Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

~ em torno do mestre


Lobos vorazes ~

O divino Pastor previne as suas ovelhas do perigo que as ameaça, dizendo-lhes: "Guardai-vos dos falsos profetas que vêm a vós com vestes de ovelhas, mas que por dentro são lobos vorazes. Pelos seus frutos os conhecereis." 

Geralmente, os profitentes de determinado credo imaginam que os falsos profetas são os representantes de outros credos. Assim, para os católicos romanos, os lobos vorazes são os pastores protestantes, são os expoentes da Doutrina Espírita. Para os protestantes, os lobos são os membros do clero romano e os espíritas em geral. E este falso conceito é também partilhado por alguns espíritas, os quais pretendem ver o perigo nos arraiais vizinhos. 

Estão todos redondamente enganados. Os falsos profetas, os lobos vorazes estão dentro dos respectivos rebanhos, que eles pretendem explorar, assumindo ali atitudes de mentores e guias, disputando posição de destaque. Daí precisamente o perigo para as ovelhas. Os lobos do protestantismo estão lá com eles, rotulados com a mesma rubrica oficial daquela igreja, mostrando-se interessados por tudo que ali se passa. Da mesma sorte, os lobos do catolicismo romano lá se encontram no seio daquela comunidade, usando os seus distintivos, as suas insígnias. Consoante o mesmo critério, os falsos profetas contra os quais nós, os espíritas, nos devemos precaver, não se encontram em arraiais longínquos, não são os membros da clerezia de saia ou de sobrecasaca. Eles estão perto de nós, no nosso meio, no mesmo aprisco, disfarçados em ovelhas inocentes. Usam palavras melífluas (i), arvorando-se, ora em ardentes propagandistas e fogosos foliculários (i), ora em operadores de prodígios e milagres, ora ainda em profundos conhecedores de mistérios, possuidores de poderes invulgares, ora, finalmente, como dotados de dons excepcionais para curar enfermidades de toda a natureza. 

Lobos há-os de todas as castas: malhados, fulvos e pretos. Da espécie de que tratamos agora, existem, desde os exploradores e charlatães ignorantes, que exercem as suas traças entre os incautos ignaros (i), até aos de alto coturno (i), que frequentam rodas literárias, portadores de títulos e credenciais, impando (i) de vaidade, pretensos sábios. 

Tanto estes, porém, como aqueles, se dão a conhecer pelos frutos, como sabiamente diz o Evangelho. Seguindo as pegadas desses lobos, verificamos desde logo que os seus frutos são maus. Os de baixa estirpe, em geral, contentam-se com ilaquear a boa fé dos incautos, colhendo em seguida os proventos que miram. Os de alta categoria visam a alvo mais elevado, pelo menos mais distante. Querem satisfazer as suas pretensões vaidosas e os seus apetites, como os primeiros, porém, com certo jeito e maestria, a fim de se não comprometerem. Para atingirem os fins, não trepidam em lançar, aqui, a cizânia; ali, a intriga; acolá, a confusão e a dúvida. Insultam, agridem, perseguem mesmo os que se não curvam às suas pretensões e duvidam da sua autoridade. 

Tais são os frutos que produzem. Querem dirigir o rebanho à viva força; querem posto de comando; querem o bastão. Com tal propósito, faremos todas as agremiações organizadas, todos os redis onde haja ovelhas a tosquiar. Não logrando os seus intentos saem murmurando e vociferando contra os núcleos onde não conseguiram pontificar. A passagem dessa alcateia deixa sempre vestígios. São víboras que empeçonham o ambiente, quando não podem inocular o veneno mortífero. 

O cunho característico desses lobos é serem todos eles inimigos da cruz do Cristo, como dizia, com justeza, o Apóstolos dos gentios. Falam no Cristo, porém num Cristo forjado pelos seus caprichos e veleidades, que nada tem de comum com aquele Cristo que anuncia a cruz, que põe em realce a cruz e que, sobretudo, manda viver como ele viveu, nos termos e no espírito da cruz, como símbolo do dever, da humildade, da renúncia e do sacrifício. 

Os falsos profetas — grandes ou pequenos, ignaros (i) ou eruditos, plebeus ou magnatas são, invariavelmente, epicuristas, devotos de Baco, adoradores de Príapo; uns, mais ou menos abertamente, outros, de modo hipócrita e velado, deixando, todavia, transparecer o que lhes vai no íntimo. 

Guardai-vos, portanto, ó crentes de todas as igrejas, dos lobos vorazes. Lembrai-vos de que eles estão no meio de vós, agindo ao vosso lado; não vêm de fora, estão no interior de cada aprisco. Pelos frutos os conhecereis. 


O Médico das almas ~ 

“De caminho para Jerusalém, passava Jesus pela divisa entre a Samaria e a Galileia. Ao entrar numa aldeia, saíram-lhe ao encontro dez leprosos, que ficaram ao longe e levantaram a voz, dizendo: Jesus, Mestre, tem compaixão de nós! Jesus, logo que os viu, disse-lhes: Ide e, mostrai-vos aos sacerdotes. E no caminho ficaram curados. Um deles, vendo-se curado, voltou para trás, dando glória a Deus em voz alta, e prostrou-se aos pés de Jesus, agradecendo-lhe; e este era samaritano. Perguntou Jesus: Não ficaram curados os dez? onde estão os outros nove? Não se encontrou quem voltasse para dar glória a Deus, sendo este estrangeiro? E disse ao homem: Levanta-te e vai; a tua fé te salvou.” 

(Lucas (i), 17:11 a 19.) 

Porque disse Jesus ao samaritano: a tua fé te salvou? Porque a fé nesse crente, em tudo dissemelhante da dos Judeus, era despida de fanatismo, não se restringia aos moldes estreitos daquela fé convencional da escolástica religiosa. 

A fé daquele samaritano era livre, isenta de peias dogmáticas, escoimada de todos os prejuízos sectários inerentes aos credos exclusivistas. Daí porque ele logrou sentir os eflúvios celestes banhando o seu Espírito e despertando-lhe no coração os bons sentimentos, dentre os quais se distingue, como dos mais belos padrões de nobreza, a gratidão. 

Jesus sarara os dez leprosos; mas, o prodígio só impressionou profundamente o samaritano, porque só ele recebeu o influxo do céu, graças às condições do seu coração liberto do fanatismo que obceca a mente e embota as cordas do sentimento. Por isso, enquanto os nove Judeus prosseguiram maquinalmente em demanda dos sacerdotes para cumprirem o preceito ritualístico de sua religião, o samaritano retrocedeu em busca do seu benfeitor, a cujos pés se prostrou, num gesto sublime de humildade e de profundo reconhecimento. 

A sua alma possuía apreciável capacidade de sentir. O benefício recebido encontrou eco no seu coração susceptível de apreciar o bem e capaz de experimentar as emoções suaves e doces que o bem gera e acoroçoa

Concluímos do exposto que o maior benefício que recebemos, através duma graça que nos é concedida, não está propriamente no objecto alcançado, mas reconhecimento que o facto pode despertar. A gratidão é o elo indissolúvel que une o beneficiado ao benfeitor. 

Assim, pois, quando o pecador tem capacidade moral para sentir o benefício que lhe é outorgado, fica por isso mesmo em comunhão com o céu: e nisso consiste o sumo bem conquistado. 

Jesus curava o corpo, visando a redimir o Espírito. Daí o seu contentamento, verificando que, ao menos num, dentre os dez leprosos beneficiados, havia atingido o alvo visado na sua missão. 

É bom que todos os doentes do corpo saibam disto, a fim de se não iludirem buscando a saúde da matéria e relegando a do Espírito. São as enfermidades deste que o médico das almas, de preferência, veio curar. 


A dracma perdida ~ 

“Qual é a mulher que, tendo dez dracmas e perdendo uma, não acende a candeia, não varre a casa e não a procura diligentemente até a encontrar? 

“Quando a tiver achado, reúne as amigas e vizinhas, dizendo: "Regozijai-vos comigo, porque encontrei a dracma que havia perdido. 

“Assim, vos digo, há grande júbilo entre os anjos de Deus por um pecador que se arrepende.”

(Lucas (i), 15:8 a 10) 

A parábola acima faz parte da tríade parabólica onde figura, a seu lado, a do Filho Pródigo e a da Ovelha Tresmalhada. Todas encerram o mesmo ensinamento, revelam o mesmo axioma incontestado, que o Espiritismo (i) vem rememorar: a unidade do destino. Essas parábolas nos fazem vislumbrar esta verdade, da mais elevada importância: a justiça de Deus é misericórdia e a sua misericórdia é justiça. 

Ao homem é difícil apreender perfeitamente este asserto, dado o conceito erróneo que neste mundo se faz de justiça e de misericórdia. Tais predicados, para a maioria, são entre si incompatíveis; quando um deles actua, o outro permanece inerte. De facto, é assim que os homens procedem, quando supõem fazer justiça, ou usar de misericórdia. 

Em Deus, justiça e misericórdia se identificam, concomitantemente, ao mesmo tempo, sem nenhuma incompatibilidade, embebendo-se uma na outra. Para firmar esta asserção no nosso espírito, basta considerarmos que não pode haver conflito entre as virtudes. Todas as virtudes são modalidades duma só virtude, que é o amor. Elas se completam nos seus aspectos multiformes. A divergência — e essa divergência irredutível — verifica-se entre as virtudes e o vício, o bem e o mal, a luz e as trevas. 

A unidade do destino resulta da unidade entre a justiça e a misericórdia divinas. O justo foi pecador, o pecador será justo. Daí porque há grande júbilo entre os anjos (justos) por um pecador que se arrepende. 

Dito isto sobre a ideia central da parábola vertente, analisemo-la através dos pormenores de sua urdidura. Já dissemos que Jesus formulou três parábolas, colimando (i) o mesmo objectivo. Todavia, estudando-as separadamente, vamos descobrir ensinos diversos que, a par da ideia central, comum nesta trilogia, aparecem como acessórios muito preciosos. 

A personagem em destaque neste apólogo é a mulher, dona de casa. Ela perde uma dracma das dez que tinha nas mãos. Incomoda-se, aflige-se seriamente com o sucedido, procurando sanar o mal de que se reconhece culpada. Rebusca diligentemente os escaninhos, remove os trastes que guarnecem o aposento, até que encontra a moeda desaparecida. Rejubila com o resultado de suas pesquisas e, dando expansão à sua grande alegria, comunica o facto às vizinhas para que participem do seu justo contentamento. 

Ora, porque usou Jesus dessa semelhança? Porque comparou o zelo divino na salvação das almas com o zelo da mulher na função de economia do lar? Naturalmente porque é essa a missão da mulher no seio da sociedade. Da maneira como desempenha esse papel depende a tranquilidade e o bem-estar da família. Mais ainda: resulta do seu zelo no cumprimento dos deveres domésticos a estabilidade (i) e a segurança (i) social. 

Saber gastar é tão importante como saber ganhar. Se são necessários certos requisitos e predicados para ganhar, outros, não menos importantes, são precisos para aplicar o que foi ganho. O desequilíbrio das finanças domésticas, fonte de desventuras e até do esfacelamento de muitos lares, tem origem, muitas vezes, no descaso (i) ou na má aplicação dada pela mulher às receitas de que pode dispor. 

Qual a mulher, pergunta Jesus, que, tendo dez dracmas e perdendo uma, não faz tudo o que pode para encontrá-la? Essa interpelação dá lugar a se considerar como anormal a mulher que não denota naturalmente aquele ardor e aquele zelo no desempenho de sua missão enquanto sustentáculo do equilíbrio financeiro do lar. 

Exemplifiquem-se, portanto, neste ensinamento as mulheres e também os homens. A mulher, no sentido de se desobrigar com o devido escrúpulo e critério do elevado cargo que lhe compete na ordem social. O homem, no que respeita à consideração e ao merecimento em que deve ter o trabalho da mulher, trabalho esse tão, ou, quiçá, mais meritório que o seu, do qual tanto ele se ufana (i) e tanto se orgulha. 

/… 
“Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra.” 
Pedro de Camargo “Vinícius”            


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, 1ª Parte / Seixos e Gravetos; Lobos vorazes / O Médico das almas / A dracma perdida, 12º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), pintura de Johannes Vermeer) 

domingo, 10 de outubro de 2021

Diálogos de Kardec ~


~ estudo sobre a natureza do Cristo ~ 

§ I  FONTES DAS PROVAS SOBRE A NATUREZA DO CRISTO 

A questão da natureza do Cristo foi debatida desde os primeiros séculos do Cristianismo e pode dizer-se que ainda não se encontra solucionada, pois que continua a ser objecto de discussão. Foi a divergência das opiniões sobre este ponto que deu origem à maioria das seitas que dividiram a Igreja há dezoito séculos (i), sendo de se notar que todos os chefes dessas seitas foram bispos ou membros titulados do clero. Eram, por conseguinte, homens esclarecidos, muitos deles escritores de talento, abalizados na ciência teológica, que não achavam concludentes as razões invocadas a favor do dogma da divindade do Cristo. Entretanto, como hoje, as opiniões se firmaram mais sobre abstracções do que sobre os factos. Sobretudo, o que se procurou, foi saber o que o dogma continha de plausível, ou de irracional, deixando-se, geralmente, de um lado e de outro, de assinalar os factos capazes de atribuir sobre a questão uma luz decisiva. 

Mas, onde encontrar estes factos, senão nos actos e nas palavras de Jesus

Nada tendo Ele escrito, os seus únicos historiadores foram os apóstolos que, tampouco escreveram coisa alguma quando o Cristo ainda vivia. Nenhum historiador profano, seu contemporâneo, havido falado a seu respeito, nenhum documento mais existe, além dos Evangelhos, sobre a sua vida e a sua doutrina. Aí somente é que se tem de procurar a chave do problema. Todos os escritos posteriores, sem excluir os de S. Paulo, são apenas e, não podem deixar de ser, simples comentários ou apreciações, reflexos de opiniões pessoais, muitas vezes contraditórias, que, em caso algum, poderiam ter a autoridade da narrativa dos que receberam directamente do Mestre as instruções. 

Sobre esta questão, como sobre as de todos os dogmas, em geral, o acordo entre os Pais da Igreja e outros escritores sacros, não seria de se invocar como argumento preponderante, nem como prova irrecusável a favor da opinião de uns e outros, uma vez que nenhum deles citou um só facto, fora do Evangelho, concernente a Jesusque nenhum deles descobriu documentos novos que os seus predecessores desconhecessem. 

Os autores sacros nada mais conseguiram do que girar dentro do mesmo círculo, produzindo apreciações pessoais, deduzindo corolários concordantes com os seus pontos de vista, comentando sob novas formas e com maior ou menor desenvolvimento as opiniões contrárias às suas. Pertencendo ao mesmo partido, tiveram todos de escrever no mesmo sentido, senão nos mesmos termos, sob pena de serem declarados heréticos, como o foram Orígenes e tantos mais. Naturalmente, a Igreja só incluiu no número dos seus Pais os escritores ortodoxos, do seu ponto de vista; somente exaltou, santificou e coleccionou aqueles que lhe tomaram a defesa, ao passo que repudiou os outros e lhes destruiu quanto pôde os escritos. Nada, pois, de concludente exprime o acordo dos Pais da Igreja, visto que formam uma unanimidade arranjada a dedo, mediante a eliminação dos elementos contrários. Se se fizesse um confronto de tudo o que foi escrito pró e contra, difícil se tornaria dizer para que lado se inclinaria a balança. 

Isto nada tira ao mérito pessoal dos sustentadores da ortodoxia, nem ao valor que demonstraram como escritores e homens conscienciosos. Sendo advogados de uma mesma causa e defendendo-a com incontestável talento, haviam forçosamente de adoptar as mesmas conclusões. Longe de intentarmos apontá-los no que quer que fosse, apenas quisemos refutar o valor das consequências que se pretende tirar do acordo de suas opiniões. 

No exame, que vamos fazer, da questão da divindade do Cristo, pondo de lado as subtilezas da escolástica, que unicamente serviram para tudo baralhar sem esclarecer coisa alguma, apoiar-nos-emos exclusivamente nos factos que ressaltam do texto do Evangelho e que, examinados friamente, conscienciosamente e sem espírito de partido, super-abundantemente, facultam todos os meios de convicção que se possam desejar. 

Ora, entre estes factos, outros não há mais preponderantes, nem mais concludentes, do que as próprias palavras do Cristo, palavras que ninguém poderá refutar, sem infirmar a veracidade dos apóstolos. Pode interpretar-se de diferentes maneiras uma parábola, uma alegoriamas, afirmações precisas, sem ambiguidades, repetidas cem vezes, não poderiam ter duplo sentido. Ninguém pode pretender saber melhor do que Jesus o que ele quis dizer, como ninguém pode pretender estar mais bem informado do que ele sobre a sua própria natureza. Desde que Ele comenta as suas palavras e as explica para evitar todos os equívocos, é a Ele que devemos recorrer, a menos que lhe neguemos a superioridade que lhe é atribuída e nos sobreponhamos à sua própria inteligência. Se ele foi obscuro em certos pontos, por usar de linguagem figurada, no que concerne à sua pessoa não há equívoco possível. Antes de examinar as palavras, vejamos os actos


§ II — OS MILAGRES PROVAM A DIVINDADE DO CRISTO? 

Segundo a Igreja, a divindade do Cristo está firmada pelos milagres, que testemunham um poder sobrenatural. Esta consideração pode ter tido certo peso numa época em que o maravilhoso era aceite sem exame; hoje, porém, que a Ciência levou as suas investigações até às leis da Natureza, há mais incrédulos do que crentes nos milagres, para cujo descrédito não contribuíram pouco o abuso das imitações fraudulentas e a exploração que destas imitações se tem feito. A  nos milagres foi destruída pelo próprio uso que deles fizeram, donde resultou que muitas pessoas consideram agora os do Evangelho como puramente lendários

A própria Igreja, aliás, tira aos milagres todo o alcance como prova da divindade do Cristo, declarando que o demónio os pode operar tão prodigiosos quanto aqueles outros. Se tal poder tem o demónio, evidente se torna que os factos desse género carecem em absoluto de carácter exclusivamente divino. Se ele pode fazer coisas espantosas, capazes até de iludir os eleitos, como poderão os simples mortais distinguir os bons milagres dos maus? Não será de temer que, observando factos similares, confundam Deus e Satanás? 

Dar a Jesus semelhante rival em habilidades é grande desazo; mas, em matéria de contradições e de inconsequências, não se consideravam as coisas com muita atenção numa época em que para os fiéis seria um caso de consciência o pensarem por si mesmos e discutirem o menor artigo que se lhes impusesse à crença. Não se contava então com o progresso e ninguém cuidava de que pudesse ter fim o reinado da fé cega e ingénua, reinado cómodo, qual o do bel-prazer. O papel preponderante que a Igreja se obstinou em atribuir ao demónio produziu consequências desastrosas para a fé, à medida que os homens se foram sentindo capazes de ver com os seus próprios olhosDepois de ter sido explorado com êxito durante algum tempo, ele se tornou o alvião posto no velho edifício das crenças e uma das causas da incredulidade. Pode dizer-se que a Igreja, com o tomá-lo por auxiliar indispensável, alimentou no seu seio aquele que se voltaria contra ela e lhe minaria os fundamentos. 

Outra consideração não menos grave é a de que os factos milagrosos não constituem privilégio exclusivo da religião cristã. Não há, com efeito, religião alguma, idólatra ou pagã, que não tenha os seus milagres tão maravilhosos e tão autênticos para os respectivos adeptos, quanto os do Cristianismo. E a Igreja se privou do direito de os contestar, desde que atribuiu às potências infernais o poder de os operar. 

No sentido teológico, o carácter essencial do milagre é o de ser uma excepção aberta nas leis da Natureza, o que, consequentemente, o torna inexplicável mediante essas mesmas leis. Deixa de ser milagre um facto, desde que possa explicar-se e que se encontre ligado a uma causa conhecida. Desse modo foi que as descobertas da Ciência colocaram no domínio do natural muitos efeitos que eram qualificados de prodígios, enquanto se lhes desconheciam as causas. Mais tarde, o conhecimento do princípio espiritual, da acção dos fluidos sobre a economia geral, do mundo invisível dentro do qual vivemos, das faculdades da alma, da existência e das propriedades do perispíritofacultou a explicação dos fenómenos de ordem psíquica, provando que esses fenómenos não constituem, mais do que os outros, derrogações das leis da Natureza, que, ao contrário, decorrem quase sempre de aplicações destas leis. Todos os efeitos do magnetismo, do sonambulismo, do êxtase, da dupla vista, do hipnotismo, da catalepsia, da anestesia, da transmissão do pensamento, a presciência, as curas instantâneas, as possessões, as obsessões, as aparições e transfigurações, etc., que formam a quase totalidade dos milagres do Evangelho, pertencem àquela categoria de fenómenos. 

Sabe-se agora que tais efeitos resultam de aptidões especiais e disposições psicológicas; que se terão produzido em todos os tempos e no seio de todos os povos e que foram considerados sobrenaturais pela mesma razão que todos aqueles cuja causa não se percebia. Isto explica por que todas as religiões tiveram os seus milagres, que mais não são que factos naturais, quase sempre, porém, ampliados até ao absurdo pela credulidade e reduzidos agora ao seu justo valor pelos conhecimentos actuais, que permitem se destaque deles a parte devida à lenda. 

A possibilidade da maioria dos factos que o Evangelho cita como operados por Jesus se encontra hoje completamente demonstrada pelo Magnetismo e pelo Espiritismo, como fenómenos naturais. Pois que eles se produzem às nossas vistas, quer espontaneamente, quer quando provocados, nada há de anormal em que Jesus possuísse faculdades idênticas às dos nossos magnetizadores, curadores, sonâmbulos, videntes, médiuns, etc. No momento em que essas mesmas faculdades se encontram, em diferentes graus, numa multidão de indivíduos que nada têm de divino, até em heréticos e idólatras, elas não implicam, de maneira alguma, a existência de uma natureza sobre-humana. 

Se o próprio Jesus qualifica de milagres os seus actos, é que nisso, como em muitas outras coisas, lhe cumpria apropriar a sua linguagem aos conhecimentos dos seus contemporâneos. Como poderiam estes apreender os matizes de uma palavra que ainda hoje nem todos compreendem? Para o vulgo, eram milagres as coisas extraordinárias que ele fazia e que pareciam sobrenaturais, naquele tempo e mesmo muito tempo depois. Ele não podia dar-lhes outro nome. Facto digno de nota é que se serviu dessa denominação para atestar a missão que recebera de Deus, segundo as suas próprias expressões, porém nunca se prevaleceu dos milagres para se apresentar como possuidor do poder divino. (ii) 

Importa, pois, se risquem os milagres do rol das provas sobre que se pretende fundar a divindade da pessoa do Cristo. Vejamos agora se as encontramos nas suas palavras. 


§ III — AS PALAVRAS DE JESUS PROVAM A SUA DIVINDADE? 

Dirigindo-se a alguns dos seus discípulos que disputavam para saber qual dentre eles era o maior, disse-lhes ele, chamando para junto de si uma criança

“Quem quer que me receba, recebe aquele que me enviou, porquanto aquele que for o menor entre todos vós será o maior de todos.” (S. Lucas, 9:48.) 

“Quem quer que receba em meu nome a uma criança como esta, a mim me recebe; e aquele que me recebe não me recebe a mim, mas recebe aquele que me enviou.” (S. Marcos, 9:37.) 

Jesus lhes disse então: Se Deus fosse vosso Pai, vós me amaríeis, porque foi de Deus que saí e foi de sua parte que vim; pois, não vim de mim mesmo, foi ele que me enviou.” (S. João, 8:42.) 

“Jesus então lhes disse: Ainda estou convosco por um pouco de tempo e vou em seguida para aquele que me enviou.” (S. João, 7:33.) 

“Aquele que vos ouve a mim me ouve; aquele que vos despreza a mim me despreza; e aquele que me despreza, despreza aquele que me enviou.” (S. Lucas, 10:16.) 

O dogma da divindade de Jesus se baseou na igualdade absoluta entre a sua pessoa e Deus, pois que ele próprio é Deus. É este um artigo de fé. Ora, estas palavras, que Jesus tantas vezes repetiu: Aquele que me enviou, não só comprovam uma dualidade de pessoas, mas também, como já o dissemos, excluem a igualdade absoluta entre elas, porquanto aquele que é enviado necessariamente está subordinado ao que envia. Com o obedecer, aquele pratica um acto de submissão. Um embaixador, falando do seu soberano, dirá: O meu senhor, aquele que me envia; mas, se quem vem é o soberano em pessoa, falará em seu próprio nome e não dirá: Aquele que me enviou, visto que ele não pode enviar-se a si mesmo. Jesus o disse em termos categóricos: Não vim de mim mesmo; foi ele quem me enviou

Estas palavrasAquele que me despreza, despreza aquele que me enviou, não implicam absolutamente a igualdade, nem, ainda menos, a identidade. Em todos os tempos, o insulto a um embaixador foi considerado como feito ao próprio soberano. Os apóstolos tinham a palavra de Jesus, como este a de Deus. Quando ele lhes diz: Aquele que vos ouve a mim me ouve, certamente não queria dizer que os seus apóstolos e ele fossem uma só e a mesma pessoa, igual em todas as coisas. 

A dualidade das pessoas, assim como o estado secundário e de subordinação de Jesus com relação a Deus, ressaltam, ao demais, sem equívoco possível, das seguintes passagens: 

“Fostes vós que permanecestes sempre firmes comigo nas minhas tentações. — Eis por que vos preparo o Reino, como meu Pai mo preparou, a fim de que comais e bebais à minha mesa no meu reino e que estejais sentados em tronos, para julgar as doze tribos de Israel.” (S. Lucas, 22:28 a 30.) 

“De mim digo o que vi junto de meu Pai; e vós, vós fazeis o que ouvistes de vosso pai.” (S. João, 8:38.) 

“Ao mesmo tempo, apareceu uma nuvem que os cobriu e dessa nuvem saiu uma voz que fez se ouvissem estas palavras: 

Este é o meu filho bem-amado; escutai-o.” (Transfiguração: S. Marcos, 9:7.) 

“Ora, quando o filho do homem vier em sua majestade, acompanhado de todos os anjos, assentar-se-á no trono de sua glória; — e, encontrando-se reunidas todas as nações, separará umas das outras, como o pastor separa as ovelhas dos bodes; — colocará as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda. — Então, o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: Vinde, vós que fostes abençoados por meu Pai, possuir o reino que vos foi preparado desde o começo do mundo.” (S. Mateus, 25:31 a 34.) 

“Aquele que me confessar e me reconhecer diante dos homens, eu também o reconhecerei e confessarei diante de meu Pai que está nos céus; — aquele que me renunciar diante dos homens, também eu mesmo o renunciarei diante de meu Pai que está nos céus.” (S. Mateus, 10:32 e 33.) 

“Ora, eu vos declaro que aquele que me confessar e me reconhecer perante os homens, o filho do homem também o reconhecerá perante os anjos de Deus; — mas, se algum me repudiar perante os homens, eu também o repudiarei perante os anjos de Deus.” (S. Lucas, 12:8 e 9.) 

“Pois, se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras, disso também se envergonhará o Filho do homem, quando estiver na sua glória e na de seu Pai e dos santos anjos.” (S. Lucas, 9:26.) 

Nestas duas últimas passagens, parece que Jesus coloca mesmo acima de si os santos anjos componentes do tribunal celeste, perante o qual seria ele o defensor dos bons e o acusador dos maus. 

“Mas, pelo que respeita a vos sentardes à minha direita ou à minha esquerda, não me compete a mim vo-lo conceder; isso será para aqueles a quem meu Pai os tenha preparado.” (S. Mateus, 20:23.) 

“Ora, estando reunidos os fariseus, Jesus lhes fez esta pergunta: Que vos parece do Cristo? De quem é ele filho? Eles responderam: De David. — Como é então, retorquiu ele, que David lhe chama em espírito o seu senhor, nestes termos: O Senhor disse a meu Senhor: Senta-te à minha direita, até que eu reduza os teus inimigos a te servirem de escabelo para os pés? — Ora, se David lhe chama seu senhor, como é ele seu filho? (S. Mateus, 22:41 a 45.) 

“Mas, ensinando no templo, Jesus lhes disse: Como é, que os escribas dizem que o Cristo é filho de David, uma vez que o próprio David diz a seu Senhor: Senta-te à minha direita, até que eu haja reduzido os teus inimigos a te servirem de escabelo para os pés? — Pois, se o próprio David lhe chama seu Senhor, como é ele seu filho?” (S. Marcos, 12:35 a 37; S. Lucas, 20:41 a 44.) 

Por estas palavras, Jesus consagra o princípio da diferença hierárquica que existe entre o Pai e o Filho. Ele podia ser filho de David por filiação corporal, como descendente de sua raça e foi por isso que teve o cuidado de acrescentar: Como lhe chama ele em espírito seu Senhor? Se há uma diferença hierárquica entre o pai e o filho, Jesus, como filho de Deus, não pode ser igual a Deus. 

Ele confirma esta interpretação e reconhece a sua inferioridade com relação a Deus, em termos que não deixam lugar a dúvidas. 

“Ouvistes o que foi dito: ‘Eu me vou e volto a vós. Se me amásseis, rejubilaríeis, pois que vou para meu Pai, porque meu Pai É MAIOR DO QUE EU’.” (S. João, 14:28.) 

“Aproxima-se então um mancebo e lhe diz: Bom Mestre, que bem devo fazer para alcançar a vida eterna?” Jesus lhe respondeu: “Por que me chamas bom? “Não há senão somente Deus que é bom. Se queres entrar na vida, guarda os mandamentos.” (S. Mateus, 19:16 e 17; S. Marcos, 10:17 e 18; S. Lucas, 18:18 e 19.) 

Não só Jesus não se deu, em nenhuma circunstância, por igual a Deus, como, neste passo, afirma positivamente o contrário: considera-se inferior a Deus em bondade. Ora, declarar que Deus lhe está acima, pelo poder e pelas qualidades morais, é dizer que ele não é Deus. As passagens que se seguem apoiam as que citamos e também são bastante explícitas. 

“Não tenho falado por mim mesmo; meu Pai, que me enviou, foi quem me prescreveu, por mandamento seu, o que devo dizer e como devo falar; — e sei que o seu mandamento é a vida eterna; o que, pois, eu digo é segundo o que meu Pai me ordenou que o diga.” (S. João, 12:49 e 50.) 

Jesus lhes respondeu: Minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. — Aquele que quiser fazer a vontade de Deus reconhecerá se a minha doutrina é dele, ou se falo por mim mesmo. — Aquele que fala por impulso próprio procura a sua própria glória, mas o que, procura a glória daquele que o enviou é veraz, não há nele injustiça.” (S. João, 7:16 a 18.) 

“Aquele que não me ama não guarda a minha palavra e, a palavra que tendes ouvido não é minha, mas de meu Pai que me enviou.” (S. João, 14:24.) 

“Não credes que estou em meu Pai e que meu Pai está em mim? O que vos digo não o digo de mim mesmo; meu Pai que mora em mim, faz ele próprio as obras que eu faço.” (S. João, 14:10.) 

“O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão. — Pelo que respeita ao dia e à hora, ninguém o sabe, nem os anjos que estão no céu, nem mesmo o Filho, mas somente o Pai.” (S. Marcos, 13:32; S. Mateus, 24:35 e 36.) 

Jesus então lhes disse: Quando houverdes elevado ao alto o Filho do homem, conhecereis o que eu sou, porquanto nada faço de mim mesmo; mas, digo o que meu Pai me ensinou; e aquele que me enviou está comigo e não, me deixou só, porque faço sempre o que lhe é agradável.” (S. João, 8:28 e 29.) 

“Desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas para fazer a vontade daquele que me enviou.” (S. João, 6:38.) 

“Nada posso fazer de mim mesmo. Julgo segundo ouço e o meu juízo é justo, porque não procuro satisfazer à minha vontade, mas à vontade daquele que me enviou.” (S. João, 5:30.) 

“Mas, de mim, tenho um testemunho maior que o de João, porquanto as obras que meu Pai me deu o poder de fazer, as obras, digo, que eu faço dão testemunho de mim, que foi meu Pai que me enviou.” (S. João, 5:36.) 

“Mas, agora procurais dar-me a morte, a mim que vos tenho dito a verdade que aprendi de Deus; é o que Abraão não fez.” (S. João, 8:40.) 

Desde que ele nada diz de si mesmo; que a doutrina que prega não é sua, que ela lhe veio de Deus, que lhe ordenou viesse dá-la a conhecer; que não faz senão o que Deus lhe deu o poder de fazer; que a verdade que ensina ele a aprendeu de Deus, a cuja vontade se encontra sujeito, é que ele não é Deus, mas, apenas, seu enviado, seu messias e seu subordinado. 

Fora-lhe impossível recusar, de maneira mais positiva, qualquer assimilação sua a Deus, nem determinar o seu papel principal em termos mais precisos. Não há nos trechos acima pensamentos ocultos sob o véu da alegoria, que só à força de interpretações se possam descobrir. São pensamentos expressos no seu sentido próprio, sem ambiguidade. 

Se objectarem que Deus, por não ter querido dar-se a conhecer na pessoa de Jesus, provocou uma ilusão acerca da sua individualidade, poder-se-ia perguntar em que se funda semelhante opinião, quem tem autoridade para lhe sondar o fundo do pensamento e para lhe dar às palavras um sentido contrário ao que elas exprimem. Pois que, na vida de Jesus, ninguém o considerava como sendo Deus; que todos, ao contrário, o consideravam um messias, se ele não quisesse que o conhecessem qual era, bastar-lhe-ia nada dizer. Das suas afirmações espontâneas, deve concluir-se que ele não era Deus, ou que, se o era, voluntariamente e sem utilidade, fez uma afirmação falsa. 

É de notar-se que S. João, o Evangelista sobre cuja autoridade mais procuraram apoiar-se os instituidores do dogma da divindade do Cristo, é precisamente o que oferece os mais numerosos e mais positivos argumentos em contrário. É do que se pode convencer qualquer pessoa, lendo as passagens seguintes, que nada acrescentam, é certo, às provas já citadas, mas as corroboram porque de tais passagens ressalta evidente a dualidade e a desigualdade das duas entidades: 

“Por esse motivo, os judeus perseguiam Jesus e queriam matá-lo, isto é, porque fizera tais coisas em dia de sábado. — Mas, Jesus lhes disse: ‘Meu Pai obra até ao presente e eu também obro’.” (S. João, 5:16 e 17.) 

“Porquanto o Pai a ninguém julga; mas deu ao Filho todo o poder de julgar, a fim de que todos honrem ao Filho, como honram ao Pai. Aquele que não honra ao Filho, não honra ao Pai que o enviou.” 

“Em verdade, em verdade, vos digo que aquele que ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não cai na condenação; antes, já passou da morte à vida.” 

“Em verdade, em verdade, vos digo que a hora vem e, ela já veio, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a escutarem viverão; pois, assim como o Pai tem a vida em si mesmo, também deu ao Filho ter a vida em si mesmo — e lhe deu o poder de julgar, porque ele é o Filho do homem.” (S. João, 5:22 a 27.) 

“E o Pai que me enviou há dado, ele próprio, testemunho de mim. Nunca jamais lhe ouvistes a voz, nem vistes a face. — E a sua palavra não permanecerá em vós porque não acreditais no que ele enviou.” (S. João, 5:37 e 38.) 

“Quando eu julgasse, o meu julgamento seria digno de fé, porquanto não estou só; meu Pai que me enviou está, comigo.” (S. João, 8:16.) 

“Havendo Jesus dito estas coisas, elevou os olhos ao céu e disse: ‘Meu Pai, a hora é vinda; glorifica a teu Filho, a fim de que teu Filho te glorifique. — Como lhe deste poder sobre todos os homens, a fim de que ele dê a vida eterna a todos os que lhe deste. — Ora a vida eterna consiste em te conhecer a ti que és O ÚNICO DEUS verdadeiro e a Jesus-Cristo que tu enviaste

“Eu te tenho glorificado na terra; acabei a obra de que me encarregaste. — E tu, meu Pai, glorifica-me, pois, agora também em ti mesmo dessa glória que tive em ti antes que do mundo fosse. 

“Dentro em pouco já não estarei no mundo; mas, quanto a eles, estão ainda no mundo e, eu regresso a ti. Pai santo, conservo em teu nome o que me deste, a fim de que eles sejam como nós’.” 

“Dei-lhes a tua palavra e o mundo os odiou, porque eles não são do mundo, como eu próprio não sou do mundo.” 

“Santifica-os na verdade. A tua palavra é mesmo a verdade. — Assim como me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo — e me santifico a mim mesmo por eles, a fim de que também eles sejam santificados na verdade.” 

“Não peço apenas por eles, mas também pelos que em mim hão de acreditar pela palavra deles; — a fim de que estejam todos unidos, como tu, meu Pai, estás em mim e eu em ti; que eles, do mesmo modo, sejam um em nós, a fim de que o mundo acredite que tu me enviaste.” 

“Meu Pai, desejo que, lá onde eu estou, os que tu me deste também estejam comigo, a fim de que contemplem a minha glória, glória que me deste, porque me amaste antes da criação do mundo.” 

“Pai justo, o mundo não te há conhecido; eu, porém, te tenho conhecido; e estes conheceram que tu me enviaste. — Fiz que eles conhecessem o teu nome e, ainda farei que o conheçam, a fim de que o amor com que me tens amado esteja neles e eu próprio neles esteja.” (S. João, 17:1 a 5, 11 a 14, 17 a 26. Prece de Jesus.) 

“É por isto que meu Pai me ama, porque deixo a vida para a retomar. — Ninguém ma arrebata; sou eu que a deixo de mim mesmo; tenho o poder de a deixar e tenho o poder de a retomar. É o mandamento que recebi do meu Pai.” (S. João, 10:17 e 18.) 

“Tiraram a pedra e Jesus, erguendo os olhos para o céu, disse estas palavras: Meu Pai, rendo-te graças por me haveres exaltado. — Eu, de mim, sabia que tu me exaltarias sempre; mas, digo isto para esta gente que me cerca, a fim de que creia que foste tu que me enviaste.” (S. João, 11:41 e 42. Morte de Lázaro.) 

“Já não vos falarei mais, porquanto o príncipe do mundo vai virembora nada haja em mim que lhe pertença, mas para que o mundo conheça que amo a meu Pai e que faço o que meu Pai me ordena.” (S. João, 14:30 e 31.) 

“Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, como eu, que tenho guardado os mandamentos de meu Pai, permaneço no seu amor.” (S. João, 15:10.) 

“Então, soltando grande brado, Jesus disse: Meu Pai, às tuas mãos entrego o meu ser. E, tendo pronunciado estas palavras, expirou.” (S. Lucas, 23:46.) 

Se Jesus, ao morrer, entrega sua alma nas mãos de Deus, é porque ele tinha uma alma distinta de Deus, submissa a Deus. Logo, ele não era Deus. 

As palavras que se seguem indiciam, da parte de Jesus, certa fraqueza humana, certa apreensão quanto aos sofrimentos e à morte que lhe iam ser infligidos, o que contrasta com a natureza divina que lhe atribuem. Elas, porém, demonstram, ao mesmo tempo, uma submissão de inferior para superior. 

“Então, chegou Jesus a um lugar chamado Getsêmani e disse a seus discípulos: ‘Sentai-vos aqui, enquanto vou ali orar.’ — E, tendo levado consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e a estar em grande aflição. — Disse-lhes então: Minha alma se encontra em tristeza mortal; ficai aqui e velai comigo. — E, indo para um pouco mais longe, prosternou-se com o rosto na terra e orou dizendo: Meu Pai, se for possível, faze de mim se afaste este cálice; entretanto, não seja como eu quero, mas como tu queiras. — Veio em seguida ter com os seus discípulos e, encontrando-os adormecidos, disse a Pedro: Pois quê! não pudestes velar uma hora comigo? — Vigiai e orai, a fim de não cairdes em tentação. O Espírito é pronto, mas a carne é fraca. — Foi-se de novo, para orar segunda vez, dizendo: Meu Pai, se este cálice não pode passar, sem que eu o beba, faça-se a tua vontade.” (S. Mateus, 26:36 a 42. Jesus no Jardim das Oliveiras.) 

“Então, disse-lhes: Minha alma está numa tristeza de morte; ficai aqui e velai. — E, tendo-se afastado um pouco, prosternou-se na terra, rogando que, se fosse possível, aquela hora se afastasse dele. — Dizia: Abba, meu Pai, tudo te é possível, transporta para longe de mim este cálice; mas, que se faça a tua vontade e não a minha.” (S. Marcos, 14:34 a 36.) 

“Em chegando àquele lugar, disse-lhes: Orai, a fim de não sucumbirdes à tentação. — E, tendo-se afastado deles junto de um monte de pedra, ajoelhou-se, dizendo: Meu Pai, se quiseres, afasta de mim este cálice; entretanto, não se faça a minha vontade, mas a tua. — Então, apareceu-lhe um anjo do céu a fortalecê-lo. — Havendo entrado em agonia, redobrava as suas preces. — Veio-lhe um suor de gotas de sangue, que corria até ao chão.” (S. Lucas, 22:40 a 44.) 

“Pela hora nona, soltou Jesus um grande brado, dizendo: Eli! Eli! Lamma Sabachtani? que quer dizer: Meu Deus! Meu Deus! por que me abandonaste?” (S. Mateus, 27:46.) 

“E, pela hora nona, lançou Jesus um grande brado, dizendo: Meu DeusMeu Deus! por que me abandonaste?” (S. Marcos, 15:34.) 

As passagens que vamos transcrever poderiam deixar alguma dúvida e dar ensejo a acreditar-se numa identificação de Deus com a pessoa de Jesus; mas, além de que não poderiam prevalecer contra os termos precisos das que precedem, trazem consigo a devida rectificação. 

“Perguntaram-lhe: Quem és tu então? Jesus lhes respondeu: Sou o princípio de todas as coisas, eu que vos falo. — Tenho muitas coisas a dizer-vos; mas, aquele que me enviou é verdadeiro e eu não digo senão o que dele aprendi.” (S. João, 8:25 e 26.) 

“O que meu Pai me deu é maior do que todas as coisas e ninguém o pode arrebatar das mãos de meu Pai. Meu Pai e eu somos um.” (S. João, 10:29 e 30.) 

Quer isto dizer que seu Pai e ele são um pelo pensamento, pois que ele exprime o pensamento de Deus, pois que tem a palavra de Deus. 

“Então, os judeus tomaram de pedras para lapidá-lo. — Jesus lhes disse: Muitas obras boas tenho feito diante de vós, pelo poder de meu Pai. Por qual delas quereis lapidar-me? — Os judeus lhe responderam: Não é por nenhuma boa obra que te lapidamos; mas, por causa da tua blasfémia, porque, sendo homem, tu te fazes Deus. — Jesus lhes replicou: Não está escrito na vossa lei: Tenho dito que sois Deuses? — Ora, se ela chama deuses àqueles a quem a palavra de Deus era dirigida e não podendo a Escritura ser destruída, como dizeis que blasfemo, eu a quem meu Pai santificou e enviou ao mundo, porque disse que sou filho de Deus? — Se não faço as obras de meu Pai, não me creiais; se, porém, as faço, quando não queirais crer em mim, crede nas minhas obras, a fim de saberdes e crerdes que meu Pai está em mim e eu nele.” (S. João, 10:31 a 38.) 

Noutro capítulo, dirigindo-se a seus discípulos, diz: “Nesse dia, reconhecereis que estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós.” (S. João, 14:20.) 

Destas palavras, não há concluir-se que Deus e Jesus são uma única entidade, pois, de outro modo, também se teria de concluir, das mesmas palavras, que os apóstolos e Deus eram um

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(i) Allan Kardec, escrevia na segunda metade do século XIX. Nota de publicação. 
(ii) Para completo desenvolvimento da questão dos milagres, veja-se A Génese segundo o Espiritismo, caps. XIII e seguintes, onde se encontram explicados, por meio das leis naturais, todos os milagres do Evangelho. 

ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Estudo Sobre a Natureza do Cristo;  I – FONTES DAS PROVAS SOBRE A NATUREZA DO CRISTO / II – OS MILAGRES PROVAM A DIVINDADE DO CRISTO? / III – AS PALAVRAS DE JESUS PROVAM A SUA DIVINDADE? (1 de 6), 18º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)