Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 24 de setembro de 2023

Léon Denis e o Cristianismo ~


A Doutrina Secreta ~

 Qual é a verdadeira doutrina do Cristo? Os seus princípios essenciais encontram-se claramente enunciados no Evangelho. É a paternidade universal de Deus e a fraternidade dos homens, com as consequências morais que daí resultam; é a vida imortal a todos franqueada e que a cada um permite em si próprio realizar “o reino de Deus”, isto é, a perfeição, pelo desprendimento dos bens materiais, pelo perdão das injúrias e o amor ao próximo.

 Para Jesus, numa só palavra, toda a religião, toda a filosofia consiste no amor:

 “Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam; para serdes filhos de vosso Pai que está nos céus, o qual derrama o seu sol sobre os bons e os maus e, faz chover sobre os justos e os injustos. Porque, se não amais senão aos que vos amam, que recompensa deveis ter por isso?” (Mateus, V, 44 e seguintes.).

 Desse amor o próprio Deus nos dá o exemplo, porque os seus braços estão sempre abertos para o pecador:

 “Assim, o vosso Pai que está nos céus não quer que pereça um só desses pequeninos.”

 O sermão da montanha resume, em traços indeléveis, o ensino popular de Jesus. Nele está expressa a lei moral sob uma forma que nunca foi igualada.

 Os homens aí aprendem que não há mais seguros meios de elevação que as virtudes humildes e escondidas.

 “Bem-aventurados os pobres de espírito (isto é, os espíritos simples e rectos), porque deles é o reino dos céus. – Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. – Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. – Bem-aventurados os que são misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. – Bem-aventurados os limpos de coração, porque esses virão a Deus.” (Mateus, V, 1 a 12; Lucas, VI, 20 a 25.)

 O que Jesus quer não é um culto faustoso, não são umas religiões sacerdotais, opulentas de cerimónias e práticas que sufocam o pensamento, não; é um culto simples e puro, todo de sentimento, consistindo na relação directa, sem intermediário, da consciência humana com Deus, que é o seu Pai:

 “É chegado o tempo em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, porque tal quer, também, sejam os que o adorem. Deus é espírito e, em espírito e verdade é que devem adorar os que o adoram.”

 O ascetismo é coisa vã. Jesus limita-se a orar e a meditar, nos sítios solitários, nos templos naturais que têm por colunas as montanhas, por cúpula a abóbada dos céus e, de onde o pensamento mais livremente se eleva ao Criador.

 Aos que imaginam salvar-se por meio do jejum e da abstinência, diz:

 “Não é o que entra pela boca o que macula o homem, mas o que por ela sai.”

 Aos rezadores de longas orações:

 “O Vosso Pai sabe do que careceis, antes de lho pedirdes.”

 Ele não exige senão a caridade, a bondade, a simplicidade: “Não julgueis e não sereis julgados. Perdoai e sereis perdoados. Sede misericordiosos como o vosso Pai celeste é misericordioso. Dar é mais doce do que receber”.

 “Aquele que se humilha será exaltado; o que se exalta será humilhado”.

 “Que a tua mão esquerda ignore o que faz a direita, a fim de que a tua esmola fique em segredo; e então o teu Pai que vê em segredo, te retribuirá.”

 E tudo se resume nestas palavras de eloquente concisão:

 “Amai o vosso próximo como a vós mesmos e sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito. Nisso se encerram toda a lei e os profetas.

 Sob a suave e meiga palavra de Jesus, toda impregnada do sentimento da natureza, essa doutrina se reveste de um encanto irresistível, penetrante. Ela é saturada de terna solicitude pelos fracos e pelos deserdados. É a glorificação, a exaltação da pobreza e da simplicidade. Os bens materiais nos tornam escravos; agrilhoam o homem à Terra. A riqueza é um estorvo; impede o velo da alma e a retém longe do “reino de Deus”. A renúncia, a humildade, desatam esses laços e facilitam a ascensão para a luz.

 Por isso é que a doutrina evangélica permaneceu através dos séculos como a expressão máxima do espiritualismo, o supremo remédio aos males terrestres, a consolação das almas aflitas nesta travessia da vida, semeada de tantas lágrimas e angústias. É ainda ela que faz, a despeito dos elementos estranhos que lhe vieram misturar, toda a grandeza, todo o poder moral do Cristianismo.

 A doutrina secreta ia mais longe. Sob o véu das parábolas e das ficções, ocultava concepções profundas. No que se refere a essa imortalidade prometida a todos, definia-lhe as formas afirmando a sucessão das existências terrestres, nas quais a alma, reencarnada em novos corpos, sofreria as consequências de suas vidas anteriores e prepararia as condições do seu destino futuro. Ensinava a pluralidade dos mundos habitados, as alternâncias de vida de cada ser: no mundo terrestre, em que ele reaparece pelo nascimento, no mundo espiritual, ao qual regressa pela morte, colhendo num e noutro desses meios os frutos bons ou maus do seu passado. Ensinava a íntima ligação e a solidariedade desses dois mundos e, por conseguinte, a comunicação possível do homem com os espíritos dos mortos que povoam o espaço ilimitado.

 Daí o amor activo, não somente pelos que sofrem na esfera da existência terrestre, mas também pelas almas que em volta de nós vagueiam atormentadas por dolorosas recordações. Daí a dedicação que se devem às duas humanidades, a visível e a invisível, a lei de fraternidade na vida e na morte e a celebração do que chamavam “os mistérios”, a comunhão pelo pensamento e pelo coração com os que, Espíritos bons ou medíocres, inferiores ou elevados, compõem esse mundo invisível que nos rodeia e, sobre o qual se abrem esses dois pórticos por onde todos os seres alternativamente passam: o berço e o túmulo.

 A lei da reencarnação é indicada em muitas passagens do Evangelho e deve ser considerada sob dois aspectos diferentes: a volta à carne, para os Espíritos em via de aperfeiçoamento; a reencarnação dos Espíritos enviados em missão à Terra.

 No seu diálogo com Nicodemos, Jesus assim se exprime:

 “Em verdade te digo que, se alguém não renascer de novo, não poderá ver o reino de Deus.” Objecta-lhe Nicodemos: “Como pode um homem nascer, sendo já velho?” Jesus responde: “Em verdade te digo que, se um homem não renasce da água e do espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne e, o que é nascido do espírito é espírito. Não te maravilhes de te dizer: importa-vos nascer outra vez. O vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim é todo aquele que é nascido do espírito.” (João, III, 3 a 8.)

 Jesus acrescenta estas palavras significativas: “Tu és mestre em Israel e não sabes estas coisas?”

 O que demonstra que não se tratava do baptismo, que era conhecido pelos judeus e por Nicodemos, mas precisamente da reencarnação já ensinada no “Zohar”, livro sagrado dos hebreus. (ii)

 Esse vento, ou esse espírito que sopra onde lhe apraz, é a alma que escolhe o novo corpo, a nova morada, sem que os homens saibam de onde vem, nem para onde vai. É a única explicação satisfatória.

 Na Cabala hebraica, a água era a matéria primordial, o elemento frutificado. Quanto à expressão Espírito Santo, que se encontra no texto e que o torna incompreensível, é preciso notar que a palavra santo nele não está na sua origem e que foi aí introduzida muito tempo depois, como se deu em vários outros casos. (iii) É preciso, por conseguinte, ler: renascer da matéria e do espírito.

 Noutra ocasião, a propósito de um cego de nascença, encontrado de passagem, os discípulos perguntam a Jesus:

 “Mestre, quem foi que pecou? Foi este homem, ou o seu pai, ou a sua mãe, para que ele tenha nascido cego?” (João, IX, 1 e 2).

 A pergunta indica, antes de tudo, que os discípulos atribuíam a enfermidade do cego a uma expiação (de uma vida anterior). No seu pensamento, a falta precedera a punição; tinha sido a sua causa primordial. É a lei da consequência dos actos, fixando as condições do destino. Trata-se aí de um cego de nascença; a falta não se pode explicar senão por uma existência anterior.

 Daí essa ideia da penitência, que reaparece a cada momento nas Escrituras: “Fazei penitência”, dizem elas constantemente, isto é, praticai a reparação, que é o fim da vossa nova existência; rectificai o vosso passado, espiritualizai-vos, porque não saireis do domínio terrestre, do círculo das provações, senão depois de “haverdes pagado até ao último ceitil.” (Mateus, V, 26).

 Em vão têm procurado os teólogos explicar doutro modo, que não é pela reencarnação, essa passagem do Evangelho. Chegaram a raciocínios, pelo menos, estranhos. Assim foi que o sínodo de Amsterdão não pôde sair-se da dificuldade senão com este dizer: “o cego de nascença havia pecado no seio de sua mãe”. (iv)

 Era também opinião corrente, nessa época, que Espíritos eminentes vinham, em novas encarnações, continuar, concluir missões interrompidas pela morte. Elias, por exemplo, voltara à Terra na pessoa de João Baptista. Jesus afirma-o nestes termos, dirigindo-se à multidão:

 “Que saíste a ver? Um profeta? Sim, eu vo-lo declaro e, mais que um profeta. E, se o quereis compreender, ele é o próprio Elias que devia vir. – O que tem ouvidos para ouvir, ouça.” (Mateus, XI, 9, 14 e 15)

 Mais tarde, depois da decapitação de João Baptista, ele repete-o aos discípulos:

 “E os seus discípulos o interrogam, dizendo: Porque, pois, dizem os escribas que importa vir primeiramente Elias? – Ele, respondendo, lhes disse:”

 “Elias, certamente, devia vir e restabelecer todas as coisas. Mas eu vo-lo digo: Elias já veio e eles não o conheceram, antes lhe fizeram quanto quiseram. – Então, conheceram os seus discípulos que de João Baptista é que ele lhes falara.” (Mateus, XVII, 10, 11, 12 e 15).

 Assim, para Jesus, como para os discípulos, Elias e João Baptista eram a mesma e uma única individualidade. Ora, tendo essa individualidade revestido sucessivamente dois corpos, semelhante facto não se pode explicar senão pela lei da reencarnação.

 Numa circunstância memorável, Jesus pergunta aos seus discípulos: “Que dizem do filho do homem?”

 E eles lhe respondem:

 “Uns dizem: é João Baptista; outros, Elias; outros, Jeremias ou um dos profetas.” (Mateus, XVI, 13, 14; Marcos, VIII, 28)

 Jesus não protesta contra essa opinião como doutrina, do mesmo modo que não protestara no caso do cego de nascença. Ao demais, a ideia da pluralidade das vidas, dos sucessivos graus a percorrer para se elevar à perfeição, não se encontra implicitamente contida nestas palavras memoráveis: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito.” Como poderia a alma humana alcançar esse estado de perfeição em uma única existência?

 De novo encontramos a doutrina secreta, dissimulada sob os véus mais ou menos transparentes, nas obras dos apóstolos e dos padres da Igreja dos primeiros séculos. Não podiam estes dela falar abertamente. Daí as obscuridades da sua linguagem.

 Aos primeiros fiéis escrevia Barnabé:

 “Tanto quanto pude, acredito ter-me explicado com simplicidade e nada haver omitido do que pode contribuir para a vossa instrução e salvação, no que se refere às coisas presentes, porque, se vos escrevesse relativamente às coisas futuras, não compreenderíeis, porque elas se encontram expostas em parábolas.” (Epístola católica de São Barnabé, XVII, l, 5).

 Em observância a esta regra é que um discípulo de São PauloHermas, descreve a lei das reencarnações sob a figura de “pedras brancas, quadradas e lapidadas”, tiradas da água para servirem na construção de um edifício espiritual. (Livro do Pastor, III, XVI, 3, 5).

 “Porque foram essas pedras tiradas de um lugar profundo e em seguida empregadas na estrutura dessa torre, pois que já estavam animadas pelo espírito? – Era necessário, diz-me o senhor, que, antes de serem admitidas no edifício, fossem trabalhadas por meio da água. Não poderiam entrar no reino de Deus por outro modo que não fosse despojando-se da imperfeição da sua primeira vida.”

 Evidentemente essas pedras são as almas dos homens; as águas (v) são as regiões obscuras, inferiores, as vidas materiais, vidas de dor e provação, durante as quais as almas são lapidadas, polidas, lentamente preparadas, a fim de tomarem lugar um dia no edifício da vida superior, da vida celeste. Há nisso um símbolo perfeito da reencarnação, cuja ideia era ainda admitida no século III e divulgada entre os cristãos.

 Dentre os padres da Igreja, Orígenes é um dos que mais eloquentemente se pronunciaram a favor da pluralidade das existências. Respeitável a sua autoridade. São Jerónimo considera-o, “depois dos apóstolos, o grande mestre da Igreja, verdade – diz ele – que só a ignorância poderia negar”. S. Jerónimo vota tal admiração a Orígenes que assumiria, escreve, todas as calúnias de que ele foi alvo, uma vez que, por esse preço, ele, Jerónimo, pudesse ter a sua profunda ciência das Escrituras.

 No seu livro célebre, “Dos Princípios”, Orígenes desenvolve os mais vigorosos argumentos que mostram, na preexistência e sobrevivência das almas noutros corpos, numa palavra, na sucessão das vidas, o correctivo necessário à aparente desigualdade das condições humanas, uma compensação ao mal físico, como ao sofrimento moral que parece reinarem no mundo, se já não se admite uma única existência terrestre para cada alma. Orígenes erra, todavia, num ponto. É quando supõe que a união do espírito ao corpo é sempre uma punição. Ele perde de vista a necessidade da educação das almas e a laboriosa realização do progresso.

 Errónea opinião se introduziu em muitos centros, a respeito das doutrinas de Orígenes, em geral e, da pluralidade das existências em particular, que pretendem ter sido condenadas, primeiro pelo concílio de Calcedónia e mais tarde pelo quinto concílio de Constantinopla. Ora, se remontamos às fontes, (vi) reconhecemos que esses concílios repeliram, não a crença na pluralidade das existências, mas simplesmente a preexistência da alma, tal como a ensinava Orígenes, sob esta feição particular: que os homens eram anjos decaídos e que o ponto de partida tinha sido para todos a natureza angélica.

 Na realidade, a questão da pluralidade das existências da alma nunca foi resolvida pelos concílios. Permaneceu aberta às resoluções da Igreja no futuro e é esse um ponto que é necessário estabelecer.

 Como a lei dos renascimentos, a pluralidade dos mundos se encontra indicada no Evangelho, em forma de parábola:

 “Há muitas moradas na casa de meu Pai. Eu vou a preparar-vos o lugar e, depois que tiver ido e vos tiver preparado o lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver, vós estejais também.” (João, XIV, 2 e 3)

 A casa do Pai é o céu infinito; as moradas prometidas são os mundos que percorrem o espaço, esferas de luz ao pé das quais a nossa pobre Terra não é mais que um mesquinho e obscuro planeta. É para esses mundos que Jesus guiará as almas que se ligarem a ele e à sua doutrina, mundos que lhe são familiares e onde nos saberá preparar um lugar, conforme os nossos méritos.

 Orígenes comenta essas palavras em termos positivos:

 “O Senhor faz alusão às diferentes estações que devem as almas ocupar, depois que se houverem despojado dos seus corpos actuais e se tiverem revestido de outros novos.”

/…
(ii) Ver a nota complementar nº 5. ( link para aceder à nota)
(iii) Ver Bellemare, "Espírita e Cristão", págs. 351 e seguintes.
(iv) Ver nota complementar n° 5. ( link para aceder...)
(v) Essa parábola adquire maior relevo pelo facto de ser a água, para os judeus cabalista, a representação da matéria, o elemento primitivo, o que chamaríamos hoje o éter cósmico.
(vi) Ver Pezzani, "A pluralidade das existências", páginas 187 e 190.


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – A Doutrina Secreta, 5º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

sábado, 2 de setembro de 2023

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Uma Noite Esquecida ou 
a Feiticeira Manouza
(Milésima segunda noite dos contos árabes)

~~ Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié
(Segundo artigo)

Prefácio da Revue Spirite. (repetição)

No corrente ano de 1856, as experiências de manifestações espíritas que se realizavam em casa do Sr. B... (*), na Rua Lamartine, atraíram uma assistência selecta e numerosa. Eram mais ou menos sérios os Espíritos que se manifestavam neste círculo; alguns disseram coisas de admirável sabedoria e notável profundidade, como se pode julgar por OLivro dos Espíritos, que ali fora começado e em grande parte realizado. Outros eram menos sérios; o seu humor jovial prestava-se de bom grado a piadas, mas daquelas que jamais se afastavam das conveniências. Nesse número se encontrava Frédéric Soulié, que veio espontaneamente, sem haver sido evocado, e cujas visitas inesperadas eram sempre um passatempo agradável para os membros deste círculo. A sua conversa era espirituosa, fina, mordaz, coerente e nunca desmentiu o autor das Mémoires du diable; aliás, nunca se deixou envolver pela lisonja; quando lhe dirigiam algumas perguntas um tanto mais espinhosas de filosofia, confessava francamente a sua incapacidade para resolvê-las, dizendo que ainda se encontrava bastante ligado à matéria e que preferia as coisas alegres às sérias.

médium que lhe servia de intérprete era a Srta. Caroline B..., uma das filhas do dono da casa, do género exclusivamente passivo e que não tinha a menor consciência do que escrevia, podendo rir-se e conversar como bem lhe aprouvesse, o que fazia com prazer, enquanto a sua mão se movimentava sobre o papel. Durante muito tempo o meio mecânico empregado foi o da cesta de bico(**) Mais tarde a médium serviu-se da psicografia (i) directa.

Perguntarão, certamente, que provas possuímos de que o Espírito comunicante era o de Frédéric Soulié e não um outro qualquer. Não nos cabe tratar aqui da questão da identidade dos Espíritos; diremos somente que a de Soulié se revelou por detalhes de tal forma numerosos que não podem escapar a uma observação atenta. Muitas vezes uma palavra, um gesto, um facto pessoal referido vinham confirmar que se tratava dele mesmo; por diversas vezes deixou a sua assinatura, que foi confrontada com as originais. Um dia pediram-lhe que desse o seu retrato e a médium, que não sabe desenhar, e que nem mesmo nunca o tinha visto, fez um esboço de uma semelhança extraordinária.

Ninguém da reunião havia tido relações com ele quando vivia; por que, então, vinha sem ter sido evocado? É que se tinha ligado a um dos assistentes, sem nunca ter revelado o motivo; só aparecia quando essa pessoa se encontrava presente; entrava com ela e com ela se ia embora, de sorte que, quando não estava presente, ela também não vinha e, coisa bizarra! quando Soulié estava lá era difícil, ou mesmo impossível, haver comunicações de outros Espíritos; o próprio Espírito familiar da casa cedia-lhe o lugar, dizendo, por delicadeza, que deveria fazer as honras da casa.

Um dia anunciou que nos daria um romance à sua maneira e, realmente, algum tempo depois começou uma narrativa cujo início era muito promissor. O assunto relacionava-se com os druidas e a cena passava-se na Armórica, ao tempo da dominação romana; infelizmente, parece que se apavorou diante da tarefa que havia empreendido, porquanto – é preciso que se diga  – o trabalho assíduo nunca foi o seu forte, confessando que encontrava mais satisfação na vida preguiçosa. Depois de haver ditado algumas páginas, abandonou o romance mas disse que escreveria outro, que lhe daria menos trabalho. Foi então que escreveu o conto cuja publicação iniciamos. Mais de trinta pessoas assistiram a essa produção e podem atestar-lhe a origem. Não a damos absolutamente como obra de elevado alcance filosófico, mas como curiosa amostra de um trabalho de grande fôlego obtido dos Espíritos. Notar-se-á como tudo nele tem sequência, como tudo se encadeia com uma arte admirável. O que há de mais extraordinário é que esse relato foi retomado em cinco ou seis ocasiões diferentes e, muitas vezes, após interrupções de duas ou três semanas. Ora, de cada vez que recomeçava, o assunto continuava como se tivesse sido escrito de um sorvo, sem rasuras, sem aditamentos, e sem que houvesse necessidade de lembrar o que antes já fora relatado. Nós o damos, tal qual saiu do lápis da médium, sem nada haver mudado, nem no estilo, nem nas ideias e nem no encadeamento dos factos. Algumas repetições de palavras e pequenos senão de ortografia foram percebidos, tendo o próprio Soulié nos encarregado de os corrigir, dizendo que nos assistiria nesse mister. Quando tudo estava terminado ele quis rever o conjunto, ao qual fez apenas algumas rectificações sem importância, autorizando a sua publicação como bem o entendêssemos e cedendo, com satisfação, os direitos de autor. Todavia, julgamos por bem não o inserir na Revista sem o consentimento formal do seu amigo póstumo, a quem pertencia de direito, porque foi graças à sua presença e à sua solicitação que nos tornamos devedores dessa produção de além-túmulo. O título foi dado pelo próprio Espírito Frédéric Soulié.
A. K.

Uma Noite Esquecida

(Segunda parte, Segundo artigo)

Observação – Os algarismos romanos indicam as interrupções que ocorreram no ditado. Frequentemente, não era retomado senão depois de duas ou três semanas e, apesar disso, como já fizemos observar anteriormente, o relato desenvolve-se como se tivesse sido escrito de um só fôlego; e isso não constitui uma das características menos curiosas desta produção de além-túmulo. O estilo é correcto e perfeitamente apropriado ao assunto. Repetimos, para aqueles que poderiam ver no ditado uma coisa fútil, que não o consideramos como obra filosófica, mas como de estudo. Para o estudioso, nada é inútil: ele sabe aproveitar-se de tudo para aprofundar a ciência espírita que estuda.

III

Nada, entretanto, parecia perturbar a nossa felicidade; tudo era calmo à nossa volta. Vivíamos em perfeita segurança quando, uma noite, no momento em que nos julgávamos mais seguros, apareceu, de repente, ao nosso lado (posso dizer assim porque estávamos numa rotunda, para onde confluíam várias aléias) o sultão, acompanhado do seu grão-vizir. Ambos apresentavam uma expressão apavorante: a cólera havia-lhes transtornado a sua fisionomia; estavam, principalmente o sultão, numa exasperação facilmente compreensível. O primeiro pensamento do sultão foi mandar matar-me, mas, sabendo a que família pertenço e a sorte que o esperava, caso ousasse arrancar um só fio de cabelo da minha cabeça, fez de conta (à sua chegada eu me afastara para o lado) que não me tinha visto e precipitou-se furioso sobre Nazara, a quem prometeu não fazer demorar o castigo que ela merecia. Levou-a consigo, sempre acompanhado do vizir. Quanto a mim, passado o primeiro momento de susto, apressei-me a voltar ao meu palácio a fim de procurar um meio de subtrair a estrela de minha vida das mãos daquele bárbaro, que, provavelmente, iria destruir essa preciosa existência.

– E depois, que fizeste? perguntou Manouza; porque, afinal de contas, não vejo em tudo isso razão para te atormentares tanto para tirar a tua amante do perigo em que a colocaste por tua própria culpa. A mim me pareces um pobre homem que não tem coragem nem vontade quando se trata de coisas difíceis.

– Antes de condenar, Manouza, deves escutar. Não vim a ti sem antes haver examinado todos os meios ao meu alcance. Fiz ofertas ao sultão: prometi-lhe ouro, jóias, camelos e até palácios, se ele devolvesse a minha doce gazela. Desdenhou de tudo. Vendo repelidos os meus sacrifícios, fiz ameaças, que também não foram levadas em consideração: riu-se de tudo e zombou de mim. Também tentei introduzir-me no seu palácio; corrompi escravos e cheguei aos quartos. Entretanto, apesar de todos os meus esforços, não consegui chegar até a minha bem-amada.

– Tu és franco, Noureddin; a tua sinceridade merece uma recompensa e terás aquilo que vens buscar. Far-te-ei ver uma coisa terrível: se tiveres a força de suportar a prova pela qual te farei passar, fica certo de que reencontrarás a tua felicidade de outrora. Dou-te cinco minutos para te decidires.

Esgotado esse tempo, Noureddin disse a Manouza que estava pronto a fazer tudo quanto ela quisesse para salvar Nazara. Então a feiticeira, levantando-se, disse-lhe: Pois bem! – Segue. Depois, abrindo uma porta situada no fundo da sala, fê-lo passar à sua frente. Atravessaram um pátio sombrio, repleto de coisas horríveis: serpentes, sapos que passeavam gravemente em companhia de gatos pretos, os quais transmitiam um ar de domínio no meio desses animais imundos.

IV

Na extremidade desse pátio havia uma outra porta, que Manouza igualmente abriu; e, tendo feito passar Noureddin, entraram ambos numa sala baixa, apenas iluminada do alto: a luz vinha de uma cúpula muito elevada, guarnecida de vidros coloridos, formando todo o género de arabescos. No centro da sala havia um escalfador aceso e, sobre este, num tripé, um grande vaso de bronze, dentro do qual ferviam todos os tipos de ervas aromáticas, cujo odor era tão forte que mal se podia suportar. Ao lado desse vaso havia uma espécie de poltrona grande, de veludo negro, de aspecto surpreendente. Quem ali se sentasse desaparecia completamente, porquanto Manouza, nela se havendo acomodado, Noureddin a procurou durante alguns momentos sem conseguir percebê-la. De repente ela reapareceu e disse-lhe: Estás ainda disposto? – Sim, respondeu Noureddin. – Pois bem! Senta-te nesta poltrona e espera.

Tão logo Noureddin se sentou na poltrona tudo mudou de aspecto, enchendo-se a sala de uma multidão de grandes figuras brancas, a princípio apenas visíveis e que depois pareciam de um vermelho sanguíneo ou lembravam homens cobertos de chagas sanguinolentas, dançando uma ronda infernal; e, no meio deles, Manouza, cabelos desgrenhados, olhos chamejantes, vestes esfarrapadas e uma coroa de serpentes na cabeça. Na mão, à guisa de ceptro, brandia uma tocha acesa que deitava chamas, cujo odor subia à garganta. Depois de haverem dançado um quarto de hora, pararam de repente, a um sinal de sua rainha que, para isso, lançara a sua tocha no escalfador em ebulição. Quando todas essas figuras se dispuseram em volta do escalfador, Manouza fez aproximar-se o mais velho, reconhecido por sua longa barba branca, dizendo-lhe: – Vem aqui, tu que segues o diabo; tenho uma missão muito delicada para te encarregar de fazer. Noureddin quer Nazara e eu prometi que lha entregaria; é coisa difícil. – Conto, Tanaple, com o teu concurso. Noureddin haverá de suportar todas as provas necessárias. – Actua, pois! Sabes o que quero; faze o que quiseres, mas faze; tremerás se fracassares. Eu recompenso a quem me obedece, mas infeliz daquele que não me fizer a vontade! – Serás satisfeita, disse Tanaple, e podes contar comigo. – Muito bem! Vai e age.

V

Mal acabara de pronunciar estas palavras e tudo mudou aos olhos de Noureddin; os objectos tornaram-se o que eram antes e Manouza encontrou-se a sós com ele. – Agora, disse-lhe, volta para casa e espera; eu te mandarei um dos meus gnomos dizer o que deves fazer; obedece e tudo correrá bem.

Noureddin ficou feliz com estas palavras e mais feliz ainda por deixar o antro da feiticeira. Atravessou novamente o pátio e a sala por onde havia entrado; depois ela o acompanhou até a porta exterior. Tendo Noureddin perguntado se devia retornar, ela respondeu: – Não; no momento é inútil. Se for necessário eu to farei saber.

Noureddin apressou-se a voltar ao seu palácio. Estava impaciente para saber se alguma novidade havia acontecido desde a sua saída. Encontrou tudo no mesmo estado; apenas viu, na sala de mármore – sala de repouso de verão dos habitantes de Bagdá – uma espécie de anão de fealdade repugnante, perto da piscina situada no centro dessa sala. A sua vestimenta era amarela, com bordados vermelhos e azuis; tinha uma corcunda monstruosa, pernas pequenas, rosto grosseiro, olhos verdes e estrábicos, boca rasgada até às orelhas e os cabelos de um ruivo que podia rivalizar com o sol.

Noureddin perguntou-lhe como chegara ele ali e o que vinha fazer. – Fui enviado por Manouza, disse-lhe, para te entregar a tua amante. Chamo-me Tanaple. – Se és realmente o enviado de Manouza, estou pronto a obedecer às tuas ordens; mas apressa-te, aquela a quem amo está acorrentada e tenho pressa em libertá-la. – Se estás pronto, leva-me imediatamente ao teu quarto e te direi o que é preciso fazer. – Segue-me, então, disse Noureddin.

VI

Depois de haver atravessado vários pátios e jardins, Tanaple encontrou-se nos aposentos do rapaz; fechou todas as portas e disse-lhe: – Sabes o que deves fazer, tudo quanto eu te disser, sem objecção. Usarás este traje de mercador. Levarás um fardo às costas, contendo os objectos que nos são necessários. Quanto a mim, vestir-me-ei de escravo e conduzirei outro fardo.

Para sua grande estupefacção, Noureddin viu dois enormes pacotes ao lado do anão, embora não tivesse visto nem ouvido ninguém trazê-los. – Em seguida, continuou Tanaple, iremos à casa do SultãoMandarás dizer-lhe que tens objectos raros e curiosos; que se ele os quiser oferecer à sultana favorita, nenhuma huri nunca terá usado outros iguais. Conheces a sua curiosidade; ele terá vontade de nos ver. Uma vez admitidos em sua presença, não terás dificuldade em apresentar a tua mercadoria e lhe venderás tudo quanto levamos: são indumentárias maravilhosas, que transformam as pessoas que as vestem. Assim que o Sultão e a sultana os vestirem, todo o palácio os tomará por nós e não por eles: a ti pelo Sultão e a mim por Ozara, a nova sultana. Operada essa metamorfose, estaremos livres para agir à vontade e libertarás Nazara.

Tudo se passou como Tanaple anunciara: a venda ao sultão e a transformação. Depois de alguns minutos de horrível furor da parte do sultão, que queria expulsar os importunos e fazia um barulho medonho, Noureddin, conforme ordem de Tanaple, chamou diversos escravos e fez prender o sultão e Ozara como escravos rebeldes, ordenando que os conduzissem imediatamente à presença da prisioneira Nazara. Queria saber, dizia ele, se ela estava disposta a confessar o seu crime e se estava preparada para morrer. Quis também que a favorita Ozara viesse com ele, a fim de presenciarem o suplício que iria infligir às mulheres infiéis. Dito isto, marchou, precedido do chefe dos eunucos, durante um quarto de hora, por um sombrio corredor, no fundo do qual havia uma pesada porta de ferro maciço. Tomando de uma chave, o escravo abriu três fechaduras e eles entraram num grande gabinete, comprido e da altura de três ou quatro côvados. Ali, sobre uma esteira de palha, estava sentada Nazara, com um cântaro de água e algumas tâmaras por perto. Já não era a brilhante Nazara de outrora: mas continuava sempre bela, entretanto, pálida e emagrecida. À vista daquele que tomava por seu senhor, estremeceu de medo, julgando que houvesse chegado a sua hora.

(Continua na próxima publicação)

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(*) N. do T.: Referência ao Sr. Baudin, cujas filhas adolescentes, Caroline e Julie Baudin, foram as primeiras médiuns que concorreram para o trabalho de Allan Kardec. Vide Obras Póstumas – 2ª Parte – A minha iniciação no Espiritismo.
(**) N. do T.: Esse processo, bastante primitivo, está descrito na 2ª Parte – capítulo XIII, item 154, de O Livro dos Médiuns.


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Uma Noite Esquecida ou a Feiticeira Manouza, Milésima segunda noite dos contos árabes, Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié; – Prefácio da Revue Spirite (repetição), Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Novembro de 1858; – Uma Noite Esquecida (Segundo artigo), Janeiro de 1859, 18º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra