Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 18 de março de 2014

Inquietações Primaveris ~


O Acto Educativo |

Por tudo o que vimos até agora, estamos numa fase histórica em que o mistério da morte foi ampla e seguramente resolvido. Não é mais possível a menor dúvida no tocante à sobrevivência de todos os seres vivos ao fenómeno universal da morte. Nada se acaba; a duração das coisas e dos seres é infinita. Esse é um aspecto da realidade que esteve sempre exposto à observação humana, provando-se incessantemente por si mesmo, desde as selvas até às mais elevadas civilizações. Essas provas chegaram no nosso tempo a um ponto decisivo, graças ao desenvolvimento das Ciências, ao esclarecimento cultural que afastou das mentes mais desenvolvidas e capacitadas as dúvidas criadas pelas superstições e pelo comércio religioso da morte em todo o mundo. Apesar disso, a posição da Ciência a respeito da questão permaneceu invariável nos últimos séculos, particularmente nos séculos XVIII e XIX. O entusiasmo pelas conquistas técnicas, pelas vitórias na luta contra a dogmática da Igreja e a esperança ilusória de uma rápida e fácil explicação do mundo pelas teorias mecanicistas, geraram o materialismo simplório e alegre que Marx e Engels chamariam de utópico, reservando para si mesmos a classificação pomposa e temerária de materialismo científico.

Nessa mesma época surgia a Ciência Espírita e abria-se para o mundo uma visão mais séria e grave da realidade total do Universo. Como acentuou Conan Doyle, às invasões inconsequentes e dispersas dos espíritos no nosso mundo terreno, sucedia uma invasão organizada, dirigida por Espíritos Superiores, com a finalidade clara e definida de revelar a verdade cristã, até então trapaceada, na sua pureza essencial. Só então a morte começou a mostrar aos homens a sua face oculta, revelando ao mesmo tempo o sentido verdadeiro da vida e, como acentuou Léon Denis, a sua pesada responsabilidade. Às práticas misteriosas e aterradoras da preparação dos homens para a morte sucediam as primeiras tentativas, pelas mãos de Denizard Rivail, discípulo e continuador de Pestalozzi, no desenvolvimento de uma educação para a morte.

Toda a longa fase anterior, envolta em superstições mágicas e misticismo alienante, dos tempos primitivos até à primeira metade do século XIX, foi apenas de preparação dramática, sombria e trágica da criatura humana para o mistério insondável em que toda a Humanidade seria fatalmente tragada. É incrível que as igrejas cristãs se esforcem tanto, até hoje, para manter essa situação desesperante no mundo. Ainda há pouco o Papa Paulo VI, mostrando-se preocupado com a sua morte próxima, declarou que nada fala a Igreja sobre a morte, a não ser que sobrevivemos a ela numa forma de vida misteriosa. De mistério em mistério, como se vê, os problemas fundamentais da vida e da morte foram escapando das mãos dos clérigos. Hoje esses assuntos passaram para o âmbito da Ciência. Mas é à Educação e à Pedagogia que, em última instância, cabe hoje a obrigação de elaborar os programas de orientação educacional de todos nós para o acto de morrer. Na didáctica especializada dessa nova disciplina ressalta, como ponto central o novo campo educacional, o acto educativo. Nele se concentra, como no núcleo do átomo, todo o poder organizador e orientador do processo a se desenvolver. Para René Hubert e Kerchensteiner, o acto educativo é um acto de amor. Nas pesquisas sobre a Educação primitiva, entre os selvagens, evidenciou-se que a natureza da Educação é essencialmente afectiva, amorosa. Isso nos mostra que a Educação para a Morte não pode ser coercitiva, autoritária, constrangedora e muito menos aterrorizadora. As religiões da morte, portanto, se negaram a si mesmas ao optar pelo terrorismo das maldições e das ameaças para educar os homens no difícil ofício de morrer e de suportar a morte à sua volta. Simone de Beauvoir observou, em contacto com materialistas ideologicamente convictos, que morrer é uma necessidade natural do homem, que os materialistas temem, principalmente, a solidão da morte. Nada sabem, como os religiosos, sobre os segredos da morte. Deve ser por isso que sempre morrem de olhos abertos, deixando aos vivos o trabalho de fechá-los. Se os materialistas pudessem ser filósofos, não se importariam com a solidão da morte, pois se nela tudo se acaba, não pode haver solidão. E é também por isso que não pode haver uma Filosofia materialista. A essência da Filosofia é a liberdade e o seu objecto é ela mesma. A Filosofia é a captação livre da realidade que nos dá uma livre concepção do mundo. O materialista não é livre, pois está preso à ideia fixa de que tudo é matéria. Foi essa posição incomoda que levou e afastou Marx da escola hegeliana e o levou à correcção errada da dialéctica certa de Hegel, virando de cabeça para baixo o que estava evidentemente de pé. Por isso, Marx e Hegel, o profeta bíblico extemporâneo e o seu anjo anunciador, transformaram a Filosofia num jogo de xadrez cujos resultados estão marcados desde o início da partida. A concepção do mundo do Marxismo é um tabuleiro com peças fixas e invariáveis e jogadas pré-fabricadas. Daí o impasse marxista na Filosofia, rodando sempre num círculo vicioso, um labirinto em que se perdeu o fio de Ariadne. A própria Revolução Russa, que devia modificar o mundo, acabou produzindo o impasse do constante retorno às fórmulas capitalistas. Para livrar o homem da exploração capitalista, a URSS teve de capitalizar-se e recorrer, desde os primeiros momentos, à exploração horripilante do trabalho forçado. Não há uma porta de saída para a concepção solipsista do mundo no Marxismo, a não ser a do Anarquismo, que não pode ser usada porque esvairia em breve as bases filosóficas artificiais. Enquanto não devolver o Espírito à sua concepção do mundo, o Marxismo não levantará voo. Ficará rodando no chão por falta de uma asa, como explicava o Prof. Bressane de Lima nas suas palestras espíritas. O mesmo acontece com o Capitalismo, que tem as suas asas presas na torquês histórica formada pelas pinças agressivas e impiedosas da economia burguesa e das religiões da morte, com os seus aparatos e as suas encenações cerimoniais. Não é por acaso que estamos num mundo tão cheio de conflitos e angústias. Pagamos caro o mundo fantasioso que orgulhosamente construímos sobre o mundo natural da Terra. Readaptar esse mundo humano à realidade planetária é tarefa urgente, que cabe a todos e a cada um de nós.

O acto educativo, no processo da educação para a morte, revela-se ainda mais profundo e significativo do que na educação comum. Começa pelo chamado de uma consciência esclarecida e madura às consciências imaturas, para se elevarem acima dos conceitos erróneos a que se apegam. Temos de revelar e justificar para essas consciências, com dados científicos actuais, o mecanismo individual e colectivo da morte. Urge convencer o homem de que a morte não é um mal, mas um bem da natureza e uma necessidade para o homem. Temos de mostrar que o morto não é um cadáver, mas um ser imortal que, ao passar pela vida e a morte enriqueceu-se de novas experiências, adquiriu mais saber, desenvolveu as suas faculdades ou potencialidades divinas. Temos de esclarecer o sentido da palavra até hoje empregada de maneira alienante, esclarecendo que a condição divina do homem é simplesmente o produto de uma existência de trabalho, amor e abnegação, em que a criatura supera, nas vias da transcendência, o condicionamento animal do corpo material e a ilusão sensorial que o imante ao viver animal. Temos de quebrar a sistemática habitual das escolas e das igrejas, que se apegam ao pragmatismo, às subfilosofias do viver por viver, desvendando o verdadeiro significado do prazer e do amor, como elementos de sublimação da criatura humana nas funções vitais e genésicas da espécie. O mandamento do amor ao próximo deve ser colocado em plano racional, livre das ameaças opressivas e do emaranhado das conveniências imediatistas. Mostrar que o Amor a Deus, a mais elevada forma de amor existente na Terra, não é feito de medo e terror, mas de compreensão; não se dirige a um mito, mas a uma Consciência que nos impulsiona na prática da justiça e da bondade, sem discriminações de espécie alguma. Temos de esclarecer que a morte está em nós mesmos e não fora de nós, que convive com a vida em nós. Como ensinava Buda, “a morte visita-nos 75 vezes em cada uma das nossas respirações”. Temos de mostrar que, na verdade, morrer é simplesmente deixar o condicionamento animal e passar à vida espiritual.

A fase mais difícil do acto educativo é a que dá a compreensão do desapego aos bens passageiros do mundo, sem desprezá-los, como forma de preparação para as actividades de abnegação amorosa que devemos exercer depois da morte. Mas não devemos exagerar nas promessas de além-túmulo, pois não se promete o que não se pode dar, mas ensinar que só se levará, na mudança da morte, a bagagem das conquistas que se realizar aqui, na vida terrena. Não seremos premiados, mas pagos na outra vida, justamente pagos por tudo o que demos gratuitamente nesta vida. Esse ensino, acompanhado de exemplos vivos da nossa própria vivência, mostrará aos educandos que não usamos palavras de piedade, mas os convidamos a caminhar ao nosso lado, fazendo o que fazemos. Devemos substituir as ideias de recompensa pelas de consequência. Mas se fizermos tudo isso sem amor, pensando apenas em nós mesmos, os nossos actos não terão repercussão, pois nada mais fizemos do que cumprir o nosso dever, no contrato social e universal da convivência humana. Ninguém faz sem ter aprendido, mas ninguém aprende sem fazer. Assim, a reciprocidade do nosso fazer nos liga profundamente aos outros nas malhas da lei de acção e reacção, mostrando-nos de maneira objectiva e subjectiva que somos todos necessários uns aos outros. A convivência humana é entretecida de interesses, desconfianças, despeitos e aversões, sobre um pano de fundo em que o amor, a simpatia e o respeito oferecem precária base de sustentação. Grande parte dessa tessitura de malquerenças recíprocas provêm de motivos ocultos, provenientes de invejas e ciúmes. Porque uns são mais dotados do que outros e a vaidade humana não permite aos inferiorizados perdoar os mais agraciados pela natureza ou pela fortuna. O problema da reencarnação explica essas diferenças, muitas vezes chocantes, e alenta os infelizes com esperanças racionais, mostrando-lhes que cada um de nós é o responsável único pelo seu condicionamento individual. Os homens aprendem a tolerar as suas derrotas hoje para alcançar vitórias futuras, e nesse aprendizado já se superam a si mesmos, modificando o teor inferior das relações sociais. As pesquisas científicas actuais sobre a reencarnação fazem parte necessária da educação para a morte, que no caso perde a maioria de seus aspectos negativos e se transforma em promessa de recompensa possível. Ao mesmo tempo, substituindo as ameaças religiosas absurdas pelo socorro das boas acções na vida de prova, que é sempre passageira, predispõe às criaturas condições espirituais na vida presente. As provas científicas do poder do pensamento, que hoje se revela como forma de comunicação permanente na sociedade humana, mostra-nos a conveniência da conformação e da alegria íntima nas relações sociais.

O acto educativo, nessa extensão e nessa profundidade, torna-se o mais poderoso instrumento de transformação do homem, levando-o a descobrir em si mesmo as mais poderosas fontes de energia de que podemos dispor no mundo, e basta isso para nos dar a Nova Consciência que apagará em nós todos o fermento velho de que falava Jesus aos fariseus, os resíduos animais da nossa condição humana.

Não é com sermões tecidos de palavras mansas e palavrório emotivo, nem com piedade fingida, bênçãos formais do profissionalismo religioso, promessas de um céu de delícias ao lado de ameaças de condenações eternas que podemos despertar os homens para uma vida mais elevada. Temos de colocar os problemas humanos em termos racionais, sem contradições amedrontadoras. O homem reage, consciente ou inconscientemente, a todas as ameaças e condenações e a todas as injustiças da sociedade e das potências divinas. Até hoje, fomos tratados como animais em fase de domesticação e reagimos intensificando a violência e a revolta por toda a Terra. De agora em diante precisamos pensar seriamente na educação positiva do homem na vida, com vistas à sua educação para a morte. O instinto de posse e as ambições do poder desencadearam na Terra a onda de violências que hoje nos assombra. Mas o homem é racional e pode superar essa situação desastrosa ante a revelação das molas secretas do amor e da bondade. Na sua consciência está a marca divina do Criador, na ideia de Deus que Descartes descobriu nas profundezas de si mesmo. Num mundo e numa sociedade em que os estímulos são, na maioria negativos, os exemplos deploráveis, as leis injustas, as religiões mentirosas entregues ao tráfico da simonia, a moral hipócrita e assim por diante, em que os bons se afundam na miséria para que os maus vivam à tripa forra, não há condições para o desenvolvimento das virtudes do espírito, mas somente para os vícios da carne.

O acto educativo, na Educação para a Morte, constitui-se num processo complexo que deve abranger todas as faculdades humanas, para elevá-las ao plano das funções superiores do espírito. Começando no indivíduo, primeira brecha pela qual se pode injectar a ideia nova em relação constante com a morte, esse acto de amor se estende às comunidades, contagiando o mundo. É o que Jesus comparou à acção do fermento numa medida de farinha, para levedá-la. É também a pitada de sal que dá gosto à insipidez do mundo, através daqueles que se disponham a salgar-se a si mesmos para transmitir aos outros o sal estimulador. Todas essas coisas não são novas, são velhas, mas na verdade não envelhecem. Há dois mil anos Jesus de Nazaré, carpinteiro e filho de carpinteiro, ensinou ao mundo os princípios da Educação para a Morte e enriqueceu os seus ensinos com o seu exemplo pessoal. Exemplificou a própria imortalidade, ressuscitando no seu corpo espiritual – o corpo bioplásmico que os materialistas descobriram e se apressaram a esconder da Humanidade. Mas a Educação para a Morte foi logo transformada nas Religiões da Morte pelos mercadores dos templos e o mundo retornou às trevas, apegado aos mitos e enriquecendo o panteão mitológico com a imagem do carpinteiro crucificado por judeus e romanos em conluio. Cabe-nos agora, na antevéspera científica e tecnológica da Era Cósmica, dispor-nos a lutar pela reimplantação da Educação para a Morte, que ensinará aos homens a bem viver para bem morrer, ou seja, morrer conscientes de que não morrem, pois a lei do Cosmos não é a morte, mas a vida sem fim, indestrutível na realidade infinita da Criação.

A Hora da Magia esgotou-se nas selvas, nas tentativas ingénuas dos homens primitivos, de descobrir e controlar as leis naturais, dominando a natureza por meios ilusórios e grotescos. A Hora das Religiões escoou-se nas ampulhetas de areia ou nas clepsidras gotejantes. A Hora da Ciência esvaiu-se nas minúcias da técnica. Mas surgiu afinal a Hora da Verdade, em que toda a realidade se transforma em estruturas invisíveis, na poeira atómica e sub-atómica das inversões da antimatéria. É a Hora Esperada da Ressurreição do Espírito.

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José Herculano Pires – Educação para a Morte, O Acto Educativo, 16º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

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