Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 4 de outubro de 2015

Inquietações Primaveris ~


Espias e Batedores

A sondagem da morte pelos vivos vem da mais remota Antiguidade.

Através das manifestações da paranormalidade espontânea ou provocada, videntes e profetas, místicos cristãos, subtis maometanos, pitonisas gregas, hebraicas e romanas, magos babilónicos, xanãs das regiões árcticas, feiticeiros africanos, pajés dos trópicos e assim por diante empenharam-se na espionagem possível da morte. Já que todos morremos, é natural o interesse dos vivos pelo que os espera no reverso da vida. Os espias da morte sempre se mostraram misteriosos e sofisticados, servindo-se de atitudes e práticas que os distinguiam do comum dos homens. E como as faculdades paranormais estão sujeitas às variações do humor orgânico, surgiram entre eles os espertalhões egípcios, sumerianos, árabes e chineses, cultivadores de malabarismos e trapaças, encantadores de serpentes e evocadores de espíritos por meios pitónicos. Toda essa farândola de escamoteadores levou os videntes e profetas autênticos ao descrédito. As Ciências em desenvolvimento repeliram em nome da razão essa turba de delirantes profissionais e as religiões amaldiçoaram os que não exerciam essas funções em recintos sagrados, onde se faziam exclusivamente os milagres dessa espécie.

Dante Alighieri reergueu o prestígio dos videntes com as revelações espantosas de sua espionagem secreta (pois poeta é profeta) e pelas mãos de Beatriz percorreu os caminhos da deusa Hécate, espécie de inspectora dos reinos celestes e infernais, e ofereceu ao mundo a versão católica medieval das regiões de luz e sombra. Aumentou nas Igrejas a espionagem do Além e Shakespeare levou para os palcos as suas geniais encenações de fantasmas vingativos. Já entre os gregos haviam ocorrido coisas semelhantes, e na Guerra de Tróia as vidências proféticas de Cassandra semearam o terror das profecias nefastas. Vem de longe o prestígio e o temor dos agouros excitando os dons paranormais legítimos e incentivando as trapaças dos aventureiros. Nessa situação multimilenar de ambivalência temos a maior prova da naturalidade e permanente ocorrência desses fenómenos, e ao mesmo tempo a prova da sua normalidade, como manifestações inerentes à própria natureza humana. A designação científica de paranormal para esse tipo de manifestações revela o excessivo escrúpulo das Ciências em relação aos problemas que ameaçam os seus esquemas rígidos de uma realidade que ainda está longe de abranger na sua totalidade. No tocante apenas ao homem, à natureza humana, os trabalhos de cientistas eminentes como Richet, Crookes, Lodge, Zöllner e tantos outros causaram estupefacção e provocaram reacções brutais no meio científico, o que mostra uma mentalidade fechada e pré-científica. O caso da Parapsicologia é outra prova, e essa recente, da aversão da maioria dos cientistas pelas novas descobertas. Mas essa mentalidade, que Remy Chauvin chamou de alergia ao futuro, já não está a poder resistir ao impacto dos tempos actuais. Não obstante o misoneísmo das academias e outras instituições do género, as Ciências avançaram com tal rapidez neste século que não se poderá mais deter a sua marcha. As exigências tecnológicas e até mesmo o aumento populacional e as exigências bélicas empurram as Ciências para além dos seus estreitos sistemas, forçando-as a perseguir objectivos reais.

No passado recente o sábio Swedenborg, médium vidente e ectoplásmico, almoçando com o filósofo Kant na Alemanha, viu e descreveu-lhe o incêndio da sua própria casa em Estocolmo. Kant duvidou da veracidade do facto, que podia ser simples produto de alucinação. A notícia probante custou a chegar à Alemanha, mas acabou por chegar com os pormenores descritos por Swedenborg. Kant estabelecia a mais rígida linha demarcatória para os limites da Ciência, afirmando o princípio da impossibilidade da Ciência além da matéria. E isso se passava com um homem como Kant. Lombroso acusava Richet, em veementes artigos na imprensa, de devolver a Ciência à superstição, com as suas pesquisas de metapsíquica, e só compreendeu o seu erro depois que a sua mãe se materializou numa sessão com Eusapia Palladino e ele pôde segurá-la nos seus braços. Rhine foi acusado de fraude no seu controle estatístico das experiências parapsicológicas e teve de recorrer a dois congressos científicos para provar, através de exames das comissões competentes, que os controles estavam certos. Para negar os trabalhos de Crookes, inventaram que ele se apaixonara pela médium Florence Cook, pois fizera um poema em louvor à beleza de Katie King, o espírito que se materializava nas suas sessões experimentais. Todos esses factos, e muitos outros, revelam o baixo nível de uma mentalidade pseudocientífica, ainda imersa em tricas e futricas das fases escolares. Por isso Kardec declarou que os homens mais eminentes do planeta revelam às vezes uma leviandade que nos espanta, no trato dos mais graves problemas. Os títulos académicos e as cátedras absolutistas fazem subir a mosca azul à cabeça dos doutores que se julgam muito seguros na sua sabedoria, como se tivessem nas mãos todos os segredos da vida e da morte. Foram homens desse tipo universitário padronizado, dominados pelo fetichismo dos sistemas e das regras inadiáveis, como os clérigos aos seus dogmas, que tentaram e tentam, até hoje, esmagar debaixo dos pés, como baratas indefesas, as mais fecundas conquistas de cientistas independentes. Felizmente a Ciência não está subordinada a essas igrejinhas obstinadas e as grandes figuras do panorama científico tiveram a coragem moral de enfrentá-los em defesa da verdade.

Os videntes e os médiuns sinceros, embora ultrajados, perseguidos, ridicularizados, muitas vezes presos e condenados, nunca se atemorizaram diante desses sabichões (como Richet os chamou) e por toda a parte antecipou as conquistas científicas com as suas previsões. Tornaram-se os espias dos reinos proibidos e foram secundados pelos batedores atrevidos que não só espiaram de longe os mistérios ocultos, mas também penetraram nesses reinos para trazer ao nosso mundo obscuro, não o fogo do Céu roubado por Prometeu, mas as luzes da vida inextinguível que continuam acesas além das lápides dos cemitérios. Esses batedores audaciosos não temeram desprender-se dos corpos mortais sem morrer, para invadir os reinos proibidos. Kardec, na sua extrema prudência de homem de ciências, não aprovou essas aventuras, mas reconheceu o valor das que eram legítimas. Preferiu os métodos frios da pesquisa objectiva, aquecendo-os com o calor do amor pela Humanidade, e criou os métodos específicos da pesquisa espírita, adequados ao objecto da nova Ciência. Através deles, antecipou as descobertas tecnológicas de hoje, como a natureza extrafísica do pensamento e da mente, a constituição plásmica do corpo espiritual, os meios de comunicação com o mundo invisível, a pluralidade dos mundos habitados, a natureza cósmica e não apenas planetária da Humanidade, a possibilidade da acção da mente sobre a matéria e da possibilidade da comunicação com os espíritos de criaturas mortas, das aparições intangíveis e também das aparições tangíveis dos espíritos, a necessidade evolutiva das reencarnações, o problema do ectoplasma, que até hoje aturde os sábios de sabedoria escassa, e assim por diante. Ainda há pouco um desses sábios declarou à imprensa que os fenómenos de materialização de espíritos é hoje teoricamente possível, mas na prática é impossível, pois, para se produzir a materialização de uma criatura humana mediana precisaríamos de duzentos anos de produção de energia. Kardec já havia respondido a essa objecção há mais de um século, quando explicou que a materialização não é um fenómeno físico, mas fisiológico. Ninguém pode produzir um fenómeno de materialização, mesmo com a produção de energia eléctrica durante um milénio, se não dispuser do plasma específico emanado do corpo espiritual de um médium. O plasma físico, quarto estado da matéria, já descoberto por Crookes como matéria radiante, foi agora redescoberto pelos cientistas materialistas da Universidade de Kirov, na URSS, e os seus efeitos demonstrados em experiências sucessivas.

Faltou às Ciências do planeta a humildade necessária para compreenderem que até agora só se haviam preocupado com o aspecto sensível da Natureza (em termos platónicos) esquecendo-se do aspecto inteligível ou espiritual. Toda a realidade se constitui de espírito e de matéria, e o espírito é o elemento estruturador da matéria. Esse o nó górdio que as Ciências do mundo não puderam desatar, preferindo cortá-lo como o fez Alexandre, sem perceberem que nesse corte confessavam a sua potência e caíam no abismo inexplicável da morte. A Ciência Espírita desatou pacientemente o nó e por isso avançou muito além da ilusória sabedoria dos sábios terrenos. Isso não quer dizer que os espíritas tenham sido mais atilados, mas apenas que a humildade e a sensatez de Kardec os livraram de cair no mesmo alçapão. Como já compreendera Bacon, a Ciência é um acto de obediência a Deus. O cientista pode não acreditar em Deus, mas se não obedecer, às suas leis – que estruturam toda a realidade – nada poderão fazer. Ele começa por estudar as leis de cada campo da natureza em que pretende agir, e se não as conhecer com precisão e não as obedecer com rigor, jamais atingirá os seus objectivos. Repelir as manifestações paranormais, que sempre, em todas as latitudes da Terra e em todos os tempos se fizeram presentes e actuantes, pelo pressuposto anticientífico de que não passam de superstições populares, é dar prova de falta de senso e de pretensão orgulhosa. Negar a existência de um poder criador e ordenador do Cosmos é negar a evidência. O pecado das Ciências materialistas não é o da desobediência, pois elas não podem desobedecer a Deus, mas o estúpido pecado do orgulho arrogante. Na hora individual da morte de cada um, todos se curvam para o chão em obediência a Deus. Não há Ciência sem obediência. Essa é a lei básica de todo o desenvolvimento cultural. Não é sensato nem científico negar a realidade na qual estamos entranhados, na qual vivemos e da qual não podemos escapar. A cultura materialista não provém do conhecimento, mas do equívoco. E a finalidade da Ciência nada mais é que desfazer os equívocos para chegar à verdade. As bravatas dos astronautas materialistas que deram voltas na órbita da Terra e, não tendo encontrado Deus, chegaram à conclusão de que ele não existe, não passam de infantilidade. Isso prova que o materialismo leva ao infantilismo cultural. De outro lado encontramos o infantilismo das religiões dogmáticas e formalistas, que aceitam a existência de Deus na forma humana, fazem da criatura humana um Capuchinho Vermelho na Estrada do Bosque e assustam-nos com a imagem do Diabo em forma de Lobo Mau.

Os espias e os batedores da morte desfizeram as lendas ingénuas que nos encantam na infância, mas ao mesmo tempo mostraram-nos que elas correspondem a símbolos oníricos de realidades que devemos identificar ao amanhecermos como homens.

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José Herculano Pires – Educação para a Morte, Espias e Batedores, 20º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

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