Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

a pedra e o joio~


Atualização do Espiritismo

   Desde que o confrade Hernani Guimarães Andrade publicou o seu livro, A Teoria Corpuscular do Espírito, vimos sendo consultados por pessoas que não sabem como encarar a obra. Num texto que aparece nas orelhas do volume, o Professor Victor Magaldi refere-se à teoria, como sendo uma “verdadeira revolução no Neo-Espiritismo”. No primeiro capítulo, o autor declara que o Espiritismo precisa progredir, superar os velhos conceitos mecanicistas do século passado, e que “os adeptos da doutrina devem ter a coragem de voltar atrás, se preciso for; reformar conceitos velhos; sacudir o pó da suposição para descobrir a realidade soterrada; abrir mão do dogmatismo comodista e ignorante, que se aferra à forma e esquece o espírito”.

   Todas essas coisas preocupam os adeptos, não comodistas nem ignorantes, mas ciosos da pureza da doutrina. Quer o confrade Guimarães Andrade reformar o Espiritismo? A que se refere o confrade Victor Magaldi, quando proclama a existência de uma revolução no “Neo-Espiritismo”? Existe isso? Existe um Neo-Espiritismo, e no seu seio já se processa uma revolução? Por outro lado, a terminologia doutrinária estará mesmo superada, será arcaica, necessitará de revisão? Estaremos em condições de enfrentar essa tarefa? Disporá o autor do livro de meios e recursos para sacudir a poeira dos conceitos kardecistas e revelar uma possível realidade oculta?

   Confessamos que era nosso intento, desde a publicação de A Teoria Corpuscular do Espírito, escrever sobre essa obra. Mas, encontrando esses mesmos problemas referidos pelos leitores, resolvemos estudar o livro com tempo e vagar, não aventurando a respeito nenhuma opinião. Além disso, o autor anuncia outros volumes, que completarão sua teoria. Diante porém, da insistência dos leitores e amigos, e uma vez que já aparece até mesmo a ideia, em certos núcleos, de tratar do problema da “Nova nomenclatura espírita” (por analogia certamente com a “Nova nomenclatura gramatical”), resolvemos tratar do assunto.

   Nossa atitude é a mesma dos leitores. Estamos com um pé atrás. Conhecemos o confrade Guimarães Andrade, sabemos ser uma pessoa honesta e sincera, mas desconfiamos dos rumos da sua imaginação, no campo doutrinário. Primeiramente, não vemos razões para o ataque à terminologia kardecista. Ela é tão válida hoje como há cem anos. A própria negação do “conceito mecanicista de éter” precisa ser examinada. E isso por dois motivos: porque o debate sobre o problema do éter espacial ainda não se encerrou, na própria Física; e porque o éter do Espiritismo não corresponde exatamente, mas apenas analogamente, ao da Física. O mesmo acontece com os conceitos de “fluido” e de “vibração”. Kardec não formulou uma teoria científica, da mesma maneira por que Jesus não criou um sistema filosófico. A revisão dos conceitos doutrinários, na base das falíveis teorias científicas modernas, equivale, ao nosso ver, a uma revisão dos conceitos evangélicos, na base dos sistemas filosóficos instáveis do nosso tempo.

   Em segundo lugar, a tentativa de criar uma teoria científico-espírita, como quer o autor, parece-nos prematura. Suas dificuldades começam ao procurarmos situar o Espiritismo no quadro das ciências. Kardec acentuou que o Espiritismo deve evoluir com as ciências, mas esclareceu também que a natureza científica do Espiritismo não é a mesma das ciências da matéria. Foi mais longe, ao negar às ciências qualquer competência para se pronunciar sobre as questões espíritas, e afirmou taxativamente que: “O Espiritismo não é da alçada da ciência”. (Cap. VII da “Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita”). Quando ele trata, pois, da Ciência Espírita, não o faz em termos de ciência material, mas esclarece mesmo que o objeto e os métodos de ambas são diferentes.

   Ora, o que o confrade Guimarães Andrade pretende fazer, é exatamente o que Kardec condenou. Ou seja, para usarmos as expressões textuais do codificador: “sujeitar (o Espiritismo) aos processos ordinários de investigação, estabelecendo analogias que não existem”. O mesmo aconteceu com a Psicologia, quando Wundt, Fechner, Binet e outros quiseram reduzi-la a processos de mensuração física. O mesmo com a Sociologia, inicialmente chamada “Física Social”, mais tarde ligada à Biologia, e hoje liberta dessas inadequações conceptuais e metodológicas. O Espiritismo não pode sujeitar-se a esses processos de amoldagem. No próprio campo da Filosofia, os Espíritos e o próprio Kardec fizeram questão de esclarecer que ele devia desenvolver-se “livre dos prejuízos do espírito de sistema”.

   Ainda agora, ao esclarecer a utilização de conceitos da ciência moderna, em seu livro Mecanismos da Mediunidade, André Luiz adverte: “As notas dessa natureza, neste volume, tomadas naturalmente ao acervo de informações e deduções dos estudiosos da atualidade terrestre, valem aqui por vestimenta necessária, mas transitória, da explicação espírita da mediunidade, que é, no presente livro, o corpo de ideias a ser apresentado”. Aplicando essa explicação ao caso de O Livro dos Espíritos, compreenderemos que o que nos interessa no seu texto não é a vestimenta, mas a substância, não é a terminologia, mas “o corpo de ideias”.

   A tentativa do confrade Guimarães Andrade deve ser encarada, pois, com o cuidado que Kardec recomendava sempre, para todas as inovações. Procuremos conter os entusiastas, que já pretendem erigir o autor em reformador doutrinário. O próprio Ernesto Bozzano chegou a propor uma teoria do Éter-Deus, para explicar de maneira física o Ser Supremo, o que era evidentemente absurdo e não teve aceitação. Fazer avançar o Espiritismo não é subjugá-lo a conceitos da ciência material, mas dar-lhe maior desenvolvimento espiritual em nossa compreensão. E trabalhar assim, espiritualmente, para apressar aquele momento, previsto por Kardec, em que “os sábios se renderão à evidência”. Serão eles, então, os que terão de modificar os seus conceitos, sacudindo a poeira das suas hipóteses instáveis.
/…


José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito.A teoria corpuscular, 11º fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

Sem comentários: