Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 22 de outubro de 2016

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria II – A Terra (II)

  Assim como os sons derivam do número de vibrações sonoras, assim as cores derivam das vibrações luminosas. O colorido de uma paisagem vale por uma espécie de música. A verdura dos prados é formada pelo número, qual o tema de uma melodia; a rosa que se desbotou é o centro de uma esfera de vibrações luminosas, constituindo o matiz aparente, e o rouxinol que trina em carícias, projecta no ar as vibrações sonoras características do seu tónus. Todo o movimento é número, e todo o número é harmonia.

  Não há dúvida de que existe, nesse estado de coisas, uma parte reservada às leis fisiológicas da nossa organização. Os sons audíveis começam nas vibrações lentas e acabam nas agudas, que o ouvido pode captar, quais sejam de 16 a 36.850 por segundo (i).

  As cores visíveis começam nas vibrações lentas e extinguem-se com as mais rápidas que a nossa retina possa apreender, ou seja, de 458 triliões por segundo, a 727 triliões por segundo (ii).

  Mas, não haveria como daí concluir que haja nisso apenas uma relação fortuita entre a nossa organização e os movimentos exteriores.

  Sons e cores estendem-se abaixo e acima dos limites da nossa organização, igualmente subordinados a regras numéricas. Há sons que o ouvido humano não pode captar, assim como há cores que nos escapam à retina. E no próprio limite das nossas percepções a relação entre estas e os nossos sentidos procede, ao menos na nossa opinião, do facto de não ter sido a construção do nosso organismo alheio ao número – o elo universal.

  Também a forma, nas suas dissimulações mais ondeantes, pertence ao número, pois toda a figura é determinada pelo algarismo.

  O sentido inato da estética que nos inspira busca as formas mais puras. O círculo nos encanta com a sua curva graciosa.

  A Geometria, nas nossas construções, não desgarra por veredas arbitrárias. A Arquitectura apoia-se, conforme as suas aplicações, sobre a forma estética do nosso pensamento, ainda que por vezes suceda (como na nossa época por exemplo) não ter estilo algum.

  Até nas figuras simbólicas das tradições religiosas desejamos simetria, simulando-a às vezes em aparente desordem. Ao contemplar um emaranhado de coisas, a vista logo se nos fatiga, ao passo que se embevece e repousa ao fixar as danças de movimentos melodiosos. Característica peculiar do reino mineral, a simetria torna-se menos severa ao graduar-se nos reinos orgânicos.

  Os vegetais modelam-se pelo seu tipo ideal, mas deixam uma certa latitude às forças que os modificam, e assim é que crescem em duas direcções opostas; as folhas sucedem-se no seu ciclo, em torno da haste, em número característico; as suas flores não escapam à ordem numérica. Número e forma são a base da classificação vegetal. Os animais, com o manifestarem o tipo de cada espécie, dão à simetria o seu papel e o próprio homem é uma unidade composta por duas metades simetricamente ligadas.

  Acima de todas essas formas particulares, soberana manifesta-se-nos a unidade de plano.

  Nas espécies mais diferentes encontram-se analogias significativas. Nada menos parecido com a mão humana do que a pata do cavalo e, no entanto, se dissecardes a pata, lá encontrareis um rudimento de mão com os dedos inscritos.

  Assim a ordem, a mesma ordem numérica, impera na Terra como nos céus. Não vamos pensar que as harmonias naturais, despercebidas ao homem, hajam de ser ruídos informes e constituam excepção. O vento que suspira entre os cedros e os pinheiros; o lamento das vagas na praia arenosa; o zumbido do insecto no âmbito dos bosques; todos os indefiníveis sons que animam a Natureza são vibrações sonoras, pertinentes ao reinado do número.

  O facto na aparência mais insignificante, tanto quanto o de maior vulto, resulta de leis determinadas. Com que direito, pois, ousam declarar os negadores do espírito a materialidade absoluta do Universo? Que pode a matéria só por si? Que será um átomo de oxigénio ou de carbono considerado à revelia de toda e qualquer lei? Em que caos mergulhará a Natureza se aniquilardes a força que a mantém? Imaginemos por um momento que o número deixa de existir, e esta conjectura, só por si, aniquila, todas as harmonias que acabamos de explanar. Ora, perguntamos: pode a faculdade matemática pertencer à matéria? Se assim, julgá-lo, resta dizer-nos que matéria será essa: oxigénio, azoto, carbono, ferro, alumínio. Evidentemente não, pois a lei supera todos esses corpos e é precisamente ela – a lei – que os combina, casa, dissocia, separa, visto que os governa. Que vos resta, então? Pertencerão à matéria o som, a luz, o magnetismo? Mas a experiência vos demonstra o contrário. Nisso, tendes outras tantas modalidades de movimento. Quem determina um dado movimento ao som e outro à luz? Quem regula essas forças? Aparentemente, serão elas mesmas, ou uma força superior que as abranja a todas. A matéria não é, em todos os seus movimentos, senão o objecto passivo.

  Inegável, portanto, que na Natureza inorgânica a matéria é escrava e a força é soberana.

  Contudo, é precisamente o que põem em dúvida os nossos campeões do materialismo. Já tivemos o ensejo de apreciar o valor dos seus argumentos no que diz à Natureza inorgânica. Edifiquemo-nos agora, sem demora, com a maneira por que explicam a Natureza orgânica.

  Quando queimamos cautelosamente uma planta, não raro obtemos o resíduo de um esqueleto silicoso correspondente à forma primitiva da haste. É a substância que a constituía, proveniente da substância do solo. A planta integral, encerra a mais, certos corpos determinados pela sua natureza: assim, por exemplo, o trigo contém o glúten azotado; a videira, cal; a batata, potássio; o chá, magnésio; o tabaco, salitre, etc. A cada planta convém uns tantos elementos minerais e a própria planta é que os sabe escolher. O agricultor inteligente adapta a sua lavoura à natureza do terreno e escolhe os adubos de acordo com as safras que colima. No conhecimento das necessidades de cada espécie está o segredo das searas e dos alqueires. Diante disto, os teóricos de que nos ocupamos só se explicam pela metade. A raiz absorve – dizem – de acordo com as leis fixas de afinidade, os elementos que lhe jazem em volta. E, como se temessem não ser bem compreendido o papel tão judiciosamente atribuído à tal afinidade electiva, acrescentam (ver Moleschott) que a planta fabrica por si mesma a massa principal do seu volume. Haverá, quem, depois de uma tal declaração, ainda se negue a outorgar à força o ascendente directivo que lhe cabe? Pois há, visto que tudo isso é dito atributivamente à matéria. A evaporação que faculta às raízes a absorção dos elementos da terra vegetal, dizem, e a afinidade dos líquidos através das paredes celulares que os separam, tais as faculdades mestras da matéria, que engendram o crescimento. Eis uma pobre raiz que vegeta no cimo do rochedo: necessita de sombra, de silêncio, de uma certa alimentação de que a separam seixos e calhaus... Examinem-se-lhe os vagos, mas, enérgicos desejos: ela procura, coleia, recua, contorna pedras, desce, sobe, lança-se ávida a qualquer ponto que um quê de instintivo a faz adivinhar, recai por vezes desfalecida, mas logo se reanima de novos ímpetos, derruba todos os obstáculos e chega, enfim, à Canaã prometida. Desde então aí se fixa, implanta-se e afirma os seus direitos de conquista. A árvore mofina que delirava outrora em calafrios de consumpção, retoma prestes o vigor natural, bracejando pelo solo os seus ramos luxuriantes. Ousar-se-á admitir aqui, mais formalmente ainda do que na cristalização mineral, a inexistência de um princípio inteligente, de uma força orgânica peculiar?

  Por nós, confessamo-lo sem reservas: na manifestação dessas tendências instintivas saudamos o ser virtual, a força intrínseca do vegetal, que constrange a matéria a obedecer-lhe.

  Parece-nos que sois consequentes atribuindo à matéria essa afinidade electiva (como se a matéria discernisse!), quando nós a inferimos no ser vegetal, que, aflorado nas condições mais díspares, sabe adivinhar por toda a parte os elementos necessários à existência da sua espécie.

  Ó pretensos sábios, que acreditais fabricar ciência arrastando a inteligência em campo raso de despautérios, deixai que vos acuse e lastime não terdes sabido ver, nem sentir, os cenários da Natureza! O aspecto admirável de uns tantos sítios, nos quais a graça e a beleza se conjugam sob todos os prismas; a movimentação da vida, na viridência constante de prados e florestas; a irisação da luz-clara, marchetada de flocos de ouro; o perfil silencioso das árvores; o espelho translúcido dos lagos que reflectem o Sol; o calor primaveril que aquece a atmosfera; a senda das selvas e o perfume das flores: todas as maravilhas, ternuras, carícias da Natureza ficaram estranhas à vossa inércia. As contemplações desta natureza terrestre oferecem, contudo, grande encanto e acarretam, por vezes, revelações inesperadas.

  Lembro-me e confesso, ainda que possas rir da minha sensibilidade – lembro-me, repito, de haver passado horas deliciosas, admirando solitariamente umas quantas paisagens. Não há que categorizar aqui as impressões de que falo, pois quem tenha olhos de ver encontrá-las-á por toda a parte. O Sol, não posto ainda, mas nublado, iluminava as alturas, colorindo de matizes delicadíssimos e esquisitos as nuvens mais altas, cúmulus louros a vogarem lentos, acima dos círrus argenteos. Um vento suave e insensível à superfície do solo balouçava aqueles grupos polícromos, nos quais os tons de feérica paleta, do áureo ao róseo, se harmonizavam no contraste, quais acordes de um coro celestial. A meus pés fremia a onda translúcida do lago imenso, a sumir-se no horizonte longínquo. Profundo silêncio amortalhava a cena. À beira d'água, não longe, alguns capões de árvores e de arbustos reflectiam-se no espelho móvel, com proporções gigantescas. A massa equórea reflectia simultaneamente a terra e o céu, opondo às luzes de cima as sombras de baixo. Quadro digno dos grandes paisagistas, que costumamos admirar nas telas de um Claude Lorrain e de um Poussin, mas cuja simplicidade inimitável transcende a todo o poder imaginativo! Às vezes, o silêncio ambiente era quebrado pelo cincerro dos rebanhos distantes, tangidos ao pastoreio, quando não pelas copias de alados cantores. Diante desse conjunto de tanta beleza, embora velada, de tanta vivacidade, apesar de aparentemente morto, de tal eloquência no meio do silêncio, havia um esplendor tamanho e tão imperioso, que eu me senti penetrado da vida universal, difusa no mesmo ar que respirava por todos os poros. Ela dizia-me que as árvores vivem, que as plantas respiram e sonham! Dizia-me que no ar e na luz, em que a supomos inanimada, ela se eleva e se engrandece para a fase indecisa das primeiras manifestações do ser. Eu bem via, com os olhos do químico, a sucessibilidade rápida e incessante dos átomos constituintes do corpo, desde a erva tenra até à nuvem. Sabia que um dinamismo grandioso e incoercível lhe põe em circulação o turbilhonar das moléculas simples, alternativamente combinadas na sucessão dos corpos.

  Contudo, no âmago desse movimento, pressentia a força que o acarreta; no fundo dessas aparências admirava a lei directriz das coisas criadas. Dominado pelo mesmo poder dessas leis, que irradiam a beleza no espaço com a mesma facilidade com que o lavrador semeia em campo fértil, profundamente emocionado nessa comunhão passageira do meu eu com a vida inconsciente da Natureza, senti-me como que transportado a uma espécie de êxtase, enquanto as imagens aéreas daquele céu magnífico se me reflectiam na alma, qual se o fizessem na face espelhada de um lago tranquilo.

  É nesses instantes de contemplação, fugazes e indescritíveis, que a ideia estética de Deus me surge mais luminosa e mormente me avassala. São estas revelações, que não posso exprimir e nem a mim próprio definir, quando me ocorrem. Sinto-me subjugado pela necessidade de reconhecer uma causa para essa beleza, uma causa que não posso nomear e que, não obstante, me surge com as características da própria beleza, da bondade, da ternura, do amor e assim também com as do poder, da magnitude e da dominação. Já não é, então, pela inteligência, mas pelo coração que me compenetro da existência de Deus. Deverei confessar que me sinto às vezes surpreso e acabrunhado por uma emoção profunda? Não, por isso que, na opinião dos contraditores, todo o sinal de emoção só tem origem na centralidade variável do coração anatómico, ou na secreção da glândula lacrimal, mais ou menos sensível por temperamento e que, portanto, todas as maravilhas aqui expendidas não passam de cego resultado, baldo de senso, das combinações materiais engendradas pela química e pela física orgânicas!

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(i) Segundo Deprez. As experiências de Savart limitam os sons graves a 8 vibrações duplas por segundo, e a 24000 os agudos.
(ii) Tomamos aqui por limites o número de ondulações do infravermelho ao ultravioleta. Além deste, o nosso globo visual não pode perceber a luz, que sem embargo, ainda existe.


Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria II – A Terra 2 de 3, 15º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Diálogos de Kardec ~

§ VII — DA OBSESSÃO E DA POSSESSÃO

56. A obsessão consiste no domínio que os maus Espíritos assumem sobre certas pessoas, com o objectivo de as escravizar e submeter à vontade deles, pelo prazer que experimentam em fazer o mal.

Quando um Espírito, bom ou mau, quer actuar sobre um indivíduo, envolve-o, por assim dizer, no seu perispírito, como se fosse um manto. Interpenetrando-se os fluidos, os pensamentos e as vontades dos dois se confundem e o Espírito, então, se serve do corpo do indivíduo, como se fosse seu, fazendo-o agir à sua vontade, falar, escrever, desenhar, quais os médiuns. Se o Espírito é bom, a sua actuação é suave, benfazeja, não impele o indivíduo senão à prática de actos bons; se é mau, força-o a acções más. Se é perverso e malfazejo, aperta-o como numa teia, paralisa-lhe até a vontade e mesmo o juízo, que ele abafa com o seu fluido, como se abafa o fogo debaixo de uma camada d’água. Fá-lo pensar, falar, agir em seu lugar, impele-o, a seu mau grado, a actos extravagantes ou ridículos; magnetiza-o, em suma, lança-o num estado de catalepsia moral e o indivíduo se torna um instrumento da sua vontade. Tal a origem da obsessão, da fascinação e da subjugação que se produzem em graus muito diversos de integridade. À subjugação, quando no paroxismo, é que vulgarmente dão o nome de possessão. É de notar-se que, nesse estado, o indivíduo tem muitas vezes consciência de que o que faz é ridículo, mas é forçado a fazê-lo, tal como se um homem mais vigoroso do que ele o obrigasse a mover, contra a vontade, os braços, as pernas e a língua.

57. Pois que os Espíritos existiram em todos os tempos, também desde todos os tempos representaram o mesmo papel, porque esse papel é da natureza e a prova está no grande número que sempre houve de pessoas obsidiadas, ou possessas, se o preferirem, antes que se falasse de Espíritos, ou que, nos dias actuais, se ouvisse falar de Espiritismo, nem de médiunsÉ, pois, espontânea a acção dos Espíritos, bons ou maus; a destes produz uma imensidade de perturbações na economia moral e mesmo física, perturbações que, por ignorância da verdadeira causa, atribuíam a causas erróneas. Os Espíritos maus são inimigos invisíveis, tanto mais perigosos, quanto da acção deles não se suspeitava. Desmascarando-os, o Espiritismo revela uma nova causa de certos males da Humanidade. Conhecida a causa, não mais se procurará combater o mal por meios que já se sabem inúteis; procurar-se-ão outros mais eficazes. Ora, o que foi que fez se descobrisse aquela causa? A mediunidade. Foi pela a mediunidade que esses inimigos ocultos traíram a sua presença; ela foi para eles o que o microscópio foi para os infinitamente pequenos: revelou todo um mundo. O Espiritismo não atraiu os maus Espíritos: desvendou-os e forneceu os meios de se lhes paralisar a acção e, por conseguinte, de afastá-los. Não foi ele quem trouxe o mal, visto que o mal existe desde todos os tempos; ele, ao contrário, dá remédio ao mal, apontando-lhe a causa. Uma vez reconhecida a acção do mundo invisível, ter-se-á a explicação de um sem-número de fenómenos incompreendidos e a Ciência, enriquecida com o conhecimento dessa nova lei, verá abrir-se diante de si novos horizontes. Quando chegará ela a isso? Quando deixar de professar o materialismo, porquanto o materialismo lhe detém o voo, opondo-lhe intransponível barreira.

58. Pois que há Espíritos maus que obsidiam e Espíritos bons que protegem, perguntam muitos se os primeiros são mais poderosos do que os segundos. Não é que o bom Espírito seja mais fraco; o médium é que não tem força bastante para alijar de si o manto que lhe atiraram em cima, para se desprender dos braços que o enlaçam e nos quais, cumpre dizê-lo, às vezes se compraz. Neste caso, compreende-se que o bom Espírito não possa levar vantagem, pois que o outro é preferido. Admitamos, porém, que a vítima deseje desembaraçar-se do envoltório fluídico que penetra o seu, como a humidade penetra as roupas. Esse desejo nem sempre bastará. A própria vontade nem sempre é suficiente.

Trata-se de lutar contra um adversário. Ora, quando dois homens lutam corpo a corpo, aquele que dispõe de mais fortes músculos é que abate o outro. Com um Espírito tem-se de lutar, não corpo a corpo, mas Espírito a Espírito e é ainda o mais forte que triunfa. Aqui, a força reside na autoridade que se possa exercer sobre o obsessor e essa autoridade está subordinada à superioridade moral. Esta é como o Sol que dissipa o nevoeiro pela potencialidade dos seus raios. Esforçar-se por ser bom, por se tornar melhor se já é bom, por purificar-se das suas imperfeições, por, numa palavra, elevar-se moralmente o mais possível, tal o meio de o encarnado adquirir o poder de mandar sobre os Espíritos inferiores, para os afastar. De outro modo estes zombarão das suas injunções. (O Livro dos Médiuns, nos 252 e 279.)

Entretanto, objectar-se-á, por que os Espíritos protectores não lhes ordenam que se retirem? Sem dúvida, podem fazê-lo e algumas vezes o fazem. Mas, permitindo a luta, deixam ao atacado o mérito da vitória. Se consentem que se debatam criaturas que, sob certos aspectos, têm os seus merecimentos, é para lhes experimentar a perseverança e para levá-las a adquirir mais força no campo do bem. A luta é uma espécie de ginástica moral.

Muitas pessoas prefeririam certamente outra receita mais fácil para repelirem os maus Espíritos: por exemplo, algumas palavras que se proferissem, ou alguns sinais que se fizessem, o que seria mais simples do que corrigir-se alguém de seus defeitos. Sentimos muito; porém, nenhum meio eficaz conhecemos de vencer-se um inimigo, senão o fazer-se mais forte que ele. Quando estamos doentes, temos que resignar-nos a tomar um medicamento, por muito amargo que seja; mas, também, se tivermos tido a coragem de bebê-lo, como nos sentimos bem e fortes! Temos pois que nos persuadir de que não há, para alcançarmos aquele resultado, nem palavras sacramentais, nem fórmulas, nem talismãs, nem sinais materiais quaisquer. De tudo isso riem-se os maus Espíritos e não raro se comprazem em indicar alguns, tendo sempre o cuidado de afirmá-los infalíveis, para melhor captarem a confiança daqueles a quem querem iludir, porque, então, estes, confiantes nas virtudes do processo aconselhado, se entregam sem receio.

Antes de pretender, quem quer que seja, domar um Espírito mau, precisa cuidar de domar-se a si mesmo. De todos os meios de adquirir-se força para chegar a isso, o mais eficiente é a vontade secundada pela prece, a prece do coração, entenda-se, e não a de palavras, das quais a boca participa mais do que o pensamento. Precisamos pedir ao nosso anjo guardião e aos bons Espíritos que nos assistam na luta; não basta, porém, lhes pedirmos que afastem o Espírito mau; devemos lembrar-nos desta máxima: ajuda-te a ti mesmo e o céu te ajudará e rogar-lhes, sobretudo, a força que nos falta para vencermos os nossos maus pendores, que são, para nós, piores que os maus Espíritos, porquanto são esses pendores que os atraem, como a podridão atrai as aves de rapina. Orando também pelo Espírito obsessor, retribuir-lhe-emos com o bem o mal que nos queira e nos mostraremos melhores do que ele, o que já é uma superioridade. Com perseverança, acaba-se as mais das vezes por induzi-lo à posse de melhores sentimentos e a transformá-lo de perseguidor em amigo grato.

Em resumo: a prece fervorosa e os esforços sérios que a criatura faça por melhorar-se constituem os únicos meios de ela afastar os maus Espíritos, que reconhecem como seus senhores aqueles que praticam o bem, enquanto que as fórmulas lhes provocam o riso, do mesmo modo que a cólera e a impaciência os excitam. Precisa o perseguido cansá-los, demonstrando-se mais paciente do que eles.

Por vezes acontece que a subjugação avulta até ao ponto de paralisar a vontade do obsidiado, do qual nenhum concurso sério se pode esperar. Aí, principalmente, é que a intervenção de terceiros se torna necessária, quer por meio da prece, quer pela acção magnética. Mas, também a força dessa intervenção depende do ascendente moral que os interventores possam ter sobre os Espíritos; se não valerem mais do que estes, improfícua será a acção que desenvolvam. A acção magnética, no caso, tem por efeito introduzir no fluido do obsidiado um fluido melhor e eliminar o do mau Espírito. Ao operar, deve o magnetizador objectivar duplo fim: o de opor a uma força moral outra força moral e produzir sobre o paciente uma espécie de reacção química, para nos servirmos de uma comparação material, expelindo um fluido com o auxílio de outro fluido. Dessa forma, não só opera um desprendimento salutar, como igualmente fortalece os órgãos enfraquecidos por longa e vigorosa constrição. Compreende-se, em suma, que o poder da acção fluídica está na razão directa não somente da energia da vontade, mas, sobretudo, da qualidade do fluido introduzido e, segundo o que deixamos dito, que essa qualidade depende da instrução e das qualidades morais do magnetizador. Daí se segue que um magnetizador ordinário, que actuasse maquinalmente, apenas por magnetizar, fraco ou nenhum efeito produziria. É de toda a necessidade um magnetizador espírita, que actue com conhecimento de causa, com a intenção de obter, não o sonambulismo ou uma cura orgânica, porém, os resultados que vimos de descrever. É, além disso, evidente que uma acção magnética dirigida neste sentido não pode deixar de ser muito proveitosa nos casos de obsessão ordinária, porque, então, se o magnetizador tem a auxiliá-lo a vontade do obsidiado, o Espírito se vê combatido por dois adversários em lugar de um.

Cumpre também dizer que amiúde se atribuem aos Espíritos maldades de que eles são inocentes. Alguns estados doentios e certas aberrações que se lançam à conta de uma causa oculta, derivam do Espírito do próprio indivíduo. As contrariedades que de ordinário cada um concentra em si mesmo, principalmente os desgostos amorosos, dão lugar, com frequência, a actos excêntricos, que fora erróneo considerar-se fruto da obsessão. O homem não raramente é o obsessor de si mesmo.

Acrescentemos, por fim, que algumas obsessões tenazes, sobretudo em pessoas de mérito, fazem às vezes parte das provações a que essas pessoas estão sujeitas. Acontece mesmo que a obsessão, quando simples, é uma tarefa imposta ao obsidiado, qual a de trabalhar pela regeneração do obsessor, como um pai pela de um filho vicioso. (Para maiores particularidades, veja-se O Livro dos Médiuns.)

Em geral, a prece é o poderoso meio auxiliar da libertação dos obsidiados; nunca, porém, a prece só de palavras, dita com indiferença e como uma fórmula banal, será eficaz em semelhante caso. Faz-se mister uma prece ardente, que seja ao mesmo tempo uma como magnetização mental. Pelo pensamento, pode-se encaminhar para o paciente uma corrente fluídica salutar, cuja potência guarda relação com a intenção. A prece, pois, não tem apenas por efeito invocar um auxílio estranho, mas exercer uma acção fluídica. O que uma pessoa, só, não pode fazer podem-no, quase sempre, muitas pessoas unidas pela intenção numa prece colectiva e reiterada, visto que o número aumenta a potencialidade da acção.

59. A experiência comprova a ineficácia do exorcismo, nos casos de possessão, e provado está que quase sempre aumenta o mal, em vez de atenuá-lo. A razão se encontra em que a influência está toda no ascendente moral exercido sobre os maus Espíritos e não num acto exterior, na virtude das palavras e dos gestos. O exorcismo consiste em cerimónias e fórmulas de que zombam os maus Espíritos que, entretanto, cedem à autoridade moral que se lhes impõe. Eles vêem que os querem dominar por meios impotentes, que pensam intimidá-los por um vão aparato e, então, se empenham em mostrar-se os mais fortes e para isso redobram de esforços. São quais cavalos espantadiços que dão em terra com o cavaleiro inábil e que obedecem quando topam com um que os governa. Ora, aqui, quem realmente manda é o homem de coração mais puro, porque é a ele que os bons Espíritos de preferência atendem.

60. O que pode um Espírito fazer com um indivíduo, podem-no muitos Espíritos com muitos indivíduos simultaneamente e dar à obsessão carácter epidémico. Uma nuvem de maus Espíritos invade uma localidade e aí se manifestam de diversas maneiras. Foi uma epidemia desse género que se abateu sobre a Judéia ao tempo do Cristo. Ora, o Cristo, pela sua imensa superioridade moral, tinha sobre os demónios ou maus Espíritos tal autoridade, que bastava lhes ordenasse que se retirassem para que eles o fizessem e, para isso, não empregava fórmulas nem gestos ou sinais.

61. Espiritismo se funda na observação dos factos que resultam das relações entre o mundo visível e o mundo invisível. Estando na ordem dos da natureza, esses factos se produziram em todas as épocas e abundam principalmente nos livros sagrados de todas as religiões, pois que serviram de base à maioria das crenças. Por não os terem os homens compreendido, é que a Bíblia e os Evangelhos apresentam tantas passagens obscuras e que foram interpretadas em sentidos diferentes. O Espiritismo traz a chave que lhes facilitará a inteligência.

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos, VII – DA OBSESSÃO E DA POSSESSÃO, 14º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)