Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

~uma espécie de frenesim para as da vida material~

   Só as religiões estacionárias podem temer as descobertas da ciência; estas descobertas só são funestas para as que se deixam distanciar das ideias progressistas, imobilizando-se no absolutismo das suas crenças; têm em geral uma ideia tão mesquinha da Divindade, que não percebem que assimilar as leis da natureza reveladas pela ciência é glorificar a Deus nas suas obras; na sua cegueira, preferem homenagear o Espírito do mal. Uma religião que não estivesse em nenhum ponto em contradição com as leis da natureza, nada teria a recear do progresso e seria invulnerável.

   O Génesis compõe-se de duas partes: a história da formação do mundo material e a da humanidade, considerada no seu duplo princípio corporal e espiritual. A ciência limitou-se à procura das leis que regem a matéria; mesmo no homem, só estudou o invólucro carnal. A este respeito conseguiu perceber, com uma precisão incontestável, as principais partes do mecanismo do Universo e do organismo humano. Neste ponto capital, pode então completar a Génese de Moisés e dela retirar as partes defeituosas.

   Mas a história do homem, considerado como ser espiritual, liga-se a uma ordem especial de ideias que não é do domínio da ciência propriamente dita e que esta, por este motivo, não tomou como tema das suas investigações. A filosofia, que tem mais particularmente nas suas atribuições este tipo de estudo, sobre este ponto só formulou teorias contraditórias, desde a espiritualidade pura até à negação do princípio espiritual e até mesmo de Deus, sem outras bases para além das ideias pessoais dos seus autores; deixou portanto a questão indefinida, à falta de um controlo suficiente.

   Esta questão, no entanto, é para o homem a mais importante, pois trata-se do problema do seu passado e do seu futuro; a do mundo material só lhe toca indirectamente. O que lhe interessa antes de mais nada é saber de onde vem, para onde vai; se já viveu e se voltará a viver e qual a sorte que lhe está reservada.

   Sobre todas estas questões, a ciência fica muda. A filosofia só dá opiniões que vão em sentido diametralmente oposto, mas pelo menos permite discutir, o que faz com que muita gente se coloque do seu lado, dando-lhe preferência à religião, que não discute.

   Todas as religiões estão de acordo quanto ao princípio da existência da alma, sem no entanto o demonstrarem; mas não estão de acordo nem sobre a sua origem, nem sobre o seu passado, nem sobre o futuro, nem principalmente sobre o essencial, sobre as condições de que depende a sua sorte futura. Na sua maior parte, fazem do seu futuro um quadro imposto à fé dos seus adeptos, que só pode ser aceite por uma fé cega mas que não pode resistir a um exame sério. Estando o destino que dão à alma ligado, nos seus dogmas, às ideias que se tinham sobre o mundo material e ao mecanismo do Universo nos tempos primitivos, é inconciliável com o estado dos conhecimentos actuais. Só podendo perder com a observação e a discussão, acham mais simples banir uma e a outra.

   Destas divergências respeitantes ao futuro do homem nasceram a dúvida e a incredulidade. No entanto, a incredulidade deixa um vazio penoso; o homem encara com ansiedade o desconhecido para onde, mais tarde ou mais cedo, deve fatalmente ir; a ideia do nada gela-o; a sua consciência diz-lhe que, para lá do presente, há para ele qualquer coisa: mas o quê? A sua razão desenvolvida já não lhe permite aceitar as histórias com que lhe embalaram a infância, tomar a alegoria pela realidade. Qual é o sentido desta alegoria? A ciência rasgou uma ponta do véu, mas não lhe revelou o que lhe interessa mais saber. Questiona em vão, nada lhe responde de forma peremptória e apropriada para acalmar as suas apreensões; em todo o lado, encontra a afirmação chocando com a negação, sem provas mais positivas de um lado e de outro; daí a incerteza e a incerteza sobre coisas da vida faz com que o homem se atire com uma espécie de frenesim para as da vida material.

   É este o efeito inevitável das épocas de transição: o edifício do passado desmorona-se e o do futuro não está ainda construído. O homem é como um adolescente que já não tem a fé ingénua dos seus primeiros tempos e não possui ainda os conhecimentos da idade madura; só tem vagas aspirações que não sabe definir.


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo IV, PAPEL DA CIÊNCIA NA GÉNESE números de 10 a 14, tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida
(imagem:  Amaldiçoados com figuras do submundo, Juízo Final, afresco, detalhe da parede do altar da Capela Sistina, Vaticano, Michelangelo)

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