Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 12 de julho de 2022

Léon Denis e o Cristianismo ~


Origem dos Evangelhos ~
 

  Há cerca de um século, consideráveis trabalhos empreendidos nos diversos países cristãos, por homens de elevada posição nas igrejas e nas universidades, permitiram reconstituir as verdadeiras origens e as fases sucessivas da tradição evangélica. 

  Foi, sobretudo, nos centros de religião protestante que se elaboraram esses trabalhos, notabilíssimos pela sua erudição e o seu carácter minucioso e, que tão vivas claridades projectaram sobre os primeiros tempos do Cristianismo, sobre o fundo, a forma, o alcance social das doutrinas do Evangelho. 

  São os resultados desses trabalhos que exporemos resumidamente aqui, sob uma forma que nos esforçaremos por tornar mais simples que a dos exegetas protestantes. 

  O Cristo nada escreveu. As suas palavras, disseminadas ao longo dos caminhos, foram transmitidas de boca em boca e, posteriormente, transcritas em diferentes épocas, muito tempo depois da sua morte. Uma tradição religiosa popular que se formou, pouco a pouco, tradição que sofreu constante evolução até ao século IV. 

  Durante esse período de trezentos anos, a tradição cristã nunca permaneceu estacionária, nem a si mesmo semelhante. Afastando-se do seu ponto de partida, através dos tempos e lugares, ela se enriqueceu e diversificou. Efectuou-se um poderoso trabalho de imaginação e; acompanhando as formas que revestiram as diversas narrativas evangélicas, segundo a sua origem, hebraica ou grega, foi possível determinar, com segurança, a ordem em que essa tradição se desenvolveu e, fixar a data e o valor dos documentos que a representam. 

  Durante perto de meio século depois da morte de Jesus, a tradição cristã, oral e viva, é qual água corrente em que qualquer um se pode saciar. A sua divulgação fez-se por meio da prédica, pelo ensino dos apóstolos, homens simples, iletrados (ii), mas iluminados pelo pensamento do Mestre. 

  Não é senão do ano 60 ao 80 que aparecem as primeiras narrações escritas, a de Marcos a princípio, que é a mais antiga, depois as primeiras narrativas atribuídas a Mateus e Lucas, todas, escritos fragmentários e que se vão acrescentar de sucessivas adições, como todas as obras populares (iii)

  Foi somente no fim do século I, de 80 a 98, que surgiu o evangelho de Lucas, assim como o de Mateus, o primitivo, actualmente perdido; finalmente, de 98 a 110, apareceu, em Éfeso (i), o evangelho de João

  Ao lado desses evangelhos, únicos depois reconhecidos pela Igreja, grande número de outros vinham à luz. Desses, são conhecidos actualmente uns vinte; mas, no século III, Orígenes citava-os em maior número. Lucas faz alusão a isso no primeiro versículo da obra que traz o seu nome. 

  Por que razão foram esses numerosos documentos declarados apócrifos e rejeitados? Muito provavelmente porque se haviam constituído num embaraço aos que, nos séculos II e III, imprimiram ao Cristianismo uma direcção que o devia afastar, cada vez mais, das suas formas primitivas e, depois de haver repelido mil sistemas religiosos, qualificados de heresias, devia ter como resultado a criação de três grandes religiões, nas quais o pensamento do Cristo jaz oculto, sepultado sob os dogmas e práticas devocionistas como em um túmulo (iv)

  Os primeiros apóstolos limitavam-se a ensinar a paternidade de Deus e a fraternidade humana. Demonstravam a necessidade da penitência, isto é, da reparação das nossas faltas. Essa purificação era simbolizada no baptismo, prática adoptada pelos essénios, dos quais os apóstolos assimilavam ainda a crença na imortalidade e na ressurreição, isto é, na volta da alma à vida espiritual, à vida do espaço. 

  Daí a moral e o ensino que atraíam numerosos prosélitos em torno dos discípulos do Cristo, porque nada continham que se não pudesse aliar a certas doutrinas pregadas no Templo e nas sinagogas. 

  Com Paulo e, depois dele, novas correntes se formam e surgem doutrinas confusas no seio das comunidades cristãs. Sucessivamente, a predestinação e a graça, a divindade do Cristo, a queda e a redenção, a crença em Satanás e no inferno, serão lançados nos espíritos e virão alterar a pureza e a simplicidade ao ensinamento do filho de Maria. 

  Esse estado de coisas vai continuar e agravar-se, ao mesmo tempo em que convulsões políticas e sociais hão de agitar a infância do mundo cristão. 

  Os primeiros Evangelhos transportam-nos à época perturbada em que a Judéia (i), sublevada contra os romanos, assiste à ruína de Jerusalém e à dispersão do povo judeu (ano 70). Foi no meio do sangue e das lágrimas que eles foram escritos e, as esperanças que traduzem parecem irromper de um abismo de dores, enquanto nas almas contristadas desperta o ideal novo; a aspiração de um mundo melhor, denominado “reino dos céus”, em que serão reparadas todas as injustiças do presente. 

  Nessa época, já todos os apóstolos haviam morrido, com excepção de João e Filipe; o vínculo que unia os cristãos era muito fraco ainda. Formavam grupos isolados, entre si e, que tomavam o nome de igrejas (ecclesia, assembleia), cada qual dirigido por um bispo ou vigilante escolhido electivamente. 

  Cada igreja estava entregue às próprias inspirações; apenas tinha para se dirigir uma tradição incerta, fixada em alguns manuscritos, que resumiam mais ou menos fielmente os actos e as palavras de Jesus e que cada bispo interpretava a seu talante. 

  Acrescentemos a estas tão grandes dificuldades as que provinham da fragilidade dos pergaminhos, numa época em que a imprensa era desconhecida; a falta de inteligência de certos copistas, todos os males que podem fazer nascer a ausência de direcção e de crítica e, facilmente compreenderemos que a unidade de crença e de doutrina não tenha podido manter-se em tempos assim tormentosos. 

  Os três Evangelhos sinópticos (v) encontram-se fortemente impregnados do pensamento judeu-cristão, dos apóstolos, mas já o evangelho de João se inspira em influência diferente. Nele se encontra um reflexo da filosofia grega, rejuvenescida pelas doutrinas da Escola de Alexandria (i)

  Nos fins do século I, os discípulos dos grandes filósofos gregos tinham aberto escolas em todas as cidades importantes do Oriente. Os cristãos estavam em contacto com eles e frequentes discussões se travavam entre os partidários das diversas doutrinas. Os cristãos, arrebanhados nas classes inferiores da população, pouco letrados na sua maior parte, estavam mal preparados para essas lutas do pensamento. Por outro lado, os teóricos gregos sentiram-se impressionados pela grandeza e elevação moral do Cristianismo. Daí uma aproximação, uma penetração das doutrinas, que se produziu em certos pontos. O Cristianismo nascente sofria, pouco a pouco, as influências gregas, que o levava a fazer do Cristo, o verbo, o Logos (i) de Platão

/… 
(ii) Exceptuado Paulo, versado nas letras. 
(iii) Sabatier, director da secção dos Estudos superiores, na Sorbonne, "Os Evangelhos Canónicos", pág. 5. A Igreja sentiu a dificuldade em encontrar novamente os verdadeiros autores dos Evangelhos. Daí a fórmula por ela adoptada: vanfelho segundo... 
(iv) Ver notas complementares nºs 23 e 4 (← links para aceder às notas), no fim do volume. 
(v) São assim designados os de Marcos, Lucas e Mateus. 


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Origem dos Evangelhos, 2º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

Sem comentários: