Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 27 de junho de 2015

~~~Párias em Redenção~~~


A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (III)

  Electrificado pelo impacto da descoberta e encorajado pela inspiração perniciosa, Carlo retomou ao casino e fitou o homem semi-embriagado, que o humilhara. De temperamento venal e orgulhoso, ele também não admitia competidor. Olhou-o de vários ângulos e quanto mais o observava, com severidade, mais se lhe acentuava a certeza sobre a procedência das suspeitas. No íntimo conturbado e na mente exacerbada, agora, pela dupla força da raiva pessoal e do ódio que lhe era transmitido, ocorreu-lhe – por transmissão mental – vender o silêncio, apavorando o criminoso, táctica eficaz para vingar-se demoradamente, e – quem sabe? – denunciá-lo depois. A denúncia, é claro – reflectia –, não surtiria o efeito desejado. Quem iria acreditar num cavalariço, ante a palavra do jovem Conde e do respectivo sogro? Dar-se-ia até que ele seria chibateado em público e atirado a um cárcere, até à morte. O melhor e mais eficiente método seria inquietar-lhe a consciência – se é que a tinha –, obrigando-o a denunciar-se, ele próprio, mediante o conciliábulo da chantage.

  Doía-lhe o corpo pela ansiedade e tremiam-lhe os músculos.

  Acercou-se exultante e disse, sem maiores delongas:

  – Com vossa permissão, Senhor Conde. Necessito falar-vos.

  – A mim? – interrogou Girólamo. – Conseguiste mais dinheiro ou desejas pedi-lo a mim?

  Algumas mulheres de aparência grotesca, na pintura e nos trajes, vários homens de vida duvidosa que se encontravam em torno do dissipador gargalharam, zombeteiros.

  Dominando a impetuosidade e fazendo-se humilde, submisso, o florentino tornou:

  – Perdão, senhor! Trata-se de assunto grave, se me permitis.

  – Dize, homem. Que acanhamento é esse, após o prejuízo?

  Novas gargalhadas em troça espocaram. Girólamo realizava-se, ferindo e macerando o opositor vencido.

  – Com vossa aquiescência, senhor, trata-se de problema da vossa família…

  – Que tem minha família…

  Girólamo saltou e mesmo ubriaco (i) aproximou-se do parlamentário e perguntou:

  – Vens do Palácio Castaldi?

  – É mais grave, senhor. Diz respeito à vossa vida, vossa paz.

  – Saiamos, então, daqui, – acudiu o quase borracho.

  Alguns vadios do casino, que cobiçavam a presa, a meio caminho da bebedeira total, para roubar-lhe as moedas, explodiram em exclamações de aborrecimento e enfado.

  Os dois homens saíram à rua. Logo à porta, o senense inquiriu molesto:

  – De que perigo se trata? Avia-te, ordeno!

  – Calma, senhor. Não nos devem ouvir pessoas levianas.

  – Que aparência de mistério é essa?

  – Trata-se realmente de um mistério.

  Avançaram alguns passos e, na semi-obscuridade da viela, entre as pilastras de pedra de cantaria, sob os arcos superiores, onde os vultos pareciam mais estranhos, Carlo arengou:

  – Necessito de vossa ajuda. Somente uma questão de tal monta me obrigaria…

  – Qual é o mistério que me envolve? – vociferou Girólamo.

  Sentindo-se detentor de poderosa arma, Carlo reflectiu sobre o velho provérbio: “Chi va piano, va sano. Chi va sano va lontano.” (ii) Logo explicou:

  – Trata-se de uma ocorrência que vos envolve. – Fez uma pausa, para atingir melhores e seguros resultados.

  Girólamo, enfadado, empurrou o contendor e pôs-se a caminho, de volta ao casino, protestando:

  – Cavalariço imundo, incomodar-me!... Atrevido…

  – Lembrai-vos de um domingo de primavera nas colinas de San Miniato, em Florença, senhor? – gritou-lhe. (Era sua grande cartada: vida ou desgraça. A sorte estava lançada, pensou com sofreguidão.) – Eu estava lá…

  Girólamo estancou o passo. Cambaleou. Um fogo de febre subiu-lhe À cabeça, os ouvidos zumbiram, como se as veias se agitassem, quase a estourar. Rodopiou sobre os calcanhares e volveu. Apesar de quase vencido pela bebida, crispou as mãos e avançou na direcção do ginete dos Castaldi, segurando-o pelas vestes com vigor e, face a face, ardendo de ira, com os dentes travados em rito de ódio, indagou, com a voz subitamente enrouquecida:

  – Não ouvi bem, miserável, canalha. Repeti! Fala! Que desejas, verme asqueroso?...

  – Acalmai-vos, senhor. (Carlo estava convicto de que atingia o objectivo. Vingar-se-ia, agora, em longo curso de desforra.)

  Tentando oferecer naturalidade à voz, falou com fingida humildade:

  – Desejava que o Senhor Conde soubesse… Gostaria de ser-vos útil… As circunstâncias da fortuna me colocaram em San Miniato, naquele dia…

  Os olhos de Girólamo fuzilavam. Mesmo na sombra, Carlo, igualmente robusto, viu o folgor estranho daqueles olhos e sentiu as mãos de ferro, agora em torno do seu pescoço, enquanto a voz rouquenha gritava:

  – Que viste, bandido? Abre-te, antes que eu mesmo te esgane!

  Tentando desvencilhar-se daquelas mãos de aço, crispadas, Carlo retrucou, atordoado:

  – Eu estava em San Miniato quando…

  – Quando?!...

  – Quando o Senhor Conde matou aquela mulher… Eu vi. (E ante o espanto de Girólamo, colhido pela surpresa do inesperado, que afrouxou um pouco a constrição, Carlo, de um golpe, desarmou o desafecto.)

  Aparentando desconhecer a que se referia o florentino, o senense acercou-se e, fulminante, esbordoou-o com violência.

  – Se fosses um homem da nobreza – aduziu com desprezo –, eu te convidava a um duelo. Mas, um réptil dessa classe eu entrego às autoridades…

  Sobrepondo a arrogância à razão, ensaiou alguns passos na direcção do casino, esfogueado, em convulsão. O inesperado colhia-o em circunstância jamais desejada, cravando-lhe a lança de incomparável choque e dor. Não conseguia raciocinar com o necessário acerto. A violência da emoção superou o desalinho das forças pelo álcool, e, como suasse em bagas, passou a eliminar o tóxico. Parou a meio passo. Voltou-se e enfrentou o olhar do inimigo, imóvel, lábios contraídos, desafiador.

  – Serei eu, Senhor Conde – revidou Carlo –, quem irá procurar as autoridades para narrar o vosso hediondo segredo. É certo que não sou nobre, mas posso sê-lo como vós o sois, lavando a condição plebeia no sangue das vítimas, como o fizestes com a vossa ganância. Não vos temo! Somos do mesmo estofo, cavaliere. (E gargalhou com mofa.)

  – Matar-te-ei, miserável! (Girólamo avançou, estertorando.)

  – Parai ou matar-vos-ei eu. (O lépido moço recuou num salto felino, colocando-se à distância do agressor.) Não me interessa a vossa vida…

  – E que desejas, cão?

  – Vender-vos o meu silêncio.

  – A calúnia só merece chibata e cárcere.

  – Veremos como a cidade reagirá ao saber a notícia e relacioná-la com as tragédias do Solar di Bicci…As circunstâncias da morte dos vossos parentes… (Sardónico e igualmente impiedoso, continuou a gargalhar.)

  No mesmo momento em que se sentia desvairar, Girólamo ouviu a gargalhada de Assunta e distinguiu a voz do duque invectivar: “Assassino! Pagarás agora, assassino!”

  O infeliz mancebo, por sua vez, trovejou expressões de louco e sem qualquer lucidez invadiu o casino, transtornado, perseguido pelas Erínias  (iii). Palavras desconexas saíam-lhe dos lábios intumescidos. Segurando a cabeça com as duas mãos, correu de um lado para o outro, perdido no mundo das sombras, nas quais perpetrara os crimes, e ululava. Nos ouvidos superaguçados, continuava ouvindo as acusações do tio e as imprecações de Assunta. Gritos e doestos sórdidos espocavam-lhe no cérebro e ele, açoitado pelo desespero, arrancou em direcção a uma parede e arrojou-se de encontro a ela.

  O pavor tomou conta do recinto. Dois dos seus muitos companheiros de orgias, surpreendidos pelo nefasto acontecimento, levantaram-se de repente e seguraram-no a contorcer-se no solo, a gemer, a sangrar, olhar perdido, músculos e carnes trémulos: era um trapo, sacudido violentamente pela tempestade da insânia íntima.

  O cavaliere Conde Dom Girólamo Cherubini di Bicci experimentava a segunda crise de loucura.

  Através dos olhos sem luminosidade, ele via, além da realidade objectiva, o duque de pé, à sua frente, dedo em riste, empunhando longa chibata, com a qual o surrava desapiedadamente e, ao lado, Assunta, louca, megera nauseante, bailava e cachinava impudente, vingadora. Sofrendo o cilício que o tio lhe infligia, sentiu-se arrancado ao corpo, à força, e foi obrigado a enfrentar as circunstâncias em que se arrojara voluntariamente. O corpo, exânime, tombou quase sem vida.

  Recostaram-no em um leito, no andar superior do cassino-bordel, e alguém foi providenciar uma carruagem, para conduzi-lo ao lar dos sogros. A villa dos Castaldi estava em silêncio. Ante a gritaria dos que se encontravam fora, o guarda da entrada acordou e, cientificado do que acontecera, Dom Lorenzo e a senhora, tomados de inquietação, recolheram o genro ainda ensanguentado, promovendo meios de atendê-lo e diminuir os danos daquele insucesso, constatando que na agitação em que se debatia o genro este deveria estar bêbado, não dando maior importância ao incidente.

  Dois lacaios foram designados a acompanhar a noite do mancebo, que continuou estremunhado, estertorado.

Carlo, o zagal florentino, quando viu o furor que se apossara do antagonista, fruiu a vã satisfação da vitória, comprovando, simultaneamente, que aquele homem não passava de um louco assassino. Agora, tinha certeza da legitimidade da sua observação e não o perderia de vista. Era-lhe uma presa fácil, que poderia modificar o seu destino. Propor-lhe-ia mudança de vida… Fá-lo-ia, sim.

  “Agora, vamos ao prazer interrompido.” – planeou.

  Abandonando a rua deserta, demandou outros sítios.

  A cidade acordou pachorrentamente, vagarosamente, exausta, no dia seguinte. O lixo abundava e as ruas estavam imundas…

Girólamo despertou febril, sem recobrar a lucidez, alquebrado, expressão de demente, olhar parado, fácies desconcertante. Às vezes, ria sem motivo ou se deixava vencer por crises nervosas que o sacudiam violentamente.

  Dom Lorenzo despachou um moço de recados à herdade Bicci, encarregue de trazer a Condessa Beatriz. A jovem senhora, notificada da enfermidade do esposo, acudiu aflita a socorrê-lo. No palácio paterno.

  A notícia chegou igualmente ao Palácio T., provocando em Francesco e Lucrécia sincera preocupação.

  Por intermédio dos lacaios, Carlo manteve-se informado do que acontecia na intimidade do palácio, gozando interiormente a desforra e aguardando acontecimentos novos. Tinha a certeza de que os bons génios, que lhe auguraram o destino futuro, premeditaram tais cometimentos para ensejar-lhe fortuna e regalias, Girólamo possuía mais do que podia dissipar e não lhe custava muito repartir com o comparsa, elegendo-o amigo e preferido da sua casa. Reservou o tempo, esperando.

  Logo chamado, o esculápio examinou detidamente o enfermo e, como este se encontrasse vitimado por febre e constantes delírios, nos quais o corpo em desequilíbrio sofria as vicissitudes do espírito aturdido, a sofrer o império do desconforto que proporcionava a si mesmo, foi taxativo: maremma toscana! Recomendou repouso excessivo e silêncio, prescrevendo clisteres e outras mezinhas. Comprometeu-se a retornar com assiduidade, acompanhando a marcha da enfermidade do paciente.

  Sentindo o êxito do programa em plena execução, o desencarnado duque di Bicci, no fragor da loucura de que também se via possuído, experimentou júbilo, o júbilo que, à semelhança de ácido, queima e requeima os que o conduzem. Considerava a partida ganha: Girólamo, à semelhança de Assunta, estava em suas mãos. Na ferocidade do ódio em que se consumia, não desejava que o desditoso jovem morresse de imediato. Comprazer-se-ia em vê-lo sofrer lentamente, como a cobrar a asfixia que padeceram seus filhinhos e Lúcia nas mãos ímpias do assassino. Assim, reflexionando, a entidade folgou a constrição psíquica e a influenciação exercida sobre a vítima, a qual, vendo-se parcialmente livre dos fluidos danosos, recobrou alento, recuperando o controlo sobre os órgãos dos sentidos físicos, a consciência, as lembranças…

  Passaram pela sua mente os últimos acontecimentos, em esfera penumbrosa de sonho pernicioso. Recordava-se da agressão espiritual sofrida, sem a compreender, todavia, evocou as ameaças e revelações de Carlo. A simples lembrança do móvel das dores que experimentava fê-lo desesperar. Possuidor de um carácter venal, tentou recompor-se para cuidar do desafecto, na ocasião oportuna.

  As melhoras do enfermo, repentinas, foram saudadas festivamente com êxito do médico.

  Uma semana depois, ainda convalescente, Girólamo, acompanhado pelo carinho da esposa, retorna ao solar altaneiro, nas colinas do pequeno ducado…

/…
(i) Ubriaco: bêbado.
(ii) “Quem vai devagar vai seguro. Quem vai seguro vai longe.”
(iii) As Erínias ou Eumênides eram deusas gregas a que os romanos chamavam Fúrias. Eram filhas da Terra, que viviam no Tártaro, com a missão de punir os crimes dos homens. Faziam-se representar com os cabelos entrelaçados de serpentes, tendo um punhal numa mão e um facho aceso noutra. Tinham como nomes: Tisífone, Alecto e Megera. Pertencem à Mitologia.



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 8. A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (3 de 3) 28º fragmento da obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Diálogos de Kardec ~


Profissão de Fé Espírita Raciocinada

§ I. Deus

1. Há um Deus, inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.

A prova da existência de Deus está neste axioma: Não há, absolutamente, efeito sem causa. Vemos incessantemente uma multidão inumerável de efeitos, cuja causa não está na humanidade, já que a humanidade é impotente para produzi-los, e mesmo para explicá-los; a causa está, portanto, acima da humanidade. É esta causa a que se chama Deus, Jeová, Alá, Brahma, Fo-Hi, Grande Espírito, etc., segundo as línguas, os tempos e os lugares.

Esses efeitos não se produzem absolutamente ao acaso, fortuitamente e sem ordem; desde a organização do menor insecto e do menor grão, até à lei que rege os mundos que circulam no Espaço, tudo atesta um pensamento, uma combinação, uma previdência, uma solicitude que ultrapassam todas as concepções humanas. Esta causa é, portanto, soberanamente inteligente.

2. Deus é eterno, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom.

Deus é eterno; se houvesse tido um começo, alguma coisa teria existido antes dele; teria saído do nada, ou melhor, teria criado a si próprio através de um ser anterior. É assim que, pouco a pouco, remontamos ao infinito na eternidade.

Ele é imutável; se estivesse sujeito a mudanças, as leis que regem o Universo não teriam nenhuma estabilidade.

Ele é imaterial; quer dizer, que a sua natureza difere de tudo o que chamamos matéria, de outro modo, ele estaria sujeito às flutuações e às transformações da matéria, e não seria imutável.

Ele é único; se houvesse vários Deuses, haveria várias vontades, e desde então, não haveria nem unidade de vistas, nem unidade de poder na ordenação do Universo.

Ele é todo-poderoso, porque é único. Se não tivesse o soberano poder, haveria alguma coisa mais poderosa que ele; ele não teria feito todas as coisas, e as que não tivesse feito seriam a obra de um outro Deus.

Ele é soberanamente justo e bom. A sabedoria providencial das leis divinas se revela nas menores coisas como nas maiores, e essa sabedoria não permite duvidar nem da sua justiça, nem da sua bondade.

3. Deus é infinito em todas as suas perfeições. Se supuséssemos imperfeito um só dos atributos de Deus, se subtraíssemos a menor parcela de eternidade, de imutabilidade, de imaterialidade, de unidade, de todo-poder, da justiça e da bondade de Deus, poderíamos supor um ser que possuísse o que lhe faltasse, e este ser, mais perfeito que ele, seria Deus.

§ II. A alma

4. Há no homem um princípio inteligente a que chamamos ALMA ou ESPÍRITO, independente da matéria, e que lhe dá o senso moral e a faculdade de pensar.

Se o pensamento fosse uma propriedade da matéria, ver-se-ia a matéria bruta pensar; ora, como nunca se viu a matéria inerte dotada de faculdades intelectuais; e quando o corpo está morto, ele não pensa mais, é preciso concluir que a alma é independente da matéria, e que os órgãos são apenas instrumentos com a ajuda dos quais o homem manifesta o seu pensamento.

5. As doutrinas materialistas são incompatíveis com a moral e subversivas da ordem social.

Se, segundo os materialistas, o pensamento fosse segregado pelo cérebro, como a bílis é segregada pelo fígado, resultaria que, com a morte do corpo, a inteligência do homem e todas as suas qualidades morais retornariam ao nada; que os pais, os amigos e todos aqueles a quem fomos afeiçoados, estariam perdidos, sem retorno; que o homem de génio não teria mérito, já que deveria as suas faculdades transcendentais apenas ao acaso de sua organização; que não haveria entre o imbecil e o sábio, senão a diferença de mais ou menos cérebro.

As consequências dessa doutrina seriam de que o homem, não esperando nada além dessa vida, não teria nenhum interesse de fazer o bem; que seria muito natural procurar para si os maiores prazeres possíveis, mesmo que fosse à custa de outrem; que haveria estupidez em se privar em favor dos outros; que o egoísmo seria o sentimento mais racional; que aquele que é obstinadamente infeliz na Terra, não teria nada de melhor a fazer do que matar-se, já que, devendo cair no nada, tanto faria para ele, e que abreviaria os seus sofrimentos.

A doutrina materialista é, portanto, a sanção do egoísmo, fonte de todos os vícios; a negação da caridade, fonte de todas as virtudes e base da ordem social, e a justificação do suicídio.

6. A independência da alma é provada pelo Espiritismo.

A existência da alma é provada pelos actos inteligentes do homem, que devem ter uma causa inteligente e não uma causa inerte. A sua independência da matéria é demonstrada de uma maneira patente pelos fenómenos espíritas que a mostram agindo por si própria, e sobretudo pela experiência de seu isolamento durante a vida, o que lhe permite manifestar-se, pensar e agir na ausência do corpo.

Pode dizer-se que, se a química separou os elementos da água, se ela colocou por isso as suas propriedades a descoberto, e se ela pode à vontade desfazer e refazer um corpo composto, o Espiritismo pode, igualmente, isolar os dois elementos constitutivos do homem: o espírito e a matériaa alma e o corpo, separá-los e reuni-los à vontade, o que não pode deixar dúvida sobre a sua independência.

7. A alma do homem sobrevive ao corpo e conserva a sua individualidade depois da morte.

Se a alma não sobrevivesse ao corpo, o homem não teria como perspectiva senão o nada, assim como, se a faculdade de pensar fosse o produto da matéria; se não conservasse a sua individualidade, quer dizer, se fosse perder-se no reservatório comum chamado o grande todo, como as gotas de água no oceano, seria igualmente, para o homem, o nada do pensamento, e as consequências seriam absolutamente as mesmas do que se não tivesse alma.

A sobrevivência da alma após a morte é provada de uma maneira irrecusável e, de alguma sorte palpável, pelas comunicações espíritas. A sua individualidade é demonstrada pelo carácter e as qualidades próprias a cada um; essas qualidades que distinguem as almas umas das outras, constituem a sua personalidade; se fossem confundidas num todo comum, teriam apenas qualidades uniformes.

Além dessas provas inteligentes, há ainda a prova material das manifestações visuais ou aparições, que são tão frequentes e tão autênticas, que não é permitido colocá-las em dúvida.

8. A alma do homem é feliz ou infeliz após a morte, segundo o bem ou o mal que tenha feito durante a vida.

Desde que se admita um Deus soberanamente justo, só se pode admitir que as almas tenham um destino comum. Se a posição futura do criminoso e do homem virtuoso devesse ser a mesma, isto excluiria qualquer utilidade em procurar fazer o bem; ora, supor que Deus não faz diferença entre aquele que faz o bem e aquele que faz o mal, seria negar a sua justiça. O mal, não recebendo sempre a sua punição, nem o bem, a sua recompensa durante a vida terrestre, é necessário daí concluir que a justiça será feita depois, sem o que, Deus não seria justo.

As penas e as alegrias futuras são, além disso, materialmente provadas pelas comunicações que os homens podem estabelecer com as almas daqueles que viveram, e que vêm descrever o seu estado feliz ou desgraçado, a natureza de suas alegrias ou de seus sofrimentos, e dizer-lhes a causa.

9. Deus, a alma, a sobrevivência e a individualidade da alma depois da morte do corpo, penas e recompensas futuras, são os princípios fundamentais de todas as religiões.

O Espiritismo vem acrescentar às provas morais desses princípios, as provas materiais dos factos e da experimentação, e arrasar com os sofismas do materialismo. Em presença dos factos, a incredulidade não tem mais razão de ser; é assim que o Espiritismo vem devolver a fé àqueles que a perderam, e tirar as dúvidas dos incertos.

§ III. Criação

10. Deus é o criador de todas as coisas. Esta proposição é a consequência da prova da existência de Deus (nº 1).

11. O princípio das coisas está nos segredos de Deus.

Tudo diz que Deus é o autor de todas as coisas, mas quando e como as criou? A matéria é como ele de toda a eternidade? É isso que ignoramos. Sobre tudo o que não julgou revelar-nos a respeito, só se pode estabelecer sistemas mais ou menos prováveis. Pelos efeitos que vemos, podemos remontar a certas causas; mas há um limite que nos é impossível ultrapassar, e seria ao mesmo tempo perder seu tempo e expor-se a equivocar-se, querer ir além.

12. O homem tem como guia na busca do desconhecido, os atributos de Deus.

Na busca dos mistérios que nos é permitido sondar pelo raciocínio, há um critério certo, um guia infalível: são os atributos de Deus.

Desde que se admita que Deus deve ser eternoimutávelimaterialúnicotodo-poderososoberanamente justo e bom, que é infinito nas suas perfeições, qualquer doutrina ou teoria, científica ou religiosa, que tendesse a suprimir-lhe uma parcela de um só de seus atributos, seria necessariamente falsa, já que tenderia à negação da própria divindade.

13. Os mundos materiais tiveram um começo e terão um fim.

Que a matéria seja de toda a eternidade como Deus, ou que tenha sido criada numa época qualquer, é evidente, segundo o que acontece quotidianamente sob os nossos olhos, que as transformações da matéria são temporárias, e que dessas transformações resultam os diferentes corpos que nascem e se destroem incessantemente.

Os diferentes mundos sendo produtos da aglomeração e da transformação da matéria, devem, como todos os corpos materiais, ter tido um começo e ter um fim, segundo leis que nos são desconhecidas. A Ciência pode, até um certo ponto, estabelecer as leis de sua formação e remontar ao seu estado primitivo. Toda a teoria filosófica em contradição com os factos demonstrados pela Ciência, é necessariamente falsa, a menos que prove que a Ciência está errada.

14. Criando os mundos materiais, Deus criou também seres inteligentes a que chamamos espíritos.

15. A origem e o modo de criação dos espíritos nos são desconhecidos; sabemos somente que foram criados simples e ignorantes, quer dizer, sem ciência e sem conhecimento do bem e do mal, mas perfectíveis e com uma igual aptidão para tudo conquistar e tudo conhecer com o tempo. No princípio, estão numa espécie de infância, sem vontade própria e sem consciência perfeita de sua existência.

16. À medida que o espírito se afasta do ponto de partida, as ideias nele se desenvolvem, como na criança, e com as ideias, o livre-arbítrio, quer dizer, a liberdade de fazer ou não fazer, de seguir tal ou qual caminho para o seu adiantamento, o que é um dos atributos essenciais do espírito.

17. O objectivo final de todos os espíritos é de atingir a perfeição da qual é susceptível a criatura; o resultado dessa perfeição é a alegria da felicidade suprema que é a consequência, e à qual chegam mais ou menos prontamente, segundo o uso que fazem do seu livre-arbítrio.

18. Os espíritos são agentes do poder divino; constituem a força inteligente da natureza e concorrem para a execução das visões do Criador para a manutenção da harmonia geral do Universo e das leis imutáveis da criação.

19. Para concorrer, como agentes do poder divino, na obra dos mundos materiais, os espíritos revestem temporariamente um corpo material. Os espíritos encarnados constituem a humanidade. A alma do homem é um espírito encarnado.

20. A vida espiritual é a vida normal do espírito: ela é eterna; a vida corporal é transitória e passageira: é apenas um instante na eternidade.

21. A encarnação dos espíritos está nas leis da natureza; é necessária ao seu adiantamento e à execução das obras de Deus. Pelo trabalho que sua existência corporal necessita, eles aperfeiçoam a sua inteligência e adquirem, observando a lei de Deus, os méritos que devem conduzi-los à felicidade eterna. Daí resulta que, concorrendo para a obra geral da criação, os espíritos trabalham para o seu próprio adiantamento.

22. O aperfeiçoamento do espírito é o fruto de seu próprio trabalho; progride na razão da sua maior ou menor actividade ou da boa vontade para adquirir as qualidades que lhe faltam.

23. Não podendo o espírito adquirir numa só existência corporal todas as qualidades morais e intelectuais que devem conduzi-lo ao objectivo, ele aí chega através de uma sucessão de existências, em cada uma das quais dá alguns passos adiante, no caminho do progresso, e purifica-se de algumas de suas imperfeições.

24. A cada nova existência, o espírito traz o que adquiriu em inteligência e em moralidade, nas suas existências precedentes, assim como os germens das imperfeições das quais ainda não se despojou.

25. Quando uma existência foi mal empregada pelo espírito, quer dizer, se não fez nenhum progresso no caminho do bem, ela não tem proveito para ele, e ele deve recomeçá-la em condições mais ou menos penosas, em razão da sua negligência e de seu malquerer.

26. Devendo o espírito a cada existência corporal adquirir alguma coisa de bem e despojar-se de alguma coisa de mal, daí resulta que, após um certo número de encarnações, encontra-se depurado e chega ao estado de puro espírito.

27. O número das existências corporais é indeterminado; depende da vontade do espírito abreviá-la, trabalhando activamente para o seu aperfeiçoamento moral.

28. No intervalo das existências corporais, o espírito é errante e vive a vida espiritual. A erraticidade não tem duração determinada.

29. Quando os espíritos adquiriram num mundo a soma de progresso que comporta o estado desse mundo, deixam-no para encarnar num outro mais adiantado, onde adquirirão novos conhecimentos, e assim, sucessivamente, até que a encarnação num corpo material não lhe sendo mais útil, vivem exclusivamente a vida espiritual, onde progridem ainda num outro sentido e através de outros meios. Tendo chegado ao ponto culminante do progresso, desfrutam da suprema felicidade; admitidos nos conselhos do Todo-Poderoso, têm o seu pensamento e tornam-se os seus mensageiros, os seus ministros directos para o governo dos mundos, tendo sob as suas ordens os espíritos de diferentes graus de adiantamento.

/…


ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, PROFISSÃO DE FÉ ESPÍRITA RACIOCINADA, I Deus, II A alma, III Criação, 11º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Nas garras do pensamento crítico ~


Por uma consciência humanista ~

             Se a experiência nos mostra que a formação de uma “consciência proletária” é praticamente inviável, pois, entre outros motivos, a própria revolução proletária vem sendo impulsionada e dirigida por forças estranhas ao proletariado; não somente desde os seus pródromos, mas ainda, hoje, e cada vez mais; se nos mostra que a “filosofia do proletariado” não consegue atraí-lo e empolgá-lo mais do que a demagogia fascista ou o diversionismo democrático dos países capitalistas mais altamente industrializados; revela-se-nos ainda que a vitória das chamadas “minorias conscientes” cria novos e violentos antagonismos internacionais, cada vez mais agressivos, é evidente que só nos resta procurar uma saída humana, e não proletária nem burguesa, para essa terrível situação. A saída não será a da submissão, a do pescoço entregue mansamente à canga, mas não será também a da violência e a da força.

   Se Marx reconhece no proletariado o potencial revolucionário, que a sua filosofia devia armar da necessária orientação para a luta, e se essa orientação só seria possível através da criação da “consciência de classe”, não teremos, nesse mesmo facto, o exemplo e a indicação do que nos cabe fazer? As massas que hoje se deparam à nossa frente, exploradas e sofredoras, não são apenas o proletariado, mas essa multidão heterogénea, que se chama povo, humanidade, e que as classes dividem de maneira formal, mas não substancial. Ao mesmo tempo, a situação das classes dominantes é de angústia e desespero, pesando sobre elas as consequências morais inevitáveis do usufruto indevido e da exploração dos semelhantes. O capital, o dinheiro, o poder, as comodidades, não bastam para salvá-las e, pelo contrário, cada vez mais as precipitam no pântano da corrupção moral e social.

   Diante disso, cabe-nos repetir o gesto de Marxoferecendo agora uma filosofia, não a esta ou àquela classe, mas a toda a humanidade, para armá-la da orientação necessária, através da criação de uma “consciência humanista”. Entreguemos essa filosofia de libertação, essa arma de defesa moral, esse instrumento de luta social, ao homem de todas as latitudes e de todas as classes, e trabalhemos pela criação da “consciência humanista” nos indivíduos em particular e no meio social em geral.

   Elevar a Terra na escala dos mundos!
   Não nos iludamos, porém, quanto aos métodos de acção que devemos empregar. Simples evangelização ou catequização, nos moldes religiosos, não darão resultados, porque nos amarram, pelo contrário, às antiquadas formas sectárias, que proliferam por toda parte e criam divisionismos estéreis e perigosos. O Espiritismo tem de descobrir a sua própria maneira de agir, tem de forjar as suas próprias armas, inteiramente novas, tão diferentes das usadas pelo processo do religiosismo clássico quanto pelo materialismo-dialéctico. Talvez nesta altura nos pudessem servir de “pontos-de referência” algumas longínquas tentativas históricas, como a de comunidade apostólica, de que nos dá notícia O Livro de Actos, ou ainda as recentes colónias de produção do Estado de Israel. O certo, porém, é que precisamos estabelecer os fundamentos sólidos e definidos do Espiritismo Dialéctico, aplicando-o, no plano sociológico ou histórico, rumo à sociedade futura.

   Ele mostrará, com base na experiência secular e no estudo objectivo da natureza humana, do homem psicológico, que não se pode construir um mundo social harmónico através da violência social, mas tão-somente do desenvolvimento do espírito colectivista de cooperação. E que a sociedade, como o homem – sem cairmos rigidamente no organicismo spenceriano –, tem as suas fases evolutivas bem definidas, que não poderemos deixar de considerar, pois Engels já nos ensinou que não desprezaríamos impunemente a dialéctica.

   Assim, se aquilo que o homem só podia resolver pelo emprego da força bruta, no seu estado primitivo, consegue fazê-lo pelo raciocínio e pela técnica, no estado de civilização, também a humanidade, superada a fase primitiva da sua elaboração social, pode caminhar, sem o uso da violência brutal e instintiva, para a revolução colectivista. Isso não quer dizer que a luta não se processe, que tenha sido interrompida no seu organismo, e que tenhamos de esperar o advento espontâneo da nova forma social, mas apenas que a luta se desenvolve de maneira diversa, em plano mais alto, como bem o definiu Ubaldi.

   Aproveitemos, pois, a oportunidade que Humberto Mariotti nos oferece, com a sua “interpretação espiritual da dialéctica”, para meditarmos sobre esses assuntos e buscarmos a forma que nos falta de oferecer ao mundo a solução espiritual do problema social. De fazermos, enfim, que o Espiritismo cumpra a sua missão histórica, vencendo a crise que o reduz, no momento, a uma luz bruxuleante no meio de densas trevas, a uma espécie de simples refúgio individual para as decepções e para as aflições humanas. Pois o seu destino, como assinalou sir Oliver Lodge, não é apenas o de consolar corações desalentados, mas o de rasgar para o mundo as perspectivas de uma nova era. Se a fé dogmática determinou o fanatismo religioso da Idade Média, com as suas fogueiras sinistras, a fé raciocinada criará o positivismo religioso do terceiro milénio, com as piras da fraternidade acesas em todos os quadrantes do planeta. Porque, como já o dissera Kardec, a tarefa do Espiritismo é a de elevar a Terra na escala dos mundos, transferindo-a da categoria expiatória para a de Mundo Regenerador.

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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico  Por uma consciência humanista – Elevar a Terra na escala dos mundos, 15º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)