Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...
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quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Léon Denis e o Cristianismo ~


Autenticidade dos Evangelhos ~

  Nos tempos afastados, muito antes da vinda de Jesus, a palavra dos profetas, qual raio velado da verdade, preparava os homens para os ensinos mais profundos do Evangelho.

  Mas, já desvirtuado pela Versão dos Setenta (i), o Antigo Testamento não reflectia, nos últimos séculos antes do Cristo, mais que uma intuição das verdades superiores (2).

  “As eternas verdades, que são os pensamentos de Deus – diz eminente individualidade do espaço – foram comunicadas ao mundo em todas as épocas, levadas a todos os lugares, postas ao alcance das inteligências, com paternal bondade. O homem, porém, as tem ignorado muitas vezes. Desdenhoso dos princípios ensinados, arrastado pelas suas paixões, em todos os tempos passou ele ao pé de grandes coisas sem as ver. Essa negligência do moral belo, causa de decadência e corrupção, impeliria as nações à própria perda, se o guante (i) da adversidade e as grandes comoções da História, abalando profundamente as almas, não as reconduzissem a essas verdades.”

  Veio, Jesus de Nazaré (i), espírito poderoso, divino missionário, médium (i) inspirado. Veio, encarnando-se (i) entre os humildes, a fim de dar a todos o exemplo de uma vida simples e, entretanto, cheia de grandeza – vida de abnegação e sacrifício, que devia deixar na Terra indeléveis traços.

  A grande figura de Jesus ultrapassa todas as concepções do pensamento. Eis por que não pode ter sido criada pela imaginação. Nessa alma, de uma serenidade celeste, não se nota mácula nenhuma, nenhuma sombra. Todas as perfeições nela se fundem, com uma harmonia tão perfeita que se nos afigura o ideal realizado.

  A sua doutrina, toda ela de luz e amor, dirige-se sobretudo aos humildes e aos pobres, a essas mulheres, a esses homens do povo curvados sobre a terra, a essas inteligências esmagadas ao peso da matéria e que aguardam, na provação e no sofrimento, a palavra de vida que as deve reanimar e consolar.

  E essa palavra é-lhes prodigalizada com tão penetrante doçura, exprime uma fé tão comunicativa, que lhes dissipa todas as dúvidas e os arrasta a seguir as pegadas do Cristo.

  O que Jesus chamava pregar aos simples “o evangelho do reino dos céus”, era pôr ao alcance de todos o conhecimento da imortalidade e do Pai comum, do Pai cuja voz se faz ouvir na serenidade da consciência e na paz do coração.

  Pouco a pouco essa doutrina, transmitida verbalmente nos primeiros tempos do Cristianismo, se altera e complica sob a influência das correntes opostas, que agitam a sociedade cristã.

  Os apóstolos, escolhidos por Jesus para lhe continuarem a missão, muito bem o tinham sabido compreender; haviam recebido o impulso da sua vontade e da sua fé. Mas os seus conhecimentos eram restritos e eles não puderam senão conservar piedosamente, pela memória do coração, as tradições, os pensamentos morais e o desejo de regeneração que lhes havia ele depositado no íntimo.

  Na sua jornada pelo mundo os apóstolos se limitam, pois, a formar, de cidade em cidade, grupos de cristãos, aos quais revelam os princípios essenciais; depois, vão intrepidamente levar a “boa nova” a outras regiões.

  Os Evangelhos, escritos no meio das convulsões que assinalam a agonia do mundo judaico (i), depois sob a influência das discussões que caracterizam os primeiros tempos do Cristianismo, ressentem-se das paixões, dos preconceitos da época e da perturbação dos espíritos. Cada grupo de fiéis, cada comunidade, tem os seus evangelhos, que diferem mais ou menos dos outros (3). Grandes querelas dogmáticas agitam o mundo cristão e provocam sanguinolentas perturbações no Império, até que Teodósio, conferindo a supremacia ao papado, impõe a opinião do bispo de Roma à cristandade. A partir daí, o pensamento, criador demasiado fecundo de sistemas diferentes, há de ser reprimido.

  A fim de pôr termo a essas divergências de opinião, no próprio momento em que vários concílios acabam de discutir acerca da natureza de Jesus, uns admitindo, outros rejeitando a sua divindade, o papa Damaso confia a São Jerónimo, em 384, a missão de redigir uma tradução latina do Antigo e do Novo Testamento. Essa tradução deverá ser, daí por diante, a única reputada ortodoxa e tornar-se-á a norma das doutrinas da Igreja: foi o que se denominou a “Vulgata”.

  Esse trabalho oferecia enormes dificuldades. São Jerónimo encontrava-se, como ele próprio o disse, na presença de tantos exemplares quantas cópias. Essa variedade infinita dos textos obrigava-o a uma escolha e a retoques profundos. É o que, assustado com as responsabilidades incorridas, ele expõe nos prefácios da sua obra, prefácios reunidos num livro célebre. Eis aqui, a exemplo, o que ele dirigiu ao papa Damaso, encabeçando a sua tradução latina dos Evangelhos:

  “De velha obra me obrigais a fazer obra nova. Quereis que, de alguma sorte, me coloque como árbitro entre os exemplares das Escrituras que estão dispersos por todo o mundo e, como diferem entre si, que eu distinga os que estão de acordo com o verdadeiro texto grego. É um piedoso trabalho, mas é também um perigoso arrojo, da parte de quem deve ser por todos julgado, julgar ele mesmo os outros, querer mudar a língua de um velho e conduzir à infância o mundo já envelhecido.

  “De facto, qual o sábio e mesmo o ignorante que, a partir do momento que tiver nas mãos um exemplar (novo), depois de o haver percorrido apenas uma vez, vendo que se encontra em desacordo com o que está habituado a ler, não se ponha imediatamente a exclamar que eu sou um sacrílego, um falsário, porque terei tido a audácia de acrescentar, substituir, corrigir alguma coisa nos antigos livros? Meclamitans esse sacrilegum qui audeam aliquid in veteribus libris addere, mutare, corrigere(4)

  “Um duplo motivo me consola desta acusação. O primeiro é que vós, que sois o soberano pontífice, me ordenais que o faça; o segundo é que a verdade não poderia existir em coisas que divergem, mesmo quando tivessem elas por si a aprovação dos maus.”

  São Jerónimo termina assim:

  “Este curto prefácio tão-somente se aplica aos quatro Evangelhos, cuja ordem é a seguinte: Mateus, Marcos, Lucas e João. Depois de haver comparado certo número de exemplares gregos, mas dos antigos, que se não afastam muito da versão itálica, combinamo-los de tal modo (ita calamo temperavimus) que, corrigindo unicamente o que nos parecia alterar o sentido, conservamos o resto tal qual estava.” (Obras de São Jerónimo, edição dos Beneditinos, 1693, t. I, col. 1425.)

  Assim, é conforme uma primeira tradução do hebraico (i) para o grego, por cópias com os nomes de Marcos e Mateus; é, num ponto de vista mais geral, conforme numerosos textos, cada um dos quais difere dos outros (tot sunt enim exemplaria quot codices) que se constitui a Vulgata, tradução corrigida, aumentada, modificada, como o confessa o autor, de antigos manuscritos.

  Essa tradução oficial, que devia ser definitiva segundo o pensamento de quem ordenara a sua execução, foi, entretanto, retocada em diferentes épocas, por ordem dos pontífices romanos. O que havia parecido bom, do ano 386 ao de 1586, o que fora aprovado em 1546 pelo concílio ecuménico de Trento (i), foi declarado insuficiente e erróneo por Sixto V, em 1590. Fez-se nova revisão por sua ordem; mas a própria edição que daí resultou e, que trazia o seu nome, foi modificada por Clemente VIII numa nova edição, que é a que hoje está em vigor e pela qual têm sido feitas as traduções francesas dos livros canónicos, submetidos a tantas rectificações através dos séculos.

  Entretanto, a despeito de todas estas vicissitudes, não hesitamos em admitir a autenticidade dos Evangelhos nos seus textos primitivosA palavra do Cristo aí se ostenta poderosa; toda a dúvida se desvanece à fulguração da sua personalidade sublime. Sob o sentido adulterado, ou oculto, sente-se palpitar a força da ideia primitiva. Aí se revela a mão do grande semeador. Na profundeza desses ensinos, unidos à beleza moral e ao amor, sente-se a obra de um enviado celeste.

  Ao lado, porém, dessa potente destraa frágil mão do homem se introduziu nessas páginas, nelas enxertando débeis concepções, muito mal ligadas aos primeiros pensamentos e que, a par dos arroubos da alma, provocam a incredulidade.

  Se os Evangelhos são aceitáveis em muitos pontos, é, todavia, necessário submeter o seu conjunto à inspecção do raciocínio. Todas as palavras, todos os factos que neles estão consignados não poderiam ser atribuídos ao Cristo.

  Através dos tempos que separam a morte de Jesus da redacção definitiva dos Evangelhos, muitos pensamentos sublimes foram esquecidos, muitos factos contestáveis aceites como reais, muitos preceitos, mal interpretados, desnaturaram o ensino primitivo. Para servir às conveniências de uma causa, foram decotados os mais belos, os mais opulentos ramos dessa árvore de vida. Sufocaram, antes do seu desabrochar, os fortalecedores princípios que teriam conduzido os povos à verdadeira crença, à que eles hoje em dia ainda visam.

  O pensamento do Cristo subsiste no ensino da Igreja e nos textos sagrados, mesclado, porém, de vários elementos, de opiniões ulteriores, introduzidos pelos papas e concílios, cujo intuito era assegurar, fortalecer, tornar inabalável a autoridade da Igreja. Tal foi o objectivo colimado através dos séculos, o pensamento que inspirou todos os retoques feitos nos documentos primitivos. A despeito de tudo o que na Igreja resta de espírito evangélico, verdadeiramente cristão, foi o suficiente para produzir admiráveis obras, obras de caridade que fizeram a glória das igrejas cristãs e que protestam contra o facto de se encontrarem associadas a tantos empreendimentos ambiciosos, inspirados no apego ao domínio e aos bens materiais.

  Seria preciso um grande trabalho para destacar o verdadeiro pensamento do Cristo do conjunto dos Evangelhos, tarefa possível, ainda que árdua para os inspirados, guiados por direcção segura, mas um labor impossível para os que só pelas suas próprias faculdades se dirigem nesse Labirinto em que com as realidades se misturam as ficções, com o sagrado o profano, com a verdade o erro.

  Em todos os séculos, impelidos por uma força superior, certos homens se aplicaram a essa tarefa, procurando desembaraçar o supremo pensamento das sombras em torno dele acumuladas.

  Amparados, esclarecidos por essa centelha divina que para os homens apenas brilha de um modo intermitente, mas cujo foco nunca se extingue, eles afrontaram todas as acusações, todos os suplícios, para afirmar o que acreditavam ser a verdade. Tais foram os apóstolos da Reforma.

  Na sua tarefa, eles foram interrompidos pela morte; mas do seio do espaço ainda sustentam e inspiram os que se batem por essa grande causa. Graças aos seus esforços, a noite que pesa sobre as almas começa a dissipar-se; raiou a aurora de uma revelação muito mais vasta.

  É com o auxílio dos esclarecimentos trazidos por essa nova revelação, científica e, ao mesmo tempo, filosófica, já espalhada em todo o mundo sob o nome de Espiritismo, ou moderno Espiritualismo, que procuraremos livrar a doutrina de Jesus das obscuridades em que o trabalho dos séculos a envolveu. Chegaremos, assim, à conclusão de que esta doutrina é simplesmente a volta ao Cristianismo primitivo, sob formas mais precisas, com um imponente cortejo de provas experimentais, que tornará impossível todo o monopólio, toda a reincidência nas causas que desnaturaram o pensamento de Jesus.

/…
(2) Ver nota complementar nº 1. ( link para aceder à nota), no fim do volume.
(3) Ver nota complementar n° 3. ( link para aceder...)
(4) A obra de S. Jerónimo foi, efectivamente, mesmo na sua vida, objecto das mais vivas críticas; polémicas injuriosas se travaram entre ele e os seus detractores.


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Autenticidade dos Evangelhos, 3º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

terça-feira, 12 de julho de 2022

Léon Denis e o Cristianismo ~


Origem dos Evangelhos ~
 

  Há cerca de um século, consideráveis trabalhos empreendidos nos diversos países cristãos, por homens de elevada posição nas igrejas e nas universidades, permitiram reconstituir as verdadeiras origens e as fases sucessivas da tradição evangélica. 

  Foi, sobretudo, nos centros de religião protestante que se elaboraram esses trabalhos, notabilíssimos pela sua erudição e o seu carácter minucioso e, que tão vivas claridades projectaram sobre os primeiros tempos do Cristianismo, sobre o fundo, a forma, o alcance social das doutrinas do Evangelho. 

  São os resultados desses trabalhos que exporemos resumidamente aqui, sob uma forma que nos esforçaremos por tornar mais simples que a dos exegetas protestantes. 

  O Cristo nada escreveu. As suas palavras, disseminadas ao longo dos caminhos, foram transmitidas de boca em boca e, posteriormente, transcritas em diferentes épocas, muito tempo depois da sua morte. Uma tradição religiosa popular que se formou, pouco a pouco, tradição que sofreu constante evolução até ao século IV. 

  Durante esse período de trezentos anos, a tradição cristã nunca permaneceu estacionária, nem a si mesmo semelhante. Afastando-se do seu ponto de partida, através dos tempos e lugares, ela se enriqueceu e diversificou. Efectuou-se um poderoso trabalho de imaginação e; acompanhando as formas que revestiram as diversas narrativas evangélicas, segundo a sua origem, hebraica ou grega, foi possível determinar, com segurança, a ordem em que essa tradição se desenvolveu e, fixar a data e o valor dos documentos que a representam. 

  Durante perto de meio século depois da morte de Jesus, a tradição cristã, oral e viva, é qual água corrente em que qualquer um se pode saciar. A sua divulgação fez-se por meio da prédica, pelo ensino dos apóstolos, homens simples, iletrados (ii), mas iluminados pelo pensamento do Mestre. 

  Não é senão do ano 60 ao 80 que aparecem as primeiras narrações escritas, a de Marcos a princípio, que é a mais antiga, depois as primeiras narrativas atribuídas a Mateus e Lucas, todas, escritos fragmentários e que se vão acrescentar de sucessivas adições, como todas as obras populares (iii)

  Foi somente no fim do século I, de 80 a 98, que surgiu o evangelho de Lucas, assim como o de Mateus, o primitivo, actualmente perdido; finalmente, de 98 a 110, apareceu, em Éfeso (i), o evangelho de João

  Ao lado desses evangelhos, únicos depois reconhecidos pela Igreja, grande número de outros vinham à luz. Desses, são conhecidos actualmente uns vinte; mas, no século III, Orígenes citava-os em maior número. Lucas faz alusão a isso no primeiro versículo da obra que traz o seu nome. 

  Por que razão foram esses numerosos documentos declarados apócrifos e rejeitados? Muito provavelmente porque se haviam constituído num embaraço aos que, nos séculos II e III, imprimiram ao Cristianismo uma direcção que o devia afastar, cada vez mais, das suas formas primitivas e, depois de haver repelido mil sistemas religiosos, qualificados de heresias, devia ter como resultado a criação de três grandes religiões, nas quais o pensamento do Cristo jaz oculto, sepultado sob os dogmas e práticas devocionistas como em um túmulo (iv)

  Os primeiros apóstolos limitavam-se a ensinar a paternidade de Deus e a fraternidade humana. Demonstravam a necessidade da penitência, isto é, da reparação das nossas faltas. Essa purificação era simbolizada no baptismo, prática adoptada pelos essénios, dos quais os apóstolos assimilavam ainda a crença na imortalidade e na ressurreição, isto é, na volta da alma à vida espiritual, à vida do espaço. 

  Daí a moral e o ensino que atraíam numerosos prosélitos em torno dos discípulos do Cristo, porque nada continham que se não pudesse aliar a certas doutrinas pregadas no Templo e nas sinagogas. 

  Com Paulo e, depois dele, novas correntes se formam e surgem doutrinas confusas no seio das comunidades cristãs. Sucessivamente, a predestinação e a graça, a divindade do Cristo, a queda e a redenção, a crença em Satanás e no inferno, serão lançados nos espíritos e virão alterar a pureza e a simplicidade ao ensinamento do filho de Maria. 

  Esse estado de coisas vai continuar e agravar-se, ao mesmo tempo em que convulsões políticas e sociais hão de agitar a infância do mundo cristão. 

  Os primeiros Evangelhos transportam-nos à época perturbada em que a Judéia (i), sublevada contra os romanos, assiste à ruína de Jerusalém e à dispersão do povo judeu (ano 70). Foi no meio do sangue e das lágrimas que eles foram escritos e, as esperanças que traduzem parecem irromper de um abismo de dores, enquanto nas almas contristadas desperta o ideal novo; a aspiração de um mundo melhor, denominado “reino dos céus”, em que serão reparadas todas as injustiças do presente. 

  Nessa época, já todos os apóstolos haviam morrido, com excepção de João e Filipe; o vínculo que unia os cristãos era muito fraco ainda. Formavam grupos isolados, entre si e, que tomavam o nome de igrejas (ecclesia, assembleia), cada qual dirigido por um bispo ou vigilante escolhido electivamente. 

  Cada igreja estava entregue às próprias inspirações; apenas tinha para se dirigir uma tradição incerta, fixada em alguns manuscritos, que resumiam mais ou menos fielmente os actos e as palavras de Jesus e que cada bispo interpretava a seu talante. 

  Acrescentemos a estas tão grandes dificuldades as que provinham da fragilidade dos pergaminhos, numa época em que a imprensa era desconhecida; a falta de inteligência de certos copistas, todos os males que podem fazer nascer a ausência de direcção e de crítica e, facilmente compreenderemos que a unidade de crença e de doutrina não tenha podido manter-se em tempos assim tormentosos. 

  Os três Evangelhos sinópticos (v) encontram-se fortemente impregnados do pensamento judeu-cristão, dos apóstolos, mas já o evangelho de João se inspira em influência diferente. Nele se encontra um reflexo da filosofia grega, rejuvenescida pelas doutrinas da Escola de Alexandria (i)

  Nos fins do século I, os discípulos dos grandes filósofos gregos tinham aberto escolas em todas as cidades importantes do Oriente. Os cristãos estavam em contacto com eles e frequentes discussões se travavam entre os partidários das diversas doutrinas. Os cristãos, arrebanhados nas classes inferiores da população, pouco letrados na sua maior parte, estavam mal preparados para essas lutas do pensamento. Por outro lado, os teóricos gregos sentiram-se impressionados pela grandeza e elevação moral do Cristianismo. Daí uma aproximação, uma penetração das doutrinas, que se produziu em certos pontos. O Cristianismo nascente sofria, pouco a pouco, as influências gregas, que o levava a fazer do Cristo, o verbo, o Logos (i) de Platão

/… 
(ii) Exceptuado Paulo, versado nas letras. 
(iii) Sabatier, director da secção dos Estudos superiores, na Sorbonne, "Os Evangelhos Canónicos", pág. 5. A Igreja sentiu a dificuldade em encontrar novamente os verdadeiros autores dos Evangelhos. Daí a fórmula por ela adoptada: vanfelho segundo... 
(iv) Ver notas complementares nºs 23 e 4 (← links para aceder às notas), no fim do volume. 
(v) São assim designados os de Marcos, Lucas e Mateus. 


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Origem dos Evangelhos, 2º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

sexta-feira, 11 de março de 2022

Léon Denis e o Cristianismo ~


Prefácio ~ 
(à edição original francesa, de 1910, em Paris; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques) 

  Dez anos sucederam a publicação desta obra. A História desdobrou a sua trama e consideráveis acontecimentos se realizaram no nosso país. A Concordata foi denunciada. O Estado cortou o laço que o prendia à Igreja Romana. Ressalvados alguns pontos, foi com uma espécie de indiferença que a opinião pública recebeu as medidas de rigor tomadas pelo poder civil contra as instituições católicas. 

  De que procede esse estado de espírito, essa desafeição não apenas local, mas quase generalizada, dos franceses pela Igreja? – De não ter esta, realizado esperança alguma, das que havia suscitado. Nem soube compreender, nem desempenhar o seu papel e os deveres de guia e educadora de almas, que assumira. 

  Há um século, vinha a Igreja Católica atravessando uma das mais formidáveis crises que regista a sua história. Na França, a Separação veio acentuar esse estado de coisas e agravá-lo mais ainda. 

  Repudiada pela sociedade moderna, abandonada pelo escol intelectual do mundo, em perpétuo conflito com o novo direito, que jamais aceitou; em contradição, portanto, quase em todos os pontos essenciais, com as leis civis de todos os países, repelida e detestada pelo povo e, principalmente, pelo operariado, já não resta à Igreja mais que um punhado de adeptos entre as mulheres, os velhos e as crianças. O futuro cessou de lhe pertencer, pois que a educação da mocidade acaba de lhe ser arrebatada, não sem alguma violência, pelas recentes leis da República francesa. 

  Aí está, no limiar do século XX, o balanço actual da Igreja romana. Desejaríamos, num estudo imparcial, só mesmo a respeito, investigar as causas profundas desse eclipse do poder eclesiástico, eclipse parcial ainda, mas que, no futuro não remoto, ameaça converter-se em total e definitivo. 

  A Igreja é actualmente impopular. Ora, nós vivemos uma época em que a popularidade, a sagração dos novos tempos, é indispensável à durabilidade das instituições. Quem lhe não possuir o cunho, arrisca-se a perecer em pouco tempo no insulamento (i) e no esquecimento. 

  Como chegou a Igreja Católica a este ponto? – Pela excessiva negligência que a causa do povo mereceu de sua parte. A Igreja só foi verdadeiramente popular e democrática nas suas origens, durante os tempos apostólicos, períodos de perseguição e de martírio; e é o que então justificava a sua capacidade de proselitismo, a rapidez de suas conquistas, o seu poder de persuasão e de irradiação. No dia em que foi oficialmente reconhecida pelo Império, a partir da conversão de Constantino, tornou-se a amiga dos Césares, a aliada e, algumas vezes, a cúmplice dos grandes e dos poderosos. Entrou na era infecunda das argúcias teológicas, das querelas bizantinas e, desse momento em diante, tomou sempre, ou quase sempre, o partido do mais forte. Feudal na Idade Média, essencialmente aristocrática no reinado de Luís XIV, só fez à Revolução tardias e forçadas concessões. 

  Todas as emancipações intelectuais e sociais se efectuaram contra a sua vontade. Era lógico, fatal, que se voltassem contra ela: é o que na hora actual se verifica. 

  Adstrita, na França, por muito tempo à Concordata, incessantemente se manteve em conflito sistemático e latente com o Estado. Essa união forçada, que durava de há um século para cá, devia necessariamente terminar pelo divórcio. A lei da Separação acaba de o pronunciar. O primeiro uso que de sua liberdade, ostensivamente reconquistada, fez a Igreja foi lançar-se nos braços dos partidos reaccionários, com esse gesto, provando que nada, há um século, aprendeu nem esqueceu. 

  Empenhando solidariedade com os partidos políticos que já fizeram o seu tempo, a Igreja Católica, sobretudo a da França, por isso mesmo se condena a morrer no mesmo dia, do mesmo género de morte deles: a impopularidade. Um papa genial, Leão XIII, tentou por momentos desligá-la de todos os compromissos directos ou indirectos com os elementos reaccionários; mas não foi ouvido nem obedecido. 

  O novo pontífice, Pio X, reatando a tradição de Pio IX, seu antecessor, nada julgou melhor fazer que aplicar as doutrinas do Sílabo e da infalibilidade. Sob a vaga denominação de modernismo, acaba ele de anatematizar a sociedade moderna e combater qualquer tentativa de reconciliação, ou de conciliação com ela. A guerra religiosa ameaça atear-se nos quatro cantos do país. O prestígio de grandeza que, o poder do génio diplomático, Leão XIII havia assegurado à Igreja, desvaneceu-se em poucos anos. O catolicismo, restringido ao domínio da consciência privada e individual, nunca mais desfrutará a vida oficial e pública. 

  Qual é – uma vez mais o inquiriremos – a causa profunda desse enfraquecimento da instituição mais poderosa do mundo? Em nossa opinião, há unicamente uma causa profunda capaz de explicar esse fenómeno. Acreditarão os políticos, os filósofos e os sábios encontrá-la nas circunstâncias exteriores, em razões de ordem sociológica. Por nossa parte, iremos procurá-la no próprio coração da Igreja. De um mal orgânico é que ela deperece, atingida como nela se encontra; a sede vital. 

  A vida da Igreja era animada pelo espírito de Jesus. O sopro do Cristo, esse divino sopro de fé, caridade e fraternidade universal era, de facto, o motor desse vasto organismo, a peça motriz de suas funções vitais. Ora, há muito tempo o espírito de Jesus parece ter abandonado a Igreja. Já não é a chama do Pentecostes que irradia nela e em torno dela; essa generosa labareda se extinguiu e nenhum Cristo há que a reacenda. 

  Grande e bela, entretanto, senão benéfica, foi outrora a Igreja da França, asilo dos espíritos mais elevados, das mais nobres inteligências. Nos tempos bárbaros, era ao mesmo tempo a ciência e a filosofia, a arte e a beleza, a oração e a fé. Os grandes mosteiros, as abadias célebres, tornaram-se o refúgio do pensamento. Ali se conservaram os tesouros intelectuais, as relíquias do génio antigo. No século XIII ela inspirou uma bela parte do que o espírito humano produziu de mais brilhante. Subjugava todos aqueles indivíduos rudes, aqueles bárbaros mal polidos e, com um gesto os prosternava na atitude da oração. 

  E agora já não vive, já não brilha senão do reflexo de sua grandeza passada. Onde estão hoje, na Igreja, os pensadores e os artistas, os verdadeiros sacerdotes e os santos? Os pesquisadores de verdades divinas, os grandes místicos adoradores do belo, os sonhadores do infinito cederam lugar aos políticos combativos e negociantes. 

  A casa do Senhor se transformou em casa bancária e em tribuna. A Igreja tem um reino que é deste mundo e nada mais que deste mundo. Já não é o sonho divino o que alimenta, não mais que ambições terrestres e uma arrogante pretensão de tudo dominar e dirigir. 

  As encíclicas e os cânones substituíram o sermão da montanha e os filhos do povo, as gerações que se sucedem, apenas têm por guia um catecismo esdrúxulo, recheado de noções incompreensíveis, em que se fala de hipóstase (i), de transubstanciação (i); um catecismo incapaz de valer por socorro eficaz nos momentos angustiosos da existência. Disso procede à irreligião do maior número. O culto de uma determinada “Nossa Senhora” chegou a render até dois milhões por ano, mas não há uma única edição popular do Evangelho entre os católicos. 

  Todas as tentativas de fazer penetrar na Igreja um pouco de ar e luz e um sopro dos novos tempos têm sido sufocadas, reprimidas. LamennaisH. LoysonDidon, foram obrigados a se retratar ou abandonar o “grémio”. O abade Loisy foi expulso de sua cátedra. 

  Curvada, há séculos, ao jugo de Roma, a Igreja perdeu toda a iniciativa, toda a energia viril, toda a veleidade de independência. É tal a organização do Catolicismo que nenhuma decisão pode ser tomada, nenhum acto consumado, sem o consentimento e o sinal do poder romano. E Roma está petrificada na sua hierática atitude qual estátua do passado. 

  O cardeal Meignan, falando do Sacro Colégio, dizia um dia a um seu amigo: “Lá estão eles, os setenta anciãos, vergados ao peso, não dos anos, mas das responsabilidades, vigilantes para que nem um til seja tirado, nem um til acrescentado ao depósito sagrado.” Em tais condições a Igreja Católica já não é moralmente uma instituição viva, já não é um corpo em que circule a vida, senão um túmulo em que jaz, como amortalhado, o pensamento humano. 

  Há longos séculos, não era a Igreja mais que um poder político, admiravelmente organizado, hierarquizado; enchia a História com o fragor de suas lutas ruidosas, em companhia dos reis e imperadores, com os quais partilhava a hegemonia do mundo. Havia concebido um gigantesco plano: a cristandade, isto é, o conjunto dos povos católicos arregimentados, unidos como um exército formidável em torno do papa romano, soberano senhor e o ponto culminante da feudalidade. Era grandioso, mas puramente humano. 

  Ao Império Romano, solapado pelos bárbaros, tinha a Igreja substituído o império do Ocidente, vasta e poderosa instituição em torno da qual toda a Idade Média gravitou. Nessa confederação política e religiosa tudo desaparecia e dela unicamente duas cabeças emergiam: o papa e o imperador, “essas duas metades de Deus”. 

  Jesus não havia fundado a religião do Calvário para dominar os povos e os reis, mas para libertar as almas do jugo da matéria e pregar, pela palavra e pelo exemplo, o único dogma de redenção: o Amor. 

  Silenciemos sobre os despotismos solidários dos reis e da Igreja; esqueçamos a Inquisição e as suas vítimas e voltemos aos tempos actuais. 

  Um dos maiores erros da Igreja, no século dezanove, foi a definição do dogma da infalibilidade pessoal do pontífice romano. Semelhante dogma, imposto como artigo de fé, foi um desafio lançado à sociedade moderna e ao espírito humano. 

  Proclamar, no século vinte, em face de uma geração febricitante, atormentada da ânsia de infinito, perante homens e povos que aspiram à verdade sem a poder atingir, que procuram a justiça, a liberdade, como o veado sequioso procura e aspira a água da fonte, o manancial do rio, proclamar – dizemos – num mundo assim, em adiantada gestação, que um único homem na Terra possui toda a verdade, toda a luz, toda a ciência, não será – repetimos – lançar um desafio a toda a Humanidade, a essa Humanidade condenada, na Terra, ao suplício de Tântalo (i), às dilacerações de Prometeu (i)

  Dificilmente se reabilitará dessa gravíssima falta a Igreja Católica. No dia em que divinizou um homem, tornou-se ela merecedora de encrespação, de idolatria, que Montalembert lhe dirigiu quando, ao lhe ser comunicada, no leito de morte, a definição da infalibilidade pontifícia, exclamou: “Nunca hei de adorar o ídolo do Vaticano!” Será exagerado o termo “ídolo”? – Como os Césares romanos, a quem era oferecido um culto, o papa faz questão de ser chamado pontífice e rei. Que é ele senão o sucessor dos imperadores de Roma e de Bizâncio? O seu próprio vestuário, os seus gestos e atitudes, o obsoleto cerimonial e o fausto da sua cúria, tudo recorda as pompas cesarianas dos piores dias e, foi o eloquente orador espanhol, o religioso Emilio Castelar, que exclamou um dia, vendo Pio IX carregado na seda, em forma de procissão, a caminho de S. Pedro: “Aquele não é o pescador da Galileia, é um sátrapa do Oriente!” 

  A causa íntima da decadência e impopularidade da Igreja Romana reside em ter colocado o papa no lugar de Deus. O espírito do Cristo retirou-se dela! Perdendo a virtude do Alto, que a sustentava, a Igreja caiu nas mãos da política humana. Já não é uma instituição de ordem divina; o pensamento de Jesus já não a inspira e os maravilhosos dons que o Espírito de Pentecostes lhe comunicava desapareceram. 

  Ainda mais: atacada de cegueira, como os padres da antiga Sinagoga, ao advento de Jesus, a Igreja esqueceu o sentido profundo da sua liturgia e dos seus mistérios. Os padres já não conhecem a significação oculta das coisas; perderam o segredo da iniciação. Os seus gestos se tornaram estéreis, as suas bênçãos já não abençoam, os seus anátemas já não amaldiçoam. Foram apeados até ao nível comum e o povo, compreendendo que é nulo o seu poder e ilusório o seu mistério, encaminhou-se a outras influências e foi a outros deuses que passou a incensar. 

  Na Igreja a teologia aniquilou o Evangelho, como na velha Sinagoga o Talmude havia desnaturado a Lei. E são os cultores da letra que actualmente a dirigem. Uma colectividade de fanáticos mesquinhos e violentos acabará por tirar à Igreja os últimos vestígios da sua grandeza e consumar-lhe a impopularidade. Assistiremos provavelmente à ruína progressiva dessa instituição que foi durante vinte séculos a educadora do mundo, mas que parece haver falido à sua verdadeira vocação. 

  Daí se deve concluir que o futuro religioso da Humanidade esteja comprometido irrevogavelmente e que o mundo inteiro deva soçobrar no materialismo como num oceano de lama? Longe disso. O reinado da letra acaba, o do espírito começa. A chama de Pentecostes, que abandona o candelabro de ouro da Igreja, vem acender outros archotes. A verdadeira revelação se inaugura no mundo, pela virtude do invisível. Quando em um ponto o fogo sagrado se extingue, é para se atear noutro lugar. Jamais a noite envolve completamente em trevas o mundo. Sempre no firmamento cintila alguma estrela. 

  A alma humana, mediante as suas profundas ramificações, mergulha no infinito. O homem não é um átomo isolado no imenso turbilhão vital. O seu espírito está sempre, por algum lado, em comunhão com a Causa eterna; o seu destino faz parte integrante das harmonias divinas e da vida universal. Pela força das coisas há-de o homem se aproximar de Deus. A morte das Igrejas, a decadência das religiões formalistas, não constituem sintoma de crepúsculo, mas, ao contrário, a aurora inicial de um astro que desponta. Nesta hora de perturbação em que nos encontramos, grande combate se trava entre a luz e as caligens, como sucede quando uma tempestade se forma sobre o vale; mas as culminâncias do pensamento continuam sempre imersas no azul e na serenidade. 

  Sursum corda(*) E de facto a vida eterna perante nós se descerra ilimitada e radiosa! Assim como no infinito milhares de mundos são arrebatados pelos seus sóis, rumo ao incomensurável, num giro harmonioso, ritmado qual dança antiga e nem astro nem terra alguma torna a passar nunca pelo mesmo ponto, as almas, por seu turno, arrastadas pela atracção magnética do seu invisível centro, prosseguem evolvendo no espaço, atraídas incessantemente por um Deus, de quem sempre se aproximam sem jamais o alcançar. 

  Força é reconhecer que esta doutrina é bem mais ampla que os dogmas exclusivos das Igrejas agonizantes e que, se o futuro pertence a alguém ou a alguma coisa, há de o ser indubitavelmente ao espiritualismo universal, a esse Evangelho da eternidade e do infinito! 

                                                                                                          Fevereiro, 1910. 

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(*) Este apelo foi publicado nas revistas espíritas da época, por ocasião da grande ofensiva da primeira guerra mundial. Sursum corda – frase latina, que significa “elevai os corações”, cita-se como exortação a sentimentos elevados. (N.R.) 


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Prefácio à edição francesa de Fevereiro de 1910, (1º fragmento b) desta obra. 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel