Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 29 de dezembro de 2012

Da sombra do dogma à luz da razão~


NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA

   Podemos considerar o Espiritismo uma revelação? Nesse caso, qual é a sua natureza? Sobre que se funda a sua autenticidade? A quem e de que forma foi feita? Será a doutrina espírita uma revelação no sentido teológico da palavra, isto é, será em todos os seus pontos produto de um ensinamento oculto vindo do alto? É absoluta ou é susceptível de modificações? Ao trazer aos homens a verdade já pronta, não teria a revelação como efeito impedi-los de usarem as suas faculdades, dado que lhes pouparia o trabalho da pesquisa? Qual pode ser a autoridade dos ensinamentos dos Espíritos, se não são infalíveis e superiores à humanidade? Qual é a autoridade da moral que pregam, se essa moral não é outra se não a de Cristo, que já conhecemos? Quais as verdades novas que nos trazem? Tem o homem necessidade de uma revelação e não pode encontrar em si e na sua consciência tudo o que necessita para se guiar? São estas as questões sobre que é importante fixarmo-nos.

  Definamos primeiro o sentido da palavra revelação.

  Revelar, do latim revelare, cuja raiz é velum, véu, significa literalmente sair de sob o véu e, em sentido figurado, descobrir, dar a conhecer uma coisa secreta ou desconhecida. Na sua acepção vulgar mais geral, diz-se de qualquer coisa ignorada que é posta às claras, de qualquer ideia nova que nos coloca no caminho do que não sabíamos.

  Deste ponto de vista, todas as ciências que nos dão a conhecer os mistérios da natureza são revelações e podemos dizer que, para nós, há uma revelação constante; a astronomia revelou-nos o mundo astral que não conhecíamos; a geologia, a formação da Terra; a química, a lei das afinidades; a fisiologia, as funções do organismo, etc.; Copérnico, Galileu, Newton, Laplace, Lavoisier são reveladores.

  O carácter essencial de qualquer revelação deve ser a verdade. Revelar um segredo é dar a conhecer um facto; se a coisa é falsa não é um facto e, por conseguinte, não existe revelação. Qualquer revelação desmentida pelos factos não é uma revelação; se for atribuída a Deus, não podendo Deus enganar-se nem mentir, esta não pode emanar dele; deve ser considerada como produto de uma concepção humana.

  Qual é o papel do professor perante os seus alunos, se não o de um revelador? Ensina-lhes o que não sabem, o que não teriam nem tempo nem possibilidade de descobrir por si, porque a ciência é a obra colectiva dos séculos e de uma quantidade de homens que trouxeram, cada um deles, o seu contingente de observações e de que se aproveitam os que vêm depois deles. Portanto, o ensino é, na realidade, uma revelação de certas verdades científicas ou morais, físicas ou metafísicas, feita por homens que as conhecem a outros que as ignoraram e que, sem isso, as teriam para sempre ignorado.

  Mas o professor só ensina o que aprendeu; é um revelador de segunda ordem; o homem de génio ensina o que foi ele a descobrir: é o revelador primitivo; traz o saber que, de aproximação em aproximação, se vulgariza. Onde estaria a humanidade sem a revelação dos homens de génio que surgem de tempos a tempos!

  Mas o que são homens de génio? Por que são eles homens geniais? De onde vêm eles? Que se passa com eles? Repara-se que a maior parte deles traz à nascença faculdades transcendentes e conhecimentos inatos, bastando pouco trabalho para que se desenvolvam. Fazem muito verdadeiramente parte da humanidade, uma vez que nascem, vivem e morrem como nós. Onde foram então buscar esses conhecimentos que não podem ter adquirido em vida? Diremos, como os materialistas, que o acaso lhes concedeu matéria cerebral em maior quantidade e de melhor qualidade? Nesse caso, não teriam mais mérito do que um legume maior e mais saboroso que outro.

  Diremos, como alguns espiritualistas, que Deus os dotou com uma alma mais favorecida que a do comum dos homens? Suposição igualmente ilógica, pois macularia Deus com a parcialidade. A única solução racional para este problema está na pré-existência da alma e no pluralismo das existências. O homem de génio é um Espírito que viveu mais tempo; que, por consequência, obteve mais saber e, como sabe muito mais do que os outros sem ter tido necessidade de aprender, é aquilo a que chamamos um homem de génio. Mais o que sabe não deixa de ser fruto de um trabalho anterior e não o resultado de um privilégio. Antes de renascer era portanto um Espírito evoluído; reencarna tanto para que os outros se aproveitem do que sabe, como para adquirir mais conhecimentos:

  Os homens progridem incontestavelmente por si mesmos e pelo esforço da sua inteligência; mas, entregues às suas próprias forças, este progresso é muito lento, caso não sejam ajudados por homens mais adiantados, tal como o aluno o é pelos seus professores. Todos os povos têm os seus homens de génio que vieram, em diversas épocas, dar-lhes um impulso e retirá-los da sua inércia.

   A partir do momento em que admitimos a solicitude de Deus para com as suas criaturas, por que não haveríamos de admitir que os Espíritos são capazes, graças à sua energia e superioridade dos seus conhecimentos, de fazer evoluir a humanidade; que encarnam pela vontade de Deus com o fim de ajudarem à evolução num sentido determinado; que recebem uma missão tal como um embaixador a recebe do seu soberano? É este o papel dos grandes génios. Que vêm eles fazer, se não ensinar aos homens as verdades que ignoram e que teriam continuado a ignorar ainda durante longos períodos, fornecendo-lhes um degrau para se poderem elevar mais rapidamente? Estes génios, que surgem no decorrer dos séculos como estrelas brilhantes, deixando atrás de si uma longa cauda luminosa sobre a humanidade, são missionários ou, se quisermos, Messias. As coisas novas que ensinam aos homens, quer no aspecto físico ou filosófico, são revelações.

  Se Deus concede reveladores para as verdades científicas, pode, com muito mais razão, concedê-los para as verdades morais, que constituem um dos elementos essenciais do progresso. São assim os filósofos cujas ideias atravessam os séculos.
/…

* Na senda e no espírito de Pedro A. Barboza de La Torre em seu livro, De la sombra Del dogma a la luz de la razón.


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 1 a 6, 3º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem: Diógenes, pintura de Jean-Léon Gérôme – 1860)

domingo, 23 de dezembro de 2012

Inquietações Primaveris~


A Heróica Pancada (II)

Um cidadão ilustrado, diplomado e doutorado, que aceita ao mesmo tempo os dogmas absurdos de uma igreja e os princípios racionais da Ciência, mostra desconhecer o princípio de contradição, da lógica, em que duas coisas não podem ser, ao mesmo tempo e no mesmo sentido, ambas verdadeiras. Esse cidadão, por mais honesto que seja, sofre de uma falha mental no seu raciocínio, produzida por interferência de elementos efectivos e exacerbados na sua mundividência. Toda a sua cultura, todos os seus títulos, toda a sua fama nos meios sócio-culturais não podem salvá-lo da condenação intelectual a que se destina e da ingenuidade infantil a que se entrega no plano filosófico. Ou aceitamos a verdade científica demonstrada e provada do nosso tempo, com suas perspectivas abertas para o amanhã, ou nos inscrevemos nas fileiras sem fim dos retrógrados, tentando tapar inutilmente o sol com a peneira.

O amor à verdade é intransigente, porque a verdade é uma só. Os que sustentam o refrão ignorante da verdade de cada um, simplesmente revelam não conhecer a verdade e suas exigências.

A Educação para a Morte só pode basear-se na Verdade Única, provada com exclusão total das verdades fabricadas pelos interesses humanos ou pelo comodismo dos que nada buscam e por isso nada sabem. O homem educado na Verdade não usa as máscaras da mentira convencional nem pode ser um sistemático. A paixão da verdade enjeita toda a mentira e o faz lembrar os versos de Tobias Barreto, aplicando-os ao campo incruento das batalhas pelo Futuro:

Quando se sente bater
no peito heróica pancada,
deixa-se a folha dobrada
enquanto se vai morrer

A intuição desses versos supera as exigências formais da poética para inscrevê-los na realidade viva de uma existência humana voltada para a transcendência. Quando a verdade é ferida, ou simplesmente tocada por dedos impuros, aquele que a ama em termos de razão fecha o livro de seus estudos e pesquisas para morrer por ela, se necessário. Mas, entregando o cadáver à Terra, a que ele de facto pertence, ressuscita em seu corpo espiritual e volta aos estudos subitamente interrompidos. A reencarnação lhe permitirá, até mesmo, retomar na própria Terra, em outro corpo carnal regido pelo seu mesmo corpo espiritual, os trabalhos que nela deixou. A morte não é um esqueleto, com sua caveira de olhos esburacados e um sabre sinistro nos ombros, como a figuraram desenhadores e pintores de outros tempos. Sua imagem real, liricamente cantada pelo poeta Rabindraná Taggore, é a de uma noiva espiritual, coroada de flores, que nos recebe nos portais da Eternidade para as núpcias do Infinito. Aqueles que assim a concebem não a temem nunca, nem desejam precipitar a sua chegada, pois sabem que ela é a mensageira da Sabedoria, que vem nos buscar após o labor fecundo e fiel nos campos da Terra.

“Vem, ó Morte, quando chegar a minha hora, envolver-me em tuas guirlandas floridas” – exclamava Taggore num dos seus poemas-canção, já velho e cansado, mas com seus olhos serenos reflectindo entre as inquietações humanas a luz das estrelas distantes.

Se conseguirmos encarar a morte com essa compreensão e esse lirismo puro, desprovido dos excessos mundanos, saberemos também transmitir aos outros, e especialmente aos que nos amam, a verdadeira Educação para a Morte.

A Verdade, o Amor e a Justiça formam a tríade básica dessa nova forma educacional que pode e deve salvar o mundo de sua perdição na loucura das ambições desmedidas. Essa tríade expulsará da Terra os espantalhos do Ódio, do Medo, da Violência e da Maldade, que fazem o homem retornar constantemente à animalidade primitiva. Então não pensaremos mais em fugir para a Luz e de lá, como júpiteres de opereta, atirarmos para o planeta que nos abrigou no processo evolutivo os raios da nossa ferocidade. A Astronáutica se libertará de suas implicações bélicas e os satélites espiões das grandes potências infernais desaparecerão para sempre. Não somos os herdeiros do Diabo, esse pobre anjo decaído das lendas piedosas, que nos lança na impiedade. Somos filhos e herdeiros de Deus, a Consciência Criadora que não nos edificou para a hipocrisia, mas para a Verdade, a Justiça e o Amor.
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Herculano Pires, José – Educação para a Morte, A Heróica Pancada 2 de 2, 11º fragmento da obra.
(imagem: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

domingo, 16 de dezembro de 2012

O Mundo Invisível e a Guerra~


V
A Justiça Divina e a Atual Guerra

|14 de julho de 1915|

   Soldados que, na linha de batalha, mostrais ao inimigo a trincheira de vossos peitos e de vossos valentes corações, sois a carne de nossa carne, o sangue de nosso sangue, a força e a esperança de nossa raça.

   As irradiações de nossos pensamentos e de nossas vontades se dirigem a vós, para vos sustentar na luta ardente em que estais empenhados.

   Escutai, vós também, a harmonia que neste dia sobe das planícies, dos vales e dos bosques, das cidades populosas e dos campos modestos, unidos aos toques marciais do clarim e aos vibrantes acordes da Marseillaise! É a voz da pátria que vos diz:

   “Velai e lutai. Combateis pelo que há de mais sagrado neste mundo, pelo princípio de liberdade que Deus colocou no homem e que ele próprio respeita: a liberdade de pensar e de agir sem precisar prestar contas ao estrangeiro.

   Combateis pela manutenção do património que os séculos nos legaram, pelo cemitério onde jazem nossos antepassados, pelos campos que nos alimentaram e por todos os tesouros da arte e da beleza acumulados pelo trabalho lento das gerações em nossas bibliotecas, museus e catedrais.

   Combateis para conservar a nossa língua, esse idioma tão meigo que o mundo todo considera como a expressão mais nítida e mais clara do pensamento humano.

   Defendeis o lar da família, onde gostais de repousar o vosso espírito e a vossa alma, o berço de vossos filhos e os túmulos de vossos pais!

   Soldados, vós crescestes do ponto de vista terreno. Por vossa firmeza na provação e por vosso heroísmo nos combates, elevastes o prestígio da França aos olhos do mundo e tornastes mais brilhante a auréola de glória que lhes ornamenta a fronte.

   É bom, agora, aspirar aos céus, cumprindo erguer os pensamentos para Deus, que é a fonte de toda a força e de toda vida!”

   Para vencer, não bastam armas aperfeiçoadas e um poderoso instrumental material; é preciso também ter ideal e disciplina. É necessário que as almas tenham confiança num futuro infinito, a fé esclarecida e a certeza de que uma justiça infalível preside os destinos de todos nós.

   Tomai cuidado com os negadores de verdades evidentes e com os que dizem que a morte é o fim de tudo, que o ser perece completamente, que os esforços, as lutas e os sofrimentos do ser humano só obtêm como recompensa o nada.

   Acostumai-vos a orar antes da batalha e a suplicar o socorro do Alto, porque, abrindo-lhes os vossos corações, ele se tornará mais intenso e mais poderoso.

   Desconfiai de quem vos diz: “Não há fronteiras, a pátria é apenas uma palavra e todos os povos são irmãos.” Reims, Soissons, Arras e tantas outras cidades podem falar, eloquentemente, sobre essas teorias. Não foi com elas que nossos antepassados constituíram a França, através dos séculos, tornando-a grande, forte e respeitada.

   Cada povo tem seu talento particular, mas para manifestá-lo, precisa de independência e é dessa diversificação e desses mesmos contrastes que surge o incentivo e nascem o progresso e a harmonia.

   Soldados, escutai a sinfonia que sobe das planícies, dos vales e dos bosques, misturada aos rumores das cidades, aos cânticos patrióticos e às fanfarras guerreiras.

   Das florestas de Argonne aos desfiladeiros dos Pirenéus, das margens floridas da Côte d’Azur aos jardins da Touraine e às praias da Normandia, dos promontórios bretões, banhados pelas ondas, até aos Alpes majestosos, a grande voz da França entoa o seu hino eterno!

   Sua prece se ergue ainda mais alto, a prece dos vivos e a dos mortos, a prece de um povo que não está disposto a morrer e que, em meio a sua angústia, volta-se para Deus e invoca socorro, a fim de salvar sua independência e manter intactas sua glória e sua grandeza!
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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, V – A Justiça Divina e a Atual Guerra, 4 de 4, 17º fragmento da obra.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

sábado, 8 de dezembro de 2012

pensamento crítico~


A sobrevi-vência contra a evolução

   Mas não fica nisso o desprezo dos autores pela dialética. Depois desse gigantesco retrocesso histórico, afirmam eles, como se dissessem uma novidade: “a morte do indivíduo é um dos métodos da vida” (que dúvida!). E continuam: “Cada indivíduo é uma experiência biológica. Cada espécie progride pela seleção, rejeição ou multiplicação dos indivíduos. Biologicamente, a vida deixaria de continuar para diante, se os indivíduos não tivessem um fim e não fossem substituídos por outros. A ideia da imortalidade individual é absolutamente contrária à ideia da evolução contínua”.

   E logo mais, numa dessas tiradas que se repetem de boca em boca e de livro em livro, enquanto alguém não pede, como Sócrates, a definição do seu verdadeiro sentido: “São os moços, e não os velhos, os que desejam a imortalidade pessoal.”

   É pena que não mencionem a fonte desse espantoso dado estatístico, pois gostaríamos de confrontá-lo com o número de mocidades espíritas, católicas, protestantes, teosofistas, e dos muitos outros jovens espiritualistas não filiados a nenhuma seita, por que estranho motivo não deixam o terreno exclusivamente aos velhos, monopolizadores modernos da velha aspiração humana da sobrevivência.

   Dizer, além disso, que a imortalidade individual é contrária à evolução contínua, é “fazer de conta” que essa imortalidade seja biológica. Ora, absurdo dessa monta ninguém poderia aceitar. Como, pois, interpretar-se a atitude desses homens habituados a lidar com as coisas do pensamento, a acompanhar e divulgar os conhecimentos científicos, senão pelo desprezo à dialética?
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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, A sobrevivência contra a evolução, 7º fragmento da obra.
(imagem: Diógenes, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

a pedra e o joio~


Atualização do Espiritismo

   Desde que o confrade Hernani Guimarães Andrade publicou o seu livro, A Teoria Corpuscular do Espírito, vimos sendo consultados por pessoas que não sabem como encarar a obra. Num texto que aparece nas orelhas do volume, o Professor Victor Magaldi refere-se à teoria, como sendo uma “verdadeira revolução no Neo-Espiritismo”. No primeiro capítulo, o autor declara que o Espiritismo precisa progredir, superar os velhos conceitos mecanicistas do século passado, e que “os adeptos da doutrina devem ter a coragem de voltar atrás, se preciso for; reformar conceitos velhos; sacudir o pó da suposição para descobrir a realidade soterrada; abrir mão do dogmatismo comodista e ignorante, que se aferra à forma e esquece o espírito”.

   Todas essas coisas preocupam os adeptos, não comodistas nem ignorantes, mas ciosos da pureza da doutrina. Quer o confrade Guimarães Andrade reformar o Espiritismo? A que se refere o confrade Victor Magaldi, quando proclama a existência de uma revolução no “Neo-Espiritismo”? Existe isso? Existe um Neo-Espiritismo, e no seu seio já se processa uma revolução? Por outro lado, a terminologia doutrinária estará mesmo superada, será arcaica, necessitará de revisão? Estaremos em condições de enfrentar essa tarefa? Disporá o autor do livro de meios e recursos para sacudir a poeira dos conceitos kardecistas e revelar uma possível realidade oculta?

   Confessamos que era nosso intento, desde a publicação de A Teoria Corpuscular do Espírito, escrever sobre essa obra. Mas, encontrando esses mesmos problemas referidos pelos leitores, resolvemos estudar o livro com tempo e vagar, não aventurando a respeito nenhuma opinião. Além disso, o autor anuncia outros volumes, que completarão sua teoria. Diante porém, da insistência dos leitores e amigos, e uma vez que já aparece até mesmo a ideia, em certos núcleos, de tratar do problema da “Nova nomenclatura espírita” (por analogia certamente com a “Nova nomenclatura gramatical”), resolvemos tratar do assunto.

   Nossa atitude é a mesma dos leitores. Estamos com um pé atrás. Conhecemos o confrade Guimarães Andrade, sabemos ser uma pessoa honesta e sincera, mas desconfiamos dos rumos da sua imaginação, no campo doutrinário. Primeiramente, não vemos razões para o ataque à terminologia kardecista. Ela é tão válida hoje como há cem anos. A própria negação do “conceito mecanicista de éter” precisa ser examinada. E isso por dois motivos: porque o debate sobre o problema do éter espacial ainda não se encerrou, na própria Física; e porque o éter do Espiritismo não corresponde exatamente, mas apenas analogamente, ao da Física. O mesmo acontece com os conceitos de “fluido” e de “vibração”. Kardec não formulou uma teoria científica, da mesma maneira por que Jesus não criou um sistema filosófico. A revisão dos conceitos doutrinários, na base das falíveis teorias científicas modernas, equivale, ao nosso ver, a uma revisão dos conceitos evangélicos, na base dos sistemas filosóficos instáveis do nosso tempo.

   Em segundo lugar, a tentativa de criar uma teoria científico-espírita, como quer o autor, parece-nos prematura. Suas dificuldades começam ao procurarmos situar o Espiritismo no quadro das ciências. Kardec acentuou que o Espiritismo deve evoluir com as ciências, mas esclareceu também que a natureza científica do Espiritismo não é a mesma das ciências da matéria. Foi mais longe, ao negar às ciências qualquer competência para se pronunciar sobre as questões espíritas, e afirmou taxativamente que: “O Espiritismo não é da alçada da ciência”. (Cap. VII da “Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita”). Quando ele trata, pois, da Ciência Espírita, não o faz em termos de ciência material, mas esclarece mesmo que o objeto e os métodos de ambas são diferentes.

   Ora, o que o confrade Guimarães Andrade pretende fazer, é exatamente o que Kardec condenou. Ou seja, para usarmos as expressões textuais do codificador: “sujeitar (o Espiritismo) aos processos ordinários de investigação, estabelecendo analogias que não existem”. O mesmo aconteceu com a Psicologia, quando Wundt, Fechner, Binet e outros quiseram reduzi-la a processos de mensuração física. O mesmo com a Sociologia, inicialmente chamada “Física Social”, mais tarde ligada à Biologia, e hoje liberta dessas inadequações conceptuais e metodológicas. O Espiritismo não pode sujeitar-se a esses processos de amoldagem. No próprio campo da Filosofia, os Espíritos e o próprio Kardec fizeram questão de esclarecer que ele devia desenvolver-se “livre dos prejuízos do espírito de sistema”.

   Ainda agora, ao esclarecer a utilização de conceitos da ciência moderna, em seu livro Mecanismos da Mediunidade, André Luiz adverte: “As notas dessa natureza, neste volume, tomadas naturalmente ao acervo de informações e deduções dos estudiosos da atualidade terrestre, valem aqui por vestimenta necessária, mas transitória, da explicação espírita da mediunidade, que é, no presente livro, o corpo de ideias a ser apresentado”. Aplicando essa explicação ao caso de O Livro dos Espíritos, compreenderemos que o que nos interessa no seu texto não é a vestimenta, mas a substância, não é a terminologia, mas “o corpo de ideias”.

   A tentativa do confrade Guimarães Andrade deve ser encarada, pois, com o cuidado que Kardec recomendava sempre, para todas as inovações. Procuremos conter os entusiastas, que já pretendem erigir o autor em reformador doutrinário. O próprio Ernesto Bozzano chegou a propor uma teoria do Éter-Deus, para explicar de maneira física o Ser Supremo, o que era evidentemente absurdo e não teve aceitação. Fazer avançar o Espiritismo não é subjugá-lo a conceitos da ciência material, mas dar-lhe maior desenvolvimento espiritual em nossa compreensão. E trabalhar assim, espiritualmente, para apressar aquele momento, previsto por Kardec, em que “os sábios se renderão à evidência”. Serão eles, então, os que terão de modificar os seus conceitos, sacudindo a poeira das suas hipóteses instáveis.
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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito.A teoria corpuscular, 11º fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)