Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Deus na Natureza ~


~ a vontade do homem ~ 

  “Dizia Zelter a Goethe que um dos maiores obstáculos que impediam os alemães de falar o seu idioma tão espontânea e correntemente como os outros povos, provinha de certa pressão da língua, pelo facto de se alimentarem muito de vegetais e gorduras. É verdade que não temos outra coisa, mas a sobriedade e a prudência muito o podem remediar e corrigir” (ii)

  É com esta advertência que Moleschott (i) abre o grande capítulo epigrafado: “a Matéria governa o Homem”, sem perceber que a segunda frase do parágrafo traz consigo a condenação na qual ele se vai esbarrar, das correlações alimentares com o estado físico e intelectual do homem. Quando o velho companheiro de Goethe lhe observa que a sobriedade e a prudência podem fazer e corrigir muitas coisas, prova, por isso mesmo, que ele não se julga tão somente uma composição material, mas, também, uma força mental, capaz de tirar de si mesmo resoluções contrárias às tendências da matéria. Vamos, com efeito, acompanhar a argumentação materialista que, aqui como alhures, peca sempre pela base e não se mantém senão por uma espécie de equilíbrio instável, que um piparote de criança pode desmantelar. O adversário de Liebig pretende demonstrar que a matéria governa o homem, estabelecendo que a alimentação actua sobre o organismo. Como tema de Fisiologia, estes factos são interessantes e instrutivos e, a nós nos apraz o ensejo de os resumir aqui; mas, como tema de Filosofia, afiguram-se-nos como o que possa haver de mais incompleto. Consideremo-lo previamente: O quadro deste capítulo vai oferecer-nos, por sua própria natureza, um duplo aspecto. No verso, desenhado pela Fisiologia contemporânea, notaremos a acção física dos alimentos no organismo e, no reverso veremos que a mesma está longe de constituir o homem integral e que o ser humano reside numa potência superior às transformações da bílis e do quilo, potência que governa a matéria e está longe de a ela se escravizar.

  Invoca-se, em primeiro lugar, a diferença do regime alimentar, vegetariano ou carnívoro. Legumes e hortaliças contêm pouca água, poucas gorduras e quarenta vezes menos albumina que a carne. Analisando os sais contidos nestas substâncias opostas, concluíram que o regime carnívoro aumenta os fosfatos no sangue e, o vegetariano, pelo contrário, desenvolve os carbonatos. De resto, as substâncias albuminosas das partes verdes da planta não são a albumina, nem a fibrina. É preciso, pois, que elas sofram essa primeira transformação, antes de se incorporarem no sangue. As gorduras vegetais, por sua vez, não são verdadeiras gorduras, mas tão-só adipogenias, ou seja, elementos que originam gordura e, portanto, a precisarem sofrer uma primeira transformação. Há razão para dizer que a diferença de acção da carne começa a fazer-se sentir no sangue antes dele formado, isto é, na sanguificação (i), na digestão.

  Esses alimentos serão tanto mais facilmente digeridos quanto mais os seus elementos constitutivos se identificarem com os do sangue. Daí resulta que a carne, mais que o pão e os legumes, aproveita à sanguificação. O comprimento dos intestinos relaciona-se com esse processo de digestão, de acordo com as substâncias, permitindo-nos fazer dele uma ideia. Nos morcegos, que só se nutrem de sangue, o tubo intestinal não passa do triplo do comprimento do corpo. No homem, cujo regime é misto (o que igualmente se indicia pelo sistema dentário, composto de caninos e incisivos), o comprimento do intestino é o sêxtuplo da altura. No carneiro, herbívoro, o intestino é vinte e oito vezes mais longo que o corpo. Todos os animais carnívoros têm estômago pequeno. O estômago humano tem a forma de um reservatório, atravessando a cavidade abdominal, provido de um beco sem saída, maior que nos pré-citados animais. Os ruminantes, por guardarem a forragem, têm um estômago de quatro compartimentos.

  O homem tem a construção do onívoro (i). Diga-se, de passagem, as velhas prescrições pitagóricas (i), tanto quanto as modernas proposições de Rousseau e de Helvétius a favor do regime animal, devem ser rejeitadas como anti-naturais.

  Sendo os vegetais menos nutrientes que os animais, o pão ocupa um lugar intermediário. No glúten que o compõe, dois corpos albuminóides distinguem-se: albumina vegetal, insolúvel e, cola vegetal. Estas substâncias diferem da fibrina da carne e devem dissolver-se nos sucos, durante a digestão. No pão há menos gordura que na carne, mas há o amido e o açúcar, que devem transformar-se em gordura ao perderem uma parte de oxigénio. Destas comparações acontece que o sangue e, com ele os músculos, os nervos, a carne e todos os tecidos, se renovam mais rapidamente no regime carnívoro.

  Infere-se daí, que, sendo o sangue o factor dos tecidos, das secreções e excreções orgânicas e, ainda porque se modela pela alimentação do homem, a diferença primordial, assinalada entre os regimes vegetal e animal, deve estender a sua influência a todos os fenómenos da vida.

  Detivessem-se eles nesta conclusão e nada teríamos a objectar. Dizemos, com os antagonistas, que o apetite de um homem sadio se apazigua antes com um bife do que com uma salada. Consentimos em admitir que, se as raças de índios caçadores revelam força muscular notável, ao passo que os insulares do Pacífico se apresentam fracos (relativamente), é porque estes se alimentam de ervas e frutos e aqueles de muita carne. Concedemos, igualmente, que a indolência e falta de carácter dos Hindus se prenda um tanto ao seu regime herbívoro; – que o filósofo Haller tivesse razão para acusar uma tal ou qual inércia com o vegetarismo de alguns dias; – que, por um efeito inverso, uma divisão do Exército a que pertencia Villermé, na guerra de Espanha, fosse atingida de diarreia (relevem a citação que é literal), de magreza e debilidade, por ter sido forçado a alimentar-se só de carne durante oito dias. Concordamos, também, que os índios do Óregon só comem raízes, durante um longo período do ano, das quais vinte espécies são nativas – com o que muito nos prazemos – e que as tribos se movem de uns a outros lugares para apanhá-las, visto não amadurecerem senão sucessivamente. De boamente aceitamos que, vigente ainda, no Malabar, a crença na metempsicose, por lá existam hospitais para animais e se alimentem, nos templos, ratos cuja vida é sagrada. Sabemos, mais, que os Islandeses, Kanitschadales, Lapónios, Samoledos, só podem alimentar-se de peixe durante um certo período do ano, enquanto que os caçadores das planícies americanas só comem carne de bisonte. Concordamos, enfim, sem relutância e sem provas, que “basta comer marmelada ou maçã para alcalinizar a urina” e que os franceses produzem menos ureia que os alemães, aliás muito distanciados dos ingleses – o que prova consumir-se em Londres 1,6% da carne consumida em Paris – e, por fim, não estranhamos que as graciosas passeantes, mais que o transeunte vulgar, encareçam a vantagem de aumentar os mictórios públicos de Paris ou dar-lhes, no mínimo, outros dispositivos. Efectivamente vos damos, ou melhor – consentimos tomeis, à vontade, tudo quanto pedirdes em Fisiologia... Mas, na verdade, que relação tem tudo isso com a prova da personalidade humana? Com franqueza: que contributo trazem essas experiências para o assunto? Onde e como essa química demonstra a inexistência da alma? E que fazeis do método científico, que recomenda não proceder senão por induções ou deduções? Que ligação é essa com a escolástica dos nossos avós?

  De certo, não sabemos do que mais nos admirar: se da audácia, se do erro destes fisiologistas, levando-nos à beira do abismo e dizendo-nos: saltai! Será que acreditam ter lançado uma ponte com algumas teias de aranha? Na verdade, é preciso encarar o espírito humano como um cego de nascença, para pretender adormentá-lo com semelhantes processos. De facto, quem se não admirará de saber que, como conclusão de factos mais ou menos incompletos, quais os precedentes, nos apresentem a seguinte e enfática declaração:

  – Observações numerosas e experiências feitas em grande escala, provam que o homem deve, em parte, a sua privilegiada situação, em relação aos animais, à faculdade de se alimentar ora de vegetais, ora de carne (iii).

  * A matéria é a base de toda a força espiritual, de toda a grandeza humana e terrestre (iv).

  * O vocábulo alma, considerado anatomicamente, exprime o conjunto das funções cerebrais e espinal medula, e, fisiologicamente, o conjunto das funções da sensibilidade encefálica (v).

  * A análise não encontra na consciência, neste augusto instinto, nesta Voz imortal, mais que um simples mecanismo, que se desmonta como qualquer aparelho (vi).

  A estas afirmações não falta ousadia. Mas, depois das declarações negativas por nós registadas no capítulo anterior, de mais nada nos podemos admirar.

  Se é verdade que os temperos auxiliam a digestão - diz Moleschott – e o pão de rala, as frutas (especialmente figos) ingeridos em jejum e regados com um copo de água fria desenvolvem o ventre; se os rabanetes, o alho, a baunilha, estimulam o sensualismo e, se o vinho o chá e o café actuam sobre o cérebro claro está que a matéria governa o homem...

  Sobre isso, não tínhamos dúvidas. Sabeis o que é preciso para adquirir eloquência? É não comer nozes nem amêndoas. E como a voz e a palavra dependem, ao que parece, dos movimentos musculares da laringe, é preferível o regime vegetal ao gorduroso.

  Quereis uma prova da correlatividade essencial de pensamento e matéria? Olhai o fundo da vossa xícara de café. Este, tal como o barco a vapor e o telégrafo, põe em actividade uma série de pensamentos, origina uma corrente de ideias, de empreendimentos com ele. É evidente que a necessidade oriunda de uma afinidade electiva da Humanidade pelo café e pelo chá, se tornou mais imperiosa e generalizada, na proporção em que aumentaram as exigências intelectuais da civilização.

  Eis ainda um outro facto de importância capital. Os Kamstchadales e os Tongouses (i) embebedam-se com o seu aguoric vermelho e parece que os seus servos, desejosos de conhecer a sensação dessa bebida, não hesitam beber a urina dos seus amos.

  Logo, portanto, é a matéria que governa o homem – conclui espirituosamente o Sr. Moleschott...

 Num tal sistema, qual já o temos entrevisto, é claro que o livre-arbítrio fica completamente aniquilado. O próprio Moleschott declara-o. Não somente o ar que a cada momento respiramos transforma o sangue venoso em arterial; não só transmuda os músculos em creatina e creatinina; o músculo do coração em hipoxantina; o tecido do baço em hipoxantina e ácido úrico; o humor vítreo dos olhos em ureia, como refunde a todo o momento a composição do cérebro e dos nervos. O mesmo ar que respiramos muda diariamente, não é nas matas o que é nas cidades, não é sobre os mares o que é no cimo das montanhas, nem ao nível das ruas o que é no alto de uma torre. Alimentação, nascimento, educação, convivência, tudo, em torno de nós, rola num movimento que se comunica constantemente. 

  – Proposições verdadeiras, estas, provam que o homem está envolvido no âmago de um mundo a cujas influências não pode eximir-se e, provam também, quem sabe, que o livre-arbítrio não é tão absoluto quanto afirmam alguns psicólogos entusiastas. Mas, o que essas verdades não provam é a inexistência da vontade humana.

  Não são todos os materialistas que levam a sua excentricidade ao ponto de afirmar que a criatura humana não tenha consciência de que existe, para que deixe de ter a liberdade dos seus próprios actos e resoluções.

  Büchner é menos exagerado. Dizemos com ele, que o homem é obra da Natureza; que a sua pessoa, acções, pensamento e mesmo vontade estão submetidos a leis que regem o Universo. As acções e a conduta do indivíduo dependem, incontestavelmente, da sua educação do carácter, dos costumes, da índole do povo e da nação a que pertence e esta nação é, por sua vez e, de certo modo, o produto do ambiente em que vive e das relações exteriores que lhe entretiveram o desenvolvimento.

  Pode por exemplo notar-se com Deser que o tipo americano se desenvolveu com os primeiros colonos ingleses há dois séculos e meio. É um resultado que se pode atribuir a influências climáticas.

  O tipo americano distingue-se pela sua compleição, pelo pescoço alto, pelo temperamento dinâmico e ardoroso. O pouco desenvolvimento do sistema glandular, que dá às americanas essa expressão terna e vaporosa; a espessura, o comprimento e a secura do cabelo, podem provir da secura do ar. Há quem suponha ter notado que a agitação dos americanos aumenta com os ventos do Nordeste. Desses factos se infere que o grandioso e rápido progresso dos Estados Unidos seria, em parte, devido ao meio físico.

  Tal como na América, os ingleses originaram um novo tipo na Austrália, notadamente em Nova-Gales do Sul. Aí, os homens são altos, magros, musculosos e, as mulheres belíssimas, mas, de uma beleza efémera. Os “novos colonos” dão-lhes o apelido de Cornstalks (palha de trigo). O carácter inglês ressente-se do firmamento nebuloso, do ar pesado, dos estreitos limites da terra natal. O italiano, pelo contrário, reflecte em tudo o céu sempre belo e o Sol sempre ardente da sua pátria. (E, contudo, os romanos muito têm mudado de há 2000 anos a esta parte.) As ideias e contos fantásticos do oriente estão intimamente ligados à luxuriante vegetação que lhes moldurou o berço. A zona glacial não produz mais que raquíticos arbustos e, assim também, uma raça mofina, nada ou pouco acessível ao progresso. Os habitantes da zona tórrida também pouco se adaptam a uma cultura superior. Só nos países onde o clima, o solo e as relações ambientes oferecem um certo meio-termo, pode o homem equilibrar-se e adquirir um grau de cultura preponderante sobre os seres e as coisas que a rodeiam. 

  Todas estas observações não provam, porém, que a matéria governe o homem e que a vontade e a individualidade sejam uma ilusão. Cumpre, mesmo, advertir o autor de Força e Matéria que, antes, são os indivíduos que fazem as nações e não estas os indivíduos. Qual o dizia Stuart Mili, o mérito de um Estado está, em tese, no dos indivíduos que o compõem. Não são as instituições, nem as leis, nem os governos que fazem a grandeza das nações, mas o valor e a conduta dos cidadãos. É, pois, da individualidade dos homens que depende o progresso dos povos e, não de suas condições gerais. Em vão se dirá que esta individualidade mais não é que o resultado preciso das disposições do corpo: – educação, instrução, exemplo, fortuna, posição social, sexo, nacionalidade, clima, solo, época, etc. No ser humano existe uma força transcendente a tudo isso, uma força que os negativistas não querem ver e procuram ocultar no nevoeiro de sua paralogia. Assim como a planta – dizem eles – depende do terreno em que radica, não somente em relação à sua existência, mas ainda ao seu tamanho, forma e beleza; assim também o animal é grande ou pequeno, manso ou bravo, bonito ou feio, conforme as influências extrínsecas, assim também o homem físico e intelectual é o fruto dos mesmos factores, dos mesmos acidentes e disposições e, nunca o ser espiritual, independente e livre, que os moralistas nos pintam... Esses senhores protestam quando lhes chamamos espirituais e, nós persistimos na amabilidade. Mas, sem constituir uma excepção a seu favor, temos o direito de sustentar a espiritualidade humana e apagar, com o exemplo de grandes vontades, essa teoria crepuscular, que conceitua as resoluções do homem uma função barométrica. 

  É preciso fechar voluntariamente os olhos aos eventos mais belos e respeitáveis da História, preferir tristes abstracções a verdades gloriosas, sacrificar venerandos monumentos do pensamento à quimera de uma ideia fixa, para ousar assim negar o poder da vontade, o valor de sua energia, a independência de sua resolução, os milagres próprios de sua persistência e, substituí-lo por uma sombra difusa e vaga, dependente dum sol teatral. Na verdade, não vemos a vantagem desta substituição. É desconhecer a grandeza do homem o afirmar que os seus actos não passam do resultado necessário e fatalístico dos seus pendores físicos, tendências orgânicas e propensões materiais. É degradar-lhe a dignidade abaixo do nível da mediania intelectual e é colocar-se em contradição com os exemplos mais brilhantes que constelam a fronte da Humanidade para coroá-la de glória imperecível. Abordemos, em todas as suas fases, os anais da Humanidade; consultemos, sobretudo, as páginas do nosso século, já tão engrandecido de invenções fecundas e entrevistas possibilidades; logo nos convenceremos de que o génio não é simplesmente resultante de condições materiais e muito menos de uma enfermidade nervosa, senão que se afirma por uma força superior a todas as contingências e que muitas vezes o tem dominado guiado e vencido. Longe de encarar o homem como um ser inerte, cujas obras não passassem de efeitos instintivos, de hábitos, necessidades apetites e predisposições orgânicas, nós proclamamos, com a autoridade dos factos, que a inteligência governa a matéria e que o valor do homem consiste, precisamente, nessa elevação, nessa soberania da inteligência.

  Para ilustrar o asserto e invalidar, exemplificando, a audaciosa afirmativa desses campeões da matéria, lancemos um olhar pelo panorama intelectual da Humanidade e, a todos quantos sentem pulsar-lhe no peito um coração patriótico apresentemos-lhes – bem como aos jovens indecisos, que, mal transpondo os pórticos da vida prática, pudessem deixar-se embalar pela mentira materialista, acarretando para si a própria ruína – apresentemos-lhes, sim, o quadro tão grato aos nossos sentimentos, tão útil às nossas vistas e tão imponente às nossas aspirações, desses homens enérgicos saídos das mais ínfimas camadas sociais, para elevarem-se, pelo próprio esforço, à conquista do mundo e às culminâncias do pensamento soberano.

  Num belo livro, cujo título exótico não é bastante claro nem cativante, mas, que deveria andar nas mãos de toda a mocidade francesa (Self-Help, ou Carácter), um homem honrado, que é Samuel Smiles, reuniu exemplos desses vultos valorosos que venceram todos os percalços na vida e foram, por assim dizer, a refutação viva desta singular teoria, que tende a rebaixar o homem, em vez de o elevar. É por exemplos tais que a alma se eleva para a verdade do seu ideal. Julgamos ser nosso dever homenagear aqui esse panteão de beneméritos exemplares, cujo panegírico deveria ser espalhado aos quatro ventos.

/…
(ii) Briefwchsel Ziwischen Goethe und Zelter (i), 1º, 113.
(iii) Cireulation de la Vie, 2º, 69.
(iv) Force et Matière, capítulo 5º.
(v) Dictionnaire des Sciences Médicales.
(vi) Taine (i) – Philosophes Français.


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte; (3) A Vontade do Homem (1 de 6), 27º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)
(Radio Filharmonisch Orkest interpreta Schumann / Sofia Soloviy, soprano / Caitlin Hulcup, alto / Dominik Wortig, tenor / Andrew Foster-Williams, baixo / sob a direcção orquestral de Dmitri Slobodeniouk e coral de Klaas Stok)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

o grande desconhecido ~


Acção Espírita na Transformação do Mundo ~ 

Três são os elementos fundamentais de que o Espiritismo se serve para transformar o nosso mundo num mundo melhor e mais belo: 

a) O Amor, 
b) O Trabalho, 
c) A Solidariedade. 

[...] 

(III de III) 

III – A Solidariedade 

A solidariedade espírita manifesta-se particularmente no campo da assistência à pobreza, aos doentes e desvalidos. O grande impulso nesse sentido foi dado, desde o início do movimento doutrinário na França, pelo livro O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec (i), que trabalhou em silêncio na elaboração dessa obra, sem nada dizer a ninguém. Seleccionou numerosas mensagens psicografadas, procedentes de diversos países em que o Espiritismo já florescia. A sua intenção era oferecer aos espíritas um roteiro para a prática religiosa, baseado no que ele chamava de essência do ensino moral do Cristo. Conhecendo profundamente a História do Cristianismo e as dificuldades com que os originais do Evangelho haviam sido escritos, em épocas e locais diferentes, bem como o problema dos evangelhos apócrifos e das interferências mitológicas nos textos canónicos e as interpolações ocorridas nestes, afastou todos esses elementos espúrios para oferecer aos espíritas uma obra pura, despojada de todos os acessórios comprometedores. O seu trabalho solitário e abnegado deu-nos uma obra-prima, que conta com milhões de exemplares incessantemente reeditados no mundo. Essa obra foi ameaçada com a tentativa de adulteração. Foi o maior atentado que a obra de Kardec já sofreu no mundo, pior que a queima dos seus livros em Barcelona pela Inquisição Espanhola. Muito pior, porque foi um atentado provindo dos próprios espíritas, através de uma instituição doutrinária que tem, por obrigação estatutária, defender, preservar e divulgar a Doutrina Espírita codificada por Kardec. A consequência mais grave desse facto lamentável foi a quebra da solidariedade espírita, a desconfiança e a mágoa provocadas entre velhos companheiros. O ataque das Trevas à vaidade e à ignorância de alguns espíritas invigilantes produziu os efeitos necessários. Sirva o exemplo doloroso para todos os que assumem encargos doutrinários, julgando receber prebendas e consagração. A vaidade excitada leva monges de pedra a se julgarem poderosos na aridez e na solidão dos desertos. 

solidariedade espírita não é apenas interna, entre os adeptos e companheiros. Projecta-se pelo menos em três dimensões: 

a) no plano social geral da comunidade espírita, além dos grupos domésticos e das instituições fechadas; 

b) envolve todas as criaturas vivas, protegendo-as, amparando-as, estimulando-as nas suas lutas pela transcendência, procurando ajudá-las sem nada pedir em troca, nem mesmo a simpatia doutrinária, pois quem ajuda não tem o direito de impor coisa alguma; 

c) eleva-se aos planos superiores para ligar-se a Kardec (i) e à sua obra, a todos os espíritos esclarecidos que lutam pela propagação do Espiritismo no mundo e a Deus e a Jesus na Solidariedade cósmica dos mundos solidários. 

Nessas três dimensões a Solidariedade Espírita realiza, como que apoiada em três poderosas alavancas, o esforço supremo de elevação do mundo, estimulando a transcendência humana. As mentes que ainda não atingiram a compreensão desse processo podem fechar-se em grupos e instituições de tipo igrejeiro, isolando-se nos seus ambientes de furna, onde os espíritos mistificadores (i) e embusteiros se acoitam facilmente. Mas na proporção em que os adeptos assim isolados, ou pelo menos alguns deles, procurarem realmente compreender a doutrina, a situação modifica-se, despertando os indolentes para actividades maiores. 

Todo o trabalho espírita é exigente e penoso, porque faz parte de uma grande batalha – a da Redenção do Mundo, iniciada pelo jovem carpinteiro Jesus, filho de Maria e José. Essa batalha não é a de Deus contra o Diabo, o estranho anjo de luz que se revoltou para fundar o Inferno. Essa ingénua concepção das civilizações agrárias e pastoris teve o seu tempo e a sua função, o seu efeito de controlo em fases de barbárie, mas não passa de uma alegoria inadequada ao nosso tempo. Tudo no Evangelho, como Kardec demonstrou, desde que afastado do clima mitológico, se torna claro e demonstra a posição evidentemente racional do Cristo. O jovem carpinteiro não pertencia à Era Mitológica e encerrou essa era com a sua passagem pela Terra e a propagação dos seus ensinos. O mito vingou-se dele, pois transformou-o também num mito. Por muito tempo, até aos nossos dias, a figura humana de Jesus figurou na nova mitologia, na fase romana do Renascimento Mitológico, em que se destacou a figura do Imperador Juliano, o Apóstata, que depois de aceitar o Cristianismo se apostatou e se empenhou na salvação dos seus deuses antigos. Os resíduos da mentalidade mitológica das civilizações arcaicas, particularmente a Grega e a Romana, reagiram, como era natural, contra o racionalismo cristão. Dessa maneira, na mente das populações bárbaras do Império Romano decadente, Jesus foi transformado num mito da Era Agrária. Os padres e bispos do Cristianismo nascente, todos impregnados pela carga mitológica de um longo passado de ignorância e superstições, não foram capazes de compreender o racionalismo (i) das proposições cristãs. Pelo contrário, cheios de medo e de espanto, contribuíram para a deformação do Cristianismo. Antes e depois da queda do Império, os cristãos fizeram concessões necessárias aos povos bárbaros para absorvê-los no seio da Religião Redentora. Onde quer que os cristãos se impusessem pela força do número e das armas, as igrejas pagãs eram transformadas em templos cristãos, conservando-se cautelosamente as tradições mitológicas mais arraigadas. O exemplo clássico e mais conhecido dessa táctica romana é a Catedral de Notre Dame, em Paris, que ainda guarda nos seus subterrâneos os restos do templo pagão da Deusa Lutécia (i). A Deusa pagã foi conservada no templo, mas com o nome de Nossa Senhora, para que o povo ingénuo aceitasse assim o culto cristão a Maria sob o prestígio secular da deusa pagã. Blavatsky (i) lembra que a Deusa Céres (i), divindade da fecundação e em muitas regiões, mais especificamente, deusa dos cereais, forneceu ao Cristianismo nascente uma das mais conhecidas imagens de Nossa Senhora, em que ela é representada com o manto estrelado do Céu, em pé sobre o globo terreno: Céres cobrindo a Terra com o seu manto celeste para fecundá-la. Esse mesmo processo de transposição acontece hoje no Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro e nas formas de sincretismo (i) de outros países da América, onde os ritos e as figuras dos deuses ou santos católicos são absorvidos pelas religiões africanas transladadas pelo tráfico negreiro de escravos para o novo continente. Jesus (virou) Oxalá, Nossa Senhora passou a ser Iemanjá, São Jorge passou a chamar-se Ogum (deus da guerra), São Sebastião passou a chamar-se Oxum (deus da caça e, assim por diante). 

Basta lermos o Livro de Actos dos Apóstolos, no Evangelho e, as epístolas de Paulo (anteriores aos Evangelhos) para termos a confirmação dessa verdade histórica. Na primeira epístola de Paulo aos Coríntios, no tópico referente aos Dons Espirituais, temos uma descrição viva do chamado culto pneumático (do Grego: Pneuma, sopro, espírito), as sessões mediúnicas realizadas pelos primeiros cristãos e nas quais, segundo as pesquisas históricas modernas, que confirmam os dados da Tradição, manifestavam-se espíritos inferiores cheios de ódio a Cristo. Essas manifestações assustadoras foram consideradas como diabólicas, reforçando a imagem tradicional do Diabo na mente ingénua dos adeptos. 

A luta entre o Bem e o Mal é simplesmente o processo dialéctico da evolução. O Mal é a ignorância, o atraso, a superstição. O Bem é o conhecimento, o progresso, a adequação da mente à realidade. Essa é a grande luta das coisas e dos seres, figurada na revolta absurda de Luzbel, o anjo de luz que se entregou à inveja e se converteu em adversário de Deus. Esses símbolos de um passado bárbaro e longínquo ainda prevalecem na Terra como resíduos míticos que o tempo desgasta na proporção em que a Cultura se desenvolve. A Ciência incumbiu-se de ajustar a mente humana à realidade terrena, mas os homens envaideceram-se e negaram-se a si mesmos nas ideias materialistas, colocando-se abaixo de tudo quanto existe. Duro castigo que o orgulho humano ainda não reconheceu. A Ciência afirma que nada se perde na Natureza, tudo se transforma. O homem aprova isso com entusiasmo e ri de si mesmo (sem perceber), pois só ele não subsiste, só ele é pó que reverte ao pó. Essa é a verdadeira queda do homem, que se rebaixa ao pó num mundo em que tudo se eleva incessantemente na direcção dos planos superiores. A tentação simbólica de Jesus no deserto assemelha-se à tentação de Buda na floresta. É a tentação dos homens pelas fascinações dos bens terrenos. Quando o homem se apega à terra (com t minúsculo, porque a terra que pisamos e não o Globo Terreno), ele se nega evoluir e é castigado pelas forças da evolução, que o impelem a sair da sua toca de bicho para atingir a condição existencial da espécie. A lei da existência não é o pó, mas a transcendência. Pode o homem andar de joelhos pelas ruas e as estradas, jejuar, mortificar-se, ciliciar-se quanto quiser, mas com isso não se tornará melhor. Voltará às reencarnações (i) difíceis e dolorosas para aprender, no sofrimento e na decepção, que não se busca Deus rastejando, mas elevando-se no amor e na dedicação aos outros. As práticas religiosas de purificação são egoístas, aumentam a miséria humana e o apego do homem a si mesmo. As tentações que sofremos não vêm do Diabo, mas de nós mesmos, da nossa ignorância e do nosso apego hipnótico aos bens perecíveis da vida terrena. O Diabo é o Bicho-Papão dos adultos, o espantalho dos supersticiosos. Giovanni Papini, escritor católico italiano, contemporâneo, no seu livro Il Diavolo, escandalizou o Vaticano, pregando a conversão do Diabo. Não conseguia admitir esse mito impiedoso na sua teologia. O Padre Teilhard de Chardin, nos seus estudos teológicos, negou a condenação eterna do Diabo. O Espiritismo limita-se a mostrar a natureza mitológica do Diabo e a demonstrar, prática e logicamente, a impossibilidade da queda do Anjo Luzbel. A evolução espiritual é irreversível. O espírito que se elevou ao plano angélico não pode regredir, não pode ter inveja e outros sentimentos humanos. O anjo-mau é uma contradição em si mesmo, pois a Angelitude é a condição divina que o espírito busca e atinge na existência. A luta do homem para transformar o mundo é a luta do homem consigo mesmo, pois é ele quem faz o mundo e, o faz à sua imagem e semelhança. Deus criou a Terra e todos os mundos do espaço, mas deu cada mundo aos homens que os habitam, para que eles aprendam o seu ofício paterno de Criador, tentando criar o mundo humano que lhes compete. É evidente que existe o mundo físico, material, em que nascemos, vivemos e morremos. E é também inegável que, sobre esse mundo físico com os seus materiais, os homens construíram um mundo diferente, feito de artifícios humanos. O mundo material e a sua contraparte espiritual (que os cientistas começam a descobrir como antimatéria) constituem o mundo natural. Mas sobre ambas as partes desse mundo natural os homens constroem os seus mundos factícios. Cada Civilização é um mundo imaginário que o homem constrói com o seu trabalho, modelando com a argila e a pedra os seus sonhos e as suas ilusões. Esses mundos artificiais são o reflexo das ideações humanas na matéria. Nós os criamos, alimentamos, desenvolvemos, dirigimos e matamos. Os mundos bárbaros criados na Terra eram ingénuos; os mundos civilizados apresentam uma gradação que reflecte a evolução humana, indo das civilizações agrárias, fantasiosas e alegóricas até às grandes civilizações orientais, massivas e arrogantes e às Civilizações Teocráticas, míticas e supersticiosas; chegando às Civilizações Científicas, politeístas e pretensiosas, que se transformam em Civilizações Tecnológicas, materialistas e conflituais, que morrerão para dar lugar à Civilização do Espírito, na busca cultural da Transcendência. Segundo Toynbee, mais de vinte grandes civilizações já existiram na Terra. Agora está a surgir aos nossos olhos e sob os nossos pés uma Nova Civilização – a do Espírito – que podemos chamar de Cósmica ou Espiritual. É para preparar o advento dessa Civilização do Espírito que o Espiritismo surgiu. Não adianta querermos fazer do Espiritismo uma religião dogmática, carregada de misticismo tolo ou de materialismo alienante. As novas gerações que se encarnam para realizá-la não temem Deus nem o Diabo, simplesmente confiam nos planos irreversíveis de Deus, que se executam segundo as leis da consciência humana em relação telepática permanente com as entidades angélicas ao serviço de Deus. O Espiritismo é a Plataforma de Deus, aprovada pelos Espíritos Superiores para a transformação e elevação da Terra. 

/… 


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XVII – Acção Espírita na Transformação do Mundo, (III de III) – A Solidariedade, 19º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Léon Denis e o Cristianismo ~


Introdução ~

Não foi um sentimento de hostilidade ou de malevolência que ditou estas páginas. Malevolência não a têm por nenhuma ideia, por pessoa alguma. Quaisquer que sejam os erros ou as faltas dos que se acobertam com o nome de Jesus e a sua doutrina, o pensamento do Cristo em nós não desperta senão um sentimento de profundo respeito e de sincera administração. Educados na religião cristã, conhecemos tudo o que ela encerra de poesia e de grandeza. Se abandonámos o domínio da fé católica pelo da filosofia espírita, não esquecemos por isso as recordações da nossa infância, o altar ornado de flores diante do qual se inclinava a nossa fronte juvenil, a grande harmonia dos órgãos, sucedendo aos cantos graves e profundos e, a luz coada através dos vitrais coloridos, a brincar no ladrilhado solo, entre os fiéis prosternados. Não esquecemos que a austera cruz estende os seus braços por sobre o túmulo dos que mais amamos neste mundo. Se há para nós uma imagem sagrada, entre as veneráveis, é a do supliciado do Calvário, do mártir pregado ao madeiro infamante, ferido, coroado de espinhos e que, ao expirar, perdoa aos seus algozes. 

Ainda hoje é com viva emoção que escutamos os longínquos convites dos sinos, a voz de bronze, que vão acordar os sonoros ecos dos bosques e dos vales. E, nas horas de tristeza, apraz-nos meditar na igreja silenciosa e solitária, sob a penetrante influência que nela acumularam as preces, as aspirações, as lágrimas de tantas gerações.

Uma questão, porém, se impõe, questão que muitos resolveram mediante o estudo e a reflexão. Todo esse aparato que impressiona os sentidos e move o coração, todas essas manifestações artísticas, pompa do ritual romano e o esplendor das cerimónias não são como um brilhante véu que oculta a pobreza da ideia e a insuficiência do ensino? Não foi a convicção da sua impotência para satisfazer as elevadas faculdades da alma, a inteligência, o discernimento e a razão, o que impeliu a Igreja para o caminho das manifestações exteriores e materiais?

O protestantismo, ao menos, é mais sóbrio. Se desdenha as formas, a decoração, é para melhor fazer sobressair a grandeza da ideia. Estabelece a autoridade exclusiva da consciência e o culto do pensamento e, de degrau em degrau, de consequência em consequência, conduz logicamente ao livre exame, isto é, à filosofia.

Conhecemos tudo o que a doutrina do Cristo encerra de sublime; sabemos que ela é por excelência a doutrina do amor, a religião da piedade, da misericórdia, da fraternidade entre os homens. Mas a doutrina de Jesus é a que ensina a Igreja Romana? A palavra do Nazareno foi-nos transmitida pura e sem mescla e, a interpretação que dela nos dá a Igreja é isenta de todo o elemento estranho ou parasita?

Não há questão mais grave, mais digna da meditação dos pensadores, como da atenção de todos os que amam e procuram a verdade. É o que nos propomos examinar na primeira parte desta obra, com o auxílio e a inspiração dos nossos guias do espaço, afastando tudo o que poderia perturbar as consciências, excitar as más paixões, fomentar a divisão entre os homens.

É verdade que esse trabalho foi, antes de nós, empreendido por outros. Mas o objectivo destes, os seus meios de investigação e de crítica eram diferentes dos nossos. Procuram menos edificar que destruir, ao passo que, antes de tudo, quisemos fazer obra de reconstituição e de síntese. Consagrámo-nos à tarefa de destacar da sombra das idades, da confusão dos textos e dos factos, o pensamento básico, pensamento de vida, que é a fonte pura, o foco intenso e radioso do Cristianismo e, ao mesmo tempo, explicar os estranhos fenómenos que caracterizam as suas origens, fenómenos renováveis sempre, que efectivamente se renovam todos os dias debaixo dos nossos olhos e podem ser explicados mediante leis naturais. Nesse pensamento oculto, nesses fenómenos até agora inexplicados, mas que uma nova ciência observa e regista, encontramos a solução desses problemas que há tantos séculos pairam sobre a razão humana: o conhecimento da nossa verdadeira natureza e a lei dos nossos destinos progressivos.

Uma das mais sérias objecções lançadas ao Cristianismo pela crítica moderna é que a sua moral e a sua doutrina da imortalidade repousam sobre um conjunto de factos ditos “miraculosos”, que o homem esclarecido relativamente à acção das leis da natureza não poderia hoje admitir.

Se milagres, acrescentam, puderam ser outrora necessários para fundar a crença na outra vida, sê-lo-ão menos na nossa época de dúvida e de incredulidade? E, além disso, a que causa atribuir esses milagres? Não é, como alguns o pretenderam, à natureza divina do Cristo, porquanto os seus discípulos igualmente os obtinham.

A questão, porém, ficará esclarecida por uma luz intensa e, as afirmações do Cristianismo relativamente à imortalidade adquirirão mais força e autoridade, se for possível estabelecer que esses factos, ditos “miraculosos”, se produziram em todos os tempos, particularmente nos nossos dias; que eles são o resultado de causas livres, invisíveis, que perpetuamente actuam, submetidas, porém, a leis imutáveis, se neles, numa palavra, já não vemos milagres, mas fenómenos naturais, uma forma da evolução e da sobrevivência do ser.

É precisamente esta uma das consequências do Espiritismo. Por um aprofundado estudo das manifestações do além-túmulo, ele demonstra que esses factos ocorreram em todas as épocas, quando as perseguições não lhes opunham obstáculos; que quase todos os grandes missionários, os fundadores de seitas e de religiões foram médiuns inspirados; que uma perpétua comunhão une as duas humanidades, ligando aos do mundo terrestre os habitantes do espaço.

Esses factos reproduzem-se em torno de nós com renovada intensidade. Desde há cinquenta anos aparecem formas, fazem-se ouvir vozes, chegam-nos comunicações por via tiptológica ou de incorporação, assim como pela escrita automática. Provas de identidade, em profusão, vêm revelar-nos a presença dos nossos parentes, dos que na terra amámos, que foram a nossa carne e o nosso sangue e, dos quais nos havia momentaneamente a morte separado. Nas suas práticas, nos seus ensinos, aprendemos a conhecer esse Além misterioso, objecto de tantos sonhos, debates e contradições. No nosso entendimento se acentuam e definem as condições da vida ulterior, dissipa-se a obscuridade que reinava sobre tais questões. O passado e o futuro se esclarecem até ao mais íntimo de suas profundezas.

Assim o Espiritismo oferece-nos as provas naturais, tangíveis, da imortalidade e por esse meio conduz-nos às puras doutrinas cristãs, ao próprio âmago do Evangelho, que a obra do Catolicismo e a lenta edificação dos dogmas mal cobriram de tantos elementos incongruentes e estranhos. Graças ao seu estudo escrupuloso do corpo fluídico, ou perispírito, ele torna mais compreensíveis, mais aceitáveis, os fenómenos de aparições e materializações, sobre as quais o Cristianismo repousa integralmente.

Estas considerações melhor farão sobressair a importância dos problemas suscitados no curso desta obra e cuja solução oferecemos, apoiando-nos ao mesmo tempo nos testemunhos de sábios imparciais e esclarecidos e nos resultados de experiências pessoais, realizadas consecutivamente há mais de trinta anos.

Sob esse ponto de vista, a oportunidade do presente trabalho a ninguém decerto escapará. Nunca a necessidade de esclarecimento das questões vitais, a que se encontra indissoluvelmente ligada à sorte das sociedades, se fez sentir de modo mais imperioso.

Cansado de dogmas obscuros, de interesseiras teorias, de afirmações sem provas, o pensamento humano há muito se deixou empolgar pela dúvida. Uma crítica inexorável joeirou rigorosamente todos os sistemas. A fé se extinguiu na sua própria fonte; o ideal religioso desapareceu. Concomitantemente com os dogmas, perderam o seu prestígio as elevadas doutrinas filosóficas.

O homem esqueceu ao mesmo tempo o caminho dos templos e dos pórticos da sabedoria.

Para quem quer que observe atentamente as coisas, os tempos que vivemos estão carregados de ameaças. Parece brilhante a nossa civilização e, todavia, quantas manchas lhe obscurecem o esplendor! O bem-estar e a riqueza se têm espalhado, mas é por acaso pelas suas riquezas que uma sociedade se engrandece? O objectivo do homem na terra é, porventura, levar uma vida faustosa e sensual? Não! Um povo não é grande, um povo não se eleva senão pelo trabalho, pelo culto da justiça e da verdade.

Em que se tornaram as civilizações do passado, aquelas em que o indivíduo não se preocupava senão com o corpo, com as suas necessidades e as suas fantasias? Encontram-se em ruínas; estão mortas.

Voltamos a encontrar, precisamente na nossa época, as mesmas tendências perigosas que as perderam: são as que consistem em tornar tudo adstrito à vida material, em constituir objecto e fim da existência a conquista dos prazeres físicos. A crítica e a consciência materialistas restringiram os horizontes da vida. Às tristezas da hora presente acrescentaram a negação sistemática, a acabrunhadora ideia do nada. E por esse modo agravaram todas as misérias humanas; arrebataram ao homem, com as mais seguras armas morais de que dispunha, o sentimento de suas responsabilidades; abalaram até às suas profundezas o próprio foro íntimo do eu.

Assim, gradualmente, os caracteres se vão abatendo, a venalidade cresce, a imoralidade se alastra como imensa chaga. O que era sofrimento se converteu em desespero. Os casos de suicídio têm-se multiplicado em proporções até aqui desconhecidas – coisa monstruosa e que em nenhuma outra época se viu: este flagelo do século até as próprias crianças tem contaminado.

Contra essas doutrinas de negação e morte falam hoje os factos. Uma experimentação metódica, prolongada, conduz-nos a esta certeza: o ser humano sobrevive à morte e o seu destino é obra sua.

Factos inúmeros se têm multiplicado, oferecendo novos subsídios acerca da natureza, da vida e da ininterrupta evolução dos seres. Esses factos foram pela ciência devidamente autenticados. Importa agora interpretá-los, pô-los em evidência e, sobretudo, deduzir-lhes a lei, as consequências e tudo o que deles pode resultar para a existência individual e social.

Esses factos vão despertar no íntimo das consciências as verdades aí adormecidas. Eles restituirão ao homem a esperança, com o elevado ideal que esclarece e fortifica. Provando que não morremos inteiramente, encaminharão os pensamentos e os corações para essas vidas ulteriores em que a justiça encontra a sua aplicação.

Todos, por esse meio, compreenderão que a vida tem um objectivo, que a lei moral tem uma realidade e uma sanção; que não há sofrimentos inúteis, trabalho sem proveito, nem provas sem compensação; que tudo é pesado na balança do divino Justiceiro.

Em lugar desse campo cerrado da vida em que os fracos sucumbem fatalmente, em lugar dessa gigantesca e cega máquina do mundo que tritura as existências e de que nos falam as filosofias negativas, o Novo Espiritualismo fará surgir, aos olhos dos que pesquisam e dos que sofrem, a portentosa visão de um mundo de equidade, de amor e de justiça, onde tudo é regulado com ordem e sabedoria, harmonicamente.

E dessa forma será atenuado o sofrimento, assegurado o progresso do homem, santificado o seu trabalho; a vida se revestirá de maior dignidade e enobrecimento. Porque o homem tem tanta necessidade de uma crença como de uma pátria, como de um lar. É o que explica que formas religiosas, envelhecidas e caducas, conservem ainda os seus adeptos. Há no coração humano tendências e necessidades que nenhum sistema negativo poderá jamais satisfazer. Mau grado à dúvida que a oprime, desde que a alma sofre, instintivamente se volta para o céu. Faça o que fizer, o homem torna a encontrar o pensamento de Deus nas cantilenas que no berço o embalaram, nos sonhos da sua infância, como nas silenciosas meditações da idade adulta.

Há certas horas, não pode o céptico mais endurecido contemplar o infinito constelado, o curso dos milhões de sóis que na imensidade se efectua, nem passar diante da morte, sem perturbação e sem respeito.

Sobranceira às polémicas vãs, às discussões estéreis, há uma coisa que escapa a todas as críticas: é essa aspiração da alma humana a um ideal eterno, que a sustenta nas suas lutas, consola nas provações e, nas horas das grandes resoluções é a sua inspiradora; é essa intuição do que, por trás da cena em que se desenrolam os dramas da vida e o grandioso espectáculo da natureza, oculta-se um poder, uma causa suprema, que lhes regulou as fases sucessivas e traçou as linhas de sua evolução.

Onde, porém, encontrará o homem a rota segura que o conduza a Deus? Onde haurir a inabalável convicção que, de estádio em estádio, o guiará através dos tempos e do espaço, para o supremo fim das existências? Qual será, numa palavra, a crença do futuro?

As formas materiais e transitórias da religião passam, mas a vida religiosa, a crença pura, desembaraçada de todas as formas inferiores é, na sua essência, indestrutível. O ideal religioso evolverá, como todas as manifestações do pensamento. Ele não poderia escapar à lei do progresso que rege os seres e as coisas.

A futura fé que já emerge dentre as sombras não será nem católica nem protestante; será a crença universal das almas, a que reina em todas as sociedades adiantadas do espaço e, mediante a qual cessará o antagonismo que separa a ciência actual da religião. Porque, com ela, a ciência tornar-se-á religiosa, e a religião se há de tornar científica.

Ela se apoiará na observação, na experiência imparcial, nos factos milhares de vezes repetidos.  

Mostrando-nos as realidades objectivas do mundo dos espíritos, dissipará todas as dúvidas, destruirá as incertezas; a todos franqueará infinitas perspectivas do futuro.

Em certas épocas da História, passam sobre o mundo correntes de ideias que vêm arrancar a Humanidade ao seu torpor. Sopros vindos do alto encrespam a imensa vaga humana e, graças a eles, brotam da sombra as verdades esquecidas na caligem dos séculos. Elas surgem das mudas profundezas em que dormem os tesouros das forças ocultas, onde se combinam os elementos renovadores, onde se elabora a obra misteriosa e divina. Manifestam-se, então, sob inesperadas formas; reaparecem e revivem.

No começo repudiadas, escarnecidas pela multidão, prosseguem, todavia, impassíveis, serenas, o seu caminho. E chega um dia em que se é forçado a reconhecer que essas verdades repelidas vinham oferecer o pão da vida, o cálice da esperança, a todas as almas sofredoras e dilaceradas; que nos traziam nova base de ensinamento e, porventura também, um meio de reabilitação moral. Tal a situação do moderno Espiritualismo (espiritualismo racional)*, em que renascem tantas verdades há séculos ocultas. No seu contexto ele resume as crenças dos sábios e dos antigos celtas, nossos pais; ressurge sob mais imponentes formas, para encaminhar a um novo ciclo ascensional a Humanidade em marcha.  

/…
* Assim melhor sintetizado nos dias de hoje. Adenda desta publicação.


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898).  Introdução, 1º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

sábado, 6 de novembro de 2021

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Sr. Home 
(Terceiro artigo) 

(Ver os números de Fevereiro e Março de 1858) (*) 

Não é do nosso conhecimento que o Sr. Home tenha feito aparecer, pelo menos visivelmente a todos, outras partes do corpo além das mãos. Cita-se, entretanto, um general, morto na Crimeia, que teria aparecido à sua viúva e visível somente a ela; mas não pudemos constatar a realidade do facto, sobretudo no que diz respeito à intervenção do Sr. Home em tal circunstância. Limitar-nos-emos apenas àquilo que pudermos afirmar. Por quê mãos, de preferência a pés ou a uma cabeça? É o que não sabemos e ele próprio o ignora. Interrogados a respeito, os Espíritos responderam que outros médiuns poderiam fazer aparecer o corpo inteiro; aliás, isso não é o ponto mais importante; se só as mãos aparecem, as demais partes do corpo não são menos evidentes, como se verá dentro em pouco. 

A aparição de uma mão geralmente manifesta-se, em primeiro lugar, sob a toalha de uma mesa, através de ondulações produzidas a percorrer toda a sua superfície; depois mostra-se à borda da toalha, que ela levanta; algumas vezes vem postar-se sobre a toalha, bem no meio da mesa; frequentemente, pega um objecto e leva-o para baixo da toalha. Esta mão, visível a toda a gente, não é vaporosa, nem translúcida; tem a cor e a opacidade naturais; no punho, termina de maneira vaga, mal definida; se é tocada com precaução, confiança e sem segundas intenções hostis, oferece a resistência, a solidez e a impressão de uma mão viva; o seu calor é suave, húmido e comparável ao de um pombo morto há cerca de meia hora. Não é de forma alguma inerte, porquanto age, presta-se aos movimentos que se lhe imprime, ou resiste, acaricia-vos ou aperta-vos. Se, ao contrário, quiserdes pegá-la bruscamente e de surpresa, somente encontrareis o vazio. Uma testemunha ocular narrou-nos o seguinte facto que se passou com ela. Tinha entre os dedos uma campainha de mesa; uma mão, a princípio invisível, pouco depois perfeitamente visível, veio pegá-la, fazendo esforços para arrancá-la; não o tendo conseguido, passou por cima para fazê-la escorregar; o esforço de tracção era muito sensível, qual se fora uma mão humana. Tendo querido segurar violentamente essa mão, a sua só encontrou o ar; havendo retirado os dedos, a campainha ficou suspensa no espaço e veio pousar lentamente no soalho. 

Algumas vezes há várias mãos. A mesma testemunha contou-nos o facto que se segue. Várias pessoas estavam reunidas em volta de uma dessas mesas de sala de jantar que se separam em duas. Golpes são batidos; a mesa agita-se, abre-se por si mesma e, através da fenda, aparecem três mãos, uma de tamanho natural, muito grande outra e, uma terceira completamente felpuda; toca-se nelas, apalpa-se-lhes, elas vos apertam a mão, depois esvanecem-se. Na casa de um de nossos amigos, que havia perdido um filho de tenra idade, é a mão de um recém-nascido que aparece; todos a podem ver e tocar; essa criança acomoda-se no colo da mãe, que sente distintamente a impressão de todo o seu corpo sobre os joelhos. 

Frequentemente, a mão vem pousar sobre vós. Então a vedes ou, se não o conseguis, percebeis a pressão dos seus dedos; algumas vezes ela vos acaricia, noutras vos belisca até provocar dor. Na presença de várias pessoas, o Sr. Home sentiu que lhe pegavam o pulso e, os assistentes puderam ver-lhe a pele puxada. Um instante depois ele sentiu que o mordiam e a marca da impressão de dois dentes ficou visivelmente assinalada durante mais de uma hora. 

A mão que aparece também pode escrever. Algumas vezes ela se coloca no meio da mesa, pega um lápis e escreve letras sobre um papel especialmente colocado para esse efeito. Na maioria das vezes leva o papel para debaixo da mesa e o traz de volta todo escrito. Se a mão permanece invisível, a escrita parece produzir-se por si mesma. Obtêm-se, por esse meio, respostas às diversas perguntas que se quer fazer. 

Um outro género de manifestações não menos notável, mas que se explica pelo que acabamos de dizer, é o dos instrumentos de música que tocam sozinhos. Em geral são pianos ou acordeões. Nessas circunstâncias, vê-se distintamente as teclas agitarem-se e o fole a mover-se. A mão que toca ora é visível, ora invisível; a ária que se ouve pode ser conhecida e executada a pedido de alguém. Se o artista invisível é deixado à vontade, produz acordes harmoniosos, cujo efeito lembra a vaga e suave melodia da harpa eólica. Na residência de um de nossos assinantes, onde tais fenómenos se produziram muitas vezes, o Espírito que assim se manifestava era o de um rapaz, falecido há algum tempo, amigo da família e que, quando vivo, possuía notável talento como músico; a natureza das árias que preferia tocar não deixava nenhuma dúvida quanto à sua identidade às pessoas que o haviam conhecido. 

O facto mais extraordinário deste género de manifestações não é, na nossa opinião, o da aparição. Se fosse sempre vaporosa, concordaria com a natureza etérea que atribuímos aos Espíritos; ora, nada se oporia a que essa matéria etérea se tornasse perceptível à vista por uma espécie de condensação, sem perder a sua propriedade vaporosa. O que há de mais estranho é a solidificação dessa mesma matéria, bastante resistente para deixar uma impressão visível aos nossos órgãos. Daremos, no nosso próximo número, a explicação deste fenómeno singular, conforme os ensinamentos dos próprios Espíritos. Limitar-nos-emos, hoje, a deduzir-lhe uma consequência relativa ao toque espontâneo dos instrumentos de música. Com efeito, desde que a tangibilidade temporária desta matéria eterizada é um facto constatado; que, nesse estado, uma mão, aparente ou não, oferece bastante resistência para exercer pressão sobre os corpos sólidos, nada há de espantoso em que possa exercer pressão suficiente para mover as teclas de um instrumento. Por outro lado, factos não menos positivos atestam que esta mão pertence a uma inteligência; nada, pois, de admirar que tal inteligência se manifeste por sons musicais, como o pode fazer pela escrita ou pelo desenho. Uma vez entrados nesta ordem de ideias, as pancadas, o movimento dos objectos e todos os fenómenos espíritas de ordem material explicam-se naturalmente. 


Diversidade ~~

Em certos indivíduos a malevolência não conhece limites; a calúnia tem sempre veneno para quem quer que se eleve acima da multidão. Os adversários do Sr. Home encontraram a arma do ridículo demasiado fraca; com efeito, ela devia voltar-se contra os nomes respeitáveis que o cobrem com a sua protecção. Já não podendo divertir-se à sua custa, quiseram denegri-lo. Espalhou-se o boato, adivinhe-se com que objectivo e, as más línguas a repetir, que o Sr. Home não havia partido para a Itália, como fora anunciado, mas que estava preso na prisão de Mazas, sob o peso das mais graves acusações, narradas como anedotas, de que estão sempre ávidos os desocupados e os amantes de escândalo. Podemos garantir que não há nada de verdadeiro em todas essas maquinações infernais. Sob os nossos olhos, temos várias cartas do Sr. Home, escritas de Pisa, Roma e Nápoles, onde se encontra neste momento e, estamos em condições de provar o que afirmamos. Muita razão têm os Espíritos, quando dizem que os verdadeiros demónios estão entre os homens. 

Lê-se num jornal: “Segundo a Gazettte des Hopitaux, o hospital dos alienados de Zurique conta neste momento 25 pacientes que perderam a razão graças às mesas falantes e aos Espíritos batedores”. 

Em primeiro lugar, perguntamos se foi bem averiguado que esses 25 alienados devem, todos, a perda da razão aos Espíritos batedores, o que se pode contestar até prova em contrário. Supondo que esses fenómenos estranhos tenham podido impressionar de maneira lamentável certos caracteres fracos, perguntaríamos, além disso, se o medo do diabo não fez mais loucos do que a crença nos Espíritos. Ora, como não se impedirá os Espíritos de baterem, o perigo está em acreditar que são demónios todos aqueles que se manifestam. Afastai essa ideia, dando a conhecer a verdade e, deles não se terá mais medo do que dos fogos-de-artifício. A ideia de que se é assediado pelo demónio é feita sob a medida de perturbar a razão. Eis, de sobra, a contrapartida do artigo acima. Lemos num outro jornal: “Existe um curioso documento estatístico, de consequências funestas, o de que o povo inglês é levado ao hábito da intemperança e dos licores fortes. De cada 100 indivíduos admitidos no hospício de loucos de Hamwel, há 72 cuja alienação deve ser atribuída à embriaguez.” 

Recebemos dos nossos assinantes numerosas relações de factos muito interessantes, que nos apressaremos a publicar nas nossas próximas edições; a falta de espaço, porém, impede-nos de fazê-lo neste número.                                                                                                                                                                                                                                                                                                         Allan Kardec
/... 
(*) Sr. Home (primeiro e segundo artigos) 


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Revue Spirite, Sr. Home, Diversidade (Terceiro artigo – Ver os números de Fevereiro e Março de 1858). – Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Abril de 1858, 11º fragmento da Revista objecto do presente título desta publicação.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

~ em torno do mestre


Lobos vorazes ~

O divino Pastor previne as suas ovelhas do perigo que as ameaça, dizendo-lhes: "Guardai-vos dos falsos profetas que vêm a vós com vestes de ovelhas, mas que por dentro são lobos vorazes. Pelos seus frutos os conhecereis." 

Geralmente, os profitentes de determinado credo imaginam que os falsos profetas são os representantes de outros credos. Assim, para os católicos romanos, os lobos vorazes são os pastores protestantes, são os expoentes da Doutrina Espírita. Para os protestantes, os lobos são os membros do clero romano e os espíritas em geral. E este falso conceito é também partilhado por alguns espíritas, os quais pretendem ver o perigo nos arraiais vizinhos. 

Estão todos redondamente enganados. Os falsos profetas, os lobos vorazes estão dentro dos respectivos rebanhos, que eles pretendem explorar, assumindo ali atitudes de mentores e guias, disputando posição de destaque. Daí precisamente o perigo para as ovelhas. Os lobos do protestantismo estão lá com eles, rotulados com a mesma rubrica oficial daquela igreja, mostrando-se interessados por tudo que ali se passa. Da mesma sorte, os lobos do catolicismo romano lá se encontram no seio daquela comunidade, usando os seus distintivos, as suas insígnias. Consoante o mesmo critério, os falsos profetas contra os quais nós, os espíritas, nos devemos precaver, não se encontram em arraiais longínquos, não são os membros da clerezia de saia ou de sobrecasaca. Eles estão perto de nós, no nosso meio, no mesmo aprisco, disfarçados em ovelhas inocentes. Usam palavras melífluas (i), arvorando-se, ora em ardentes propagandistas e fogosos foliculários (i), ora em operadores de prodígios e milagres, ora ainda em profundos conhecedores de mistérios, possuidores de poderes invulgares, ora, finalmente, como dotados de dons excepcionais para curar enfermidades de toda a natureza. 

Lobos há-os de todas as castas: malhados, fulvos e pretos. Da espécie de que tratamos agora, existem, desde os exploradores e charlatães ignorantes, que exercem as suas traças entre os incautos ignaros (i), até aos de alto coturno (i), que frequentam rodas literárias, portadores de títulos e credenciais, impando (i) de vaidade, pretensos sábios. 

Tanto estes, porém, como aqueles, se dão a conhecer pelos frutos, como sabiamente diz o Evangelho. Seguindo as pegadas desses lobos, verificamos desde logo que os seus frutos são maus. Os de baixa estirpe, em geral, contentam-se com ilaquear a boa fé dos incautos, colhendo em seguida os proventos que miram. Os de alta categoria visam a alvo mais elevado, pelo menos mais distante. Querem satisfazer as suas pretensões vaidosas e os seus apetites, como os primeiros, porém, com certo jeito e maestria, a fim de se não comprometerem. Para atingirem os fins, não trepidam em lançar, aqui, a cizânia; ali, a intriga; acolá, a confusão e a dúvida. Insultam, agridem, perseguem mesmo os que se não curvam às suas pretensões e duvidam da sua autoridade. 

Tais são os frutos que produzem. Querem dirigir o rebanho à viva força; querem posto de comando; querem o bastão. Com tal propósito, faremos todas as agremiações organizadas, todos os redis onde haja ovelhas a tosquiar. Não logrando os seus intentos saem murmurando e vociferando contra os núcleos onde não conseguiram pontificar. A passagem dessa alcateia deixa sempre vestígios. São víboras que empeçonham o ambiente, quando não podem inocular o veneno mortífero. 

O cunho característico desses lobos é serem todos eles inimigos da cruz do Cristo, como dizia, com justeza, o Apóstolos dos gentios. Falam no Cristo, porém num Cristo forjado pelos seus caprichos e veleidades, que nada tem de comum com aquele Cristo que anuncia a cruz, que põe em realce a cruz e que, sobretudo, manda viver como ele viveu, nos termos e no espírito da cruz, como símbolo do dever, da humildade, da renúncia e do sacrifício. 

Os falsos profetas — grandes ou pequenos, ignaros (i) ou eruditos, plebeus ou magnatas são, invariavelmente, epicuristas, devotos de Baco, adoradores de Príapo; uns, mais ou menos abertamente, outros, de modo hipócrita e velado, deixando, todavia, transparecer o que lhes vai no íntimo. 

Guardai-vos, portanto, ó crentes de todas as igrejas, dos lobos vorazes. Lembrai-vos de que eles estão no meio de vós, agindo ao vosso lado; não vêm de fora, estão no interior de cada aprisco. Pelos frutos os conhecereis. 


O Médico das almas ~ 

“De caminho para Jerusalém, passava Jesus pela divisa entre a Samaria e a Galileia. Ao entrar numa aldeia, saíram-lhe ao encontro dez leprosos, que ficaram ao longe e levantaram a voz, dizendo: Jesus, Mestre, tem compaixão de nós! Jesus, logo que os viu, disse-lhes: Ide e, mostrai-vos aos sacerdotes. E no caminho ficaram curados. Um deles, vendo-se curado, voltou para trás, dando glória a Deus em voz alta, e prostrou-se aos pés de Jesus, agradecendo-lhe; e este era samaritano. Perguntou Jesus: Não ficaram curados os dez? onde estão os outros nove? Não se encontrou quem voltasse para dar glória a Deus, sendo este estrangeiro? E disse ao homem: Levanta-te e vai; a tua fé te salvou.” 

(Lucas (i), 17:11 a 19.) 

Porque disse Jesus ao samaritano: a tua fé te salvou? Porque a fé nesse crente, em tudo dissemelhante da dos Judeus, era despida de fanatismo, não se restringia aos moldes estreitos daquela fé convencional da escolástica religiosa. 

A fé daquele samaritano era livre, isenta de peias dogmáticas, escoimada de todos os prejuízos sectários inerentes aos credos exclusivistas. Daí porque ele logrou sentir os eflúvios celestes banhando o seu Espírito e despertando-lhe no coração os bons sentimentos, dentre os quais se distingue, como dos mais belos padrões de nobreza, a gratidão. 

Jesus sarara os dez leprosos; mas, o prodígio só impressionou profundamente o samaritano, porque só ele recebeu o influxo do céu, graças às condições do seu coração liberto do fanatismo que obceca a mente e embota as cordas do sentimento. Por isso, enquanto os nove Judeus prosseguiram maquinalmente em demanda dos sacerdotes para cumprirem o preceito ritualístico de sua religião, o samaritano retrocedeu em busca do seu benfeitor, a cujos pés se prostrou, num gesto sublime de humildade e de profundo reconhecimento. 

A sua alma possuía apreciável capacidade de sentir. O benefício recebido encontrou eco no seu coração susceptível de apreciar o bem e capaz de experimentar as emoções suaves e doces que o bem gera e acoroçoa

Concluímos do exposto que o maior benefício que recebemos, através duma graça que nos é concedida, não está propriamente no objecto alcançado, mas reconhecimento que o facto pode despertar. A gratidão é o elo indissolúvel que une o beneficiado ao benfeitor. 

Assim, pois, quando o pecador tem capacidade moral para sentir o benefício que lhe é outorgado, fica por isso mesmo em comunhão com o céu: e nisso consiste o sumo bem conquistado. 

Jesus curava o corpo, visando a redimir o Espírito. Daí o seu contentamento, verificando que, ao menos num, dentre os dez leprosos beneficiados, havia atingido o alvo visado na sua missão. 

É bom que todos os doentes do corpo saibam disto, a fim de se não iludirem buscando a saúde da matéria e relegando a do Espírito. São as enfermidades deste que o médico das almas, de preferência, veio curar. 


A dracma perdida ~ 

“Qual é a mulher que, tendo dez dracmas e perdendo uma, não acende a candeia, não varre a casa e não a procura diligentemente até a encontrar? 

“Quando a tiver achado, reúne as amigas e vizinhas, dizendo: "Regozijai-vos comigo, porque encontrei a dracma que havia perdido. 

“Assim, vos digo, há grande júbilo entre os anjos de Deus por um pecador que se arrepende.”

(Lucas (i), 15:8 a 10) 

A parábola acima faz parte da tríade parabólica onde figura, a seu lado, a do Filho Pródigo e a da Ovelha Tresmalhada. Todas encerram o mesmo ensinamento, revelam o mesmo axioma incontestado, que o Espiritismo (i) vem rememorar: a unidade do destino. Essas parábolas nos fazem vislumbrar esta verdade, da mais elevada importância: a justiça de Deus é misericórdia e a sua misericórdia é justiça. 

Ao homem é difícil apreender perfeitamente este asserto, dado o conceito erróneo que neste mundo se faz de justiça e de misericórdia. Tais predicados, para a maioria, são entre si incompatíveis; quando um deles actua, o outro permanece inerte. De facto, é assim que os homens procedem, quando supõem fazer justiça, ou usar de misericórdia. 

Em Deus, justiça e misericórdia se identificam, concomitantemente, ao mesmo tempo, sem nenhuma incompatibilidade, embebendo-se uma na outra. Para firmar esta asserção no nosso espírito, basta considerarmos que não pode haver conflito entre as virtudes. Todas as virtudes são modalidades duma só virtude, que é o amor. Elas se completam nos seus aspectos multiformes. A divergência — e essa divergência irredutível — verifica-se entre as virtudes e o vício, o bem e o mal, a luz e as trevas. 

A unidade do destino resulta da unidade entre a justiça e a misericórdia divinas. O justo foi pecador, o pecador será justo. Daí porque há grande júbilo entre os anjos (justos) por um pecador que se arrepende. 

Dito isto sobre a ideia central da parábola vertente, analisemo-la através dos pormenores de sua urdidura. Já dissemos que Jesus formulou três parábolas, colimando (i) o mesmo objectivo. Todavia, estudando-as separadamente, vamos descobrir ensinos diversos que, a par da ideia central, comum nesta trilogia, aparecem como acessórios muito preciosos. 

A personagem em destaque neste apólogo é a mulher, dona de casa. Ela perde uma dracma das dez que tinha nas mãos. Incomoda-se, aflige-se seriamente com o sucedido, procurando sanar o mal de que se reconhece culpada. Rebusca diligentemente os escaninhos, remove os trastes que guarnecem o aposento, até que encontra a moeda desaparecida. Rejubila com o resultado de suas pesquisas e, dando expansão à sua grande alegria, comunica o facto às vizinhas para que participem do seu justo contentamento. 

Ora, porque usou Jesus dessa semelhança? Porque comparou o zelo divino na salvação das almas com o zelo da mulher na função de economia do lar? Naturalmente porque é essa a missão da mulher no seio da sociedade. Da maneira como desempenha esse papel depende a tranquilidade e o bem-estar da família. Mais ainda: resulta do seu zelo no cumprimento dos deveres domésticos a estabilidade (i) e a segurança (i) social. 

Saber gastar é tão importante como saber ganhar. Se são necessários certos requisitos e predicados para ganhar, outros, não menos importantes, são precisos para aplicar o que foi ganho. O desequilíbrio das finanças domésticas, fonte de desventuras e até do esfacelamento de muitos lares, tem origem, muitas vezes, no descaso (i) ou na má aplicação dada pela mulher às receitas de que pode dispor. 

Qual a mulher, pergunta Jesus, que, tendo dez dracmas e perdendo uma, não faz tudo o que pode para encontrá-la? Essa interpelação dá lugar a se considerar como anormal a mulher que não denota naturalmente aquele ardor e aquele zelo no desempenho de sua missão enquanto sustentáculo do equilíbrio financeiro do lar. 

Exemplifiquem-se, portanto, neste ensinamento as mulheres e também os homens. A mulher, no sentido de se desobrigar com o devido escrúpulo e critério do elevado cargo que lhe compete na ordem social. O homem, no que respeita à consideração e ao merecimento em que deve ter o trabalho da mulher, trabalho esse tão, ou, quiçá, mais meritório que o seu, do qual tanto ele se ufana (i) e tanto se orgulha. 

/… 
“Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra.” 
Pedro de Camargo “Vinícius”            


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, 1ª Parte / Seixos e Gravetos; Lobos vorazes / O Médico das almas / A dracma perdida, 12º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), pintura de Johannes Vermeer)