Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 17 de março de 2020

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~ teorias antigas e modernas sobre o mundo

  A primeira ideia que os homens fizeram da Terra, do movimento dos astros e da constituição do Universo deve ter sido, na sua origem, unicamente baseada no testemunho dos sentidos. Na ignorância das leis mais elementares da física e das forças da natureza, não tendo mais que a sua visão limitada como meio de observação, só podiam avaliar pelas aparências.

  Ao ver o Sol surgir de manhã de um lado do horizonte e desaparecer do lado oposto, concluiu-se daí naturalmente que este girava à volta da Terra, enquanto esta permanecia imóvel. Se tivesse então sido dito aos homens que é o contrário que se passa, teriam respondido que isso não podia ser, porque, teriam eles dito; nós vemos o Sol mudar de sítio e não sentimos a Terra mexer-se.

  A pouca extensão das viagens, que raramente ultrapassavam então os limites da tribo ou do vale, não permitiam que se constatasse a forma esférica da Terra. Como é que, aliás, se poderia supor que a Terra pudesse ser uma bola? Os homens não se poderiam manter sobre o ponto mais elevado e imaginá-la habitada em toda a sua superfície; como poderiam viver no hemisfério oposto, de cabeça para baixo e pés para cima? A coisa teria parecido ainda menos possível com um movimento de rotação. Quando vemos, ainda hoje, que se conhecem as leis da gravidade, pessoas relativamente esclarecidas não se aperceberem deste fenómeno, não nos devemos espantar por os homens dos primeiros tempos não o terem nem sequer suspeitado.

  A Terra era portanto para eles uma superfície plana, circular como uma  de moinho, estendendo-se a perder de vista em sentido horizontal; daí a expressão ainda utilizada: ir até ao fim  do mundo. Os limites, a sua espessura, o seu interior, a sua face inferior, o que havia por baixo, era o desconhecido (*).

  O céu, aparentemente sob uma forma côncava, era, segundo a crença vulgar, uma abóbada real cujos bordos inferiores assentavam na Terra, demarcando-lhe os confins; vasta cúpula com a capacidade total repleta de ar. Sem nenhuma noção de infinito, de espaço, incapazes mesmo de o conceber, os homens imaginavam esta abóbada formada por matéria sólida; daí o nome de firmamento que sobreviveu à crença e que significa firme, resistente (do latim firmamentum, derivado de firmus e do grego hermahermatos, firme, suporte, ponto de apoio).

  As estrelas, cuja natureza não podiam imaginar, eram simples pontos luminosos, mais ou menos grandes, ligados à abóbada como lâmpadas suspensas, dispostas numa única superfície e, por consequência, todas à mesma distância da Terra, tal como se representam no interior de certas cúpulas pintadas de azul para imitar o azul dos céus.

  Apesar de hoje as ideias serem muito diferentes, o uso das expressões antigas conservou-se; diz-se ainda, por comparação: a abóbada estrelada; sob a calote do céu.

  A formação das nuvens por evaporação das águas da Terra era então igualmente desconhecida; não podiam pensar que a chuva que cai do céu tivesse a sua origem na Terra, de onde não se via a água subir. Daí a crença na existência das águas superiores e das águas inferiores, das fontes celestes e das fontes terrestres, em reservatórios situados nas regiões altas, suposição que estava perfeitamente de acordo com a ideia de uma abóbada capaz de as manter. As águas superiores, escapando-se por fissuras da abóbada, caíam em chuva e, consoante essas aberturas fossem maiores ou menores, a chuva era suave ou torrencial e diluviana.

  A ignorância total sobre o conjunto do Universo e das leis que o regem, da natureza, da constituição e destino dos astros, que pareciam tão pequenos em comparação com a Terra, deve necessariamente ter feito com que esta fosse considerada a coisa principalfim único da Criação e, onde os astros seriam acessórios criados unicamente para os seus habitantes. Este preconceito perpetuou-se até aos nossos dias, apesar das descobertas da ciência que mudaram, para o homem, o aspecto do mundo. Quantas pessoas acreditam ainda que as estrelas são ornamentos do céu para recrear a vida dos habitantes da Terra!

  Não tardaram a aperceber-se do movimento aparente das estrelas que se movem em massa de Oriente para Ocidente, levantando-se à noite e deitando-se de manhã, conservando as suas posições respectivas. Esta observação não teve durante muito tempo outra consequência para além de confirmar a ideia de uma abóbada sólida arrastando as estrelas no seu movimento de rotação.

  Estas primeiras ideias, ideias ingénuas, foram durante longos períodos seculares a base das crenças religiosas e serviam de fundo a todas as cosmogonias antigas.

  Mais tarde compreendeu-se, pela direcção do movimento das estrelas e pelo seu regresso periódico na mesma ordem, que a abóbada celeste não podia ser simplesmente uma semiesfera assente sobre a Terra, mas sim uma esfera inteira, côncava, no centro da qual se encontrava a Terra, sempre plana ou quando muito convexa e habitada unicamente na face superior. Era já um progresso.

  Mas em que estava assente a Terra? Seria inútil mencionar todas as suposições ridículas concebidas pela imaginação, desde a dos índios que a diziam levada por quatro elefantes brancos e estes pelas asas de um imenso abutre. Os mais sensatos confessavam que não sabiam nada disso.

  No entanto, uma opinião geralmente propagada nas teogonias pagãs situava nos lugares baixos, ou dito de outra maneira, nas profundezas da Terra, ou por baixo, não se sabia muito bem, a morada dos reprovados, chamados infernos, quer dizer, lugares inferiores; nos lugares altos, para além do lugar das estrelas, a morada dos bem-aventurados. A palavra inferno conservou-se até aos nossos dias, embora tenha perdido o seu significado etimológico desde que a geologia desalojou o lugar dos suplícios eternos das entranhas da Terra e que a astronomia demonstrou que não há nem alto nem baixo no espaço infinito.

  Sob o céu puro da Caldeia, da Índia e do Egipto, berço das mais antigas civilizações, foi possível observar o movimento dos astros com tanta precisão quanto permitia a ausência de instrumentos especiais. Viu-se primeiro que certas estrelas tinham um movimento próprio independente da massa, o que permitia supor que estivessem agarradas à abóbada; chamaram-lhes estrelas errantes ou planetas para as distinguir das estrelas fixas. Calcularam-se os seus movimentos e os seus regressos periódicos.

  No movimento diurno da esfera estrelada observou-se a imobilidade da estrela polar à volta da qual as outras descreviam, em vinte e quatro horas, círculos oblíquos paralelos maiores ou menores, consoante o seu afastamento da estrela central; foi o primeiro passo para o conhecimento da obliquidade do eixo do mundo. Além disso, longas viagens permitiam observar a diferença de aspectos do céu consoante as latitudes e as estações; a elevação da estrela polar abaixo do horizonte, variando com a altitude, colocou-nos no caminho da esfericidade da Terra; foi assim que, a pouco e pouco, fomos ficando com uma ideia mais certa do sistema do mundo.

  Cerca do ano 600 antes de Jesus Cristo, Tales de Mileto (Ásia Menor), conheceu a esfericidade da Terra, a obliquidade da elíptica e a causa dos eclipses.

  Um século depois, Pitágoras de Samos, descobre o movimento diurno da Terra sobre o seu eixo, o seu movimento anual à volta do Sol e liga os planetas e os cometas ao sistema solar.

  160 anos antes de J. C., Hiparco de Alexandria (Egipto), inventa o astrolábio, calcula e prevê os eclipses, observa as manchas do Sol, determina o ano trópico, a duração das mudanças da Lua.

  Por muito precisas que fossem estas descobertas para o progresso da ciência, levaram cerca de 2000 anos a produzir-se. As ideias novas, não tendo então para se propagarem mais do que raros manuscritos, continuavam a ser o quinhão de alguns filósofos que as ensinavam a discípulos privilegiados; as massas, que nem se pensava em esclarecer, não as aproveitavam em nada e continuavam a alimentar-se de velhas crenças.

  Cerca do ano 140 da era cristã, Ptolomeu, um dos homens mais ilustres da escola da Alexandria, combinando as suas próprias ideias com as crenças vulgares e algumas das mais recentes descobertas astronómicas, compôs uma nova teoria a que podemos chamar mista, que tem o seu nome e que, durante quase quinze séculos, foi a única adoptada no mundo civilizado.

  Segundo a teoria de Ptolomeu, a Terra era uma esfera no centro do Universo; compunha-se de quatro elementos: terra, água, ar e fogo. Era a primeira região dita elementar. A segunda região, dita etérea, compreendia onze céus ou esferas concêntricas girando à volta da Terra, a saber: o Sol da Lua, os de Mercúrio, de Vénus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno, das estrelas fixas, do primeiro cristalino, esfera sólida transparente; do segundo cristalino e, finalmente, do primeiro móbil que dava o movimento a todos os céus inferiores e os fazia dar uma rotação em vinte e quatro horas. Para lá dos onze céus ficava o Empíreo, morada dos bem-aventurados, assim chamado do grego pyr ou pur, que significa fogo, porque se julgava esta região resplandecente de luz como o fogo.

  A crença em vários céus sobrepostos prevaleceu durante muito tempo; mas variava-se no número; o sétimo era geralmente considerado o mais elevado; daí a expressão estar no sétimo céuSão Paulo disse que tinha sido criado no terceiro céu.

  Independentemente do movimento comum, os astros tinham, segundo Ptolomeu, movimentos próprios, maiores ou menores, consoante o seu afastamento do centro. As estrelas fixas faziam uma rotação em 25,816 anos. Esta última avaliação denota o conhecimento da precisão dos equinócios, que se realizava efectivamente em 25,868 anos.

  No início do século XVI, Copérnico, célebre astrónomo, nascido em Thorn (Prússia), em 1473, falecido em 1543, retomou as ideias de Pitágoras; publicou uma teoria que, diariamente confirmada por novas observações, foi favoravelmente acolhida e não tardou a derrotar a de Ptolomeu. Segundo esta teoria, o Sol está no centro, os planetas descrevem órbitas circulares à volta deste astro; a Lua é um satélite da Terra.

  Um século depois, em 1609, Galileu, nascido em Florença, inventa o telescópio; em 1610, descobre os quatro satélites de Júpiter e calcula as suas rotações; conclui que os planetas não possuem luz própria como as estrelas, mas que são iluminados pelo Sol; que são esferas semelhantes à Terra; observa as suas fases e determina a duração da sua rotação sobre o eixo; dá assim, com provas materiais, uma sanção definitiva à teoria de Copérnico.

  De imediato se desmoronou a pirâmide de céus sobrepostos; os planetas foram reconhecidos como mundos semelhantes à Terra e, como ela, sem dúvida habitados; as estrelas, por inúmeros sóis, centros prováveis de outros tantos sistemas planetários; e o Sol, ele próprio foi reconhecido como uma estrela, centro de um turbilhão de planetas que lhe estão submetidos.

  As estrelas já não estão confinadas a uma zona da esfera celeste, mas irregularmente disseminadas no espaço sem limites; as que parecem tocar-se estão a distâncias incomensuráveis umas das outras; as mais pequenas em aparência, são as mais afastadas de nós; as maiores, as que estão mais perto, estão também a centenas de milhares de léguas (**) de distância.

  Os grupos a quem deram o nome de constelações não são mais do que agrupamentos aparentes provocados pelo afastamento; as suas figuras são efeitos de perspectiva, como se formam à vista de quem está colocado num ponto fixo das luzes dispersas numa vasta planície, ou as árvores de uma floresta; mas estes agrupamentos não existem na realidade; se fosse possível transportar-nos para a região de uma dessas constelações, à medida que nos fôssemos aproximando a forma iria desaparecendo e novos grupos se desenhariam à nossa vista.

  A partir do facto desses só existirem em aparência, o significado que uma crença vulgar supersticiosa lhes atribui é ilusória e a sua influência só poderia existir em imaginação.

  Para distinguir as constelações deram-lhes nomes como Leão, Touro, Gémeos, Virgem, Balança, Capricórnio, Caranguejo, Orion, Hércules, Ursa Maior ou Carro de David, Ursa Menor, Lira, etc., e representam-nas com figuras que lembram estes nomes, a maior parte de fantasia, mas que, em todos os casos, não têm qualquer relação com a forma aparente do grupo de estrelas. Seria portanto em vão que procuraríamos estas figuras no céu.

  A crença na influência das constelações, sobretudo daquelas que constituem os doze signos do Zodíaco, vem da ideia ligada aos nomes que têm; se a que se chama leão tivesse o nome de burro ou ovelha, ter-lhe-iam certamente atribuído uma influência muito diferente.

  A partir de Copérnico e de Galileu, as velhas cosmogonias foram para sempre destruídas: a astronomia só podia avançar e não recuar. A história fala nas lutas que estes homens de génio tiveram de manter contra os preconceitos e, sobretudo, contra o espírito de seita, interessado na manutenção dos erros sobre que se tinham fundado as crenças que se imaginavam assentes sobre uma base inabalável. Bastou a invenção de um instrumento de óptica para derrubar um monte com vários milhares de anos. Mas nada poderia prevalecer contra uma verdade reconhecida como tal. Graças à impressora, o público, iniciado nas ideias novas, começava a não se deixar embalar com ilusões e tomava parte na luta; já não era contra a opinião geral que tomava partido pela verdade.

  Como o Universo é grande ao pé das mesquinhas proporções que os nossos pais lhe atribuíam! Como é sublime a obra de Deus, quando a vemos realizar-se segundo as eternas leis da natureza! Mas também quanto, que esforço de génio, que devoções foram necessárias para abrir os olhos e arrancar por fim a venda da ignorância!

  Doravante, estava aberta a via por onde ilustres e numerosos sábios iriam entrar para completar a obra esboçada. Kepler, na Alemanha, descobre as célebres leis que têm o seu nome e com a ajuda das quais reconhece que os planetas descrevem não órbitas circulares, mas elipses, onde o Sol ocupa um dos domicílios; Newton, na Inglaterra, descobre a lei da atracção universal; Laplace, uma teoria baseada em conjecturas ou em probabilidades, mas uma ciência estabelecida sobre as mais rigorosas bases do cálculo e da geometria. Assim se encontra colocada uma das pedras fundamentais da Génese, aproximadamente três mil e trezentos anos depois de Moisés.

/…
(*) «A mitologia hindu ensinava que o astro do dia se despojava à noite da luz e atravessava o céu durante a noite com uma face obscura. A mitologia grega representava o carro de Apolo puxado por quatro cavalos. Anaximandro, de Mileto, sustentava em relação a Plutarco, que o Sol era uma quadriga cheia com o fogo muito vivo que teria escapado por uma abertura circular. Epicuro teria, segundo alguns, emitido a opinião de que o Sol se acendia de manhã e se apagava à noite nas águas do oceano; outros pensavam que ele fazia deste astro uma pedra-pomes aquecida até à incandescência. Anaxágoras considerava-o um ferro quente com o tamanho do Peloponeso. Estranha observação! Os antigos eram tão irresistivelmente levados a considerar a grandeza aparente deste astro como se fosse real, que perseguiram este filósofo temerário por ter atribuído um tal volume ao archote do dia e que foi necessária toda a autoridade de Péricles para o salvar de uma condenação à morte, comutando-a por uma sentença de exílio.»
Quando vemos tais ideias expressas no século V antes da era cristã, na época mais florescente da Grécia, não nos podemos espantar com as que os homens das primeiras eras tinham sobre o sistema do mundo. (N. do A.)
(**) As unidades de medida usadas pelo autor no decorrer desta obra são as que se encontravam em vigor em França em meados do século XIX, altura em que foi escrita. A sua determinação exacta varia de país para país, ou mesmo de época para época. Contudo, apresentamos seguidamente os valores comummente atribuídos em França às medidas mais usadas nesta obra; légua terrestre e marítima – 4,445 km; milha terrestre – 1481,5 m; milha marítima – 1852 m; pé – 33 cm. (N. do E.)


ALLAN KARDEC, A GÉNESE, – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo V, Teorias Antigas e Modernas sobre o Mundo (de 1 a 14), 22º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).

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