Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 29 de junho de 2013

Diálogos de Kardec ~


Influência perniciosa das ideias materia-listas

SOBRE AS ARTES EM GERAL; A REGENERA-ÇÃO DELAS POR MEIO DO ESPIRITISMO

Lê-se na secção “correio de Paris”, do Mundo Ilustrado, de 19 de Dezembro de 1868:

Carmouche escreveu mais de duzentas comédias e ‘vaudevilles’ e, quando muito, o nosso tempo apenas lhe conhecerá o nome. É que a glória dramática, que tantas cobiças desperta, é terrivelmente fugaz. A menos que um autor haja produzido excepcionais obras-primas, condenado se acha a ver o seu nome cair no esquecimento, logo que ele deixe de estar na berra. Mesmo durante o palco, a maioria lhe ignora a existência. Com efeito, o público, quando lê o cartaz, apenas atenta ao título da peça; pouco lhe importa o nome de quem a escreveu. Tente o leitor lembrar-se de quem escreveu tal ou tal obra encantadora, cuja lembrança lhe ficou. Quase sempre se encontrará na impossibilidade de referir esse nome. E quanto mais avançarmos, tanto mais assim será, pois que as preocupações de ordem material cada vez mais se sobrepõem aos cuidados artísticos.

“Precisamente a esse propósito, Carmouche contava uma passagem típica. Conversando, dizia, com o meu alfarrabista, acerca do seu comerciozinho, ele se manifestava assim: ‘Isto não vai mal, meu senhor, mas modifica-se; os artigos que se vendem já não são os mesmos de antes. Outrora, quando me surgia um rapaz de 18 anos, nove vezes em dez, era à procura de um dicionário de rimas; hoje, é para me pedir um manual das operações da Bolsa’.”

As preocupações de ordem material se sobrepõem aos cuidados artísticos; mas, como não ser assim, quando os maiores esforços se fazem para concentrar todos os pensamentos do homem na vida carnal e para destruir nele toda esperança, toda aspiração que ultrapasse essa existência? É lógica, inevitável semelhante consequência para aquele que nada vê fora do círculo estreito da efémera vida presente. Quando a criatura nada percebe atrás de si, nada adiante de si, nada acima de si, em que pode ela concentrar seus pensamentos senão no ponto onde se encontra? O que há de sublime na arte é a poesia do ideal, que nos transporta para fora da esfera acanhada de nossas actividades. Mas, o ideal paira exactamente nessa região extra material onde só se penetra pelo pensamento; que a vista corporal não pode varar, mas que a imaginação concebe. Ora, que inspiração pode o Espírito haurir da ideia do nada?

O pintor que unicamente houvesse visto o céu brumoso, as estepes áridas e monótonas da Sibéria e que julgasse estar ali todo o Universo, poderia conceber e descrever o brilho e a riqueza de tons da natureza tropical? Como querereis que os vossos artistas e os vossos poetas vos transportem a regiões que eles não vêem com os olhos da alma, que não compreendem e nas quais nem mesmo creem?

O Espírito somente pode identificar-se com o que sabe ou crê ser a verdade e essa verdade, embora de ordem moral, se lhe torna uma realidade que tanto melhor ele exprime, quanto melhor a sente. Se à inteligência da coisa junta a flexibilidade do talento, faz que suas próprias impressões se transmitam às almas dos outros. Mas, que impressões pode provocar nos outros aquele que não as tem?

Para o materialista, a realidade é a Terra; seu corpo é tudo, pois que, além dele, nada mais há, visto que a sua própria mente se extingue com a desorganização da matéria, como o fogo com o combustível. Não pode, portanto, com a linguagem da arte, exprimir senão o que vê e sente. Ora, se ele só vê e sente a matéria tangível, unicamente isso lhe é possível exprimir. Nada pode haurir de onde apenas vê o vazio. Se se aventura por um mundo que desconhece, entra aí como cego e, malgrado os esforços que empregue para elevar-se ao diapasão do idealismo, fica no terra-a-terra, como um pássaro sem asas.

A decadência das artes, neste século, resultou inevitavelmente da concentração dos pensamentos sobre as coisas materiais, concentração essa que, a seu turno, é o resultado da ausência de toda crença, de toda fé na espiritualidade do ser. O século apenas colhe o que semeou. Quem semeia pedras não pode colher frutas. As artes não sairão do torpor em que jazem, senão por meio de uma reacção no sentido das ideias espiritualistas.

Como poderiam o pintor, o poeta, o literato, o músico ligar seus nomes a obras duráveis, quando, em sua maioria, eles próprios não creem no futuro de seus trabalhos; quando não se apercebem de que a lei do progresso, força invencível que arrasta os Universos pela estrada do infinito, lhes pede mais do que descoradas cópias das criações magistrais dos artistas dos tempos idos! Toda gente se lembra dos Fídias, dos Apeles, dos Rafaéis, dos Miguéis Ângelos, luminosos faróis que se destacam da obscuridade dos séculos transcorridos, como fúlgidas estrelas em meio de profundas trevas; mas, quem se lembrará de notar o claror de uma lâmpada a lutar contra o brilho do Sol de um dia de verão?

O mundo caminhou a passos gigantescos desde os tempos históricos; os filósofos dos povos primitivos gradualmente se transformaram. As artes que se apoiam nas filosofias que lhes são a consagração idealizada, também tiveram que se modificar e transformar. É matematicamente certo dizer-se que, sem crença, as artes carecem de vitalidade e que toda transformação filosófica acarreta necessariamente uma transformação artística paralela.

Em todas as épocas de transformação, as artes periclitam, porque a crença em que se estribam não basta às aspirações engrandecidas da Humanidade e porque, não estando ainda adoptadas pela grande maioria dos homens os novos princípios, os artistas não ousam explorar, senão de modo hesitante, a mina desconhecida que se lhes abre sob os passos.

Durante as épocas primitivas, em que os homens unicamente conheciam a vida material, em que a Filosofia divinizava a natureza, a Arte buscou, antes de tudo, a perfeição da forma. A beleza corporal era, então, a qualidade capital; a arte se aplicou em a reproduzir e idealizar. Mais tarde, a Filosofia enveredou por nova senda; os homens, progredindo, reconheceram que acima da matéria havia uma potência criadora e organizadora, que recompensava os bons, punia os maus e fazia da caridade uma lei. Um mundo novo, o mundo moral se edificou sobre as ruínas do mundo antigo. Dessa transformação nasceu uma arte nova que fez palpitasse a alma sob a forma e junto à percepção plástica a expressão de sentimentos que os antigos desconheceram.

A ideia viveu sob a matéria; mas revestiu as formas severas da Filosofia em que a arte se inspirava. Às tragédias de Ésquilo, aos mármores de Milo, sucederam as descrições e as pinturas das torturas físicas e morais dos réprobos. A arte se elevou; revestiu carácter grandioso e sublime, porém ainda sombrio. Ela está toda, com efeito, na pintura do inferno e do céu da Idade Média, na de sofrimentos eternos, ou de uma beatitude muito distante, colocada tão alto, que nos parece quase inacessível; é talvez por isso que ela nos toca tão pouco, quando a vemos reproduzida na tela ou no mármore.

Também hoje, ninguém ousaria contestá-lo, o mundo está num período de transição, solicitado violentamente por hábitos obsoletos, crenças precárias do passado e verdades novas, que lhe são progressivamente desvendadas.

Assim como a arte cristã sucedeu à arte pagã, transformando-a, a arte espírita será o complemento e a transformação da arte cristã. O Espiritismo, efectivamente, nos mostra o porvir sob uma luz nova e mais ao nosso alcance. Por ele, a felicidade está mais perto de nós, está ao nosso lado, nos Espíritos que nos cercam e que jamais deixaram de estar em relação connosco. A morada dos eleitos, a dos condenados já não se acham insuladas; há incessante solidariedade entre o céu e a Terra, entre todos os mundos de todos os Universos; a ventura consiste no amor mútuo de todas as criaturas que chegam à perfeição e numa constante actividade, com o objectivo de instruir e conduzir àquela mesma perfeição os que se tornaram retardatários. O inferno está no próprio coração do culpado, que tem nos remorsos o seu castigo, não mais, todavia, eterno, e ao mau, que toma o caminho do arrependimento, se depara de novo a esperança, sublime consolação dos desgraçados.

Que inesgotáveis fontes de inspiração para a arte! Que obras-primas de todos os géneros as novas ideias suscitarão, pela reprodução das cenas tão multiplicadas e várias da vida espírita! Em vez de representar despojos frios e inanimados, ver-se-á uma mãe tendo ao lado a filha querida em sua forma radiosa e etérea; a vítima a perdoar ao seu algoz; o criminoso a fugir em vão ao espectáculo, de contínuo renascente, de suas acções culposas! o insulamento do egoísta e do orgulhoso, em meio da multidão; a perturbação do Espírito que volve à vida espiritual, etc., etc. E, se o artista quiser elevar-se acima da esfera terrestre, aos mundos superiores, verdadeiros Edens onde os Espíritos adiantados gozam da felicidade que conquistaram, ou, se desejar reproduzir alguns aspectos dos mundos inferiores, verdadeiros infernos onde reinam soberanamente as paixões, que cenas emocionantes, que quadros palpitantes de interesse se lhe depararão!

Sem dúvida, o Espiritismo abre à arte um campo inteiramente novo, imenso e ainda inexplorado. Quando o artista houver de reproduzir com convicção o mundo espírita, haurirá nessa fonte as mais sublimes inspirações e seu nome viverá nos séculos vindouros, porque, às preocupações de ordem material e efémeras da vida presente, sobreporá o estado da vida futura e eterna da alma.
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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Influência perniciosa das ideias materialistas, SOBRE AS ARTES EM GERAL; A REGENERAÇÃO DELAS POR MEIO DO ESPIRITISMO, 5º fragmento solto da obra.
(imagem de ilustração: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

sexta-feira, 21 de junho de 2013

~~~Párias em Redenção~~~


OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ (II)

   No Solar di Bicci, a nobre Beatriz lamenta o consorte ausente. Da açoteia da casa vislumbra, os remotos sinais da Siena augusta e querida. Apesar do conforto que a mima, sentindo-se mais uma vez a sós, nessas constantes ausências do marido, deixa-se consumir por ignoto abatimento. Presságio mórbido atormenta-a e, sem poder disfarçar a inquietação, busca o conselho da velha aia que a acompanhou no lar e fora sua predilecta amiga no reduto paterno. Intimamente, espera que o esposo, que supõe em Florença, a negócios, esteja a salvo de qualquer mal e retorne feliz aos seus braços ansiosos.

   Ocorria, porém, infelizmente, que Assunta, nos espaços de tempo em que se via liberta momentaneamente da constrição obsidiante do duque, se refugiava no local em que se fizera comparsa dos hediondos crime, investindo, assim, contra aquela que, de certo modo, supunha ocupar o seu lugar. Sumamente infeliz, o espírito da criminosa assassinada irradiava, com sua presença nefanda, insopitável mal-estar à jovem sensível, que, desconhecendo a tecedura das questões espirituais e desarmada da prece legítima – aquela prece que dulcifica o coração e ilumina o espírito –, recebia as influências perniciosas, intoxicando-se do fluído deletério da malfadada etrusca. Acostumada a um conceito de fé religiosa inoperante, por meio da qual os deveres maiores do crente são resolvidos pelo confessor, a jovem debatia-se na angústia, sofrendo a reacção psíquica da adversária gratuita, que a sitiava inexoravelmente.

   Sem outros recursos de que se pudesse utilizar, senão o amor da velha dama de companhia que a procurava encorajar, dissipando-lhe a apreensão, permanecia aflita.

   – Nesta oportunidade, desde que o meu esposo saiu do lar – relatou a jovem, nervosa –, experimento a desagradável presença de um ser intangível que me espia, raivoso, produzindo-me indizível mal-estar. Nas última horas, venho sofrendo sufocante sensação, parecida à asfixia produzida por mãos invisíveis que me alcançassem…

   Não pôde dominar a emoção. O choro abundante aljofarou-lhe o rosto, em lágrimas quentes.

   – Deve ser o calor, senhora – retrucou a serva, apreensiva –, nestes dias do ano, muito forte. A atmosfera sobrecarregada pelo pó torna-se quase irrespirável. Tudo isso logo passará, menina. Coragem! Quem já a viu assim, em outras épocas?! Façamos juntas um terço, para acalmá-la.

   Fitando a jovem lívia, a ama, a diligente Vitória, notou-lhe o aspecto ofegante, o suor porejante, resolvendo conduzi-la à alcova. Esfregou-lhe substâncias aromáticas e chamando uma outra auxiliar puseram-se ambas a abanar a dama, quase desmaiada. O peito arfava, e, de quando em quando, crispava as mãos, traduzindo tormentoso desespero. Sem saber o que fazer, Vitória recorreu à oração. Erguendo os olhos, cravou-os no Crucifixo preso à parede do dormitório. Como de seu costume, tomou de um terço e tentou a comunhão com o Alto. A mecânica das palavras, articuladas sem qualquer vibração mental, como se valessem mais pela quantidade do que pelo estado de comunicação interior com o Pai, fazia-se uma litania.

   Entrementes, a desencarnada, presa ainda às superstições a que se fixara enquanto no corpo, observando que a oração objectivava expulsá-la, a seu turno foi possuída de pavor e desprendeu-se da vítima, partindo dos sítios, tomada de angústia incoercível.

   Beatriz, logo esteve liberta dos fluidos mefíticos que a venciam, foi acometida de constrangedor cansaço, vindo a dormir.

   O sono de refazimento é sempre uma bênção. Desprende momentaneamente o espírito que, então se renova, recompõe o equilíbrio orgânico e psíquico, estimulando as forças gastas a se refazerem.

   A trama ultriz da perseguição espiritual apertava as teias que cingiam o invigilante criminoso às suas malhas.

   No leito fofo e macio, Girólamo estremece. Parcialmente livre pelo desprendimento através do sono natural, seu espírito reencontra o duque, que o aguarda na Esfera Imortal. Vencido pelo abatimento do cansaço, a princípio não tem noção exacta do que ocorre, naquele estado. Arrastado, porém, pela vítima, tornada sobrestante ímpio, este aflige com os recursos possíveis o desafecto ignóbil. O espírito do senense somente recobra a consciência espiritual após muito esforço, pois que, intoxicado pelos vapores do álcool, ingerido na noite anterior, tem também o espírito embriagado. Vendo-se em frente ao tio, deixa-se acometer por incomparável pavor e tenta evadir-se, sem o conseguir. Fios invisíveis, poderosos, atam-no ao rival que, transformado em sicário desumano, zomba das suas aventuras e dos poucos valores de que podia dispor para a evasão. Sacudido pelo ódio que destila emanação venenosa, o duque arrasta o sobrinho inerme nas suas garras e leva-o às regiões tenebrosas do Mundo espiritual, em cujos redutos experimentava a resultante da loucura que o envilecia…

   O medo é verdugo impiedoso dos que lhe caem nas mãos. Produz vibrações especiais que geram sintonia com outras faixas na mesma dimensão de onda, produzindo o intercâmbio infeliz de forças deprimentes, congestionantes. À semelhança do ódio, aniquila os que o cultivam, desorganizando-os de dentro para fora. Alçapão traiçoeiro, abre-se, desvelando o fundo poço do desespero, que retém demoradamente as vítimas que colhe…

   Da mesma forma que na Terra enxameiam redutos de sombra e dor, vales imensos de desgraçados que se aglutinam por leis de afinidades, valhacoutos de criminosos que respiram a mesma comunidade de homizio, em vandalismo desregrado, soutos sombrios de marginalizados morais, devesas para os que se refastelam na luxúria e participam dos seus conúbios, encontram-se esparsas, pela Terra e na intimidade das suas furnas, nos lugares pantanosos e desérticos da periferia, comunidades espirituais infelizes, que se rebolcam em estertores agónicos resultantes da infelicidade que elaboraram, produzindo vibrações de peso específico, pelos crimes perpetuados, nos tecidos muito subtis da organização perispiritual. Sofrem, sem consolo; agridem-se, sem termo; esfacelam-se, sem consumar os objectivos; afogam-se em sorvedouros que não cessam de arrastar, sem colimar a inconsciência, o que seria misericordioso; ardem em rescaldos abrasadores, sem fim; ultrajam-se, em desconforto total; fogem para lugar nenhum, sem abandonarem os recintos de miserabilidade em que se entrechocam; atiram-se em despenhadeiros sem fundo, nos quais esperam ir de encontro a lajes que os despedacem, sem consegui-lo; asfixiam-se em fundos fossos de lama… e desejam morrer, morrer no sentido de apagarem a razão, destruírem a consciência, esquecerem que vivem, não logrando êxito. Nenhuma palavra descreve esses verdadeiros Infernos, que a imaginação religiosa limitou, mas que, no entanto, se multiplicam punitivos, aglutinando os acumpliciados com a impiedade e a perversão com os ali refugiados, em alongada desesperação. Quanto mais densa a carga mortífera de fluidos venenosos que hajam expedido, enquanto na Terra, mais se lhes agregam forças pesadas que os chumbam aos centros interiores do planeta, donde dificilmente se poderão libertar, senão quando soa o clarim da Divina Misericórdia e corações compadecidos, na Terra; abrem os braços da maternidade para recolherem esses náufragos das antigas excursões carnais, revestindo-os de novo corpo, onde se refugiam buscando, temporariamente, esquecimento, reconsiderando atitudes através de expiações acerbas, nas quais a doblez e a atrocidade se diluem nas células cerebrais, muitas vezes incapazes de construir o raciocínio, por limitadas, enfermas. Esses excruciados, quando podem desfrutar essa imerecida misericórdia do Pai Amantíssimo, escondem-se em corpos doentes e deformados, reaparecendo amolentados e sem meios de comunicação exterior, emparedados na concessão da matéria para fugirem dos comparsas que os tentam seguir, para darem longo curso a vindictas, vampirizações, conúbios amorosos molestos, açulamento das pungentes penas… Naquelas “trevas exteriores”, reportadas pela palavra do Mestre dos mestres, não penetra a luz da compaixão nem o alívio da caridade; não conhece a linfa que mitiga a sede, nem a côdea do pão que diminui a fome da aflição; estranha-se a piedade e não lucila a fímbria de qualquer claridade fraternal; tudo são dores que a imaginação humana não concebe e penas que nenhuma poesia trágica pode chorar… Incontáveis, são nutridos pelos pensamentos que permutam com a Terra e que de lá retornam, mantendo as fontes mentais dos homens abastecidas pela sua vazão peçonhenta. De lá, fluem subjugações espirituais, crimes que o despeito engendra, assaltos morais que a inveja articula, assacadilhas contra a honra e a esperança, vivificadas pelo egoísmo dos que se desgraçam… Chacinas são elaboradas e pavios de guerra são acesos, pois que, nesses multifários antros, os mais desnaturados e ferozes sobrepõem-se aos outros, criando governos desapiedados, hediondos, onde a justiça da força e da descompaixão aterroriza, esmaga com as patas do poder arbitrário. Dir-se-ia que os que ali se excruciam sofrem ao abandono, esquecidos das Soberanas Leis do Amor… No entanto, “cada um colherá aquilo que haja semeado” – ensinou o Cristo de Deus, o Justo e Manso Amigo dos homens. Escolhido por cada um o tipo de sementeira que melhor lhe compraz, este vê-se compulsoriamente obrigado a colher os frutos da livre eleição. Tais efúgios foram construídos pelas mentes em desalinho dos que chegavam da vida carnal, conduzidos pelo veículo da morte, e que despertavam para a realidade, buscando, então, evadir-se, esconder-se da consciência culpada e gerando vapores densos que os ocultavam, transformando-se em atmosfera própria para os engodos dos enganadores-enganados… Acumpliciados, muitos continuavam, depois da perda do organismo físico, elaborando as comunidades de aflição, por própria responsabilidade dos culpados. Mesmo assim, a vigilância do amor constantemente liberta, socorre e remove os que ali se retemperam para futuras lutas, pois que, em caso contrário, com as doses elevadas das lancinantes cruezas de que se fazem objecto, se pudessem retornar ao convívio dos homens, imediatamente, destruí-las-iam, tal a voragem primitiva de que se tornaram portadores. A Sabedoria Divina os cerceia, unindo-os pelo padrão do mesmo crime, para que entre eles, que se conhecem, praticantes das mesmas abjecções, experimentem o travo do exílio e, posteriormente, lampeje o desejo de tudo esquecer, para recomeçar, credenciando-os, assim, a novas experiências.
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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 7. OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ 2 de 4, 23º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem: L’âme de la forêt _1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

sexta-feira, 14 de junho de 2013

O Espiritismo na Arte ~


Parte IV

(Escritores e oradores, o verdadeiro mérito; A influência da música)

|Abril de 1922|

O verdadeiro mérito, seja do escritor, seja do orador, consiste em fazer pensar, em provocar nas almas as nobres e santas exaltações, em elevá-las em direcção às alturas radiosas onde elas percebem as vibrações do pensamento divino, numa comunhão suprema.

No entanto, para que a alma se desenvolva e desabroche no êxtase das alegrias superiores é bom que a harmonia venha se juntar à palavra e ao estilo; é preciso que a música venha abrir, para a inteligência, os caminhos que levam à compreensão das leis divinas, à posse da eterna beleza.

A influência da música é imensa e, segundo os indivíduos, reveste-se das mais diferentes formas. Os sons graves e profundos agem sobre nós de tal maneira que o melhor de nós mesmos se exterioriza. A alma se desprende e sobe até às fontes vivas da inspiração.

Quando eu tinha que fazer uma conferência numa grande cidade, por mais de uma vez aconteceu dirigir-me, na véspera, à noite, a algum dos teatros líricos. Lá, escondido no fundo de um camarote, completamente isolado, eu me desinteressava de tudo o que se passava na sala ou no palco, para me deixar embalar pela obra musical. Sob a acção combinada dos instrumentos e das vozes, uma onda de ideias crescia no meu cérebro, um desabrochar de pensamentos e de imagens surgia das profundezas do meu ser. E, nesses momentos, eu determinava o meu tema com uma riqueza de matérias, uma profusão de argumentos, uma abundância de formas e de expressões que eu não poderia ter encontrado no silêncio e que nem sempre se apresentavam na minha memória no momento oportuno.

O som dos grandes órgãos e os cantos sacros produzem em mim impressões ainda mais profundas. Durante os momentos em que posso ouvir boa música, o poder da arte abre, para meu benefício, o domínio dos tesouros escondidos das mais belas faculdades psíquicas, para, em seguida, deixar-me recair pesadamente na corrente habitual do pensamento e da vida.

Na Terra, é pelo pensamento, oral ou escrito, que se comunica a fé e que se instruem os homens. Porém, no espaço, nos dizem os nossos guias, a música é a expressão sublime do pensamento divino.

Já aqui na Terra, pode observar-se que um escritor ou um orador que estude a harmonia vê crescer, em proporção, os recursos da sua imaginação, sua penetração das coisas e sua facilidade em exprimi-las. Certos homens talentosos não têm declarado que as suas mais belas obras tinham sido concebidas em horas de êxtase, provocadas pela audição de ecos longínquos de algumas notas desprendidas dos concertos celestes, quer dizer, da orquestra infinita dos mundos?
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LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte IV – Escritores e oradores, o verdadeiro mérito; A influência da música, 17º fragmento da obra.
(imagem: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

domingo, 9 de junho de 2013

Da sombra do dogma à luz da razão ~


NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA (III)

  O Espiritismo, tendo-nos dado a conhecer o mundo invisível que nos rodeia e no meio do qual vivíamos sem o sabermos, as leis que o regem, as suas relações com o mundo visível, a natureza e o estado dos entes que o habitam e, por consequência, o destino do homem depois da morte, é uma verdadeira revelação na acepção científica do termo.

   Pela sua natureza, a revelação espírita possui um carácter duplo: respeita simultaneamente a revelação divina e a revelação científica. Está ligada à primeira no que o seu advento tem de providencial, não sendo resultado da iniciativa e de um intento premeditado do homem; por os pontos fundamentais da doutrina serem resultantes do ensinamento dado pelos Espíritos encarregados por Deus de esclarecerem os homens sobre coisas que ignoravam, que não podiam aprender sozinhos e que é importante conhecerem, hoje que estão preparados para as compreenderem. Liga-se à segunda por este ensinamento não ser privilégio de nenhum indivíduo e ser dado a toda a gente através da mesma via; por os que o transmitem e os recebem não serem de forma nenhuma seres passivos, dispensados do trabalho de observação e de pesquisa; que não abdicam da sua opinião nem do seu livre-arbítrio; que o controlo não lhes é interdito, sendo antes, pelo contrário, recomendado; enfim, porque a doutrina não foi ditada em todas as suas partes nem imposta à crença cega; que é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos factos que os Espíritos lhes colocaram debaixo dos olhos e das instruções que lhe dão, instruções que estuda, comenta, compara e de que retira ele mesmo as consequências e as aplicações. Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é o facto de a fonte ser divina, a iniciativa pertencer aos Espíritos a sua elaboração ser consequência do trabalho do homem.

   Como meio de elaboração, o Espiritismo procede exactamente da mesma maneira que as ciências positivas, quer dizer, aplicando o método experimental. Apresentam-se factos de uma nova ordem que não podem ser explicados pelos meios conhecidos; observa-os, compara-os, analisa-os e, remontando os efeitos às causas, chega à lei que os rege; depois, deduz daí as consequências e procura-lhes as aplicações úteis. Não estabelece nenhuma teoria preconcebida; assim, não colocou como hipóteses nem a existência e a intervenção dos Espíritos, nem o perespírito, nem a reencarnação, nem nenhum dos princípios da doutrina; concluiu que existem Espíritos quando esta existência ressaltou como evidência da observação dos factos; e também o mesmo sucedeu com os outros princípios. Não foram os factos que vieram mais tarde confirmar a teoria, mas a teoria que veio subsequentemente explicar e resumir os factos. É portanto rigorosamente exacto dizer-se que o Espiritismo é uma ciência de observação e não produto da imaginação. As ciências só registaram progressos sérios depois de o seu estudo se ter baseado no método experimental; mas, até esse dia, sempre se acreditou que este método só era aplicável à matéria, enquanto o é igualmente às coisas metafísicas.

   Citemos um exemplo. Passa-se, no mundo dos Espíritos, um caso muito singular e de que certamente ninguém teria suspeitado; é o dos Espíritos que não acreditam estar mortos. Pois bem! Os Espíritos superiores, que o sabem perfeitamente, não vieram dizer antecipadamente: «Há Espíritos que julgam estar ainda a viver a vida terrestre; que conservaram os seus gostos, os seus hábitos e os seus instintos»; mas provocaram a manifestação de Espíritos desta categoria para que os observássemos. Tendo então visto Espíritos sem terem a certeza do seu estado ou afirmando que ainda faziam parte deste mundo e julgando ocupar-se das suas tarefas habituais, do exemplo concluiu-se a regra. A multiplicidade de factos análogos provou que não se tratava de uma excepção, mas de uma fase da vida espírita; permitiu estudar todas as variedades e as causas desta singular ilusão; reconhecer que esta situação é sobretudo distintiva dos Espíritos pouco evoluídos moralmente e que é característica de certos géneros de morte; que é só temporária, mas que pode durar dias, meses, anos. foi assim que a teoria nasceu da observação. Passa-se o mesmo com todos os outros princípios da doutrina.

   Assim como a ciência propriamente dita tem como finalidade o estudo das leis do princípio material, a principal finalidade do Espiritismo é o conhecimento das leis do princípio espiritual; ora, como este princípio é uma das forças da natureza, reagindo constantemente sobre o princípio material e reciprocamente, resulta daí que o conhecimento de um não pode estar completo sem o outro. O espiritismo e a ciência completam-se um ao outro: a ciência sem o Espiritismo fica impotente para explicar certos fenómenos unicamente através das leis da matéria; o Espiritismo sem a ciência não teria apoio nem controlo. O estudo das leis da matéria deveria preceder o da espiritualidade, por ser matéria e ferir primeiro os sentidos. Se o Espiritismo tivesse surgido antes das descobertas científicas teria sido uma obra abortada, como tudo o que surge antes de tempo.
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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 12 a 16, 5º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

domingo, 2 de junho de 2013

Inquietações Primaveris ~


A Escada de Jacob

Nascimento e morte determinam o trânsito especial entre o Céu e a Terra. Dia e noite, sem cessar, descem e sobem os anjos pela escada simbólica da visão bíblica de Jacob. Anjos são espíritos, e o Apóstolo Paulo esclareceu que são mensageiros. Trazem e levam mensagens de um plano para o outro. São mensagens de amor, de estímulo, de orientação e encorajamento. As mensagens são dadas, na maioria, através de intuições, na Terra, aos destinatários encarnados. Mas há também as que são dadas por via mediúnica, através de um médium, ou por sonhos. Essa comunhão espiritual permanente é conhecida desde as épocas mais remotas. Mas só em 1857, com a publicação de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, em Paris, o problema foi encarado como positivo e levado à consideração dos sábios e das instituições científicas. As Igrejas Cristãs, tendo à frente a Católica Romana, levantaram-se contra essa colocação, que diziam simplória, de um grave problema teológico. Só os clérigos e os teólogos, segundo elas, tinham direito a tratar do assunto. Um século depois, a questão estava nas mãos das Ciências e a Ciência Espírita, fundada por Kardec, era colocada à margem do mundo científico, por não possuir um objecto legitimamente científico, material, ao alcance dos sentidos humanos. Richet levantara, na Metapsíquica, a tese do sexto sentido, e Kardec sustentava que os fenómenos mediúnicos, pelo facto mesmo de serem fenómenos, constituíam o objecto sensível da Ciência Espírita.

Em 1830 os professores Joseph Banques Rhine e William McDougall lançavam na Universidade de Duke, na Carolina do Sul (Estados Unidos da América) a nova Ciência da Parapsicologia, para a investigação desses mesmos fenómenos. E em 1840 ambos proclamavam, com seus colaboradores, a prova científica da Clarividência. Dali por diante cresceu rapidamente no mundo o interesse pelo assunto e surgiram pesquisas e cátedras em todas as grandes Universidades da América e da Europa. Hoje a questão é pacífica no plano científico, e mesmo no religioso, pois a Igreja aceitou a realidade dos fenómenos e interessou-se efectivamente pelas pesquisas. A Parapsicologia avançou rapidamente, seguindo a trilha da Ciência Espírita, sem nenhum desvio.

Vencida a barreira dos preconceitos e das sistemáticas a que se apegavam numerosos cientistas, a Parapsicologia definiu-se como a Ciência do Homem. Rhine, ao aposentar-se na Universidade de Duke, estabeleceu a Fundação para a Pesquisa da Natureza Humana. A Parapsicologia sustenta a natureza espiritual do homem e suas possibilidades de acção extensiva e intensiva no plano físico e mental ou espiritual. “A mente, que não é física, age sobre a matéria por vias não físicas”, declarou Rhine, apoiado por grandes nomes da Ciência em todo o mundo. Essa declaração mudou o panorama cultural do planeta. Hoje ninguém duvida, quando nasce uma criança, que se trata de um espírito humano reencarnado biologicamente na Terra. Embora ainda existam sectores científicos infensos à nova Ciência, firmou-se no mundo de maneira definitiva. Os cientistas que a negam ou rejeitam são considerados como retrógrados ou se definem a si mesmos como pertencentes a religiões que não devem aceitar os novos princípios.

A morte perdeu o sentido de negação da vida. Os fenómenos Teta, um dos últimos tipos de fenómenos paranormais pesquisados pela Parapsicologia, nada mais são do que as comunicações mediúnicas. Além do trânsito entre a Terra e o Céu – o mais movimentado do mundo – existe agora a comunicação permanente entre os homens e os espíritos. As descobertas físicas no plano das pesquisas sobre a estrutura da matéria mostraram que não vivemos num mundo tridimensional, mas multidimensional. Os que morrem na Terra passam para os planos da esfera semimaterial, de matéria rarefeita, que a circunda, e, conforme o seu grau evolutivo, para as hipóstases espirituais entrevistas por Plotino, na fase helenista da Filosofia Grega. Nas sessões espíritas, em todo o mundo, milhares de pessoas conseguem conversar com amigos e parentes mortos, que dão provas evidentes de sua sobrevivência após a morte. As restrições dos sistemáticos e preconceituosos continuam, mas a realidade se impõe de tal maneira que essas restrições já diminuíram assustadoramente. A Terra se espiritualiza, apesar do materialismo das religiões. E a morte já não amedronta milhares dos milhões de criaturas que morrem todos os dias.

Geralmente não se pensa no que isso representa para a Humanidade. Entregues às suas preocupações absorventes do seu dia a dia, homens e mulheres ainda vivem na Terra como há milhões de anos. Cuidam da vida sem se preocuparem com a morte. Essa posição anestésica é útil na Terra, mas desastrosa nos planos espirituais. Nas manifestações de espíritos (fenómenos teta) pode-se avaliar o prejuízo causado às criaturas por essa alienação à matéria. Embriagados pelos seus anseios de conquistas materiais, praticamente tragados pela vida prática, a maioria dos que morrem não têm a menor noção do que seja a morte. Entram em pânico após o trespasse, apegam-se depois a pessoas amigas de suas relações, perturbando-as sem querer ou procurando, através delas, sentirem um pouco da segurança perdida na Terra. Além desses prejuízos, a falta de educação para a morte causa o prejuízo maior dos desesperos, angústias existenciais e loucuras que hoje varrem a Terra em toda a sua extensão. Por outro lado é preciso considerar-se os prejuízos imensos produzidos pela ignorância das finalidades da vida. As próprias Ciências sofrem dessa ignorância, que lhe barra o caminho de descobertas necessárias para a melhoria das condições da vida terrena.

Por mais atilados e dedicados que sejam os cientistas, se não tiverem conhecimento das leis fundamentais que regem o planeta e condicionam a Humanidade, não podem penetrar nas causas dos males e problemas que enfrentam. É questão pacífica que a falta de conhecimento preciso e amplo do meio em que estamos nos deixa entregues a perigos que não podemos prever. É o que agora mesmo acontece, no caso da poluição perigosíssima do planeta pelas exigências do desenvolvimento industrial. A falta de interesse pela Ecologia mergulhou o mundo numa situação desastrosa, que ainda não sabemos como poderemos superar. A Ciência ateve-se aos efeitos, deixando as causas por conta da Filosofia e da Religião. Esta última fechou-se em dogmas ilusórios, mandando às calendas a questão fundamental das causas. Entregues aos conhecimentos empíricos da realidade constatada nos efeitos, os homens conseguiram realizar a façanha trágica da poluição total do planeta, com os mais graves prejuízos para a vida humana, bem como os vegetais e os animais. Descuidamos da morte e perdemos a vida. Se não mudarmos urgente de atitude, transformaremos a Terra numa Lua sem atmosfera.

A nossa insistência na consideração escatológica da morte, na sua função essencialmente destruidora – negando-lhe o papel fundamental de controladora da vida e a de renovadora das civilizações –, parece ter provocado uma reacção em nossa própria estrutura ôntica que nos transformou em nadificadores de nós mesmos e de toda a realidade. O estranho privilégio que pretendemos, de sermos os únicos seres condenados ao nada, um Universo em que tudo se renova e se eleva, constitui a mais espantosa contradição de toda a História Humana. Essa contradição monstruosa deforma a figura do homem no mundo que ao invés de imagem e semelhança de Deus, aparece como a fera mais temível do planeta, onde as feras selvagens são sistematicamente destruídas e devoradas pelo animal dotado de inteligência criadora, sentimento, moral, compreensão de sua espiritualidade e sensibilidade ética e estética. O humanismo apaixonado de Marx, que sonhava sem o saber com o Reino de Deus na Terra, negou-se a si mesmo ao formular a teoria do poder totalitário e absoluto de uma classe social contra as outras. Larissa Reissner, que lutou pelos bolchevistas de armas na mão, mostra-se desolada, nas páginas brilhantes de seu livro Homens e Máquinas, ao referir-se aos campos de trabalhos forçados da URSS, em que antigos e bravos companheiros de luta pagavam sob o poder soviético o preço de suas ilusões para o fortalecimento do Estado-Leviatã de Hobbes. A terrível dialéctica das revoluções sociais materialistas, sem Deus e sem coração, levou o Marxismo ao pelourinho da lei de negação da negação, negando-se a si mesma no processo histórico. Sem o respeito do homem por si mesmo, pela sua condição humana, todas as tentativas de melhorar o mundo acabam na asfixia da liberdade, nadificando o homem depois de transformá-lo em objecto. É essa também a contradição fundamental de Sartre em O Ser e o Nada e na Crítica da Razão Dialéctica. Mas é precisamente das contradições entre a tese e antítese que podemos obter a síntese que nos dá a verdade possível de cada problema.

Os anjos que descem pela escada de Jacob, na alegoria bíblica, representam a tese da proposição existencial – a verdade possível do Céu, ou seja, dos planos divinos, entendendo-se por divino aquilo que supera a condição material. Mas são esses mesmos anjos que voltam para o Céu representando a antítese. O trânsito espacial resulta da síntese humana em que a proposta terrena e a resposta celeste se fundem no processo existencial da transcendência. Por isso Kardec rejeitou as revelações proféticas do passado, individuais e exclusivistas, que geraram as religiões da morte, estabelecendo o princípio das revelações conjugadas, de natureza científica, em que o mundo é a tese, o homem é a antítese e a verdade é a síntese. Essa síntese, como acentuou Léon Denis, é a mundividência espírita, de difícil compreensão para os anjos que descem e ficam na rotina terrena, no círculo vicioso das reencarnações repetitivas. A verdade possível é-lhes interditada, não por condenação divina, mas por opção própria. Quando eles romperem o círculo vicioso poderão compreender essa verdade, a verdade possível, ao alcance do homem que soube transcender-se. Na dialéctica espírita o homem propõe a tese, o espírito responde com a antítese e a Razão elabora a síntese do conhecimento possível. A religião, como ensinou Kardec, é a consequência da revelação espiritual fundida com a revelação científica. A verdade possível tem a sua legitimidade e a sua validade precisamente nessa fusão. Os limites da vida terrena condicionam a realidade humana às possibilidades cognitivas da mente humana actualizada na matéria. O espírito revela um princípio espiritual e o cientista revela a lei terrena a ela correspondente. Só nesse processo de perfeito equilíbrio o homem pode evitar os perigos do misticismo alienante, para viver na Terra em marcha para a transcendência, através da Existência. É esse o processo que permite a fusão dialéctica de Ciência e Religião, como fundamento de toda a verdade possível na Era Cósmica. Por isso, não insistimos no Espiritismo por sectarismo ou proselitismo, mas pelo facto inconteste de só ele nos oferecer os instrumentos conceptuais necessários à conquista da realidade. Sem a fusão da afectividade com a razão não poderíamos atingir a síntese do conhecimento geral, na fragmentação dos efeitos sem o esclarecimento das causas. O método indutivo da Ciência permite-nos reunir os efeitos para a compreensão possível da causa única e transcendente.
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José Herculano Pires – Educação para a Morte, A Escada de Jacob, 13º fragmento da obra.
(imagem: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)