Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 25 de maio de 2015

O Espiritismo na Arte ~


Décima e última lição de O Esteta

– As sensações artísticas e os espíritos elevados
– Acção do foco divino
– Arte, meio de sentir a grandeza de Deus

 |17 de Fevereiro de 1922|

“O tema final das nossas conversas torna-se mais e mais delicado e os elementos que encontro no médium são de tal modo restritos que devo vos pedir que me desculpem a pobreza das expressões empregadas. Iremos quase entrar e planar no domínio divino.

Hoje, eu queria poder entreabrir uma janela sobre esse azul celeste, que é o centro de todas as radiações e resume, para vós, todas as virtudes, todas as potências intelectuais e morais.

Comprovaste, nas vossas vidas humanas, que cada ser possui, em grau diverso, quer por intuição, quer como resultado de sua vontade, qualidades que ele adquiriu na Terra, em vidas anteriores ou por aspiração em direcção às esferas fluídicas divinas.

Atrevo-me a vos dizer que o Ser divino é um centro radiante, composto de todas as coisas e realizando cada coisa.

A vossa imaginação terrestre não pode compreender isso. Aliás, não é necessário, visto que, no vosso plano, não tens a obrigação de vos colocar mais alto do que a evolução vos permite. Porém, do espaço, temos uma sensação mais forte de que existe uma esfera, um campo de acção no qual as ondas fluídicas impressionam e fazem vibrar, no nosso plano, os seres espirituais e, no vosso plano, os seres corporais, e que representa o poder, a beleza, a harmonia do divino. Essa harmonia é a própria essência da arte; é ela que, empregada na medida certa, faz vibrar o cérebro dos génios e põe em acção as inteligências em fase de evolução, por um trabalho e uma vontade firme e racional. Essas esferas abrem a entrada do campo divino. Nós podemos representá-lo melhor que vós, no entanto ainda não podemos fundir-nos nele.

Eu queria abrir inteiramente a janela para vos comunicar o pensamento divino, para vos dizer de que forma e por qual irradiação fluídica integral a obra criadora prossegue, porém, não está ao meu alcance abrir completamente a porta para esse azul criador. Portanto, é apenas por uma pequena abertura que posso comunicar aos vossos cérebros e aos vossos corações o que eu mesmo sei.

O foco divino, então, está em acção constante e regular, criando o movimento universal. É por meio dele que as criaturas nascem, vivem e se transformam, segundo a pureza dos elementos físicos empregados. A irradiação divina se faz sentir mais ou menos intensamente sobre as moléculas que aprisionam o seu espírito.

O corpo humano é mais ou é menos perfeito. Há uma questão de atavismo, uma questão de atracção espiritual nos meios mais puros ou menos puros que os ditos corpos atravessam. As criações provindas do campo divino são de uma elevação grandiosa. À medida que nos aproximamos dele, compreende-se melhor o funcionamento desse grande organismo que é o Universo.

É um facto indubitável que, quando o conjunto de rodas de uma máquina não se move continuamente, elas chegam a se cobrir de uma ferrugem que impede os seus eixos de funcionarem regularmente. A ferrugem se traduz entre os seres organizados por uma influência dos caprichos e das esquisitices inerentes aos meios inferiores e, quando há excessos, pela influência das imperfeições e dos vícios.

É assim que se degenera o bem, mas ele pode reviver ao contacto das fontes puras, assim como alguém que trabalhe em mecânica de precisão pode recolocar sobre os seus eixos um instrumento que não funcionava mais.

Por uma vontade sempre firme, por um apelo directo, aspirai, portanto, às irradiações vivificantes, assim podereis vos manter em relação com os feixes fluídicos que emanam do campo divino e que vivificarão, pela sua acção, as partes do vosso ser contaminadas pela ferrugem dos defeitos e dos vícios. É por essas relações, quase constantes, com esses feixes fluídicos, que o ser, num mundo ou no espaço, conserva aptidões, meios de elevação, intuições que formam o sentido genérico da palavra arte.

É por isso que cada ser deve ter cuidado com o seu progresso e conservar em si mesmo esse pólo atractivo que, se traduzindo virtualmente por capacidades correspondentes aos seus desejos, será mais, ou menos, apaixonado pela arte. Esta palavra, arte, quase mágica, significa: irradiação emanando de um campo supracósmico; essa irradiação mantém no nosso mundo a luz, a grandeza, o poder, a beleza, a bondade, que emanam do foco que forma o centro do campo fluídico divino.

Eu falei, numa conversa anterior, desse ponto mais sensível do organismo humano que se chama coração. É do coração que parte a vibração que, espalhando-se em todo o vosso ser, lhe fornece os meios de exteriorizar pensamentos nobres e elevados. Porém, analisai bem essa vibração, reflecti e compreendereis que quando um sentimento generoso faz vibrar o vosso coração, é porque ele recebeu no mesmo instante, por uma onda emanada do divino, o impulso de um nobre e generoso sentimento.

É graças a uma evolução racional em planos diferentes, em mundos diversos, que os seres se depuram gradualmente. O que se faz em torno de vós far-se-á muito mais em torno dos seres, dos mundos, das esferas.

Para concluir as nossas palavras, a arte é, para o ser humano, o chamado do campo divino. Quanto mais um ser, por sua vontade e pelos seus actos, se aproxima de Deus, mais ele está apto a sentir os eflúvios e as vibrações divinas. Segundo a sua evolução, essas vibrações se traduzirão pela criação de virtudes, com a palavra virtude sendo tomada num sentido bastante geral. Na minha consciência ela significa tudo o que é digno de ser amado. A arte, portanto, é um dos meios de se sentir a grandeza de Deus. Devemos agradecer ao Criador por nos deixar sempre em relação com ele, e temos que nos tornar cada vez mais dignos disso. É preciso venerar e amar a arte, porquanto, através da imensidão do espaço, ela é a mensageira da imortal irradiação e do movimento divino universal.

Guardemos no mais profundo do nosso ser esse ponto sensível, que é para nós um dos pólos de comunicação com o nosso Criador. Quer estejamos munidos de um corpo carnal ou de um invólucro espiritual, a irradiação divina sempre chega até nós, quando não deixamos na inacção, por uma inércia repreensível, essa máquina que deve servir de transmissão aos fluidos e às ondas divinas. O ser evoluído tem a alegria de ajudar no aperfeiçoamento e na preservação de seres mais materiais.

A arte, mensageira do divino, é a chama que jamais se deve apagar, ela deve fazer-nos compreender que a beleza e a glória de Deus são infinitas. Pode haver arte mesmo nas mais pequenas acções se, adaptando-se ao meio onde age, a irradiação divina que se exterioriza espalha à sua volta uma chuva de ondas benéficas.

Como há evolução nos seres, há evolução nas artes. Vós tendes as premissas nas artes, assim como nas acções e nas virtudes, porém, a centelha brilha sempre nas condições em que ela se pode manifestar para confirmar a grandeza de Deus.”

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LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte V  Décima e última lição de O Esteta – As sensações artísticas e os espíritos elevados – Acção do foco divino – Arte, meio de sentir a grandeza de Deus (4 de 4) 23º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

terça-feira, 12 de maio de 2015

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Natureza da Revelação Espírita (IX)

A Terceira Revelação ~

  A primeira revelação estava personificada em Moisés, a segunda em Cristo e a terceira não o está em nenhum indivíduo. As duas primeiras são individuais, a terceira é colectiva; reside nisso uma característica essencial de grande importância. É que ninguém, por consequência, se pode afirmar seu profeta exclusivo. Foi feita simultaneamente em toda a Terra, a milhões de pessoas, de todas as idades e de todas as condições, desde o mais baixo ao mais elevado da escala, consoante a profecia relatada pelo autor dos Actos dos Apóstolos: «E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne; e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos mancebos terão visões e os vossos velhos sonharão sonhos; / E também do meu Espírito derramarei sobre o meu servo e minhas servas, naqueles dias, e profetizarão.» (Actos dos Apóstolos, 2: 17, 18.) Não saiu de nenhum culto especial para servir um dia de ponto de encontro a todos(*)

(*) O nosso papel pessoal no grande movimento das ideias que se prepara através do Espiritismo e que começa a acontecer, é o de observador atento que estuda os factos para daí retirar as consequências. Confrontámos todos os que nos foi possível reunir; comparámos e comentámos as instruções dadas pelos Espíritos em todos os pontos do globo; depois, coordenámos tudo metodicamente; numa palavra, estudámos e demos a saber ao público o fruto das nossas investigações sem atribuir ao nosso trabalho outro valor que o de uma obra filosófica deduzida da observação e da experiência, sem nunca nos termos dado ares de chefe de doutrina, nem ter querido impor as nossas ideias a ninguém. Ao publicá-las, usámos de um direito comum e os que as aceitaram fizeram-no livremente. Se estas ideias encontraram numerosas simpatias, é por terem tido a vantagem de corresponder às aspirações de um grande número, com o que não nos podemos envaidecer, pois a sua origem não nos pertence. O nosso maior mérito é o da perseverança e devoção à causa que abraçamos. Em tudo isto fizemos o que outros podiam ter feito; é por isso que nunca tivemos a pretensão de nos julgarmos profetas ou messias e ainda menos apresentarmo-nos por tal. (N. do A.)

  Sendo as duas primeiras revelações produto de um ensinamento pessoal, foram forçosamente localizadas. Isso quer dizer que tiveram lugar num só ponto, à volta do qual a ideia se foi expandindo de uns para os outros; mas foram precisos muitos séculos para que atingissem os extremos do mundo, mesmo sem o invadirem por completo. A terceira tem isso de particular; não sendo personificada num indivíduo, produziu-se simultaneamente em milhares de pontos diferentes e todos se tornaram centros ou focos de irradiaçãoAo multiplicarem-se estes centros, a sua radiação une-se a pouco e pouco, como os círculos formados por uma quantidade de pedras atiradas à água; de tal maneira que, em determinada altura, acabarão por cobrir a superfície total do globo.

  É esta uma das causas da rápida propagação da doutrina. Se tivesse surgido num só ponto, se tivesse sido obra exclusiva de um homem, teria formado uma seita à sua volta; mas meio século teria talvez decorrido antes de ter atingido os limites do país onde tivesse nascido, enquanto que assim, dez anos depois, tem rebentos implantados de um pólo ao outro. 

  Esta circunstância, espantosa na história das doutrinas, confere a esta uma força excepcional e uma força de acção irresistível; com efeito, se a comprimirmos num ponto, num país, é materialmente impossível comprimi-la em todos os pontos, em todos os países. Por cada sítio onde seja reprimida, haverá mil ao lado onde florescerá. Ainda mais, se a extinguirmos num indivíduo, não podemos extingui-la nos Espíritos, que são dela a fonte. Ora, como os Espíritos estão em todo o lado e porque sempre existirão, se, por impossível, se conseguisse abafá-la em todo o globo, ela reapareceria algum tempo depois, porque assenta sobre um factofacto esse que está na natureza, e não podemos suprimir as leis da natureza. É disto que se devem então convencer os que sonharam com a aniquilação do Espiritismo. (Revista Espírita, Fevereiro de 1865, p. 38: Perpetuidade do Espiritismo.)

  No entanto, estes centros disseminados deveriam permanecer ainda algum tempo isolados uns dos outros, confinados como alguns estão a países longínquos. Era necessário entre eles um traço de união que os colocasse em comunhão de pensamento com os seus irmãos de doutrina, ensinando-lhes o que se fazia noutros lugares. Este traço de união, que terá faltado ao Espiritismo na antiguidade, encontra-se nas publicações que chegam a todo o lado, que condensam numa forma única, concisa e metódica, os ensinamentos dados em todos os sítios sob múltiplas formas e em línguas diversas.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 45 a 48 (IX), 11º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

domingo, 3 de maio de 2015

Inquietações Primaveris ~


Dialéctica | da Consciência

Deus não morreu, mas morreu o Papa. Os teólogos agoureiros da Morte de Deus também vão morrer, um a um, cada qual com a sua morte individual e intransferível. Paulo VI passou silencioso pelo tumulto do mundo. Fiel à sistemática da Igreja, não inventou reformas nem tentou cercar as reformas audaciosas de João XXIII. Ante a insubordinação do Cardeal Lefevre, que ordenou exércitos de novos padres para lutar contra ele, não se atemorizou nem promoveu represálias sagradas. Acusado brutalmente de pecados horríveis quando cardeal de Milão, limitou-se a lamentar o caluniador. Dava a impressão de um Júpiter envelhecido, que não dispunha mais de forças para desfechar os raios da ira mitológica sobre os atrevidos. Dedicou-se à semeadura da paz entre os homens, ofereceu-se como refém nos casos de sequestro e, ao invés de ameaçar os incrédulos com o espantalho do Diabo, chegou a prestar a mais espantosa homenagem ao Anjo Rebelado, afirmando: “Quem não acredita no Diabo não é cristão”. Ultimamente passou a falar na sua morte próxima, como se preparasse o mundo para aceitá-la como ele a aceitava. Se não conseguiu pacificar os homens, pelo menos manteve a paz da Igreja, desapontando os arruaceiros que tudo faziam para merecer uma maldição. Fez jus ao título de Sua Santidade, que tantos dos seus antecessores ostentaram sem dar mostras de merecimento.

A impressão que se tem, agora que o seu cadáver está diante do mundo com um apelo silencioso à concórdia e ao amor, é a de que ele foi o último Papa. O Colégio Cardinalício que deve eleger o novo Papa está com dificuldades. (i) Se o Espírito Santo não pousar docemente na cabeça veneranda de um dos candidatos à sua sucessão, não se sabe como os votantes farão a escolha. A Barca de Pedro está balançando indecisa sobre as águas, como a Arca do Dilúvio. Talvez tenha chegado o momento da Igreja, que há muito luta em vão para sair dos recifes teológicos em que encalhou depois da última conflagração mundial.

A consciência não é, como Sartre supôs, um vazio que se enche com dados do mundo. Pelo contrário, a consciência é a garra psíquica do homem, com a qual ele se apodera do mundo para transformá-lo, subjugando-o e adaptando-o às exigências humanas. Desde a selva esse diálogo se desenvolve através das civilizações. Os dados da consciência antecedem o mundo, provêm das regiões arquetípicas do inconsciente humano, onde se desenvolvem as estranhas florações dos anseios de perfeição, justiça e beleza, que deixaram as suas marcas por toda a parte, desde as inscrições e os desenhos rudes das cavernas até às obras-primas da escultura grega, das lendas e das canções do Folclore mais remoto até à pintura italiana e às sinfonias de Beethoven. O vazio que deve ser cheio é o do mundo, pelos dados subjectivos da consciência. O mundo é criado por Deus no mistério infinitesimal da mónada, essa ideia platónica que encerra em si toda a realidade futura, como, na teologia hebraica, a alma de Arão já continha em si todas as almas futuras. O mundo vazio, sem a presença humana, é apenas a matéria-prima de que a consciência do homem irá servir-se mais tarde para se desenvolver. A criança que nasce desprovida até mesmo das garras, instrumentos defensivos dos animais, traz em si mesma as potencialidades humanas da Humanidade em perspectiva. A semente necessita da Terra para germinar e desenvolver-se, a mónada necessita da carne e das suas formas para actualizar a sua espantosa potencialidade humana e divina. As forças naturais preparam, por milénios incalculáveis, com os elementos dos reinos inferiores, o material flexível e vibrátil que a consciência modelará no tempo, imprimindo-lhe lentamente os moldes secretos dos seus anseios.

As Filosofias incipientes apegam-se aos efeitos sensíveis dos processos e esquecem as suas causas. A leviandade humana, essa herança no homem da irresponsabilidade animal, leva os pensadores e os cientistas à formulação de hipóteses e teses absurdas sobre uma realidade que não conhecem. Proliferam as sabedorias vazias, os doutores pontificam nas cátedras e nos púlpitos fazendo afirmações temerárias que só servem para aumentar a insegurança e a angústia do homem nas sociedades formalizadas. Não obstante essa gratuidade aparente, a consciência fermenta as inquietações e aguça a curiosidade, liberando os vectores do espírito no plano das realizações superiores. Até mesmo as pompas assombrosas da morte contribuem para desencadear no homem as suas aspirações de uma visão mais segura e precisa da realidade a que foi lançado como um náufrago na praia de um país estranho. Nas civilizações mais adiantadas a pressão dos formalismos sócio-culturais esmaga as criaturas. Rousseau rompeu as muralhas da Genebra formalista ao tentar a aventura da liberdade humana. Voltaire armou-se da ironia para derrubar as instituições mentirosas. A consciência se definiu como ameaça perigosa nos burgos e nos castelos, inflamando nos homens o amor sacrificial pela castelã desconhecida a que nos pósteros chamariam de Liberdade. Sem essa dama solitária e temida o mundo jamais escaparia da barbárie.

A Dialéctica da Consciência se constitui da tese da realidade imediata em confronto, estática e poderosa na sua estruturação social, com a antítese da utopia, que lança Dom Quixote contra os moinhos de vento nas charnecas da Mancha. Sancho é o contrapeso que abrandará os seus excessos na busca de Dulcinéia. O desafio da Terra leva os homens aos sonhos e aos delírios. E apesar de todas as Condenações da sociedade acomodada e estática, o Quixote avança impávido, transfigurado pelo amor, na conquista do seu ideal. Ainda hoje os homens se matam, galopando em seus rocinantes de aço, contra todos os poderes da sociedade real, armada de explosivos atómicos, para salvar a castelã oprimida no castelo. Os interesses bastardos parecem haver asfixiado todas as esperanças humanas. Mas os anseios da consciência, que brotam das profundezas da alma humana, não cessam de sacudir e minar as estruturas do presente com os sonhos do futuro. Nada detém nem pode deter as forças secretas da consciência, vectores imponderáveis que transfiguram a realidade material do mundo.

O apego humano à realidade concreta decorre naturalmente do condicionamento animal da espécie, que por sua vez provém da unidade do Cosmos, da totalidade do real, que só se fragmenta na percepção sensorial. As pesquisas astronáuticas confirmaram essa unidade já percebida pelos gregos e confirmada rigorosamente pelo desenvolvimento actual da Física, da Biologia e da Psicologia. Os especuladores filosóficos do pluralismo se perdem nas discussões bizantinas sobre uma realidade caótica jamais comprovada. A multiplicidade que visualizam à distância na infinitude cósmica ou na variedade microscópica se resolve naturalmente na compreensão da natureza orgânica da realidade una. Quando passamos do politeísmo ao monismo o fazemos pelo simples motivo de havermos superado a ilusão sensorial da multiplicidade. Kardec resolveu esse problema através do encadeamento natural das coisas e dos seres, com este princípio gestáltico: “Tudo se encadeia no Universo”. Esse encadeamento é o próprio fundamento da Ordem Universal, sem a qual não haveria lógica na realidade e o conhecimento e a Ciência se tornariam impossíveis. Cassirer lembra que a fé na ordem universal equivale, na Ciência, à fé religiosa no Deus Único. Ambas não podem ser provadas por nenhuma pesquisa, mas se impõem a nós por necessidade lógica. Actualmente, com o acelerado desenvolvimento das pesquisas parapsicológicas, não há como negar a superação do sensório psicofisiológico pela percepção extra-sensorial da mente, que penetra em todas as dimensões do real comprovando e justificando as espantosas intuições dos gregos na Antiguidade.

A concepção monista do Universo corresponde à concepção monoteísta. Deus é uno porque é Consciência Cósmica, não em figura humana, mas num dinamismo consciencial abrangente, que tudo envolve, de maneira que ao mesmo tempo supera a realidade universal e nela se entranha. Por isso, como queria Flammarion, Deus está na Natureza e é a Natureza. Não obstante, o facto de ser natureza não obriga Deus à materialidade. A diferença entre Deus e a Natureza é qualitativa, a sua qualidade consciencial o distingue da qualidade material da Natureza. Espinosa colocou bem esse problema na sua teoria da Natura Naturata e da Natura Naturans, correspondentes aos princípios platónicos de sensível e inteligível. Mas isso não implica uma divisão da Natureza de Deus, que é una. Como em Platão, a Natureza Ideal de Deus reflecte-se no Universo como projecção criadora. Isso nos leva à teoria do elã criador em Bergson, esse impulso vital que penetra nas entranhas da matéria para produzir a vida. E nos leva também à teoria estética de Hegel, em que o Belo se infiltra e se desenvolve na criação artística, desde as formas primitivas e monstruosas da arte até ao equilíbrio harmonioso da arte clássica.

É evidente a relação de todos esses pensamentos com o problema da morte, em que a vida anima os corpos materiais e os leva a toda a perfectibilidade possível, como queria Kant, para depois reverter os elementos vitais, com a morte, a novas experiências criadoras. Sobre as teorias de Platão e Aristóteles, Tomás de Aquino e Santo Agostinho forjaram as bases da Teologia Cristã, amesquinhando o pensamento grego e desfigurando os princípios do Cristo na retorta dos dogmas sincréticos tirados de modelos pagãos. Dessas tentativas atrevidas surgiram as Religiões do Medo e da Morte, que levaram a Civilização Terrena à aberração do materialismo.

O estudo de um tema como o da educação para a morte exige incursões difíceis no pensamento antigo, moderno e contemporâneo, para o estabelecimento das conexões orientadoras. Não se pode entrar no labirinto sem o fio de Ariadne nas mãos, pois o Minotauro pode estar à nossa espera. Numa fase de transição cultural como a deste século o problema da morte exige de todos nós um esforço mental muitas vezes atordoante. Mas temos de fazer esse esforço, para que a vida não fracasse em nós. A vida nunca fracassa em si mesma, pois o elã vital nunca se enfraquece, mas pode fracassar em nós. Os que se apegam à sua vida, como ensinou o Cristo, a perderão, mas os que a perdem por amor d’Ele a reencontrarão em abundância. Quem impede o fluxo da vida suicida-se na barreira do seu egoísmo e volta ao círculo vicioso das reencarnações repetitivas. Esse é o castigo que o espírito preguiçoso se impõe a si mesmo.

/…
(i) No momento em que o Autor escrevia este capítulo, não havia sido eleito o substituto de Paulo VI. (N.E.)



José Herculano Pires – Educação para a Morte, Dialéctica da Consciência, 19º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)