Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – II
 
Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

…/


   Quœrens – Que situação extraordinária para o vosso Espírito analista,
ó Lúmen! E qual o meio que vos permitiu chegar a conhecer a realidade?

   Lúmen – Os anciães da montanha tinham prosseguido a conversação, enquanto as reflexões precedentes se sucediam em meu espírito. Subitamente, ouvi o mais idoso, espírito venerável cuja cabeça nestoriana se impunha à admiração e ao respeito, exclamar, em tom tristemente ressonante: “De joelhos, meus irmãos, imploremos indulgência ao Deus universal. Essa terra, essa nação continua a ensopar-se em sangue: uma nova cabeça, a de um rei, acaba de tombar!”

   Seus companheiros pareceram compreendê-lo, porque ajoelharam sobre a montanha e prosternaram os alvos rostos contra o chão.

   Para mim, que ainda não estava habituado a distinguir figuras humanas no meio das ruas e praças públicas, e que não havia acompanhado a observação particular dos anciães, permaneci de pé e insistindo no exame do quadro distante.

   – Estrangeiro – disse o velho –, condenais a acção unânime de vossos irmãos, pois que não vos unistes à prece que fizeram?

   – Senador – respondi –, não posso condenar, nem aplaudir, pois não sei do que se trata. Chegado a esta montanha há pouco, desconheço a causa da vossa religiosa imprecação.

   Então, aproximei-me do velho e, enquanto seus companheiros se ergueram e entretinham em mútua conversação, eu lhe pedi que me narrasse as suas observações.

   Ensinou-me que, dada a intuição de que são dotados os Espíritos do grau dos habitantes desse mundo, e também pela faculdade íntima de percepção que lhes coube em partilha, possuem uma espécie de relação magnética com as estrelas vizinhas. Tais estrelas são em número de doze ou quinze, as mais próximas; fora desse perímetro a percepção resulta confusa. “Nosso Sol é uma dessas estrelas contíguas.” Conhecem, pois, vagamente, mas com exactidão, o estado das Humanidades que habitam os planetas dependentes desse Sol, e seu grau relativo de elevação intelectual ou moral.

   Além disso, quando uma grande perturbação atravessa uma dessas Humanidades, seja na ordem física, seja na ordem moral, eles sofrem uma espécie de comoção recôndita, à semelhança do que acontece com uma corda, vibrando, ao fazer entrar em vibração outra corda colocada à distância.

   Desde há um ano (um ano deste mundo é equivalente a dez dos nossos) eles se haviam sentido atraídos por uma emoção particular para o nosso planeta terrestre e os observadores tinham seguido com interesse e inquietude a marcha desse mundo. Haviam assistido ao fim de um reino, à aurora de uma liberdade resplendente, à conquista dos direitos do homem, à afirmação dos grandes princípios da dignidade humana. Depois, haviam visto a causa sagrada da Liberdade posta em perigo por aqueles que deveriam constituir-se seus primeiros defensores, e a força brutal substituir o raciocínio e a persuasão. Compreendi que se tratava da revolução de 1789 e da queda do velho mundo político diante do novo. Desde algum tempo, principalmente, havia, com intensa mágoa, acompanhado os frutos do terror e a tirania dos bebedores de sangue. Eles temiam pelos dias da raça humana e duvidavam, daí para o futuro, do progresso dessa Humanidade emancipada, que alienava – ela própria – o tesouro que acabara de conquistar.

   Guardei-me bem de declarar ao Senador ter chegado da Terra e nela vivido até contar setenta e dois aniversários de existência. Ignoro se ele teve alguma intuição a respeito, mas eu próprio estava tão estranhamente surpreendido de tal visão, que meu espírito se identificara com isso e não mais pensava na minha pessoa.

   Minha vista afinal se adaptara ao espectáculo observado, e destaquei, no meio da praça da Concórdia, um cadafalso rodeado de formidável aparelhamento de guerra, de tambores, canhões, e de uma densa multidão pintalgada, empunhando chuços.

   Uma charrete, guiada por certo homem vermelho, conduzia os despojos mortais de Luis XVI, dirigindo-se para os lados do arrabalde de Saint-Honoré.

   Um populacho ébrio parecia ameaçar o céu. Cavaleiros se seguiam, sabre em punho. Viam-se, rumo dos Campos Elíseos, fossas, nas quais caíam os curiosos.

   Mas, essa agitação, concentrada no local tumultuoso, não se estendia à cidade – que parecia morta e deserta. O terror a mergulhara em letargia.

   Eu não assistira ao acontecimento de 1793, pois esse fora o ano do meu nascimento, e experimentava indizível interesse em ser testemunha de tal cena, da qual os historiadores me haviam informado. Muitas vezes eu discutira o voto da Convenção Nacional, mas confesso que a execução de homens da estirpe de Lavoisier, o criador da Química; Bailly, historiador da Astronomia; André Chenier, o dulcíssimo poeta; ou a condenação de Condorcet, para o qual não tinham a escusa da razão de Estado, haviam-me causado mais indignação do que o suplício de Luís XVI. Ser testemunha dos acontecimentos dessa época transcorrida despertava em mim interesse sem igual. Todavia, por imenso que fosse tal interesse, podereis calcular que estivesse dominado por um sentimento mais poderoso ainda: achar-me no ano de 1864, e estar assistindo, presentemente, a um acontecimento desenrolado durante a Revolução Francesa.

   Quœrens – Parece-me, com efeito, que esse sentimento de impossibilidade devia tornar singularmente perturbada a vossa contemplação, pois, em última análise, ali estava uma visão que sentimos radicalmente ilusória e da qual não podemos admitir a realidade, mesmo assistindo a ela.

   Lúmen – Sim, meu amigo, impossível. Logo, compreendereis em que estado de ânimo me encontrava, enxergando, com os meus olhos, um tal paradoxo realizado? Certa expressão popular diz que, por vezes, não se pode crer nos próprios olhos. Era o meu caso; impossível negar; impossível admitir.

   Quœrens – Não seria uma concepção do vosso Espírito, um produto da vossa imaginação, uma exumação da vossa lembrança? Adquiristes a certeza de que se tratava de uma realidade, e não de um reflexo singular da memória?

   Lúmen – Foi o primeiro raciocínio que me veio ao espírito, mas era de todo tão evidente estar sob meus olhos a Paris de 1793 e o acontecimento de 21 de Janeiro, que não pude duvidar por muito tempo. E, por outra parte, tal raciocínio estava de antemão derribado pela circunstância de me haverem os velhos da montanha precedido na observação dos factos – que eles viam, analisavam e se comunicavam mutuamente a acção do momento, sem conhecer de qualquer modo a História da Terra e sem saber que eu conhecesse essa História. E, depois, tínhamos sob o olhar um facto presente, e não um acontecimento do passado.
/…


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – II, fragmento global 5º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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