Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 19 de janeiro de 2020

Deus na Natureza ~

~ a origem dos seres ~
(I de III)

  Será rebaixar a ideia de Deus, considerar o Universo como um gigantesco paralelo de uma obra única, cujas modalidades se manifestam sobre a forma de vários aspectos e cujos poderes se traduzem em forças particulares, distintas? A substância primitiva ocupa o espaço ilimitado. O plano divino está em que esta substância seja um dia condensada em mundos, nos quais a vida e a inteligência hajam de irradiar esplendores; A luz, o calor, a electricidade, o magnetismo, a atracção, o movimento sob modalidades desconhecidas percorrem, atravessam essa substância primordial, como o vento da Grécia, que, ao tempo de Pan, tocava as harpas eólias no âmbito da noite. Que mão empunha o arco e prenuncia o mais magnificente dos coros? Não pode a inteligência humana defini-lo. Escutemos, atentos, o longínquo concerto da Criação.

  No amanhecer da Natureza terrestre, já os sóis resplendiam, de há muito, na amplidão dos céus, a gravitarem harmónicos nas suas órbitas, sob a regência da mesma lei universal que ainda hoje os rege. Era o primeiro dia da Terra. Solidões oceânicas, tempestades ígneas, rupturas formidáveis de águas e nuvens viram chegar-lhes, ao fim, uma paz desconhecida. Raios de ouro atravessaram as nuvens; um céu azul tonalizou a atmosfera; um belo leito de púrpura se ofereceu ao Sol nesse dia. Então, já não eram dias e anos a contar, pois períodos imensos, incalculáveis, já lhe haviam coberto o berço. Os astros são jovens, ainda quando as miríades de gestação tenham sucumbido. As ilhas surgiram, então, do seio das ondas e a primeira verdura estendeu pelas praias o seu manto virginal. Muito tempo depois, dos galhos das vides rebentaram flores, de cujos lábios entreabertos se exalavam perfumes. Mais tarde, no bojo profundo das florestas repercutiu o canto das aves e os hóspedes fabulosos dos mares primitivos se cruzaram no reino ondulante. Sucessivamente, a Terra se dava aos espasmos da vida, animada pelo sopro imortal, vendo luzes e sombras perpassarem-lhe a face. Suponhamos, um momento, que a força orgânica, que hoje se transmite de geração a geração, tenha aparecido como uma resultante natural e inevitável das condições fecundas em que se encontrava a Terra quando soou a era da vida; suponhamos as primeiras células orgânicas diversamente constituídas, formando tipos primordiais distintos, ainda que simples, pobres, grosseiros, sejam as cepas de sucessivas variedades; suponhamos, enfim, que todas as espécies vegetais e animais, inclusive a humana, sejam o resultado de transformações lentas, operadas sob condições progressivas do planeta, e perguntemos em que, e como, pode essa teoria nulificar a necessidade de um criador e organizador imanente? Quem deu essas leis ao Universo? Quem organizou essa fecundidade? Quem imprimiu à Natureza essa tendência perpetuamente progressiva? Quem deu aos elementos materiais a faculdade de produzir ou de receber a vida? Quem concebeu a arquitectura desses corpos animados, desses edifícios maravilhosos, nos quais todos os órgãos tendem para um mesmo fim? Quem presidiu à conservação dos indivíduos e das espécies na trama inimitável dos tecidos, dos arcaboiços, dos mecanismos – pelo dom previdente do instinto, por todas as faculdades, enfim, que possuem respectivamente todos os seres vivos e cada qual de acordo com o seu papel no cenáculo do mundo? Numa palavra: – se a força vital é uma força da mesma natureza das forças moleculares, insistamos em perguntar: – quem é o seu autor? Seria por não haver este autor concebido tudo com as próprias mãos, que haveríeis de o negar?

  De boa fé, supondes que, se em lugar de escrever letra a letra, palavra a palavra, esta obra e enviá-la à Livraria Académica, que a confiou a um tipógrafo; o qual, por sua vez, a entregou ao paginador, que, por sua vez, a confiou aos contramestres e aprendizes, etc.; e depois, ainda me obrigou a corrigir as provas – sem falarmos da escolha do papel, do formato, do número de páginas, da encadernação, tudo enfim que representa a factura de um livro; – supondes, repito, que, depois de haver o livro passado por tantos trâmites, deixasse eu de ser o seu legítimo autor, bastando apenas querê-lo para que o plano instantaneamente se completasse? Acreditais que, por haver simplesmente coordenado certas regras, em virtude das quais a ideia expressa em tinta, papel, chumbo; – agentes inertes e cegos, actuados sob a minha vigilância constante – se materializou em parte, tão invisivelmente quanto me eclodiu do cérebro, me tenha destituído da legítima autoria desta obra? Por mim, senhores materialistas, ficaria muito satisfeito só com o poder evitar a revisão das provas, que, já o dizia Balzac, é o suplício infernal dos escritores. E se algum brincalhão de mau gosto apregoasse pelas ruas de Paris que o meu livro se fizera por si mesmo, eu haveria de rir à gargalháda e não deixaria de me interessar por tão precioso privilégio.

  Fosse-me permitido o paralelo entre o livro da Natureza e o meu e, creio que faria coisa assim como comparar uma boneca mecânica à Venus de Milo, viva, ou, então, as rodas do relógio apresentado a Carlos Magno pelo califa Harun al-Rashid, ao mecanismo do sistema universal.

  Todavia, não sereis vós quem há de elevar o meu trabalho às alturas da Criação natural. Se a boneca mais insignificante e o mecanismo mais tosco revelam a Voltaire a existência de um ou de vários fabricantes, a que se reduz a negação dos que recusam identificar um arquitecto na sublimada harmonia do edifício cósmico?

  Assim é que, seja qual for o círculo arbitrário, imaginado em torno da acção sensível do Criador e mediante o qual pretendamos limitar a sua presença, a ideia de Deus nos escapa, sempre, pela tangente, com singular subtileza. Essa propriedade particular da ideia do ser incriado manifesta-se em cada conclusão do nosso arrazoado!

  Disseram-nos que Darwin tinha sempre a seu lado um teólogo anglicano incumbido de ajeitar as coisas e manter em perpétuo acordo a consciência do naturalista eminente com as pretendidas consequências da sua teoria da selecção natural. De resto, o tradutor feminino da obra teve o cuidado de nos advertir que, “em vão, protesta o autor não ser o seu sistema em nada contrário à ideia de divindade”. Pelo que nos toca, é com íntima satisfação que aqui juntamos às nossas convicções pessoais as do autor da Origem das Espécies: “Não vejo em que possam as teorias expostas nesta obra melindrar os sentimentos religiosos de quem quer que seja. Por demonstrar quanto são inconscientes essas impressões, basta lembrar que a maior das descobertas humanas – a da lei de gravitação – foi hostilizada pelo próprio Leibnitz como subversiva da religião natural. Um notável autor sacro escreveu-me, em tempos, ter chegado gradativamente a convencer-se de que a criação divina das formas simples, originais, capazes de por si evoluírem e se transformarem em formas úteis, era a concepção mais justa e compatível com a majestade do Supremo Ser, do que presumir a necessidade de um novo acto criador, a fim de encher os vácuos causados pelo funcionamento das suas próprias leis. Autores eminentes mostram-se inteiramente satisfeitos com a hipótese da criação independente de cada espécie. A meu ver, o que conhecemos das leis impostas à matéria, pelo Criador, está mais de acordo com a formação e extinção dos seres presentes e passados por causas secundárias, semelhantes às que determinam o nascimento e a morte dos indivíduos. Quando encaro todos os seres não como criações especiais, mas como descendentes em linha directa de seres que viveram anteriormente aos depósitos do período Siluriano, eles me parecem enobrecidos.”

  Mais adiante, acrescenta o mesmo naturalista:

  “Que interesse nos desperta o espectáculo de uma praia coberta de vegetação, pássaros a cantar, insectos a esvoaçar, anelídeos ou larvas rastejando no solo húmido, ao pensarmos que todas essas formas elaboradas com tanto cuidado, paciência, habilidade e dependentes umas de outras por uma série de relações complicadas, foram todas produzidas por leis de uma contínua actividade em torno de nós! Essas leis, tomadas no seu mais lato sentido, enumeramo-las aqui: – de crescimento e reprodução; de hereditariedade, quase implícita nas precedentes; de variabilidade sob a acção directa ou indirecta das condições exteriores da vida, e do uso ou da falta de exercício dos órgãos; da multiplicação das espécies em sentido geométrico, a produzir a concorrência vital e a eleição natural e, daí, a divergência de caracteres e extinção das formas específicas.

  “É assim que, da guerra natural, da fome e da morte, resulta o mais admirável dos efeitos que possamos conceber: – a formação lenta dos seres superiores. No encarar a vida e as suas potências animando originariamente algumas ou uma única forma simples, ao influxo do Criador, também há grandeza. E enquanto o planeta seguiu descrevendo os seus círculos perpétuos, de acordo com as leis fixas da gravitação, formas inumeráveis, cada vez mais belas e maravilhosas, se desenvolveram e se desenvolverão, mediante uma evolução sem fim”. (*)

  Declarações interessantes que importa registar, para opô-las aos nossos materialistas.

 Pretendem estes que a doutrina da geração espontânea, sustentada pelo Sr. Pouchet e a da origem das espécies, amparada pelo Sr. Darwin, destroem, ambas, a ideia de Deus, e eis que, nem um nem o outro admite essa acusação e protestam contra a ilusão dos nossos adversários. Nisto, pois, como em tudo o mais, são eles logrados por uma falsa miragem. Consignemos, assim, como novos dados, este duplo e valioso facto. Em primeiro lugar, os materialistas não têm o direito de se apoiarem na geração espontânea para concluir pela não existência de Deus:

  1º – porque essa geração não está provada, e

  2º – porque, se o estivera, não acarretaria uma tal consequência.

  Em segundo lugar, não têm o direito de afectar ao seu ponto de vista o sistema do transformismo das espécies, já porque tal sistema não está provado, e já porque ele não afecta a questão dominante das origens da vida.

  Se estivesse provado que os vegetais e animais inferiores são formados por geração espontânea, no âmago da matéria inorgânica, haveria grandes probabilidades para crer que assim sucedesse e, com maioria de razão, com a origem das espécies. Os partidários das transformações específicas chegaram mesmo a apoiar-se na doutrina das gerações espontâneas para explicar a existência, ainda hoje, de inúmeras formas inferiores, apesar da tendência das espécies primitivas para se aperfeiçoarem. Por isso, admitem que a Criação não completou a sua tarefa e ainda hoje se encontra nesse intervalo. Era a opinião de Lamarck. Cumpre observar que o chefe do movimento actual não compartilha tais ideias e nem mesmo acredita na geração espontânea. “A selecção natural – diz Darwin – não afecta nenhuma lei necessária e universal de desenvolvimento e de progresso. Ela cogita, apenas, de toda e qualquer variação que se apresenta, quando vantajosa à espécie ou aos seus representantes. Tenho apenas necessidade de aqui dizer – declara ele mais à frente – que a Ciência no seu estado actual não admite, em geral, que seres vivos, ainda hoje, se elaborem no seio da matéria inorgânica.”

  Vale notar que não são os sábios, nem mesmo os experimentadores, que proclamam as doutrinas por nós combatidas e sim pretensos filósofos, que, apoderando-se dos estudos científicos daqueles, querem, a toda a força, tirar conclusões repudiadas pelos próprios cientistas. Temos o dever de lhes desmascarar o jogo e demonstrar com a confissão dos próprios experimentadores ilustres, que, se o sistema materialista se obstina ingenuamente a exibi-los em público, assentes no seu palco teatral, não passa isso de mero efeito fantasmagórico, pura ilusão óptica.

  Está neste caso um químico ilustre, o Sr. Frémy, que pensou ter notado corpos indecisos na fronteira dos dois reinos (corpos a que chamou semi-organizados) e foi por isso logo inculcado pelos doutrinaristas como porta-bandeira do materialismo para a hipótese da geração espontânea. Pois vejamos o que disse este químico no Instituto:

  “Precisarei dizer que recuso, sem hesitação, a ideia de geração espontânea, tomada no sentido da produção de um ser organizado, por mais simples que seja, com elementos que não possuem a força vital. A síntese química permite, sem dúvida, reproduzir grande número de princípios imediatos de origem vegetal ou animal, mas a organização opõe, a meu ver, uma barreira intransponível às reproduções sintéticas. Ao lado dos princípios imediatos, definidos, que a síntese pode formar, há outras substâncias menos estáveis que as precedentes, mas também muito mais complexas quanto à sua constituição e que podem ser designadas sob o título genérico de corpos semi-organizados.

  “Esses corpos apresentam-se em conexão com a organização, com a formação dos tecidos, com a produção dos fermentos e a putrefacção, quase no mesmo estado da semente ressequida, que leva anos e anos sem apresentar sinais de vegetação, para germinar logo que submetida às influências do ar, do calor e da humidade.

  “Eles podem, tal como a semente seca, manter-se em estado de imobilidade orgânica durante muito tempo, mas também podem sair desse estado à custa da própria substância, sob os elementos de organização, desde que as circunstâncias favoreçam o desenvolvimento orgânico.”

  Na actualidade não se pode, portanto, cientificamente, depor a favor nem contra a geração espontânea. Essa indecisão forçada está longe de esclarecer a questão da geração primitiva. O mistério permanece tão profundo como ao tempo de Pitágoras. Existem seres vivos na Terra, eis o facto. De onde vêm eles? Conhecemos astrólogos (ainda os há) que escreveram grandes calhamaços para demonstrar que esses seres nos chegaram de outros planetas, nas asas de qualquer cometa aventuroso, ou grudados nalgum bojudo aerólito. Conhecemos sonhadores que pretendem hajam os seres aflorado à superfície do orbe terrestre pela fecundação de eflúvios planetários e estelares. Isso, porém, é romantismo. De onde, pois, vêm os seres? Responder-nos-ão que sempre existiram? Essa maneira de esquivar-se à dificuldade teria contra si a agravante da falsidade, uma vez que as camadas geológicas nos apresentam, em fases regressivas, as épocas em que surgiram diferentes espécies. Se não existe ser orgânico algum sem filiação, quem formou o primeiro casal de cada espécie? A Bíblia responde que foi Deus. Perfeitamente, mas como? Por uma simples maravilha verbal? Mas, antes de tudo: – Deus fala? – objectam os gracejadores, lembrando-se de que o som não se propaga no vácuo... Um súbito efeito da vontade divina? Neste caso, de que forma? Os livros revelados nada têm de explícitos e podemos interpretá-los a favor da geração espontânea (em que pese aos senhores teólogos), tanto como em sentido contrário: “Deus diz: – Que a terra produza a erva tenra, contendo a semente e árvores que dêem fruto, cada qual da sua espécie, e que encerrem consigo a sua semente, a fim de proliferar sobre a terra. E assim se fez. A terra, portanto, produziu a erva contendo a semente de sua espécie, bem assim as árvores, com as suas sementes peculiares à espécie. E Deus viu que isso era bom.

  “E da noite da manhã surgiu o terceiro dia. Disse Deus, então: Que as águas produzam animais vivos que flutuem nelas, e aves que voem acima da terra e sob o firmamento do céu. E os abençoou, dizendo: Crescei e multiplicai, povoai as águas do mar e que as aves se multipliquem sobre a terra.

  “E da noite e da manhã surgiu o quinto dia. Deus disse, então: Que a terra produza animais vivos, cada qual na sua espécie, os domésticos, os répteis e as feras bravias. E assim foi feito”. (**)

  Aí temos o que muito se assemelha à geração espontânea. De resto, os Santos Padres professaram essa doutrina. Alexander von Humboldt achou muito curioso que Santo Agostinho, encarando o povoamento das ilhas, após o dilúvio, não se mostrasse muito longe de recorrer à hipótese de uma geração espontânea (Generatio aequivoca apontanea atst primaria). “Se os anjos ou os caçadores do continente – diz esse Pai da Igreja – não transportaram animais a essas ilhas afastadas, é forçoso admitir que o solo os tenha engendrado; mas, neste caso, pergunta-se: – por que encerrar na Arca animais de toda a espécie?” Dois séculos antes do bispo de Hipona, vamos encontrar no compêndio de Trogue Pompée, já estabelecida a propósito da dissecação primitiva do mundo antigo, do planalto asiático, analogia com a geração espontânea ou, seja, uma ligação semelhante à que se depara na teoria de Linnaeus, acerca do paraíso da Terra, com as investigações do século 18 sobre a Atlântida fabulosa.

  Quanto ao mais, sem que pese à energia dos seus discursos, estes Mirabeaus da tribuna positivista encontram-se, fundamentalmente, em ignorância e indecisão absolutas, no que concerne à origem da vida. Em vão lançam sobre o mistério o véu dos talvez; em vão se entretêm a imaginar mil metamorfoses

  Quando olhamos para o fundo do vaso, percebemos que o caldo não é tão claro quanto o supõem. De tempos a tempos, sem maior alarde, eles deixam perceber confissões que nos permitimos aqui glosar para edificação do auditório. “Enigma insolúvel – diz B. Cotta – que não podemos deixar de atribuir à potência imperscrutável de um Criador, eis o que se nos afigura sempre a origem da matéria, bem como o nascimento dos seres orgânicos.” Eis uma confissão digna de um espiritualista. Büchner, por outro lado, diz: – “É preciso atribuir à geração espontânea um papel mais importante nos tempos primitivos com relação aos actuais, visto não se poder negar que ela tenha engendrado, então, organismos mais perfeitos do que hoje.” E acrescenta logo: “Verdade é que nos faltam provas e mesmo conjecturas plausíveis dos pormenores desses espécimes, o que estamos longe de negar.” E, voltando à ideia dominante, declara imediatamente que – “seja qual for a nossa ignorância, devemos dizer convictamente que a criação orgânica pode e deve ter ocorrido sem intervenção de qualquer força exterior”.

  Karl Vogt, a exemplo dos pré-citados, reconhece que as forças físico-químicas conhecidas não bastam, só por si, para explicar a origem dos organismos. Todo o ser vivo, vegetal ou animal, tem a sua origem essencial na célula orgânica, ou ovo. Antes de tudo, havemos de admitir que essa origem essencial foi criada, sem sabermos como. Só depois dessa premissa admitida é que começam as demonstrações físico-químicas. “Se admitirmos que isso tivesse sucedido uma única vez – diz o autor das Lições sobre o Homem – mediante acção simultânea de factores diversos, que não conhecemos, é lícito concluir que houvesse podido formar-se uma célula orgânica a expensas dos elementos químicos, e torna-se evidente que a mais ligeira modificação devesse determinar imediata modificação no objecto produzido, isto é, na célula. Mas, como não podemos admitir que, sobre toda a superfície terrestre, as mesmas causas tenham actuado e ainda actuem nas mesmas condições e com a mesma energia, na criação da célula primitiva; e que, por outro lado, a criação orgânica haveria de estender-se por toda a Terra, conclui-se, necessariamente, que as primitivas células geradoras de organismos deviam ter aptidões de desenvolvimento diferentes.”

  Virchow não explica melhor a questão de origem. “Em certa fase de desenvolvimento da Terra – diz – sobrevieram condições anormais, sob as quais, entrando nas novas combinações, os elementos recebiam o movimento vital, donde as condições ordinárias se tornaram vitais.”

  Quanto a Charles Darwin, em vão temos rebuscado a sua opinião, mesmo quanto à origem das espécies. Contenta-se ele com o explicar a variabilidade possível dum certo número de tipos primitivos e, é uma nota no mínimo singular, que, em obra tão volumosa e opulenta sobre a origem dos seres, não se trate absolutamente dessa origem!

  O problema é obscuro: a distância do nada a alguma coisa é maior que de alguma coisa a tudo. Seja qual for o sistema a que se filiem as nossas crenças íntimas, espiritualistas ou materialistas, todos perseguimos o inexplicável mistério da vida. Porque não reconhecer com franqueza a nossa absoluta ignorância neste particular? E, contudo, essa ignorância deveria moderar um pouco o ardor negativista dos ateus, levando-os a tratar o enigma com menos arrogância. É de convir que, quando nos assoberba uma tal incerteza, ninguém pode cantar vitória. Quiséssemos voltar à questão e fácil nos seria pôr todas as vantagens do nosso lado; poderíamos impor Deus aos adversários, sem que eles pudessem subtrair-se ao seu domínio. Não demonstrando a Ciência que as afinidades da matéria possam criar a vida, o papel do Criador, aqui, fica íntegro como nos tempos de Adão e até dos pré-adamitas. E ainda que o demonstrasse, a origem e o entretenimento da vida deixam ver claramente a existência de uma força criadora, ou seja, por outras palavras, um Deus oculto.

  Tal, porém, é a força da nossa estratégica, que jamais queremos abusar de uma posição privilegiada e preferimos combater sempre em paridade de terreno e de armas. Contentamo-nos, assim, em insinuar apenas essa superioridade aos adversários, para sua edificação momentânea e baixando, logo a seguir, das alturas favoráveis ao triunfo, para voltar ao plano da organização da vida, sem nos prevalecermos dos argumentos oferecidos pelo problema dessa mesma vida. Ninguém dirá que, do ponto de vista singular da organização, a existência do Ser inteligente não esteja soberanamente demonstrada. Ainda mesmo que, em virtude de forças desconhecidas, pudesse a vida aflorar espontaneamente em dadas circunstâncias materiais e, ainda que os seres primários se tivessem formado de uma única célula primordial, gerada ao influxo de um conjunto de circunstâncias fortuitas; ainda assim, repetimos, a organização dos seres vivos seria uma prova irrefutável da soberania da força coordenada. Seria, sempre, em virtude de uma que tais leis superiores que a vida haveria de repontar e organizar-se, leis que não traduzem uma causa cega ou louca, mas causa que deve, no mínimo, saber o que faz. Assim, também, chegasse o homem a descobrir o nascimento espontâneo dos infusórios ou dos vermes intestinais, nem por isso teria criado esses ínfimos seres e sim, apenas, constatado que a Natureza opera à sua revelia, com poderes superiores aos seus e mediante processos que, a despeito de sua inteligência, lhe teriam custado séculos a descobrir (supondo que lá chegasse).

  Mas, finalmente, nem por isso a causa da razão divina restaria mais esclarecida.

/…
(*) Da Origem das Espécies. Últimas notas.
(**) Génese


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Segunda Parte – 2/ A Origem dos Seres […] (1 de 3), 22º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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