as informações, que nos são transmitidas nessas mensagens pelas personalidades que se comunicam, concordam com outras que nos vêm por intermédio de médiuns que não eram religiosos e não tinham a crença e a inteligência deste médium… (American Journal of the S. P. R., 1913, págs. 235-237)

Acrescentarei que há um meio de se verificarem as afirmações concernentes à existência espiritual, com exclusão da prova Indirecta fornecida pela identificação pessoal do Espírito que se comunica. Esse meio consiste em experimentar com um número suficiente de médiuns, para comparar em seguida os resultados, depois de se haverem recolhido as informações necessárias sobre a instrução especial de cada um deles a respeito. Se se chegasse a comprovar que um dos médiuns empregados ignorava absolutamente as teorias espíritas (o que excluiria a hipótese de uma colaboração subconsciente), seria conveniente experimentar com outros médiuns, para se obterem Informações sobre o mesmo assunto; e assim por diante, sem que se estabelecessem relações entre eles. É evidente que, nessas condições, uma concordância de informações fundamentais, repetindo-se com uma centena de indivíduos diferentes, teria valor bastante grande a favor da demonstração da existência real de um mundo espiritual análogo ao que fora revelado. (Ibid., 1914, págs. 462-463.)

Tal a opinião de dois sábios muito distintos, acerca do valor teórico das colecções de revelações transcendentais. Observarei que o método de pesquisa proposto pelo professor Hyslop é, em suma, o que adoptei. Ele, com efeito, propõe se experimente com grande número de médiuns, que não conheçam a doutrina espírita, a fim de se compararem em seguida os resultados. A coisa é teoricamente possível, mas de realização difícil, porque é raro que um só pesquisador chegue a encontrar numerosos médiuns, de maneira a poder levar a efeito uma empresa formidável como esta. O mais prático era, pois, aproveitar o material imenso que se acumulou nestes últimos anos, relativamente às revelações transcendentais, para empreender uma selecção severa de todas as peças, classificando-as, analisando-as, comparando-as, tendo o cuidado de colher informações sobre os conhecimentos especiais de cada médium, no tocante à doutrina espírita. Tal precisamente a tarefa a que me propus ao empreender as minhas pesquisas, às quais já consagrei dois anos de trabalho, chegando a descartar cerca de metade do material reunido. Porém, como notasse que o material classificado e comentado assumia proporções tais que impediriam a sua publicação em volume, julguei oportuno suspender temporariamente as pesquisas, para consagrar algumas monografias de ensaios aos resultados já obtidos. A que se segue é a primeira que me disponho a publicar.

Começo por inserir um número suficiente de revelações transcendentais, referentes às impressões experimentadas, no momento da entrada, no mundo espiritual, pelas personalidades dos mortos que se comunicam. Declaro desde logo que esse grupo de narrações, embora teoricamente interessante e significativo, não é o mais eficaz para a demonstração da tese que sustento.

Ele, com efeito, refere-se aos episódios iniciais da existência extraterrestre, sobre os quais se exercem plenamente as consequências da lei de afinidade, pela qual cada Espírito desencarnado é levado necessariamente a gravitar para o estado espiritual que corresponde ao grau de sua evolução psíquica, alcançado em consequência da passagem pela existência na carne, o que não pode deixar de determinar diferenças sensíveis nas descrições que nos chegam dos mortos, acerca da entrada deles no mundo espiritual. De qualquer maneira, ver-se-á que esses desacordos se dão unicamente nos detalhes secundários, quer sejam pessoais, quer dependam do meio, nunca no que concerne às condições correspondentes, de ordem geral.

Antes de entrar no assunto de que vou tratar, cumpre-me fazer uma declaração, destinada a prevenir uma pergunta que os meus leitores poderiam formular. Refere-se a esta circunstância: todos os factos, que citarei, de defuntos que narram a sua entrada no meio espiritual, são tirados de colecções de revelações transcendentais publicadas na Inglaterra e nos Estados Unidos. Porquê? — perguntar-me-ão os leitores — esse exclusivismo puramente anglo-saxónio?

Responderei que por uma só razão, absolutamente peremptória: não há na França, na Alemanha, na Itália, em Espanha, em Portugal, colecções de revelações transcendentais sob a forma de tratados, ou de narrativas continuadas, orgânicas, divididas em capítulos, ditadas por uma só personalidade mediúnica e confirmadas por provas excelentes de identidade dos defuntos que se comunicaram. Nas poucas colecções que hão aparecido nas nações acima citadas — colecções constituídas de curtas mensagens — obtidas pelo sistema dos interrogatórios dirigidos a uma multidão de Espíritos, não se encontram episódios concernentes à crise da morte, se exceptuarmos o conhecido livro de Allan Kardec: O Céu e o Inferno, em que no qual se podem ler três ou quatro episódios desta espécie. Mas, se bem se encontrem neles algumas concordâncias fundamentais com as narrações dos outros Espíritos que se comunicam, esses episódios são de natureza muito vaga e geral, para poderem ser tomados em consideração, numa obra de análise comparada.

Em tais condições, é claro que, se os povos anglo-saxónicos são os únicos que, até hoje, hão mostrado saber apreciar o grande valor teórico e prático das revelações transcendentais, como são os únicos que a isso se consagraram, empregando métodos racionais, não me restava outra coisa senão tomar o material necessário onde o encontrava. E tanto mais razão havia para assim proceder, propondo-me a escrever toda uma série de monografias relativamente às concordâncias e aos desacordos que os processos de análise comparada fazem ressaltar das colecções de revelações transcendentais, quanto é certo que não podia deixar de começar pelo princípio, isto é, pelo que os mortos têm a dizer acerca da crise da morte.

Passemos agora à exposição dos casos. Citarei, antes de tudo, alguns episódios extraídos de obras dos primeiros pesquisadores, a fim de fazer ressaltar que, desde o começo do movimento espírita, se obtiveram mensagens mediúnicas em que a existência e o meio espirituais são descritos em termos idênticos aos das que se obtêm presentemente, se bem que a mentalidade dos médiuns fosse então dominada pelas concepções tradicionais referentes ao paraíso e ao inferno e, por conseguinte, pouco preparada para receber mensagens de defuntos, afirmando que o meio espiritual é o meio terrestre espiritualizado.

Primeiro Caso

Extraio este facto de uma obra intitulada: Letters and Tracts on Spiritualism, obra que contém os artigos e as monografias publicadas pelo juiz Edmonds, de 1854 a 1874. Sabe-se que Edmonds era um notável médium psicógrafo, falante e vidente. Alguns meses depois da morte acidental do seu confrade, o juiz Peckam a quem ele muito estimava, deu-se o caso de Edmonds escrever uma longa mensagem, em que o seu amigo morto referia as circunstâncias de sua morte. As passagens seguintes são tiradas da mensagem em questão:

Se houvera podido escolher a maneira de desencarnar, certamente não teria preferido a que o destino me impôs. Todavia, presentemente não me queixo do que me aconteceu, dada a natureza maravilhosa da nova existência que se abriu subitamente diante de mim.

No momento da morte, revi, como em panorama, os acontecimentos de toda a minha existência. Todas as cenas, todas as acções que eu praticara passaram perante o meu olhar, como se se houvessem gravado na minha mentalidade, em fórmulas luminosas. Nem um só dos meus amigos, desde a minha infância até à morte, faltou à chamada. Na ocasião em que mergulhei no mar, tendo nos braços a minha mulher, me apareceram o meu pai e a minha mãe e foi esta quem me tirou da água, mostrando uma energia cuja natureza só agora compreendo. Não me lembro de ter sofrido. Quando imergi nas águas, não experimentei sensação alguma de medo, nem mesmo de frio, ou de asfixia. Não me recordo de ter ouvido o barulho das ondas a quebrarem-se sobre as nossas cabeças. Desprendi-me do corpo quase sem me aperceber disso e, abraçado sempre à minha mulher, segui a minha mãe, que viera para nos acolher e guiar.

O primeiro sentimento penoso só me assaltou quando dirigi o pensamento para o meu caro irmão; porém, a minha mãe, percebendo-me a inquietação, logo ponderou: O teu irmão também não tardará a estar connosco: A partir desse momento, todo o sentimento penoso desapareceu do meu espírito. Pensava na cena dramática que acabara de viver, unicamente com o fito de levar socorro aos meus companheiros de desgraça. Logo, entretanto, vi que estavam salvos das águas, do mesmo modo por que eu fora. Todos os objectos me pareciam tão reais à volta de mim que, se não fosse a presença de tantas pessoas que sabia mortas, teria corrido para junto dos náufragos.

Quis informar-te de tudo isso, a fim de que possas mandar uma palavra de consolação aos que imaginam que os que lhes são caros e que desapareceram comigo sofreram agonias terríveis, ao se verem presas da morte. Não há palavras que te possam descrever a felicidade que experimentei, quando vi que vinham ao meu encontro ora uma, ora outra das pessoas a quem mais amei na Terra e que todas acudiam a me dar as boas-vindas nas esferas dos imortais.

Não tendo estado doente e não tendo sofrido, fácil me foi adaptar-me imediatamente às novas condições de existência...

Com esta última observação, o Espírito alude a uma circunstância que concorda com as informações cumulativas, obtidas sobre o mesmo assunto, por grande número de outras personalidades mediúnicas, isto é, que só nos casos excepcionais de mortes imprevistas, sem sofrimentos e combinadas com estados serenos da alma, é possível ao Espírito atravessar a crise da desencarnação, sem haver necessidade de ficar submetido a um período mais ou menos longo de sono reparador. Ao contrário, nos casos de morte consecutiva a longa enfermidade, em idade avançada, ou com a inteligência absorvida por preocupações mundanas, ou oprimida pelo medo da morte, ou, ainda, apenas, mas firmemente, convencida da aniquilação final, os Espíritos estariam sujeitos a um período mais ou menos prolongado de inconsciência.

Ponderarei que estas observações já se referem a um desses detalhes secundários a que aludi no início e nos quais se notam desacordos aparentes, que, na realidade, se resumem em concordâncias reguladas por uma lei geral, que necessariamente se manifesta de maneiras muito diferentes, segundo a personalidade dos defuntos e as condições espirituais tão diversas em que se encontram no momento da desencarnação.

Cumpre-se atente, além disso, no detalhe interessante de dizer o morto ter tido, no momento da morte, a visão panorâmica de todos os acontecimentos de sua existência. Sabe-se que este fenómeno é familiar aos psicólogos; foi referido muitas vezes por pessoas salvas de naufrágios. (Publiquei a respeito uma longa monografia nesta mesma Revista, no decorrer dos anos de 1922-1923.) Ora, no caso relatado pelo juiz Edmonds, como em muitos outros casos do mesmo género, assistimos ao facto importante de um morto afirmar haver passado, a seu turno, pela experiência da visão panorâmica, de que falam os náufragos salvos da morte. Isto se torna teoricamente importante, desde que se tenha em mente que o juiz Edmonds não conhecia a existência dos fenómenos desta espécie, ignorados pelos psicólogos de sua época. Ele, pois, não podia auto-sugestionar-se nesse sentido, o que constitui boa prova a favor da origem, estranha ao médium, da mensagem de que se trata.

Notarei, finalmente, que neste episódio, ocorrido nos primeiros tempos das manifestações mediúnicas, já se observam muitos detalhes fundamentais, concernentes aos processos da desencarnação do Espírito, os quais serão depois constantemente confirmados, em todas as revelações do mesmo género. Assim, por exemplo, o detalhe de o Espírita não perceber, ou quase não perceber, que se separara do corpo e, ainda menos, que se encontra num meio espiritual. Também o outro detalhe de o Espírito se encontrar com uma forma humana e se ver cercado de um meio terrestre, ou quase terrestre, de pensar que se exprime de viva-voz como dantes e perceber, como antes, as palavras dos demais. Assinalemos ainda outro detalhe: o de encontrar o Espírito desencarnado, ao chegar ao limiar da nova existência, para o acolherem e guiarem, outros Espíritos de mortos, que são geralmente os seus parentes mais próximos, mas que também podem ser os seus mais caros amigos, ou os Espíritos-guias.

Detalhe fundamental também este que, com os outros, será confirmado por todas as revelações transcendentais sucessivas, até aos nossos dias, salvo sempre circunstâncias mais ou menos especiais de mortos moralmente inferiores e degradados, aos quais a inexorável lei de afinidade (lei físico-psíquica, irresistível no seu poder fatal de atracção dos semelhantes) prepararia condições de acolhimento espiritual muito diferentes das com que se depararam os Espíritos evolvidos.

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Ernesto Bozzano (1862-1943) (i)A Crise da Morte, Publicação original (1930), "La Crisi Della Morte"; Prólogo, Primeiro Caso. 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Puro aire, uma pintura de Josefina Robirosa)