Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 26 de janeiro de 2014

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Os Imponderáveis da Cura Espírita ~

Pasteur descobriu o mundo das bactérias infecciosas que ameaçam a saúde e a vida do homem no planeta e ninguém lhe dava crédito, porque esse mundo era imponderável e invisível. Allan Kardec descobriu o mundo dos espíritos, que ameaçam por toda parte o equilíbrio mental e emocional dos homens, mas a condição imponderável e invisível desse mundo levou-o ao ridículo perante as corporações científicas. Freud descobriu o mundo igualmente imponderável e invisível das instâncias da personalidade, que influem no comportamento humano, e até hoje os cientistas positivos, que só acreditam no que podem ver e pegar, não se cansam de combatê-lo e ridicularizá-lo. O conceito do positivo exclui da realidade científica as causas imponderáveis que se ocultam numa realidade subjacente do real. A rés (ou coisa) tem de se manifestar como tal na perspectiva científica, sob pena de não merecer atenção das Ciências. Mas a vida e a morte, os sonhos e as aspirações do homem são o fundamento de toda a realidade que nasce do imponderável e do invisível para constituir a realidade. O próprio método científico teve de apoiar-se na técnica do fantasma, ou seja, das aparições, pois o pesquisador científico remonta dos efeitos às causas para definir o real. O fenómeno, com a sua raiz etimológica grega, é simplesmente o fantasma. A mecânica do positivo chama-se revelação. Sem a determinação positiva do número kantiano o fenómeno não existe. Bastaria esse facto linguístico para se provar que o positivo é fecundado pelo imponderável. Sem este não temos aquele. Dessa maneira, a busca científica do real processa-se inelutavelmente subjacente ao imponderável e invisível. Hoje, com isso sobejamente provado, não há mais razão para se querer negar a positividade do imponderável. Por isso, Kant falhou ao determinar os limites dialécticos do conhecimento humano e Cassirer demonstrou, na sua Tragédia da Cultura, que a Religião e a Ciência se fundamentam igualmente no imponderável da Fé. Sem a fé na Ordem Universal, que não pode ser cientificamente provada, a Ciência seria impossível. O religioso parte da fé em Deus para conhecer a realidade universal. O cientista parte da fé na Ordem Universal para descobrir o real.

Mas o que é a fé, senão a crença transformada em verdade pela invisível e imponderável intuição do homem? Kardec afirmou: “Só podemos ter fé naquilo que conhecemos.” E ao mesmo tempo em que ele fazia essa afirmação audaciosa, provava a realidade do imponderável e inacessível através das manifestações espíritas. A mediunidade se lhe apresentava, através da pesquisa científica, como a percepção extra-sensorial, que antecipa a realidade imponderável e invisível que amadurece subjacente ao real. E Mannheim, nos nossos dias, confirmaria essa possibilidade no estudo da utopia, que se mostra, no plano sensível da realidade social, como antevisão de realidades futuras. O vidente e o profeta que anunciam realidades ainda ocultas subjacentes ao real concretizaram necessariamente o vir-a-ser das realidades ainda em gestação no futuro. E essa visão alucinatória está hoje cientificamente provada como realidade nas pesquisas parapsicológicas.

Não houve milagres nem magia nessa transposição da utopia em realidade positiva, mensurada e pesada na imponderabilidade dos métodos estatísticos que abrangem as quantidades outrora imponderáveis da realidade oculta das aparências do irreal. A Ciência Espírita se apresenta, assim, como a base irremovível de toda a revolução científica do nosso tempo. A pedra rejeitada da parábola evangélica foi necessariamente colocada no ângulo de sustentação de todo o edifício. Porque toda a solidez da matéria depende da fluídica do espírito e a matéria acaba revolvendo-se em pura dinâmica espiritual. As experiências fragmentárias da Cultura só podem ser unificadas na síntese da consciência. Por isso Alfred Russel Wallace chegou à conclusão de que toda a forma de psicologia nada mais é do que um espiritismo rudimentar. Os psicólogos tratam a psique, a alma, como caçadores de borboletas. Muitos deles se tornam coleccionadores apaixonados de borboletas mortas pregadas em cartolinas coloridas. Enganam-se com o jogo de cores dos efeitos psíquicos, elaboram teorias engenhosas sobre as várias formas do borboletear do espírito, mas não se atrevem a mergulhar no labirinto do psiquismo, única maneira de se defrontarem com o minotauro e conhecê-lo de perto.

Russel Wallace, que corrigiu o darwinismo com fortes injecções de espírito, não teve dúvidas em colocar no seu devido lugar epistemológico as tentativas periféricas do estranho e confuso mundo psicológico. Para ele, na sua visão científica dos problemas da alma, todo o psicólogo não passava de um aprendiz de feiticeiro. Os gregos temiam a Esfinge da Estrada de Tebas, porque ela devorava os que não decifravam os seus enigmas. Mas o mundo grego morreu e foi empalhado pelos teólogos. Hoje ninguém precisa passar pela Estrada de Tebas, podendo fazer o trajecto com voos de borboleta. Mas Pitágoras deixou o seu testamento aos pósteros, advertindo-os de que na matemática do Universo o número 2 é a opinião, borboleta insegura que não serve à Ciência.

No Espiritismo as opiniões não passam de palpites, mesmo quando se disfarçam em hipóteses ou teorias. Por isso a Ciência Espírita, que os inscientes confundem com magia delirante, na realidade é uma estrutura lógica de conceitos fundados na experiência e provados através de pesquisas rigorosas. Todas as Ciências evoluíram nos dois últimos séculos, na direcção exacta dos postulados espíritas. Só a leviandade humana, que Kardec denunciou nos meios académicos, pode levar um sábio de farda imponente a dar palpites sobre a Ciência Espírita, com ares de infalibilidade. A situação conflituosa dos cientistas que desejam ajustar os dogmas de seus catecismos à realidade científica actual denuncia a incapacidade desses cientistas para a livre busca da verdade. Os imponderáveis da Ciência tornam-se ponderáveis na proporção do progresso científico, mas os imponderáveis da Mística se escondem atrás das barreiras dogmáticas e pesam negativamente na balança do progresso. A incompatibilidade entre a dogmática e a pesquisa só pode ser resolvida pelo abandono dos dogmas. O credo qui absurdum dos escolásticos não pode sobreviver na era científica. Mas as religiões podem tornar-se racionais e até mesmo científicas, desde que se disponham a libertarem-se da sua paixão interesseira pelos reinos da Terra, preferindo o Reino de Deus. O Espiritismo encontrou a solução desse problema na sua estrutura de ciência livre ligada à religião livre e à moral pura de Cristo, sem concessões aos magnatas da simonia.

Kardec deu como regra única da pureza espírita o desinteresse total pelos bens materiais, a fraternidade humana incondicional, o desinteresse total pelo proselitismo, o respeito absoluto às ideias e crenças dos outros, sem a aceitação fingida e comprometedora desses erros, mas sem hostilidades à ingenuidade dos que não podem ir além dos conhecimentos primários. Deu à Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas uma estrutura puramente científica e afirmou que a única forma de fé que pode subsistir em todos os tempos é a que se baseia na razão. As Igrejas de estrutura sectária, que vivem à custa da submissão dos fiéis aos seus princípios arcaicos, estão condenadas irrevogavelmente a desaparecer. Mas isso não é uma profecia, é apenas uma dedução lógica tirada do processo histórico, das exigências da Cultura.

Os clérigos e os clericalistas gostam de confundir a sua posição perante a Ciência com a livre condição dos espíritas. Alegam que se eles não podem estudar livremente os fenómenos paranormais, também os espíritas não o podem, pois já têm os seus pontos de vista fixados pela doutrina. É essa uma alegação ignorante ou de má-fé, pois sabem que os espíritas jamais aceitaram imposições dogmáticas, gozam da mais ampla liberdade de opção e não devem nenhuma obediência a nenhuma espécie de supostas autoridades religiosas. Só devem obediência à sua própria consciência, que só se curva ante as verdades comprovadas.

Não se pode comparar a submissão do crente à insubmissão do que não busca uma forma de crença, mas o saber, provado e comprovado cientificamente. Os factos espíritas não foram provados apenas pelos espíritas, mas também e principalmente pelos adversários da doutrina. A realidade espírita não foi forjada por teóricos comprometidos com qualquer tipo de instituição religiosa ou não, mas por pesquisadores livres e altamente responsáveis. Richet, Crookes, Zöllner, Lombroso, Aksakof, Notzing e tantos outros nomes da Ciência e da Cultura Geral não fizeram pesquisas para comprovar a verdade espírita, mas para obterem provas contra a doutrina. Nenhuma outra doutrina, no mundo passou incólume por tantas investigações promovidas por grandes cientistas que a contestavam em nome da Ciência. E todos eles foram obrigados, por amor à verdade e por exigências de consciência, a proclamar a realidade dos factos que comprovavam a doutrina e a se curvarem perante ela.

Por outro lado, nenhum espírita consciente tentou jamais transformar a doutrina em meio de vida, profissionalizando a sua prática. Por tudo isso, os espíritas não podem ser considerados em paridade com os profitentes e profissionais das religiões. Pelo contrário, todo o espírita tem o direito e o dever de participar das pesquisas actuais e futuras dos fenómenos paranormais, sem que sejam apontados como parciais, pois na verdade são pioneiros dessas pesquisas e pisam no terreno que lhes pertence. Quando um espírita competente trata de Parapsicologia não a deforma, pois isso seria deformar a sua própria doutrina. As Ciências do paranormal nasceram das entranhas do Espiritismo e em vão lutaram para contradizê-lo, mas acataram todos os seus princípios científicos. Richet, numa carta histórica a Bozzano, declarou que encontrara a verdade nas monografias do grande italiano. Mais tarde escreveu a Cairbar Schutel, de Matão, no Brasil, declarando em latim “Mort janua vitae” (A morte é a porta da vida). Lombroso, inimigo acérrimo do Espiritismo e da Metapsíquica, aceitou o desafio de Chiaia para uma sessão com Eusápia Paladino e obteve a materialização da própria mãe, a quem pôde abraçar, contando o facto em artigo para a revista de Milão Luce e Ombra e indicando-o depois em estudo sobre Espiritismo e Hipnotismo. Frederico Figner obteve a materialização de sua filha Raquel, morta ainda menina, e a teve no colo. A menina passou ao colo da mãe, abraçando-a e beijando-a. A médium foi Ana Prado, em Belém do Pará. Figner e a esposa, judeus ortodoxos, tornaram-se espíritas. A Ciência Espírita foi além, no século passado, de todas as conquistas actuais da Parapsicologia. O único interesse de um espírita, ilustrado na ciência, seria o prazer de confirmar para as gerações actuais – num excesso de provas – os factos largamente obtidos no passado. Reduzido interesse, aliás, pois os factos espíritas continuam a repetir-se por todo o mundo, nos grandes centros universitários de nosso tempo. O próprio Vaticano reconheceu hoje, como o declarou recentemente Monsenhor Pisoni à revista italiana Gente, a realidade desses factos. Perdem o seu tempo e mentem às suas ovelhas os pastores que tentam tapar o sol com peneiras. Não se pode dizer que o imponderável da fé tenha a mesma importância, na cura espírita, que tem, nos demais tipos de cura paranormal, porque os elementos racionais da teoria e da prática espírita influem na própria disposição do doente para a eclosão da fé. Esta permanece controlada pela razão. O doente espírita não procura o milagre, a acção divina sobrenatural. Ele sabe que o médium é elemento de acção, não um agente. Simples instrumento de transmissão das energias fluídicas do plano espiritual, o médium não tem o poder de curar. Mas os resíduos mágicos e religiosos da tradição actuam ainda no processo de cura, predispondo o paciente a uma acção mais eficaz da intervenção fluídica. Apesar disso, a cura espírita já representa um passo decisivo para a técnica terapêutica ou operatória racionalizada. As entidades espirituais, que Geley chamou de controles, realmente controlam o processo de cura, que é geralmente progressivo, mesmo quando possa parecer instantâneo. Por outro lado, nenhum médium consciente da relatividade de sua acção pode assegurar antecipadamente a eficácia da sua intervenção. Porque em toda cura, normal ou paranormal, estão presentes os pressupostos cármicos, ou seja, as cargas negativas do passado moral do doente. Como dizem as entidades espirituais esclarecidas, não raro é a doença que cura a gente. A função educativa e reequilibradora da dor, como explicou Léon Denis, nem sempre pode ser dispensada ou atenuada. O conceito de lei, no processo evolutivo, dá um novo aspecto à cura espírita. Quem com ferro fere – disse Jesus – com ferro será ferido. Essa menção de uma lei moral irrevogável pode enfraquecer a esperança do doente, mas ao mesmo tempo o livra da preocupação aterradora das penas eternas. Essa lei moral se funda no princípio da acção e reacção, que condiz, no plano da consciência, ao subliminar do paciente, com a sua esperança de redenção e transcendência. O paciente espírita aprende a enfrentar a sua responsabilidade moral, e quanto melhor o fizer mais rapidamente obtém o seu resgate.

A natureza racional de todo esse processo abre a mente das criaturas para uma concepção mais clara e precisa da realidade da vida humana na Terra, fazendo-as superar com mais facilidade as heranças mágicas e religiosas que as prendem numa visão trágica e desoladora do mundo e da vida. O gesto simples do passe espírita, como a simples imposição das mãos, praticada e ensinada por Jesus, não se reduz apenas à transmissão de energias. Além dessa transmissão, em que as mãos funcionam como antenas captadoras e transmissoras, o passe espírita abre a mente do paciente para a percepção de um mundo de perfeito equilíbrio, tecido numa teia irredutível de leis teleológicas, ou seja, de leis que têm finalidades precisas na evolução do mundo e do homem. O passe espírita equivale a um acordar da mente para a nova era, em que o homem descobrirá as suas potencialidades divinas e a sua destinação cósmica. Por isso, os que pretendem aplicar técnicas antigas ou modernas a esse gesto de amor e esperança só conseguem complicar e envaidecer os que se entregam à missão humilde e ao mesmo tempo sublime de acordar os homens para uma visão superior da realidade.

Todas as formas rituais do passado mágico e religioso não passam de adendos pretensiosos dos homens à técnica natural e simples do Evangelho. Os imponderáveis da cura espírita, quando transformados em actos físicos, de gesticulação e dança, perdem a sua eficácia. As cerimónias sumptuosas dos egípcios, sumerianos e mesopotâmicos, nas mumificações e enterros espectaculares, de nada valeram para os mortos, que voltam ainda hoje nas sessões espíritas, necessitados de uma gota de humildade para se livrarem das suas ilusões vaidosas. De que adiantam as recomendações de cadáveres nas religiões actuais, as missas e te-déuns solenes, oficiados por hierofantes até hoje apegados à cinza dos sarcófagos? O Espiritismo é o despertar dos homens para a verdade de que eles sempre fugiram, no jogo dos seus mitos e das suas encenações teatrais. Atingimos agora o momento crucial da Era Cósmica que se avizinha. Não procuremos novas formas de prosseguir com os nossos jogos e malabarismos de esconde-esconde. Abandonemos as trapaças de Simão, o Mago, lembrando-nos da ressurreição que Cristo ensinou e demonstrou a Paulo no esplendor da sua visão na Estrada de Damasco. A Terra abre-se para o Infinito e as suas pétalas de luz nos indicam o rumo das constelações. É com humildade e não com inovações pretensiosas que podemos pisar no limiar da Nova Era.
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José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Os Imponderáveis da Cura Espírita, 16º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)

sábado, 18 de janeiro de 2014

Seres Radiantes do espaço ~


Capítulo III (IV)

Para concluir, afirmamos que é por desconhecerem o papel das forças radiantes nos fenómenos e o modo de dirigi-las que os pesquisadores oficiais registaram tamanho insucesso. Nas pesquisas psíquicas, a homogeneidade do ambiente, a harmonia dos fluidos e dos pensamentos são factores indispensáveis para o seu sucesso. Quanto mais forem empregados os procedimentos materialistas usados pela Ciência, menos a assistência do Alto será favorecida. Nos ambientes em que as entidades superiores querem intervir, se encontrarem influências contrárias, para elas, torna-se impossível agir ou mesmo transmitir os seus pensamentos; as divergências de pontos de vista formam uma barreira e os fluidos delas não podem mais penetrar o médium e, através deste, atingir o espírito e o coração dos assistentes.

É somente na homogeneidade perfeita, na fusão de fluidos e sentimentos que o espírito, ao ler os nossos pensamentos, pode responder com exactidão às perguntas íntimas e resolver os problemas mais delicados da vida e da morte.

Os nossos sábios oficiais pouco se preocupam em preencher essas condições e, por isso, ocorrem os repetidos fracassos. Eles não tratam os médiuns com a imparcialidade necessária. Esperamos encontrar médiuns muito eficientes, bem-dotados para apresentar aos sábios provas incontestáveis da sobrevivência, mas para que um médium transmita fielmente o pensamento ou reproduza a forma de um desencarnado, é preciso ter um grau adequado de sensibilidade. Ora, se tomarmos um médium muito sensível e o colocarmos num meio onde os fluidos produzidos pelos assistentes não sejam da mesma natureza e com velocidade de vibração diferente, daí resultará, então, que a sua sensibilidade será enfraquecida e, até mesmo, anulada. O seu estado mental será influenciado por alguém do ambiente e, vendo que a experiência falha, ele procurará, talvez, por meios fraudulentos, dar a impressão dos fenómenos esperados.

Citemos um exemplo: Os espíritas de Paris ainda se lembram de um médium exótico que, em 1909, após ter obtido aparições autênticas, fenómenos de real valor, abusou das suas faculdades e se abandonou à prática de repetidas fraudes, em locais heterogéneos e na presença de várias testemunhas. Foi preciso denunciá-lo publicamente, e até mesmo, incriminá-lo moralmente, denuncia publicada na Revue Spirite, (Revue Spirite, 1909, pp. 79, 217 e 222 e Annales des Sciences Psychiches de 1909) para impedir a série de fraudes e deter o seu exercício. Sem esta medida, esses nossos adversários que se comprazem em investigações falsas, em vez de procurarem, longe, temas de escândalo, não teriam deixado de explorar a lembrança dessas cenas que, mesmo em Paris, tiveram tantos espectadores e testemunhos ainda vivos.

Resumindo, os espíritas podem, com razão, pretender, não somente, ter possuído, bem antes dos sábios oficiais, o conhecimento do mundo dos fluidos e das forças radiantes – e isso é uma objecção capital para todos os que acusam o Espiritismo de nada ter fornecido à Ciência – mas também saber tomar, quando as circunstâncias o exigem, as resoluções necessárias para proteger a dignidade da sua causa.

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Léon Denis, O Espiritismo e as Forças Radiantes, Capítulo III 4 de 4, 10º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Anos e Anos de Viagem Sideral, pintura em acrílico de Costa Brites)

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Deus na Natureza ~


A Força e a Matéria I Posição do Problema (IV)

  A teoria mecânica, es-tabelecendo a pura necessidade matemática nas acções e reacções que formam a vida do mundo, é incompleta, por isso que suprime a causa e dissipa em névoa o mundo moral. A teoria de uma força única, universal, sempre actual e formando a variedade dos seres pelas suas metamorfoses, ajusta essa misteriosa universalidade a uma força primordial.

  Poder-se-ia, portanto, acusar simplesmente o processo geral dos nossos contraditores de um erro gramatical, atribuindo à matéria um poder só cabível à força e pretendendo não passar esta de mero adjectivo qualificativo, quando lhe cabem os mesmos direitos daquela, na classe dos substantivos.

  Examinemos agora, nesta mesma vista de conjunto, quais os grandes erros que marcham de paralelo e sustentam essa conduta e que havemos de encontrar sob várias formas, no curso das nossas contraditas.

  O primeiro erro geral de que abusam os materialistas é imaginarem que, pelo facto de existir Deus, importa atribuir-lhe uma vontade caprichosa e não constante e imutável, na sua perfeição.

  Ersted, por exemplo, sábio escrutador do mundo físico, exprimiu sensatamente as relações de Deus com a Natureza, dizendo que “o mundo é governado por uma razão eterna, cujos efeitos se manifestam nas leis da Natureza”.

  O Dr. Büchner opõe a esse conceito a seguinte especiosa objecção: – “Ninguém poderia compreender como uma razão eterna, que governa, se conforme com leis imutáveis. Ou são as leis naturais que governam, ou é a razão eterna. Que umas ao lado de outras entrariam, a cada instante, em colisão. Se a razão eterna governasse, supérfluas se tornariam as leis naturais e se, ao revés, governam as leis imutáveis da Natureza, elas excluem toda a intervenção divina.” – “Se uma personalidade governa a matéria num determinado sentido – opina Moleschott – desaparece da Natureza a lei da necessidade. Cada fenómeno se torna partilha de jogo do acaso e de uma arbitrariedade sem pelas.”

  Havemos de convir que esta grave objecção é singularíssima.

  É um raciocínio extravagante que cai pela base. A nós nos parece, pelo contrário, que a inteligência notória nas leis da Natureza demonstra, no mínimo, a inteligência da causa a que se devem essas leis, que são, elas mesmas, precisamente a expressão imutável dessa inteligência eterna.

  E não será algo ridículo pretender que essa causa deixe de existir, pelo motivo do íntimo acordo com essas mesmas leis?

  Vejamos, por exemplo, um excelente harpista: a sua virtuosidade é tão perfeita que os acordes frementes parecem-nos identificados com a poesia da sua alma! Diremos, então, que essa alma não existe, visto que para lhe admitir existência era preciso que ela estivesse eventual e arbitrariamente em desacordo com as leis da Harmonia! Essa maneira de raciocinar é tão falsa que os próprios autores que a utilizam são os primeiros a reconhecê-lo implicitamente. Assim é que Büchner, referindo-se a milagres e ao facto de haver o clero inglês solicitado a decretação de um dia de jejum e de preces para conjurar a cólera, elogia Palmaraton por haver respondido que o surto epidémico dependia mais de factores naturais, em parte conhecidos, e poderia melhor jugular-se com providências sanitárias, antes que com preces.

  Muito bem! O autor, melhor ainda, acrescenta: “Essa resposta lhe acarretou a pecha de ateísmo e o clero declarou pecado mortal não crer pudesse a Providência transgredir, a qualquer tempo, as leis da Natureza.”

  Mas, que singular ideia faz essa gente de Deus que por si criou! Um legislador supremo a deixar-se comover por preces e soluços, a subverter a ordem imutável que ele mesmo instituiu, a violar por suas próprias mãos a actividade das forças naturais! – “Todo o milagre, se existisse – diz também Cotta – provaria que a Criação não merece o respeito que lhe tributamos e os místicos deveriam deduzir, da imperfeição do criado, a imperfeição do Criador.”

  Aí temos os adversários em contradição consigo mesmos, quando, por um lado, não querem admitir uma razão eterna em concordância de leis imutáveis, e por outro pensam connosco, que a ideia de imutabilidade ou, pelo menos, a regularidade, se identifica muito melhor com a perfeição ideal do ser desconhecido que denominamos Deus, do que a ideia de mutabilidade e arbitrariedade, que umas tantas crenças pretendem impor-lhe.

  Um segundo erro geral, não menos funesto que o precedente e que por igual ilude os nossos contraditores, é o de acreditarem que, para existir Deus, importa colocá-lo fora do mundo.

  Não vemos pretexto algum racional que possa justificar uma tal necessidade. E antes do mais, que significa essa ideia de uma causa soberana extramundo? Onde os limites do mundo? Pois o mundo, isto é, o espaço no qual se movem estrelas e terras, não é infinito por sua mesma essência?

  Imaginais um limite a esse mesmo espaço e supondes que ele se não renova além? Será, então, possível traçar limites à extensão? Onde, pois, imaginar Deus fora do mundo? Será fora da matéria, o que se quer dizer? Mas, que é a matéria em si? – agrupamentos de moléculas intangíveis. Portanto, impossível determinar uma semelhante posição. Deus não pode estar fora do mundo, mas no mesmo lugar do mundo, do qual é o sustentáculo e a vida.

  Não fosse temer a pecha de panteísta e ajuntaríamos que Deus é – a alma do mundo. O Universo vive por Deus, assim como o corpo obedece à alma. Em vão pretendem os teólogos que o espaço não pode ser infinito, em vão se apegam os materialistas a um Deus fora do mundo, enquanto sustentamos que Deus, infinito, está com o mundo, em cada átomo do Universo – adoramos Deus na Natureza.

  Entretanto, os nossos adversários combatem insensatamente o seu fantasma. “Não há considerar o Universo – diz Strauss – como ordenação regrada por um Espírito fora do mundo, mas, como razão imanente às forças cósmicas e às suas relações.”

  A essa razão, chamamo-la Deus, enquanto os modernos ateístas aproveitam essa declaração para sentenciar que, em não existindo fora do mundo, é que Deus não existe.

  “Tudo, – diz H. Tuttle – desde a tinha (perdoem a expressão) que baila aos raios do Sol, à inteligência humana, que verte das massas medulosas do cérebro, está submetido a princípios fixos. Logo, não existe Deus.” Logo, existe – dizemos nós – “Livre é cada qual de franquear os limites do mundo visível – pondera Büchner – e de procurar fora dele uma razão que governa, uma potência absoluta, uma alma mundial, um Deus pessoal”, etc. Mas, que é o que vos fala disso? “Nunca, em parte alguma – diz o mesmo literato – nos mais longínquos espaços revelados pelo telescópio, pôde observar-se um facto que fizesse excepção e pudesse justificar a necessidade de uma força absoluta, operando fora das coisas.”

  “A força não impelida por um Deus, não é uma essência das coisas isoladas do princípio material” – adverte Moleschott.

  Ninguém terá visão tão limitada – afirma ele alhures – para enxergar nas acções da Natureza outras forças não ligadas a um substrato material. Uma força que planasse livremente acima da matéria seria uma concepção absolutamente balda de sentido.

  Positivamente, ainda hoje existem cavaleiros errantes, à guisa dos que outrora manobravam em torno dos castelos do Reno, e de bom grado arremetem moinhos de vento. Lídimos heróis de Cervantes, visto que, no fim de contas, qual o filósofo que hoje propugna um Deus ou forças quaisquer fora da Natureza?

  Vemos em Deus a essência virtual que sustenta o mundo em cada uma de suas partes microscópicas, daí resultando ser o mundo como que por ele banhado, embebido em todas as suas partes e que Deus está presente na mesma composição de cada corpo.

  Dessarte, a primeira trincheira cavada pelos adversários para bloquear o Espiritualismo foi por eles mesmos entulhada; e a segunda nem sequer objectiva a cidadela, e os nossos soldados alemães não fazem mais que bater o campo.

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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 4 de 6, 8º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Diálogos de Kardec ~


A Segunda Vista – Conhecimento do Futuro. Previsões ~

   Desde que no estado sonambúlico as manifestações da alma se tornaram, de certo modo, ostensivas, fora absurdo supor que no estado normal ela se ache confinada, de modo absoluto, no seu envoltório, como o caramujo na sua concha. Não é de maneira alguma a influência magnética que a desenvolve; essa influência nada mais faz do que a tornar patente pela acção que exerce sobre os órgãos corporais. Ora, nem sempre o estado sonambúlico é condição indispensável a essa manifestação. As faculdades que se revelam nesse estado desenvolvem-se algumas vezes espontaneamente, no estado normal, em certos indivíduos. Resulta-lhes daí a faculdade de verem as coisas distantes, por onde quer que a alma estenda a sua acção; vêem, se podemos servir-nos desta expressão, através da vista ordinária; e os quadros que descrevem, os factos que narram se lhes apresentam como efeitos de uma miragem. É o fenómeno a que se dá o nome de segunda vista. No sonambulismo, a clarividência deriva da mesma causa; a diferença está em que, nesse estado, ela é isolada, independente da vista corporal, ao passo que é simultânea nos que dessa faculdade são dotados em estado de vigília.

   Quase nunca é permanente a segunda vista. Em geral, o fenómeno se produz espontaneamente, em dados momentos, sem ser por efeito da vontade, e provoca uma espécie de crise que, algumas vezes, modifica sensivelmente o estado físico. O indivíduo parece olhar sem ver; toda a sua fisionomia reflecte uma como exaltação.

   É de notar que as pessoas dotadas dessa faculdade não suspeitam possuí-la. Ela se lhes afigura natural, como a de ver com os olhos. Consideram-na um atributo do seu ser e nunca uma coisa excepcional. Cumpre acrescentar que muito amiúde o esquecimento se segue a essa lucidez passageira, cuja lembrança, cada vez mais imprecisa, acaba por desvanecer-se como a de um sonho.

   Há infinitos graus na potencialidade da segunda vista, desde a sensação confusa, até a percepção tão nítida quanto no sonambulismo. Há carência de um termo para designar-se esse estado especial e, sobretudo, os indivíduos susceptíveis de experimentá-lo. Tem-se empregado a palavra vidente, que, embora não exprima com exactidão a ideia, adoptaremos até nova ordem, à falta de outra melhor.

   Se agora confrontarmos os fenómenos de segunda vista com os da clarividência sonambúlica, compreenderemos que o vidente possa perceber coisas que lhe estejam fora do alcance da visão ordinária, do mesmo modo que o sonâmbulo vê, à distância, acompanha o curso dos acontecimentos, aprecia-lhes a tendência e, em certos casos, lhes prevê o desenlace.

   Esse dom da segunda vista é que, em estado rudimentar, dá a certas pessoas o tacto, a perspicácia, uma espécie de segurança aos actos, o que se pode com justeza denominar: golpe de vista moral. Mais desenvolvido, ele acorda os pressentimentos, ainda mais desenvolvido, faz ver acontecimentos que já se realizaram, ou que estão prestes a realizar-se; finalmente, quando chega ao apogeu, é o êxtase vígil.

   Como já dissemos, o fenómeno da segunda vista é quase sempre natural e espontâneo; parece, entretanto, que se produz com mais frequência sob o império de determinadas circunstâncias. Os tempos de crise, de calamidades, de grandes emoções, tudo, enfim, que sobreexcita o moral, que provoca o desenvolvimento. Dir-se-ia que a Providência, diante de perigos iminentes, multiplica em torno das criaturas a faculdade de prevê-los.

   Videntes sempre os houve em todos os tempos e em todas as nações, parecendo, no entanto, que alguns povos são mais naturalmente predispostos a tê-los. Dizem que na Escócia é muito comum o dom da segunda vista. Não se lhe nota a existência entre a gente do campo e os que habitam nas montanhas.

   Os videntes têm sido diversamente considerados, conforme os tempos, os costumes e o grau de civilização. Para os cépticos, eles não passam de cérebros desarranjados, de alucinados; as seitas religiosas os arvoraram em profetas, sibilas, oráculos; nos séculos de superstição e ignorância, eram feiticeiros e acabavam nas fogueiras. Para o homem sensato, que acredita no poder infinito da Natureza e na bondade inesgotável do Criador, a dupla vista é uma faculdade inerente à espécie humana, por meio da qual Deus nos revela a existência da nossa essência espiritual. Quem não reconheceria um dom dessa natureza em Joana d’Arc e em toda uma multidão de outras personagens que a história qualifica de inspiradas?

   Muito se tem falado de pessoas que, deitando as cartas, disseram coisas de surpreendente verdade. De modo nenhum pretendemos fazer-nos apologista dos ledores da “buena-dicha” que exploram a credulidade dos espíritos fracos e cuja linguagem ambígua se presta a todas as combinações de uma imaginação abalada; mas, não é de todo impossível que certas pessoas, fazendo disso um ofício, tenham o dom da segunda vista, mesmo mau grado seu. Sendo assim, as cartas, entre as suas mãos, não passam de um meio, de um pretexto, de uma base de conversação. Elas falam de acordo com o que vêem e não com o que indicam as cartas para as quais apenas olham.

   O mesmo se dá com outros meios de adivinhação, tais como as linhas da mão, a clara de ovo e outros símbolos místicos. Os sinais das mãos talvez tenham mais valor do que todos os outros meios, não por si mesmos, mas porque, tomando e palpando a mão do consultante, o pretenso adivinho, se é dotado de dupla vista, estabelece relação mais directa com aquele, como se verifica nas consultas sonambúlicas.

   Podem incluir-se os médiuns videntes na categoria das pessoas que possuem a dupla vista. Com efeito, do mesmo modo que estas últimas, aqueles julgam ver com os olhos, mas, na realidade, a alma é que vê e por essa razão é que eles vêem tão bem com os olhos abertos como com os olhos fechados. Segue-se, necessariamente, que um cego poderia ser médium vidente, tanto quanto um que tenha perfeita a vista. Constituiria estudo interessante indagar se essa faculdade é mais frequente nos cegos. Somos levado a crê-lo, dado que, como se pode verificar experimentalmente, a privação de comunicar-se com o meio exterior, por falta de certos sentidos, confere em geral poder maior à faculdade de abstracção da alma e, consequentemente, maior desenvolvimento ao sentido íntimo pelo qual ela se põe em relação com o mundo espiritual.

   Podem, pois, os médiuns videntes ser identificados às pessoas que gozam da vista espiritual; mas, seria porventura demasiado considerar essas pessoas como médiuns, porquanto a mediunidade se caracteriza unicamente pela intervenção dos Espíritos, não se podendo ter como acto mediúnico o que alguém faz por si mesmo. Aquele que possui a vista espiritual vê pelo seu próprio Espírito, não sendo de necessidade, para o surto da sua faculdade, o concurso de um Espírito estranho.

   Posto isto, examinemos até que ponto a faculdade da dupla vista pode permitir se descubram coisas ocultas e se penetre no futuro.

   Desde todos os tempos, os homens hão querido conhecer o futuro e volumes se poderiam escrever sobre os meios que a superstição inventou para erguer o véu que encobre o nosso destino. Muito sábia foi a Natureza no-lo ocultando. Cada um de nós tem a sua missão providencial na grande colmeia humana e concorre para a obra comum na sua esfera de actividade. Se soubéssemos de antemão o fim de cada coisa, é fora de dúvida que a harmonia geral ficaria perturbada. A segurança de um porvir ditoso tiraria ao homem toda a actividade, pois que nenhum esforço precisaria ele empregar para alcançar o objectivo que sempre colima: o seu bem-estar. Paralisar-se-iam todas as forças físicas e morais. As mesmas consequências produziriam a certeza da infelicidade, em virtude do desânimo que ganharia a criatura. Ninguém se disporia a lutar contra a sentença definitiva do destino. O conhecimento absoluto do futuro seria, portanto, um presente funesto, que nos conduziria ao dogma da fatalidade, o mais perigoso de todos, o mais antipático ao desenvolvimento das ideias. A incerteza quanto ao momento do nosso fim neste mundo é que nos faz trabalhar até ao último batimento do nosso coração. O viajante levado por um veículo se entrega ao movimento que o fará chegar ao ponto demandado, sem pensar em lhe impor qualquer desvio, por estar certo da sua impotência para consegui-lo. O mesmo se daria com o homem que conhecesse o seu destino irrevogável. Se os videntes pudessem infringir essa lei da Providência, igualar-se-iam à Divindade. Por isso mesmo, não é essa a missão que lhes cabe.

    No fenómeno da dupla vista, por se achar a alma parcialmente liberta do envoltório material, que lhe limita as faculdades, não há duração, nem distância; visto que lhe é dado abranger o espaço e o tempo, tudo se lhe confunde no presente. Livre dos entraves da carne, ela julga dos efeitos e das causas melhor do que nós, que não podemos fazer outro tanto; vê as consequências das coisas presentes e pode levar-nos a pressenti-las. É neste sentido que se deve entender o dom de presciência atribuído aos videntes. As suas previsões resultam de ter a alma consciência mais nítida do que existe e não de uma predição de coisas fortuitas, sem ligação com o presente. É por dedução lógica do conhecido que ela chega ao desconhecido, dependente muitas vezes da nossa maneira de proceder. Quando um perigo nos ameaça, se somos avisados, ficamos em condições de tentar tudo o que seja preciso para evitá-lo, cabendo-nos a liberdade de fazê-lo ou não.

   Em tal caso, o vidente tem diante de si um perigo que se nos acha oculto; ele o assinala, indica o meio de afastá-lo, pois de outro modo o acontecimento segue o seu curso.

   Suponhamos que uma carruagem enveredou por uma estrada que vai dar num precipício que o condutor não pode perceber. É evidente que, se nada ocorrer que a desvie, ela ali se precipitará. Suponhamos também que um homem colocado de maneira a divisar a estrada em toda a sua extensão, vendo o perigo que corre o viajante, consegue avisá-lo a tempo de ele se desviar. O perigo estará conjurado. Da sua posição, dominando o espaço, o observador vê o que o viajante, cuja visão os acidentes do terreno circunscrevem, não logra divisar. Pode ele ver se uma causa fortuita obstará à queda do outro; conhece então, previamente, o que se dará e prediz o acontecimento.

   Imaginemos que esse homem, do alto de uma montanha, divise ao longe, pela estrada, uma tropa inimiga dirigindo-se para uma aldeia a que pretende atear fogo. Fácil lhe será, levados em conta o espaço e a velocidade, prever quando a tropa chegará. Se, então, descendo à aldeia, disser apenas: A tal hora a aldeia será incendiada, caso o facto ocorrer, ele passará, aos olhos da multidão ignorante, por adivinho, feiticeiro; entretanto, apenas viu o que os outros não podiam ver e deduziu, do que vira, as consequências.

   Ora, o vidente, como esse homem, apreende e acompanha o curso dos acontecimentos; não lhes prevê o resultado porque possua o dom de adivinhar: ele o vê e, desde então, pode dizer-vos se estais no bom caminho, indicar-vos outro melhor e anunciar o que se vos deparará no extremo do que seguis. É, para vós, o fio de Ariadne, mostrando a saída do labirinto.

   Como se vê, longe está isso da predição propriamente dita, conforme a entendemos na acepção vulgar do termo. Nada foi tirado ao livre-arbítrio do homem, que conserva sempre a liberdade de agir ou não, de evitar ou deixar que os acontecimentos se dêem, por sua vontade, ou por sua inércia; indica-se-lhe um meio de chegar ao fim, cabendo-lhe utilizá-lo. Supô-lo submetido a uma fatalidade inexorável, com relação aos menores acontecimentos da vida, é despojá-lo do seu mais belo atributo: a inteligência; é assimilá-lo ao bruto. O vidente, pois, não é um adivinho; é um ser que percebe o que não vemos; é, para nós, o cão do cego. Nada nisto há, portanto, que se contraponha aos desígnios da Providência quanto ao segredo de nosso destino; é ela própria quem nos dá um guia.

   Tal o ponto de vista donde se deve considerar o conhecimento do futuro, por parte das pessoas dotadas de dupla vista. Se fosse fortuito esse futuro, se dependesse do a que se chama acaso, se nenhuma ligação tivesse com as circunstâncias presentes, nenhuma clarividência poderia penetrá-lo e nenhuma certeza, nesse caso, ofereceria qualquer previsão. O vidente (referimo-nos ao que verdadeiramente o é), o vidente sério e não o charlatão que simula sê-lo, o verdadeiro vidente, não diz o que o vulgo denomina “buena-dicha”; ele apenas prevê as consequências que decorrerão do presente; nada mais e já é muito.

   Quantos erros, quantos passos em falso, quantas tentativas inúteis não evitaríamos, se tivéssemos sempre um guia seguro a esclarecer-nos; quantos homens se acham deslocados na vida, por não se haverem lançado no caminho que a Natureza lhes traçara às faculdades! Quantos sofrem malogros por terem seguido os conselhos de uma obstinação irreflectida! Uma pessoa houvera podido dizer-lhes: “Não empreendais isso, porque as vossas faculdades intelectuais são insuficientes, porque não convém ao vosso carácter, nem à vossa constituição física, ou, ainda, porque não sereis secundados, como fora preciso; ou, então, porque vos enganais sobre o alcance do que pretendeis e topareis com este embaraço que não prevedes.” Noutras circunstâncias, ter-lhes-ia dito: “Sair-vos-eis bem de tal empreendimento, se vos conduzirdes desta ou daquela maneira; se evitardes dar tal passo que não pode comprometer-vos.” Sondando as disposições e os caracteres, poderia dizer: “Desconfiai de tal armadilha que vos querem preparar”, acrescentando, em seguida: “Estais prevenidos, fiz o que me cumpria; mostrei-vos o perigo; se sucumbirdes, não acuseis a sorte, nem a fatalidade, nem a Providência; acusai-vos unicamente a vós mesmos. Que pode fazer o médico, quando o doente não lhe dá atenção aos conselhos?”

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, A segunda vista / Conhecimento do futuro. Previsões. 7º fragmento solto da obra.
(imagem de ilustração: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)