~ a origem dos seres ~
(I de III)
Será rebaixar a ideia de Deus, considerar o Universo como um gigantesco paralelo de uma obra única, cujas modalidades se manifestam sobre a forma de vários aspectos e cujos poderes se traduzem em forças particulares, distintas? A substância primitiva ocupa o espaço ilimitado. O plano divino está em que esta substância seja um dia condensada em mundos, nos quais a vida e a inteligência hajam de irradiar esplendores; A luz, o calor, a electricidade, o magnetismo, a atracção, o movimento sob modalidades desconhecidas percorrem, atravessam essa substância primordial, como o vento da Grécia, que, ao tempo de Pan, tocava as harpas eólias no âmbito da noite. Que mão empunha o arco e prenuncia o mais magnificente dos coros? Não pode a inteligência humana defini-lo. Escutemos, atentos, o longínquo concerto da Criação.
Será rebaixar a ideia de Deus, considerar o Universo como um gigantesco paralelo de uma obra única, cujas modalidades se manifestam sobre a forma de vários aspectos e cujos poderes se traduzem em forças particulares, distintas? A substância primitiva ocupa o espaço ilimitado. O plano divino está em que esta substância seja um dia condensada em mundos, nos quais a vida e a inteligência hajam de irradiar esplendores; A luz, o calor, a electricidade, o magnetismo, a atracção, o movimento sob modalidades desconhecidas percorrem, atravessam essa substância primordial, como o vento da Grécia, que, ao tempo de Pan, tocava as harpas eólias no âmbito da noite. Que mão empunha o arco e prenuncia o mais magnificente dos coros? Não pode a inteligência humana defini-lo. Escutemos, atentos, o longínquo concerto da Criação.
No amanhecer da Natureza terrestre, já os
sóis resplendiam, de há muito, na amplidão dos céus, a gravitarem harmónicos
nas suas órbitas, sob a regência da mesma lei universal que ainda hoje os rege.
Era o primeiro dia da Terra. Solidões oceânicas, tempestades ígneas, rupturas
formidáveis de águas e nuvens viram chegar-lhes, ao fim, uma paz desconhecida.
Raios de ouro atravessaram as nuvens; um céu azul tonalizou a atmosfera; um
belo leito de púrpura se ofereceu ao Sol nesse dia. Então, já não eram dias e
anos a contar, pois períodos imensos, incalculáveis, já lhe haviam coberto o
berço. Os astros são jovens, ainda quando as miríades de gestação
tenham sucumbido. As ilhas surgiram, então, do seio das ondas e a primeira
verdura estendeu pelas praias o seu manto virginal. Muito
tempo depois, dos galhos das vides rebentaram flores, de cujos lábios
entreabertos se exalavam perfumes. Mais tarde, no bojo profundo das florestas
repercutiu o canto das aves e os hóspedes fabulosos dos mares primitivos se
cruzaram no reino ondulante. Sucessivamente, a Terra se dava aos espasmos da
vida, animada pelo sopro imortal, vendo luzes e sombras perpassarem-lhe a face.
Suponhamos, um momento, que a força orgânica, que hoje se transmite de geração
a geração, tenha aparecido como uma resultante natural e inevitável das
condições fecundas em que se encontrava a Terra quando soou a era da vida;
suponhamos as primeiras células orgânicas diversamente constituídas, formando
tipos primordiais distintos, ainda que simples, pobres, grosseiros, sejam as
cepas de sucessivas variedades; suponhamos, enfim, que todas as
espécies vegetais e animais, inclusive a humana, sejam o resultado de transformações lentas,
operadas sob condições progressivas do planeta, e perguntemos em que, e como,
pode essa teoria nulificar a
necessidade de um criador e organizador imanente? Quem deu essas leis ao
Universo? Quem organizou essa fecundidade? Quem imprimiu à Natureza essa tendência perpetuamente progressiva? Quem deu aos elementos materiais a faculdade de produzir ou de
receber a vida? Quem concebeu a arquitectura desses corpos animados, desses
edifícios maravilhosos, nos quais todos os órgãos tendem para um mesmo fim?
Quem presidiu à conservação dos
indivíduos e das espécies na trama inimitável dos tecidos, dos arcaboiços, dos
mecanismos – pelo dom previdente do instinto, por todas as faculdades, enfim,
que possuem respectivamente todos os seres vivos e cada qual
de acordo com o seu papel no cenáculo do mundo? Numa palavra: – se a força
vital é uma força da
mesma natureza das forças moleculares, insistamos em perguntar: – quem é o seu
autor? Seria por não haver este autor concebido tudo com as próprias mãos, que
haveríeis de o negar?
De boa fé, supondes que, se em lugar de escrever
letra a letra, palavra a palavra, esta obra e enviá-la à Livraria Académica,
que a confiou a um tipógrafo; o qual, por sua vez, a entregou ao paginador,
que, por sua vez, a confiou aos contramestres e aprendizes, etc.; e depois,
ainda me obrigou a corrigir as provas – sem falarmos da escolha do papel, do formato,
do número de páginas, da encadernação, tudo enfim que representa a factura de
um livro; – supondes, repito, que, depois de haver o livro passado
por tantos trâmites, deixasse eu de ser o seu legítimo autor, bastando apenas
querê-lo para que o plano instantaneamente se completasse? Acreditais que,
por haver simplesmente coordenado certas regras, em virtude das quais a ideia
expressa em tinta, papel, chumbo; – agentes inertes e cegos, actuados sob a
minha vigilância constante – se materializou em parte, tão invisivelmente
quanto me eclodiu do cérebro, me tenha destituído da legítima autoria desta
obra? Por mim, senhores materialistas, ficaria muito satisfeito só
com o poder evitar a revisão das provas, que, já o dizia Balzac, é o
suplício infernal dos escritores. E se algum brincalhão de mau gosto apregoasse
pelas ruas de Paris que o meu livro se fizera por si mesmo, eu haveria de rir à
gargalháda e não deixaria de me interessar por tão precioso privilégio.
Fosse-me permitido o paralelo entre o livro da
Natureza e o meu e, creio que faria coisa assim como comparar uma boneca
mecânica à Venus de
Milo, viva, ou, então, as rodas do relógio apresentado a Carlos Magno pelo
califa Harun
al-Rashid, ao mecanismo do sistema universal.
Todavia, não sereis vós quem há de elevar o meu
trabalho às alturas da Criação natural. Se a boneca mais insignificante e o
mecanismo mais tosco revelam a Voltaire a existência de
um ou de vários fabricantes, a que se reduz a negação dos que recusam
identificar um arquitecto na sublimada harmonia do edifício cósmico?
Assim é que, seja qual for o círculo arbitrário,
imaginado em torno da acção sensível do Criador e mediante o qual pretendamos
limitar a sua presença, a ideia de
Deus nos escapa, sempre, pela tangente, com singular subtileza. Essa
propriedade particular da ideia do ser incriado manifesta-se
em cada conclusão do
nosso arrazoado!
Disseram-nos que Darwin tinha sempre
a seu lado um teólogo anglicano incumbido de ajeitar as coisas e manter em
perpétuo acordo a consciência do naturalista eminente com as pretendidas consequências
da sua teoria da selecção natural. De resto, o tradutor feminino da obra teve o
cuidado de nos advertir que, “em vão, protesta o autor não ser o seu sistema em
nada contrário à ideia de divindade”. Pelo que nos toca, é com íntima
satisfação que aqui juntamos às nossas convicções pessoais as do autor da Origem
das Espécies: “Não vejo em que possam as teorias expostas nesta obra
melindrar os sentimentos religiosos de quem quer que seja. Por
demonstrar quanto são inconscientes essas impressões, basta lembrar que a maior
das descobertas humanas – a da lei de gravitação – foi hostilizada pelo próprio Leibnitz como
subversiva da religião natural. Um notável autor sacro escreveu-me,
em tempos, ter chegado gradativamente a convencer-se de que a criação divina
das formas simples, originais, capazes de por si evoluírem e se transformarem
em formas úteis, era a concepção mais justa e compatível com a
majestade do Supremo Ser, do que presumir a necessidade de um novo acto
criador, a fim de encher os vácuos causados pelo funcionamento das suas
próprias leis. Autores eminentes mostram-se inteiramente satisfeitos com a
hipótese da criação independente de cada espécie. A meu ver, o que
conhecemos das leis impostas à matéria, pelo Criador, está mais de acordo com a
formação e extinção dos seres presentes e passados por causas secundárias,
semelhantes às que determinam o nascimento e a morte dos indivíduos. Quando
encaro todos os seres não como criações especiais, mas como descendentes em
linha directa de seres que viveram anteriormente aos depósitos do período Siluriano, eles me parecem
enobrecidos.”
Mais adiante, acrescenta o mesmo naturalista:
“Que interesse nos desperta o espectáculo de uma
praia coberta de vegetação, pássaros a cantar, insectos a esvoaçar, anelídeos
ou larvas rastejando no solo húmido, ao pensarmos que todas essas formas
elaboradas com tanto cuidado, paciência, habilidade e dependentes umas de
outras por uma série de relações complicadas, foram todas produzidas por leis
de uma contínua actividade em torno
de nós! Essas leis, tomadas no seu mais lato sentido, enumeramo-las aqui: – de
crescimento e reprodução; de hereditariedade, quase implícita nas precedentes;
de variabilidade sob a acção directa ou indirecta das condições exteriores da
vida, e do uso ou da falta de exercício dos órgãos; da multiplicação das
espécies em sentido geométrico, a produzir a concorrência vital e a eleição
natural e, daí, a divergência de caracteres e extinção das formas específicas.
“É assim que, da guerra natural, da fome
e da morte, resulta o mais admirável dos efeitos que possamos conceber: – a
formação lenta dos seres superiores. No encarar a vida e as suas potências
animando originariamente algumas ou uma única forma simples, ao influxo do
Criador, também há grandeza. E enquanto o planeta seguiu descrevendo os seus
círculos perpétuos, de acordo com as leis fixas da gravitação, formas
inumeráveis, cada vez mais belas e maravilhosas, se desenvolveram e se
desenvolverão, mediante uma evolução sem fim”. (*)
Declarações interessantes que importa registar, para
opô-las aos nossos materialistas.
Pretendem estes que a doutrina da geração espontânea,
sustentada pelo Sr. Pouchet e
a da origem das espécies, amparada pelo Sr. Darwin, destroem, ambas,
a ideia de Deus,
e eis que, nem um nem o outro admite essa acusação e protestam contra a ilusão
dos nossos adversários. Nisto, pois, como em tudo o mais, são eles logrados por
uma falsa miragem. Consignemos, assim, como novos dados, este duplo e valioso
facto. Em primeiro lugar, os materialistas não têm o direito de se apoiarem
na geração espontânea para concluir pela não existência de Deus:
1º – porque essa geração não está provada, e
2º – porque, se o estivera, não acarretaria uma tal
consequência.
Em segundo lugar, não têm o direito de afectar ao seu ponto de
vista o sistema do transformismo das espécies, já porque tal
sistema não está provado, e já porque ele não afecta a questão dominante das
origens da vida.
Se estivesse provado que os vegetais e animais
inferiores são formados por geração espontânea, no âmago
da matéria inorgânica, haveria grandes probabilidades para crer que assim
sucedesse e, com maioria de razão, com a origem das espécies. Os partidários
das transformações específicas chegaram mesmo a apoiar-se na doutrina das
gerações espontâneas para explicar a existência, ainda hoje, de inúmeras formas
inferiores, apesar da tendência das espécies primitivas para se aperfeiçoarem.
Por isso, admitem que a Criação não completou a sua tarefa e ainda hoje se
encontra nesse intervalo. Era a opinião de Lamarck. Cumpre
observar que o chefe do movimento actual não compartilha tais
ideias e nem mesmo acredita na geração espontânea. “A selecção natural – diz Darwin – não
afecta nenhuma lei necessária e universal de desenvolvimento e de
progresso. Ela cogita, apenas, de toda e qualquer variação que se apresenta,
quando vantajosa à espécie ou aos seus representantes. Tenho apenas necessidade
de aqui dizer – declara ele mais à frente – que a Ciência no seu estado actual
não admite, em geral, que seres vivos, ainda hoje, se elaborem no seio da
matéria inorgânica.”
Vale notar que não são os sábios, nem
mesmo os experimentadores, que proclamam as doutrinas por nós combatidas e sim
pretensos filósofos, que, apoderando-se dos
estudos científicos daqueles, querem, a toda a força, tirar conclusões repudiadas
pelos próprios cientistas. Temos o dever de lhes desmascarar o jogo
e demonstrar com a confissão dos próprios experimentadores ilustres,
que, se o sistema materialista se obstina ingenuamente a exibi-los em público,
assentes no seu palco teatral, não passa isso de mero efeito fantasmagórico,
pura ilusão óptica.
Está neste caso um químico ilustre, o Sr. Frémy, que pensou ter
notado corpos indecisos na fronteira dos dois reinos (corpos a que chamou
semi-organizados) e foi por isso logo inculcado pelos doutrinaristas como porta-bandeira do
materialismo para a hipótese da geração espontânea. Pois vejamos o que disse
este químico no Instituto:
“Precisarei dizer que recuso, sem hesitação, a ideia
de geração espontânea, tomada no sentido da produção de um ser organizado,
por mais simples que seja, com elementos que não possuem a força vital. A
síntese química permite, sem dúvida, reproduzir grande número de princípios
imediatos de origem vegetal ou animal, mas a organização opõe, a meu ver, uma
barreira intransponível às reproduções sintéticas. Ao lado dos princípios
imediatos, definidos, que a síntese pode formar, há outras substâncias menos
estáveis que as precedentes, mas também muito mais complexas quanto à sua
constituição e que podem ser designadas sob o título genérico de corpos
semi-organizados.
“Esses corpos apresentam-se em conexão com a
organização, com a formação dos tecidos, com a produção dos fermentos e a
putrefacção, quase no mesmo estado da semente ressequida, que leva anos e anos
sem apresentar sinais de vegetação, para germinar logo que submetida às
influências do ar, do calor e da humidade.
“Eles podem, tal como a semente seca, manter-se em
estado de imobilidade orgânica durante muito tempo, mas também podem sair desse
estado à custa da própria substância, sob os elementos de organização, desde
que as circunstâncias favoreçam o desenvolvimento orgânico.”
Na actualidade não se pode, portanto, cientificamente, depor a favor nem contra a geração espontânea. Essa indecisão forçada está longe de esclarecer a questão da geração primitiva. O mistério permanece tão profundo como ao tempo de Pitágoras. Existem seres vivos na Terra, eis o facto. De onde vêm eles? Conhecemos astrólogos (ainda os há) que escreveram grandes calhamaços para demonstrar que esses seres nos chegaram de outros planetas, nas asas de qualquer cometa aventuroso, ou grudados nalgum bojudo aerólito. Conhecemos sonhadores que pretendem hajam os seres aflorado à superfície do orbe terrestre pela fecundação de eflúvios planetários e estelares. Isso, porém, é romantismo. De onde, pois, vêm os seres? Responder-nos-ão que sempre existiram? Essa maneira de esquivar-se à dificuldade teria contra si a agravante da falsidade, uma vez que as camadas geológicas nos apresentam, em fases regressivas, as épocas em que surgiram diferentes espécies. Se não existe ser orgânico algum sem filiação, quem formou o primeiro casal de cada espécie? A Bíblia responde que foi Deus. Perfeitamente, mas como? Por uma simples maravilha verbal? Mas, antes de tudo: – Deus fala? – objectam os gracejadores, lembrando-se de que o som não se propaga no vácuo... Um súbito efeito da vontade divina? Neste caso, de que forma? Os livros revelados nada têm de explícitos e podemos interpretá-los a favor da geração espontânea (em que pese aos senhores teólogos), tanto como em sentido contrário: “Deus diz: – Que a terra produza a erva tenra, contendo a semente e árvores que dêem fruto, cada qual da sua espécie, e que encerrem consigo a sua semente, a fim de proliferar sobre a terra. E assim se fez. A terra, portanto, produziu a erva contendo a semente de sua espécie, bem assim as árvores, com as suas sementes peculiares à espécie. E Deus viu que isso era bom.
Na actualidade não se pode, portanto, cientificamente, depor a favor nem contra a geração espontânea. Essa indecisão forçada está longe de esclarecer a questão da geração primitiva. O mistério permanece tão profundo como ao tempo de Pitágoras. Existem seres vivos na Terra, eis o facto. De onde vêm eles? Conhecemos astrólogos (ainda os há) que escreveram grandes calhamaços para demonstrar que esses seres nos chegaram de outros planetas, nas asas de qualquer cometa aventuroso, ou grudados nalgum bojudo aerólito. Conhecemos sonhadores que pretendem hajam os seres aflorado à superfície do orbe terrestre pela fecundação de eflúvios planetários e estelares. Isso, porém, é romantismo. De onde, pois, vêm os seres? Responder-nos-ão que sempre existiram? Essa maneira de esquivar-se à dificuldade teria contra si a agravante da falsidade, uma vez que as camadas geológicas nos apresentam, em fases regressivas, as épocas em que surgiram diferentes espécies. Se não existe ser orgânico algum sem filiação, quem formou o primeiro casal de cada espécie? A Bíblia responde que foi Deus. Perfeitamente, mas como? Por uma simples maravilha verbal? Mas, antes de tudo: – Deus fala? – objectam os gracejadores, lembrando-se de que o som não se propaga no vácuo... Um súbito efeito da vontade divina? Neste caso, de que forma? Os livros revelados nada têm de explícitos e podemos interpretá-los a favor da geração espontânea (em que pese aos senhores teólogos), tanto como em sentido contrário: “Deus diz: – Que a terra produza a erva tenra, contendo a semente e árvores que dêem fruto, cada qual da sua espécie, e que encerrem consigo a sua semente, a fim de proliferar sobre a terra. E assim se fez. A terra, portanto, produziu a erva contendo a semente de sua espécie, bem assim as árvores, com as suas sementes peculiares à espécie. E Deus viu que isso era bom.
“E da noite da manhã surgiu o terceiro dia. Disse
Deus, então: Que as águas produzam animais vivos que flutuem nelas, e aves que
voem acima da terra e sob o firmamento do céu. E os abençoou, dizendo: Crescei
e multiplicai, povoai as águas do mar e que as aves se multipliquem sobre a
terra.
“E da noite e da manhã surgiu o quinto dia. Deus
disse, então: Que a terra produza animais vivos, cada qual na sua espécie, os
domésticos, os répteis e as feras bravias. E assim foi feito”. (**)
Aí temos o que muito se assemelha à geração
espontânea. De resto, os Santos Padres professaram essa doutrina. Alexander
von Humboldt achou muito curioso que Santo Agostinho,
encarando o povoamento das ilhas, após o dilúvio, não se mostrasse muito longe
de recorrer à hipótese de uma geração espontânea (Generatio aequivoca
apontanea atst primaria). “Se os anjos ou os caçadores do continente – diz
esse Pai da Igreja – não transportaram animais a essas ilhas afastadas, é
forçoso admitir que o solo os tenha engendrado; mas, neste
caso, pergunta-se: – por que encerrar na Arca animais de toda a espécie?” Dois
séculos antes do bispo de Hipona, vamos encontrar no compêndio de Trogue Pompée, já
estabelecida a propósito da dissecação primitiva do mundo antigo, do planalto
asiático, analogia com a geração espontânea ou, seja, uma ligação semelhante à
que se depara na teoria de Linnaeus, acerca do
paraíso da Terra, com as investigações do século 18 sobre a Atlântida fabulosa.
Quanto ao mais, sem que pese à energia dos seus discursos, estes Mirabeaus da tribuna positivista encontram-se, fundamentalmente, em ignorância e
indecisão absolutas, no que concerne à origem da vida. Em vão lançam sobre o
mistério o véu dos talvez;
em vão se entretêm a imaginar mil metamorfoses
Quando olhamos para o fundo do vaso, percebemos que o
caldo não é tão claro quanto o supõem. De tempos a tempos, sem maior alarde,
eles deixam perceber confissões que nos permitimos aqui glosar para edificação
do auditório. “Enigma insolúvel – diz B. Cotta – que não podemos deixar de
atribuir à potência imperscrutável de um Criador, eis o que se nos afigura
sempre a origem da matéria, bem como o nascimento dos seres orgânicos.” Eis uma
confissão digna de um espiritualista. Büchner, por outro
lado, diz: – “É preciso atribuir à geração espontânea um papel mais importante
nos tempos primitivos com relação aos actuais, visto não se poder negar que ela
tenha engendrado, então, organismos mais perfeitos do que hoje.” E acrescenta
logo: “Verdade é que nos faltam provas
e mesmo conjecturas plausíveis dos pormenores desses espécimes, o que estamos
longe de negar.” E, voltando à ideia dominante, declara imediatamente que –
“seja qual for a nossa ignorância, devemos
dizer convictamente que a criação orgânica pode e deve ter ocorrido sem
intervenção de qualquer força exterior”.
Karl
Vogt, a exemplo dos pré-citados, reconhece que as forças físico-químicas
conhecidas não bastam, só por si, para explicar a origem dos organismos. Todo
o ser vivo, vegetal ou animal, tem a sua origem essencial na
célula orgânica, ou ovo. Antes de tudo, havemos de admitir que essa origem
essencial foi criada, sem sabermos como. Só depois dessa premissa admitida é
que começam as demonstrações físico-químicas. “Se admitirmos que isso tivesse
sucedido uma única vez – diz o autor das Lições sobre o Homem –
mediante acção simultânea de factores diversos, que não conhecemos, é lícito
concluir que houvesse podido formar-se uma célula orgânica a expensas dos
elementos químicos, e torna-se evidente que a mais ligeira modificação devesse
determinar imediata modificação no objecto produzido, isto é, na célula. Mas,
como não podemos admitir que, sobre toda a superfície terrestre, as mesmas
causas tenham actuado e ainda actuem nas mesmas condições e com a mesma
energia, na criação da célula primitiva; e que, por outro lado, a criação
orgânica haveria de estender-se por toda a Terra, conclui-se, necessariamente,
que as primitivas células geradoras de organismos deviam ter aptidões de
desenvolvimento diferentes.”
Virchow não explica
melhor a questão de origem. “Em certa fase de desenvolvimento da Terra – diz –
sobrevieram condições anormais, sob as quais, entrando nas novas combinações,
os elementos recebiam o movimento vital, donde as condições ordinárias se
tornaram vitais.”
Quanto a Charles Darwin, em vão
temos rebuscado a sua opinião, mesmo quanto à origem das espécies. Contenta-se
ele com o explicar a variabilidade possível dum certo número de tipos primitivos
e, é uma nota no mínimo singular, que, em obra tão volumosa e opulenta sobre a
origem dos seres, não se trate absolutamente dessa origem!
O problema é obscuro: a distância do nada
a alguma coisa é maior que de alguma coisa a tudo. Seja qual for o sistema a
que se filiem as nossas crenças íntimas, espiritualistas ou materialistas,
todos perseguimos o
inexplicável mistério da vida. Porque não reconhecer com franqueza a nossa
absoluta ignorância neste particular? E, contudo, essa ignorância deveria moderar um pouco o
ardor negativista dos ateus, levando-os a tratar o enigma com menos arrogância.
É de convir que, quando nos assoberba uma tal incerteza, ninguém pode cantar
vitória. Quiséssemos voltar à questão e fácil nos seria pôr todas as vantagens
do nosso lado; poderíamos impor Deus aos adversários, sem que eles pudessem
subtrair-se ao seu domínio. Não demonstrando a Ciência que as afinidades da
matéria possam criar a vida, o papel do Criador, aqui, fica íntegro como nos
tempos de Adão e até dos pré-adamitas. E ainda que o demonstrasse, a origem e o
entretenimento da vida deixam ver claramente a existência de uma força
criadora, ou seja, por outras palavras, um Deus oculto.
Tal,
porém, é a força da nossa estratégica, que jamais queremos abusar de uma
posição privilegiada e preferimos combater sempre em paridade de terreno e de
armas. Contentamo-nos, assim, em insinuar apenas essa superioridade aos
adversários, para sua edificação momentânea e baixando, logo a seguir, das
alturas favoráveis ao triunfo, para voltar ao plano da organização da vida, sem
nos prevalecermos dos argumentos oferecidos pelo problema dessa mesma vida.
Ninguém dirá que, do ponto de vista singular da organização, a existência
do Ser inteligente não esteja soberanamente demonstrada. Ainda
mesmo que, em virtude de forças desconhecidas, pudesse a vida aflorar
espontaneamente em dadas circunstâncias materiais e, ainda que os seres primários
se tivessem formado de uma única célula primordial, gerada ao influxo de um
conjunto de circunstâncias fortuitas; ainda assim, repetimos, a
organização dos seres vivos seria uma prova irrefutável da
soberania da força coordenada. Seria, sempre, em virtude de uma que tais leis
superiores que a vida haveria de repontar e organizar-se, leis que não traduzem
uma causa cega ou louca, mas causa que deve, no mínimo, saber o que faz. Assim,
também, chegasse o homem a descobrir o nascimento espontâneo dos infusórios ou
dos vermes intestinais, nem por isso teria criado esses ínfimos seres e
sim, apenas, constatado que a Natureza opera à sua revelia, com poderes superiores aos
seus e mediante processos que, a despeito de sua inteligência, lhe teriam custado
séculos a descobrir (supondo que lá chegasse).
Mas,
finalmente, nem por isso a causa da razão divina restaria mais esclarecida.
/…
(*) Da Origem das Espécies. Últimas notas.
(*) Da Origem das Espécies. Últimas notas.
(**) Génese
Camille Flammarion, Deus na Natureza, Segunda
Parte – 2/ A Origem dos Seres […] (1 de 3), 22º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da
Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)
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