O divino Pastor previne as suas ovelhas do perigo que as ameaça,
dizendo-lhes: "Guardai-vos dos falsos profetas que vêm a vós com vestes de ovelhas,
mas que por dentro são lobos vorazes. Pelos seus frutos os conhecereis."
Geralmente, os profitentes de determinado credo imaginam que os falsos profetas
são os representantes de outros credos. Assim, para os católicos romanos,
os lobos vorazes são os pastores protestantes, são os expoentes da Doutrina
Espírita. Para os protestantes, os lobos são os membros do clero romano e
os espíritas em geral. E este falso conceito é também partilhado por
alguns espíritas, os quais pretendem ver o perigo nos arraiais vizinhos.
Estão todos redondamente enganados. Os falsos profetas, os lobos
vorazes estão dentro dos respectivos rebanhos, que eles pretendem explorar,
assumindo ali atitudes de mentores e guias, disputando posição de destaque. Daí
precisamente o perigo para as ovelhas. Os lobos do protestantismo estão lá com
eles, rotulados com a mesma rubrica oficial daquela igreja, mostrando-se
interessados por tudo que ali se passa. Da mesma sorte, os lobos do catolicismo
romano lá se encontram no seio daquela comunidade, usando os seus distintivos,
as suas insígnias. Consoante o mesmo critério, os falsos profetas contra os
quais nós, os espíritas, nos devemos
precaver, não se encontram em arraiais longínquos, não são os membros da
clerezia de saia ou de sobrecasaca. Eles estão perto de nós, no nosso meio, no
mesmo aprisco, disfarçados em ovelhas inocentes.
Usam palavras melífluas (i), arvorando-se, ora em ardentes
propagandistas e fogosos foliculários (i), ora em operadores de prodígios e
milagres, ora ainda em profundos conhecedores de mistérios, possuidores de
poderes invulgares, ora, finalmente, como dotados de dons excepcionais para
curar enfermidades de toda a natureza.
Lobos há-os de todas as castas: malhados, fulvos e pretos. Da espécie de que
tratamos agora, existem, desde os exploradores e charlatães ignorantes, que
exercem as suas traças entre os incautos ignaros (i), até aos de alto coturno (i), que frequentam rodas
literárias, portadores de títulos e credenciais, impando (i) de vaidade, pretensos sábios.
Tanto estes, porém, como aqueles, se dão a conhecer pelos frutos, como
sabiamente diz o Evangelho. Seguindo as pegadas desses lobos,
verificamos desde logo que os seus frutos são maus. Os de baixa estirpe, em
geral, contentam-se com ilaquear a boa fé
dos incautos, colhendo em seguida os proventos que miram. Os
de alta categoria visam a alvo mais elevado, pelo menos mais distante. Querem
satisfazer as suas pretensões vaidosas e os seus apetites,
como os primeiros, porém, com certo jeito e maestria, a fim de se não
comprometerem. Para atingirem os fins, não trepidam em lançar, aqui, a cizânia; ali, a intriga; acolá, a confusão e a
dúvida. Insultam, agridem, perseguem mesmo os que se não curvam às suas
pretensões e duvidam da sua autoridade.
Tais são os frutos que produzem. Querem dirigir o rebanho à
viva força; querem posto de comando; querem o bastão. Com tal propósito,
faremos todas as agremiações organizadas, todos os redis onde haja ovelhas a tosquiar. Não
logrando os seus intentos saem murmurando e vociferando contra
os núcleos onde não conseguiram pontificar. A passagem dessa alcateia deixa
sempre vestígios. São víboras que empeçonham o ambiente, quando não podem
inocular o veneno mortífero.
O cunho característico desses lobos é serem todos eles inimigos da cruz
do Cristo,
como dizia, com justeza, o Apóstolos dos gentios. Falam no Cristo, porém
num Cristo forjado pelos seus caprichos e veleidades, que nada tem de comum com
aquele Cristo que anuncia a cruz, que põe em realce a cruz e que,
sobretudo, manda viver como ele viveu, nos termos e no
espírito da cruz, como símbolo do dever, da humildade, da renúncia e do
sacrifício.
Os falsos profetas — grandes ou pequenos, ignaros (i) ou eruditos, plebeus ou magnatas
são, invariavelmente, epicuristas, devotos
de Baco, adoradores de Príapo; uns, mais ou menos abertamente,
outros, de modo hipócrita e velado, deixando, todavia, transparecer o que lhes
vai no íntimo.
Guardai-vos, portanto, ó crentes de todas as igrejas, dos lobos vorazes.
Lembrai-vos de que eles estão no meio de vós, agindo ao vosso lado; não vêm de fora, estão
no interior de cada aprisco. Pelos frutos os conhecereis.
O Médico das almas ~
“De caminho para Jerusalém, passava Jesus pela divisa entre a Samaria e
a Galileia. Ao entrar numa aldeia, saíram-lhe ao
encontro dez leprosos, que ficaram ao longe e levantaram a voz, dizendo: Jesus,
Mestre, tem compaixão de nós! Jesus, logo que os viu, disse-lhes: Ide e,
mostrai-vos aos sacerdotes. E no caminho ficaram curados. Um deles, vendo-se
curado, voltou para trás, dando glória a Deus em voz alta, e
prostrou-se aos pés de Jesus, agradecendo-lhe; e este era
samaritano. Perguntou Jesus: Não ficaram curados os dez? onde estão os outros
nove? Não se encontrou quem voltasse para dar glória a Deus, sendo este
estrangeiro? E disse ao homem: Levanta-te e vai; a tua fé te salvou.”
(Lucas (i), 17:11 a 19.)
Porque disse Jesus ao
samaritano: a tua fé te salvou? Porque a fé nesse crente, em tudo dissemelhante
da dos Judeus, era despida de fanatismo, não se restringia aos moldes estreitos
daquela fé convencional da escolástica religiosa.
A fé daquele samaritano era livre, isenta de peias dogmáticas, escoimada de todos os prejuízos sectários
inerentes aos credos exclusivistas. Daí porque ele logrou sentir os eflúvios
celestes banhando o seu Espírito e despertando-lhe no coração os bons
sentimentos, dentre os quais se distingue, como dos mais belos padrões de
nobreza, a gratidão.
Jesus sarara os dez leprosos; mas, o
prodígio só impressionou profundamente o samaritano, porque só ele recebeu o
influxo do céu, graças às condições do seu coração liberto do
fanatismo que obceca a mente e embota as cordas do sentimento. Por isso,
enquanto os nove Judeus prosseguiram maquinalmente em demanda dos sacerdotes
para cumprirem o preceito ritualístico de sua religião, o samaritano retrocedeu
em busca do seu benfeitor, a cujos pés se prostrou, num gesto sublime de
humildade e de profundo reconhecimento.
A sua alma possuía apreciável capacidade de sentir. O
benefício recebido encontrou eco no seu coração susceptível de apreciar o bem e
capaz de experimentar as emoções suaves e doces que o bem gera e acoroçoa.
Concluímos do exposto que o maior benefício que recebemos, através duma
graça que nos é concedida, não está propriamente no objecto alcançado, mas reconhecimento que o facto pode
despertar. A gratidão é o elo indissolúvel que une o beneficiado ao benfeitor.
Assim, pois, quando o pecador tem capacidade moral para sentir o benefício que lhe é
outorgado, fica por isso mesmo em comunhão com o céu: e nisso consiste o
sumo bem conquistado.
Jesus curava o corpo, visando a redimir o
Espírito. Daí o seu contentamento, verificando que, ao menos num, dentre os dez
leprosos beneficiados, havia atingido o alvo visado na sua missão.
É bom que todos os doentes do corpo saibam disto, a fim de se não iludirem
buscando a saúde da matéria e relegando a do Espírito. São as
enfermidades deste que o médico das almas, de preferência, veio
curar.
A dracma perdida ~
“Qual é a mulher que, tendo dez dracmas e perdendo
uma, não acende a candeia, não varre a casa e não a procura diligentemente até
a encontrar?
“Quando a tiver achado, reúne as amigas e vizinhas, dizendo: "Regozijai-vos comigo,
porque encontrei a dracma que havia perdido.
“Assim, vos digo, há grande júbilo entre os anjos de Deus por um
pecador que se arrepende.”
(Lucas (i), 15:8 a 10)
A parábola acima faz parte da tríade parabólica onde figura, a seu lado, a do
Filho Pródigo e a da Ovelha Tresmalhada. Todas encerram o mesmo ensinamento,
revelam o mesmo axioma incontestado,
que o Espiritismo (i) vem
rememorar: a unidade do destino. Essas parábolas nos fazem vislumbrar esta
verdade, da mais elevada importância:
a justiça de Deus é misericórdia e a sua misericórdia é justiça.
Ao homem é difícil apreender perfeitamente este asserto, dado o conceito
erróneo que neste mundo se faz de justiça e de misericórdia. Tais predicados,
para a maioria, são entre si incompatíveis; quando um deles actua, o outro
permanece inerte. De facto, é assim que os homens procedem, quando supõem
fazer justiça, ou usar
de misericórdia.
Em Deus, justiça e misericórdia se identificam, concomitantemente, ao
mesmo tempo, sem nenhuma incompatibilidade, embebendo-se uma na outra. Para
firmar esta asserção no nosso espírito, basta considerarmos que não pode haver conflito entre as virtudes. Todas
as virtudes são modalidades duma só virtude, que é o amor. Elas se completam nos seus aspectos
multiformes. A divergência — e essa divergência irredutível — verifica-se entre
as virtudes e o vício, o bem e o mal, a luz e as trevas.
A unidade do destino resulta da unidade entre a justiça e a misericórdia divinas.
O justo foi pecador, o pecador será justo. Daí porque há grande júbilo entre
os anjos (justos) por um pecador que se arrepende.
Dito isto sobre a ideia central da parábola vertente, analisemo-la através dos
pormenores de sua urdidura. Já dissemos
que Jesus formulou três parábolas,
colimando (i) o mesmo objectivo.
Todavia, estudando-as separadamente, vamos descobrir ensinos diversos que, a
par da ideia central, comum nesta trilogia, aparecem como acessórios muito
preciosos.
A personagem em destaque neste apólogo é a mulher, dona de casa. Ela
perde uma dracma das dez que tinha nas mãos. Incomoda-se, aflige-se seriamente
com o sucedido, procurando sanar o mal de que se reconhece culpada. Rebusca
diligentemente os escaninhos, remove os trastes que guarnecem o aposento, até
que encontra a moeda desaparecida. Rejubila com o resultado de suas pesquisas
e, dando expansão à sua grande alegria, comunica o facto às vizinhas para que
participem do seu justo contentamento.
Ora, porque usou Jesus dessa
semelhança? Porque comparou o zelo divino na salvação das almas com o zelo da
mulher na função de economia do lar? Naturalmente porque é essa a missão da mulher no seio da sociedade. Da
maneira como desempenha esse papel depende a tranquilidade e o bem-estar da
família. Mais ainda: resulta do seu zelo no cumprimento dos deveres domésticos
a estabilidade (i) e a
segurança (i) social.
Saber gastar é tão importante como saber ganhar. Se são necessários
certos requisitos e predicados para ganhar, outros, não menos importantes, são
precisos para aplicar o que foi ganho. O desequilíbrio das finanças domésticas,
fonte de desventuras e até do esfacelamento de muitos lares, tem origem, muitas
vezes, no descaso (i) ou na má
aplicação dada pela mulher às receitas de que pode dispor.
Qual a mulher, pergunta Jesus, que, tendo dez
dracmas e perdendo uma, não faz tudo o que pode para encontrá-la? Essa
interpelação dá lugar a se considerar como anormal a mulher que não denota
naturalmente aquele ardor e aquele zelo no desempenho de sua missão enquanto
sustentáculo do equilíbrio financeiro do lar.
Exemplifiquem-se, portanto, neste ensinamento as mulheres e também os homens. A
mulher, no sentido de se desobrigar com o devido escrúpulo e critério do
elevado cargo que lhe compete na ordem social. O homem, no que respeita à
consideração e ao merecimento em que deve ter o trabalho da mulher, trabalho
esse tão, ou, quiçá, mais meritório que o seu, do qual tanto ele se ufana (i) e tanto se orgulha.
/…
“Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua
doce e encantadora magia, dedico esta obra.”
Pedro de Camargo “Vinícius”
Pedro de Camargo “Vinícius” (i), Em torno do Mestre, 1ª
Parte / Seixos e Gravetos; Lobos vorazes / O Médico das almas /
A dracma perdida, 12º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria,
óleo sobre tela (1654-1655), pintura de Johannes Vermeer)
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