Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 22 de agosto de 2015

Victor Hugo e o invisível ~


Victor Hugo e o Sentido da História |

Victor Hugo cria e sabia que a história temporal, não obstante a sua objectividade material, está destinada a voltar ao seio da história divina. Ou seja, que o efeito histórico deverá reintegrar-se no seio do divino para pôr termo a um ''tempo defeituoso'', onde o Ser se debate atacado por duas contradições existenciais.

O poeta francês compreendeu que a verdadeira poesia é uma emanação do mundo interno da natureza e que a sua essência se traduz por uma voz que sobe dos abismos da alma. Descobriu na história uma sucessão de factos cuja finalidade têm a sua raiz nos séculos palingenésicos do Ser. Viu assim que a história das existências se refunde na história dos seres espirituais, em cujo seio está a realidade divina do mundo dos espíritos.

Para Victor Hugo, o apocalipse terreno desembocava num apocalipse espiritual, dois processos que só se explicam pela lei da reencarnação. A história morre mas renasce com os espíritos; a sua objectividade está determinada pelo encarnar e desencarnar dos seres espirituais, ou seja, pela alma dos homens, antes espíritos, que encarnam e desencarnam. Kant tembém pressentiu este mesmo fenómeno ao reconhecer a realidade de um mundo invisível com a possibilidade de comunicar-se com o mundo dos homens.

A reencarnação dos espíritos é a verdadeira base da história humana, a que se mostra como processo visível na causa da história espiritual e divina que a rege. Victor Hugo acreditou nesta dualidade histórica, numa "história humana" fundada na história divina e transcendental".

A reencarnação dos espíritos é uma penetração da história divina e temporal e humana. O processo de encarnação e desencarnação a que estão submetidos os espíritos é a base real de todo o mistério histórico. E a poesia de Hugo foi como uma revelação através da qual a beleza contribuiu com o desenvolvimento da história em relação com a história espiritual e divina.

A inspiração do grande poeta francês captou nas suas bases mediúnicas que não haverá história natural e humana sem história espiritual e divina. O seu génio se transfigurou de tal modo que pôde compreender que todo o humano é um processo determinado pela reencarnação dos espíritos, ou seja, que História e Reencarnação são dois fenómenos movidos pelo mundo invisível.

Espiritismo como manifestação objectiva do Espírito de Verdade é a noção mais positiva para deixar demonstrado que o mundo dos espíritos é a base real do mundo dos homens. Opera-se assim uma transfiguração da morte pela força religiosa da mediunidade. Do contrário, o que seria a história sem a potência escatológica da mediunidade? Resultaria um fenómeno sem sentido e um processo caótico destinado à morte e ao nada.

Portanto, se a poesia de Victor Hugo foi profética é porque foi religiosa, apocalíptica porque mediúnica. Ela se uniu ao Espírito de Verdade para proclamar que Deus existe e que tudo avança progressivamente com o fim de instalar-se na Cidade dos Espíritos Puros. Os críticos esqueceram que se Hugo foi genial é porque dentro de seu ser imortal estava a luz do mundo invisível e que se a sua poesia determinou um romantismo filosófico e religioso original é porque os tripés da ilha de Jersey lhe abriram as janelas do infinito. Porque o génio de Victor Hugo sem o fenómeno mediúnico resultaria num enigma, do mesmo modo que uma nova visão histórica sem a lei da reencarnação do ser se tornaria um caos entremeado de horror e beleza.

Victor Hugo acreditava na sua espiritualidade pessoal. Achou no seu próprio ser as bases de todo um esquema metafísico e religioso do universo. Sentia-se uma força ultra-material por cujo motivo a sua carne se transfigurava. Era um vidente que via continuamente o mais além das coisas, o que o fez não se deter nos caminhos puramente materiais da vida. A existência para o poeta foi por uma senda que conduz ao conhecimento dos grandes enigmas da natureza.

O seu génio jamais repeliu o cristianismo; pelo contrário, viu na doutrina de Jesus a mais alta e acabada expressão das divinas revelações. Por isso, a sua criação poética e literária difere da dos seus colegas, que consideravam o homem somente um fenómeno fisiológico. O seu lema era: "Existir para a Verdade", mas este existir não se apoiava na efémera vida material. Ele pressentiu um existir infinito relacionado com o mistério do universo. A vida para o poeta era uma espiritualidade invencível e triunfante.

Acreditava no eterno porque via na natureza e na história um princípio imortal, o que o fez ter fé nessa verdade inalterável procedente de Deus. Acreditou nos "espíritos" da terra e do ar, da água e do vento, como os iniciados medievais. Desde a sua infância, cultivou uma filosofia espiritualista, que confirmou experimentalmente ao conhecer a mensagem que lhe ditaram os tripés na ilha de Jersey.

Auguste Vacqueire, no seu livro As migalhas da História, escreveu afirmando que Victor Hugo era Espírita, como o foram Théophile Gautier, Victorien Sardou, Giuseppe Mazzine, Camille Flammarion e outros pensadores dos fins do século XIX. Acreditou realmente na imortalidade da alma e na sua evolução palingenésica. Émile de Girardin e Eugénio Nus deram também testemunho das suas convicções espirituais, como foi confirmado na edição de 7 de Maio de 1899 do "Les Annales Politique et Litteraire".

/…



Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, Victor Hugo e o Sentido da História, 12º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

terça-feira, 11 de agosto de 2015

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo VIII

Palingenesia: preexistências e vidas sucessivas. A lei das reencarnações (II)

   Após um tempo de permanência e repouso no Espaço, a alma, dizem os espíritos, deve renascer na condição humana. Ela leva consigo toda a herança do passado, bom ou mau, e volta para adquirir novos poderes, novos méritos que facilitarão a sua ascensão, a sua marcha para a frente. E assim, de renascimento em renascimento, o espírito progride, eleva-se, sobe na direcção desse ideal de perfeição que é o objectivo de toda evolução universal.

   A Terra é um mundo de provas e de reparação, onde as almas se preparam para uma vida mais elevada. Não há iniciação sem provas, nem reparação sem dor. Elas, sozinhas, podem purificar a alma, sagrá-la, torná-la digna de penetrar nos mundos felizes. Esses mundos, ou sistemas de mundos, são dispostos no Universo em planos ou graus sucessivos. As condições de vida nesses planos são tanto mais perfeitas e mais harmónicas quanto mais acentuada é a evolução dos seres que os povoam. Ninguém se eleva para um grau superior a não ser quando adquiriu, na fase precedente, as perfeições inerentes a esse meio.

   Ora, a variedade quase infinita e a desigualdade das condições de existência sobre a Terra não permitem crer que nela se possa adquirir as qualidades necessárias no decorrer de uma só vida. É preciso, para a grande maioria dos homens, uma sucessão de vidas, bem vividas, para realizar esse estado de subtileza fluídica e de maturidade moral que lhes permitirá penetrar nas sociedades mais avançadas.

   Daí resulta que, se todas as almas terrestres fossem indistintamente chamadas a renascer no seio das sociedades superiores, essas seriam contaminadas e o plano geral de evolução estaria alterado, inteiramente falsificado.

   Essa maneira de ver esse juízo são confirmados pelo atestado de inúmeros parentes e amigos mortos com os quais me foi possível relacionar no decorrer de minha longa vida.

   É-nos feita a objecção de que isso não acontece por toda a parte. Na Inglaterra e na América do Norte diz-se que certos espíritos ficam em dúvida e negam a necessidade de renascimentos na Terra. Essa contradição aparente é o principal argumento dos adversários do Espiritismo de Kardec.

   Se examinarmos a questão de perto, um facto aparece de início: é que todos esses espíritos, opostos à ideia da reencarnação, pertencem, no mundo, ao culto protestante. Sabe-se que essa forma de Cristianismo dá aos seus adeptos uma educação religiosa muito rigorosa e intensa, uma fé robusta cujas tendências e pontos de vista se prolongam com tenacidade na vida no Além.

   O Protestantismo ensina que a morte da alma é julgada de um modo definitivo e fixada para a eternidade no paraíso ou no inferno.

   O protestante não ora para as almas dos mortos, a sua sorte é irrevogável. Uma doutrina rígida que elimina a alma culpada de toda a possibilidade de reparação e retira de Deus o prestígio sublime da misericórdia e do perdão. Com ela, nenhum meio há para voltar à Terra.

   O Catolicismo, ao menos, pela noção de purgatório, abre uma saída à redenção possível, e certos sacerdotes vêem nessa teoria uma eventual aproximação com o Espiritismo, se a Igreja algum dia chegar a atenuar a sua intransigência e reconhecer que o purgatório, esse lugar de reparação, é a própria Terra, pelo processo dos renascimentos.

   Pode então explicar-se, pelos preconceitos dogmáticos inveterados, a oposição de certos espíritos, nos meios protestantes, à lei das reencarnações.

   Mas, dir-se-á, já que todo o passado está escrito em nós, na nossa consciência profunda, como demonstram as experiências de exteriorização – sendo a morte a exteriorização completa e persistente – como é que esses espíritos se podem enganar sobre a natureza desse passado e a forma de seu futuro?

   Sim, sem dúvida, todo o passado está escrito em nós, como num livro, nos recônditos ocultos da memória subconsciente. Mas do mesmo modo que para se ler um livro é preciso, inicialmente, abri-lo, depois querer e saber lê-lo, para explorar as profundezas do ser é necessário um acto de vontade. É por esse processo que o hipnotizador obtém do paciente a reconstituição de suas vidas passadas. Não nos ocorre, sermos obrigados a fazer um esforço mental, esforço repetido e prolongado, para voltar a fixar, na vida actual, as lembranças adormecidas?

   Muitas pessoas imaginam que a morte é como um véu que se destrói e que uma viva luz logo aparece sobre todos os problemas que lhe concernem. Erro grave, pois é lentamente, por todo um trabalho interior, por observações, por comparações repetidas que a alma do morto se liberta, pouco a pouco, das rotinas, dos preconceitos das falsas noções que a educação terrestre acumulou sobre ela. No entanto, ainda é preciso, para isso, a assistência e o concurso de espíritos mais adiantados.

   Mas, como nos diz Allan Kardec, o espírito, na sua volta ao espaço, procura os grupos de almas em vibração harmónica com os seus próprios modos de ver e com os seus sentimentos; ele se associa à vida espiritual e, desde então, confinado nesse meio ambiente particular, pode persistir, por muito tempo, nos erros e nos costumes comuns.

   Todos os espíritas conhecem esse estado de alma que se revela nas comunicações do além e desejam, às vezes, provas originais de identidade que não são sem interesse e sem lucro, sob o ponto de vista da demonstração da sobrevivência.

   Durante as minhas experiências encontrei, às vezes, espíritos dessa natureza, que não se lembravam de ter vivido muitas vezes na nossa Terra e que negavam, de bom grado, o princípio das existências sucessivas. Eu os convidei, então, a pesquisar no âmago escondido de seu subconsciente e a procurar os traços de suas vidas anteriores. Nas reuniões seguintes eles vinham declarar-me que tinham encontrado esses resquícios e podiam retomar o fio de seus últimos renascimentos. Pude observar que esses espíritos eram, geralmente, de ordem inferior. Os seus antecedentes, pouco importantes, se reuniam em várias existências de paixão, de violência, de desordem, fontes de amargos desgostos no além.

   Não está no meu pensamento comparar esses espíritos atrasados com aqueles de origem anglo-saxónica, de que falei mais acima. Aqueles possuem, talvez, as riquezas ocultas, intelectuais e morais cuja importância eles ignoram. Eu exorto os nossos amigos de ultramar para que realizem pesquisas metódicas, uma análise profunda das suas faculdades e de suas lembranças. O encadeamento de suas existências terrestres, então, se reconstituirá e nós chegaremos, assim, à unidade de pontos de vista susceptível de dar à doutrina das vidas sucessivas toda a sua autoridade, toda a sua amplitude. Para isso bastará pôr em acção esta alavanca incomparável: a vontade!

   Notemos, aliás, que, desde há cinquenta anos, a crença na pluralidade das vidas da alma na Terra não cessou de aumentar nos Estados Unidos e na Inglaterra. Ela contava, há trinta anos, com alguns representantes isolados, enquanto que hoje, com a própria advertência dos espíritas ingleses, cerca de metade entre eles admite a volta possível, às vezes necessária, da alma sobre a Terra.

   Eis, a propósito, a opinião de dois representantes, os mais autorizados e os mais ilustres, do pensamento espiritualista britânico, formulada em obras recentes.

   O prof. Sir William Barrett, da Universidade de Dublin, escreveu no seu livro No Limiar do Invisível, páginas 214 e 215:

   “Opunha-se à ideia de reencarnação o esquecimento total das nossas existências passadas, mas isso pode ser somente um eclipse temporário. É possível que a lembrança de nossas vidas anteriores nos retorne, pouco a pouco, durante os nossos progressos espirituais, à medida que atingimos uma vida mais ampla, com uma consciência mais extensa.”

   E ele acrescenta uma citação do Sr. Massey, afirmativa e explicativa, sobre a reencarnação na Terra:

   “A razão da reencarnação tem a sua fonte na atracção que o nosso mundo exerce. O que nos trouxe aqui uma vez nos reconduzirá, sem dúvida, outras vezes, enquanto a causa que nos impulsiona não tenha mudado. Só a regeneração, isto é, a renovação de nossa natureza é que nos isenta da reencarnação.”

   Nos seus estudos sobre os múltiplos aspectos da personalidade humana, Sir Barrett também dizia:

   “Os casos de invasão psíquica tornam compreensíveis as reencarnações carnais.”

   De sua parte, Oliver Lodge, reitor da Universidade de Birmingham, escreveu na sua obra Evolução Biológica e Espiritual do Homem:

   “Pode admitir-se, em certos casos, a possibilidade das encarnações, não somente de uma sucessão de indivíduos do tipo ordinário, mas também de verdadeiros grandes homens.”

   Ele acreditava na reencarnação fragmentária, que lhe parece aplicável ao caso de Cristo.

   Já Stainton Moses, com o pseudónimo de Oxon, professor da Universidade de Oxford, que foi um dos propugnadores mais estimados da ideia espírita no seu país, escrevia nos seus Ensinos Espiritualistas as seguintes linhas, obtidas pela sua própria mediunidade:

   “A criança (o ser humano) não pode obter o amor e a ciência a não ser pela educação adquirida em uma nova vida terrestre. Uma tal experiência é necessária e numerosos espíritos escolhem um retorno à Terra a fim de alcançar o que lhes falta.”

   Fredrich Myers, na sua obra magistral A Personalidade Humana, capítulo X, expressa a mesma opinião e diz:

   “A doutrina da reencarnação não contém nada que seja contrário à melhor razão e aos mais elevados instintos do homem.”

   Ele volta a tratar da evolução gradual (das almas) em numerosas etapas “a que é impossível de assinalar um limite”.

   Quanto à América do Norte, poderíamos citar várias obras editadas nesse país que demonstram que a ideia da reencarnação também segue o seu caminho e que as mensagens dos espíritos que afirmam os renascimentos terrestres são cada vez mais frequentes, como se pode observar na maioria das revistas espiritualistas de língua inglesa. O mesmo movimento de opinião ressalta do acolhimento feito à tradução do meu livro O Problema do Ser e do Destino, pela Sra. Wilcox, sob o título Life and Destiny, editado em Londres e em Nova Iorque.

   É evidente que essa grande verdade foi durante muito tempo apagada pelo trabalho lento e oculto dos séculos, porque cada vez que nós a afirmamos, nos defrontamos com objecções que denotam um esquecimento completo.

   Entretanto, não se deve perder de vista que essa doutrina permanece activa no oriente. No momento actual, das Índias ao Japão, oitocentos milhões de asiáticos conhecem e aceitam a lei dos renascimentos. Bramanistas, budistas, xintoístas, adoptam essa mesma crença, o que lhes assegura uma certa superioridade de pontos de vista. O Alcorão, nas suas primeiras “suratas”, também afirma que é possível a reencarnação, na Terra, de muitos adeptos do profeta (Maomé).

   E sem pesquisar a fundo, entre nós mesmos e nos nossos dias, longa seria a lista de homens ilustres que aceitaram essa crença, desde Victor Hugo, Charles Bonnet, Pierre Leroux, Jean Reynaud até Mazzini e Flammarion. A maioria não teve necessidade de provas experimentais. O uso de sua razão, liberta das rotinas de escola e dos sofismas, e o panorama da vida, se desenvolvendo em volta deles, lhes foram suficientes para discernir as leis. Eles foram seduzidos pela beleza e pela grandeza desta evolução que faz do homem o autor de seu próprio destino. A alma, pensavam eles, constrói o seu futuro por meio de vidas renascentes; ela desenvolve as suas faculdades e a sua consciência pelo trabalho, pela prova, pela dor, cinzel divino que lhe comunica as suas belas formas. Ela se depura, se eleva, se interpenetra dos esplendores da natureza, se inicia nas suas leis e participa, na medida de sua potência crescente, da ordem e da harmonia universal.

   Para esses precursores, como para nós, espíritas, esta revelação, seja intuitiva, seja vinda do Alto, dissipou como uma neblina as hipóteses fantasiosas e as negações estéreis. A vida e a morte mudaram de situação: esta não é mais do que a transição necessária entre as duas formas alternativas de nossa existência: visível e invisível. A vida é a conquista das riquezas imperecíveis da alma, das forças radiantes e das qualidades morais que assegurarão a sua situação no além e lhe prepararão as melhores reencarnações na Terra e em outros mundos. Assim, o pessimismo sombrio se esvai para dar lugar à confiança, à alegria de viver na tarefa bem cumprida, à satisfação do dever bem realizado, com as perspectivas de um futuro sem limites e a ascensão gradual e radiosa de círculos em círculos, de esferas em esferas, em direcção ao foco divino.

/…


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Segunda Parte – Capítulo VIII Palingenesia: preexistências e vidas sucessivas. A lei das reencarnações (2 de 5) 25º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

sábado, 1 de agosto de 2015

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Situação perigosa dos médiuns de cura |

A rejeição pura e simples do meio científico ao facto inegável das curas mediúnicas cria para os médiuns de cura uma situação perigosa, que geralmente os afecta perturbando-lhes o necessário equilíbrio psíquico, deformando-lhes o comportamento social e prejudicando-lhes a própria faculdade curadora. No nosso livro Arigó, Vida, Mediunidade e Martírio, sobre o médium Arigó, de Congonhas do Campo, Minas Gerais, tivemos a oportunidade de examinar este assunto de perto, em todas as suas minúcias, por antecipação e, depois, acompanhando as pesquisas realizadas no local pela equipa de cientistas norte americanos de várias Universidades, incluindo elementos da NASA, como Andrija Puharich e John Laurence, o primeiro médico e engenheiro electrónico, e o segundo, biofísico e manager da secção de satélites artificiais da NASA, que, cumulativamente, nos informaram da existência do caso similar de Agpoa nas Filipinas.

Nestes dois casos, justamente famosos, os dois médiuns, sofreram debaixo da pressão constante de elementos exploradores e com as campanhas difamatórias do clero católico, a perseguição por várias instituições médicas, não obstante numerosos médicos brasileiros e estrangeiros tenham comprovado a realidade das curas.

Com médiuns de cura das zonas rurais, como no caso da médium Bernarda Torrúbio, em Garça, na Alta Paulista, os factos não tiveram grande divulgação, o que os preservou e geralmente os preserva das perturbações, de campanhas e de perseguições. Congonhas é uma cidade modesta, mas a sua proximidade com Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, expunha demasiadamente Arigó a pressões insuportáveis. Quando Arigó morreu, num trágico acidente de automóvel na estrada entre Congonhas e Conselheiro Lafaiete, o bispo D. Vicente Scherer, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, descarregou sobre o seu cadáver uma série de acusações caluniosas, sem um pingo de piedade cristã. Nem a morte livrou o médium e a sua família das consequências da sua actividade curadora.

A primeira cura feita por um médium, não raro de maneira inesperada, lança-o na senda das fascinações perigosas. Ele se sente escolhido por Deus, colocado acima do comum da humanidade, detentor de dons divinos. O fermento velho das religiões salvacionistas cresce no seu inconsciente, levedando-lhe a vaidade natural do homem. Pouco a pouco os necessitados aglomeram-se à sua volta. O atendimento torna-se difícil, em virtude do aumento sempre crescente dos necessitados. Amigos da onça o adulam, propagam os seus feitos, exaltam os seus dons. E, para facilitar a consulta de amigos e parentes, começam a levar-lhe presentes. O médium, que já se considera agraciado por Deus, não estranha que todos queiram agraciá-lo também. Se ele receita, os propagandistas de laboratórios levam-lhe as suas amostras, tratam-no como se ele fosse um médico na sua clínica e acabam oferecendo-lhe comissões, o que ele geralmente rejeita. Mas os amigos e os parentes o incitam a não ser tolo, a aproveitar enquanto é tempo, pois a mediunidade pode enfraquecer-se ou esgotar-se amanhã. Ele deve cuidar do seu futuro, pois os seus protectores espirituais não podem querer o seu desastre e ele mesmo não tem o direito de rejeitar as oportunidades de progresso. No torvelinho de súplicas, elogios, favores e atenções que o envolvem, o médium acaba aceitando as sugestões inferiores e escorrega na beira do abismo. As injustiças dos adversários o irritam, as perseguições o aturdem. Ele acaba por se entregar às fascinações e perverter as suas faculdades. Foge das pessoas que o auxiliaram nos primeiros tempos, considera-as suspeitas. Os políticos o assediam, tratando-o com deferências especiais que lhe estimulam a vaidade. Os seus dons se enfraquecem pelo próprio desgaste físico a que tem de se entregar para atender a todos. Para suprir as deficiências que nota nas suas próprias funções mediúnicas, inventa ou aceita expedientes escusos. Consuma-se, assim, o desvirtuamento do médium, que daí por diante fica entregue às feras que o irão devorar.

Isso acontece também com os sacerdotes terapeutas de todas as seitas e religiões milagreiras. Não se trata de um problema de ordem divina, sobrenatural, mas de um problema puramente humano. O médium não é um santo. É simplesmente um paranormal, uma criatura em que as funções terapêuticas da natureza humana, conhecidas e aceites no meio científico, se exteriorizam, exercendo influências nas pessoas em que essas funções defensivas do organismo se encontram em estado latente. Reduzida a apenas esses aspectos psicofisiológicos, a cura espírita não seria condenada, mas quando os espíritas afirmam, baseados em pesquisas e experiências científicas, mesmo que realizadas por cientistas eminentes, que a extroversão das forças curadoras é provocada por acção de entidades espirituais, o pavor dos fantasmas faz os homens mais graves perderem a cabeça. O médium transforma-se em bruxo ou lobisomem e as superstições da selva invadem os laboratórios. É o terror-pânico da sobrevivência humana que se manifesta, exigindo a acção das autoridades policiais contra os médiuns, já que não pode ser contra os espíritos. Num episódio curioso, o Dr. Silva Mello, confessando-se materialista congénito, classificou os médiuns como alienados mentais. Mas, inadvertidamente, contou que ele mesmo tinha medo de dormir no escuro. O Dr. Sérgio Valle, espírita, devolveu o diagnóstico ao autor, provando por esse e outros motivos que ele também era médium e temia a aproximação dos espíritos. Alienação por alienação, ficaram ela por ela. O saudoso e famoso Dr. Henrique Roxo, glória da psiquiatria nacional, considerou os médiuns como delirantes, sujeitos ao delírio espírita episódico. O seu discípulo mais dedicado e fiel, Dr. Lauro Gallwes, tornou-se espírita e contou num dos seus livros que o Dr. Roxo chegou ao fim de sua vida aceitando a realidade espírita. O mesmo já acontecera com Lombroso, RichetWilliam CrookesPaul GibierGustave Geley e tantos outros, pelo mundo inteiro, provando a fragilidade das construções científicas aparentemente inabaláveis. Hoje, Remy Chauvin denuncia a existência de uma doença típica do meio científico, a alergia ao futuro. Os cientistas alérgicos ao futuro sofrem também de autofobia, como observou Denis Bradley, pois temendo o espírito temem a si mesmos. Uma tragicómica situação que o avanço das ciências vai desmanchando na esteira do tempo.

Os cientistas que se apegam freneticamente aos métodos sensoriais da ciência académica revelam falta de percepção extra-sensorial, o que vale dizer falta de agudeza mental. A função da inteligência não é arrastar-se como insectos na casca da laranja, mas perfurá-la e descobrir o que existe no seu interior. Esses cientistas sistemáticos assemelham-se aos clérigos dogmáticos que não buscam a verdade, mas apenas a confirmação de princípios estabelecidos. Por isso a Ciência se volta muitas vezes contra si mesma, empregando anátemas e excomunhão contra os que rejeitam o credo fideísta. Há uma simbiose cultural dos opostos que gera a dialéctica do absurdo no campo cultural. A Ciência fixou-se, para desenvolver-se com segurança, no conceito do concreto. A fé científica repousa na realidade material. A Religião firmou a sua fé no conceito do abstracto. Da luta entre ambas resultou a assimilação recíproca de atitudes intransigentes. Essa barreira artificial contra a busca isenta e pura da verdade gerou um clero científico que se compraz com a condenação dos que se atrevem a mostrar-se criativos e não apenas repetitivos. A História das Ciências tem episódios medievais, como nos casos de Pasteur e Kardec, os dois atrevidos descobridores de mundos invisíveis e imponderáveis. O medievalismo, com o seu ideal totalitário de homogeneização do pensamento, pesa ainda na nossa consciência e prejudica o avanço científico de alguns sectores culturais onde sobrevivem os antigos carrascos da fogueira e do garrote vil. É inacreditável a certeza com que certos cientistas negam a existência do espírito baseados apenas em pressupostos doutorais. Quando o bispo de Barcelona queimou as obras de Kardec em praça pública (por não poder queimar o próprio), este declarou que a cauda da Inquisição ainda se arrastava pela Espanha. Historicamente essa cauda de sáurio enraivecido continuou a arrastar-se pelo mundo e esfacelou a Europa nos horrores do fascismo nazi.

O médium Arigó, preso na cadeia de Conselheiro Lafaiete, chamava os demais presos de colegas. Ao ser libertado, levou outros libertos para as suas terras em Congonhas e os manteve ali como colegas de trabalho na roça. Dizia sempre aos que o condenavam por isso: “São meus colegas, gente boa que só ficou ruim por causa da miséria.”

Essa atitude do médium roceiro e semi-alfabetizado devia servir de exemplo aos cientistas ilustres que hoje condenam os seus colegas corajosos que rasgam as perspectivas do futuro. É recente o episódio dos psicólogos norte-americanos que condenaram as pesquisas parapsicológicas, confessando não terem lido um só livro sobre o assunto. Rhine declarou apenas isto: “Esses cientistas descobriram um meio anticientífico de tratar de Ciência.”

Os homens vangloriam-se de arrancar os segredos da natureza, de a fazerem falar através dos seus métodos de pesquisa. Mas a verdade é outra. A Natureza não nos esconde nada. Hegel viu isso com clareza ao tratar do reino vegetal, definindo a árvore como um acto permanente de doação. Os demais reinos também se abrem para o homem, revelam-lhe as suas entranhas, convidando-os a aprender no livro aberto do mundo, de que falou Descartes ao sair do Colégio Jesuíta de La Fleche. O próprio Céu está hoje aberto ao homem, revelando-lhe os seus mistérios e oferecendo-lhe as rotas estelares. Bacon compreendeu com ajuda da intuição e reconheceu que toda a Ciência Humana não é mais do que um acto de obediência. O homem só não aprende, como aconteceu com os escolásticos, quando rejeita a liberalidade da natureza e se engolfa orgulhosamente em si mesmo, forjando sistemazinhos absurdos, estreitos leitos de Procusto, como observou Cassirer, nos quais espreme ou espicha, corta ou arrebenta os factos empíricos que não se sujeitam aos seus caprichos. Essa é a Tragédia da Cultura, não produzida pelo acúmulo de conhecimentos, como quer o filósofo, mas por desobedecer à natureza e torcê-la de acordo com as suas ideias e suposições geralmente ridículas.

No seu próprio caso o homem mostra-se rebelde. A natureza Humana não é menos pródiga do que a Natureza Geral. Desde que o mundo é mundo a natureza humana se abre ao homem revelando-lhe a sua essência espiritual, tão perene e imortal como a de todas as coisas e seres. Mas o homenzinho rebelde prefere considerar-se uma excepção orgulhosa. Se tudo é indestrutível, ele prefere considerar-se mortal,  que volta ao pó, luminescência esquiva e passageira no esplendor do Universo. A morte destrói as gerações, mas os homens voltam através de aparições, manifestações sensíveis, materializações, ressurreições tangíveis, como a de Jesus, mas os homens preferem a morte à ressurreição, fazem-se agéneres (seres não-gerados), que eles incluem nos seus fabulários ingénuos.

De onde vem essa relutância do homem ante os fenómenos naturais, mil vezes provados, comprovados e repetidos nas observações naturais e nas pesquisas de laboratórios? Da vaidade. Único ser pensante e racional no nosso mundinho sublunar, miserável subúrbio do cosmos, o homem se envaidece da sua capacidade de pesar e medir as coisas, como se isso bastasse para lhe dar a supremacia absoluta no Universo.

Os médiuns de cura sabem muito bem que nada podem fazer se não tiverem a assistência dos espíritos terapeutas que os envolvem no seu magnetismo perispirítico, descarregando energias espirituais e físicas nos organismos doentes e perturbados para restabelecer-lhes o equilíbrio abalado. Não obstante, julgam-se senhores do poder curador. Esse desequilíbrio mental, provocado pelo orgulho – engorgitamento mórbido do eu inferior –, anula os efeitos curativos no choque fatal das vibrações doentias em conflito. As ambições do poder, a ganância e a superioridade confundem-lhe a mente, levando-o ao fracasso e às tentativas inúteis de socorro e ajuda. Ele se transforma em explorador das esperanças e da fé dos doentes, emparelhando-se com estes no desequilíbrio inevitável. Essa queda do médium, que os espíritos benevolentes não podem impedir, para não anular a experiência necessária, reflecte-se negativamente no plano moral e social, invertendo os efeitos intencionais da sua prática terapêutica, em prejuízo moral e social do despertamento espiritual. Essa é a queda do médium, mais grave que a queda de Adão e a queda social de Rousseau. O fracasso do médium representa, por sua vez, a queda dos que depositavam nele as suas esperanças. É dever dos estudiosos aprofundar essas questões doutrinárias, colocando o problema em termos racionais, sem a precipitação nas ameaças de um misticismo alienante e ingénuo. O Espiritismo exige a verdade nua e crua. Os que temem expor a verdade não podem servir à Ciência Espírita. A verdade é o objecto imediato da Ciência. Sem ela, a Ciência é impossível. Não podemos ter nenhuma certeza no campo do saber se não dispusermos de provas daquilo que afirmamos. Mas há vários tipos de verdade, o que permitiu aos sofistas gregos jogar com as palavras a respeito do problema, até que Sócrates descobriu a maiêutica e aplicou esse método aos faladores perguntando-lhes sempre: “O que é isso?” Obrigados a definir os seus conceitos, os sofistas tiveram de calar ou fugir da sua presença. Como Jesus tratasse da Verdade, Pilatos lhe perguntou o que era a verdade e Jesus não lhe respondeu. Diante disso, muita gente entendeu que a verdade é inexplicável. Ora, uma verdade inexplicável jamais seria verídica. Jesus não respondeu porque Pilatos, envolvido na mentira do complô romano-judaico contra a sua pessoa, não estava em condições de compreender a verdade. O poeta Cleómenes Campos, num pequeno poema sobre esse episódio, escreveu:

Jesus não respondeu.
Foi como se dissesse: “A verdade sou eu.”

Jesus pregava aos homens a verdade da vida humana e os seus objectivos, que decorriam da Verdade Suprema de Deus. Como explicar isso a um romano que ia entregá-lo à crucificação para defender a mentira?

A verdade é uma questão de relação do pensamento com a realidade. Se essa relação é pura, directa, sem deformações interesseiras, ela é a verdade. Por exemplo: se vemos uma pedra e a reconhecemos como pedra, dizendo “vejo uma pedra”, essas palavras são a verdade da nossa percepção e podemos prová-lo facilmente. Mas se vemos uma nuvem e dizemos que se trata da deusa Juno, enganamo-nos, mentimos e não temos nenhuma possibilidade de provar o que afirmamos. Todas as civilizações, desde as mais primitivas às mais adiantadas, foram entretecidas de mentiras e verdades, de ilusões e realidades. Segundo Toynbee, cada civilização se apoia numa grande religião, herdando os seus vícios e virtudes. A corrida para o materialismo, nos últimos séculos do nosso desenvolvimento científico, foi impulsionada pela necessidade de separar o joio do trigo, as mentiras e ilusões da realidade e da verdade. As religiões apoiaram-se no pressuposto da fé, fundada nas revelações espirituais de profetas e messias. Criaram assim, sobre o mundo real, um mundo fictício de pseudo-verdades, toda uma imensa rede de símbolos pré-lógicos, por isso mesmo contraditórios entre si. Nem mesmo o desenvolvimento da lógica escolástica, na Idade Média, conseguiu sanar essa situação cultural alienante. Os pressupostos da fé pela fé, amparados no princípio teológico do credo quia absurdum (creio, mesmo que absurdo) fortaleceram a rede fantasiosa de crenças, mitos e ritos sagrados. O conceito do sagrado impediu, com as condenações violentas, a busca da verdade e qualquer possibilidade de esclarecimento total desse mundo de fascinações.

Surgindo na era científica, em meados do século XIX, o Espiritismo se opôs, ao mesmo tempo, ao religiosismo alienante e ao materialismo exclusivista. Kardec abriu a brecha espírita nesses maciços milenares, estabelecendo o critério da razão na busca da verdade. Sustentou o princípio dialéctico da constituição do mundo por dois elementos fundamentais: espírito e matéria. Dessa colocação, válida e confirmada nos nossos dias, nasceu a Ciência Espírita, armada com os métodos da pesquisa científica dos fenómenos e com os processos da cogitação filosófica livre de pressupostos e preconceitos. A Ciência académica rejeitou a dualidade espírito-matéria, sustentando o monismo materialista, mas o avanço das pesquisas no nosso século acabaram por dar razão à Ciência Espírita. A concepção monista permanece válida, mas em termos de estrutura orgânica da realidade; Espírito e matéria preenchem o cosmos, sendo o espírito o elemento estruturador da matéria. A verdade brota naturalmente das pesquisas científicas da realidade objectiva. O sonho dos fisiólogos gregos realiza-se hoje, plenamente, no desenvolvimento das pesquisas fenoménicas da Ciência Espírita. A Parapsicologia actual é simplesmente o elo de ligação da Ciência Académica com a Ciência Espírita. Sem esse elo, os dois campos científicos permaneceriam separados, impedindo a visão global da realidade, necessária à compreensão verdadeira do mundo, do homem e da vida.

/…


José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Situação Perigosa dos Médiuns de Cura, 20º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)