Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...
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terça-feira, 22 de março de 2022

o grande desconhecido ~


O Problema das Mistificações 

(I de II) 

Durante um século tudo se fez para reduzir o Espiritismo a um caso de truques e malabarismos. A Igreja insistia na tese diabólica. E os cientistas que se atreviam a enfrentar a questão com seriedade eram ridicularizados, ameaçados e perseguidos. Criou-se o preconceito negativo da doutrina e uma imagem falsa de Kardec. Todos os grandes médiuns (i), inclusive Daniel Douglas Home, que nunca foi espírita, eram sistematicamente caluniados. Cientistas eminentes, como Charles RichetWilliam CrookesFriederich ZöllnerRussel WallaceSchrenck-Notzing e tantos outros, incontestáveis luminares da Ciência, foram submetidos a ataques ferozes. Em 1935 Richet morria e os inimigos da verdade, cevados nos proventos da mentira, proclamaram por toda a parte que, com o grande fisiologista francês, Prémio Nobel de Medicina, morrera também a Metapsíquica, a goécia (i) moderna, ciência monstruosa de profanação dos túmulos. Não sabiam os espertalhões que, antes de morrer, a Metapsíquica já se havia reencarnado na Universidade de Duke (i) (EUA) em novo corpo e com o novo nome de Parapsicologia. Os Profs. Joseph Banks Rhine (americano) e William McDougall (inglês) eram os fundadores dessa nova escola científica de pesquisa dos fenómenos espíritas. Com recursos técnicos de pesquisa, aplicando o método quantitativo sob controlo estatístico dos resultados, a Parapsicologia rompeu, em dez anos de lutas e trabalhos exaustivos, todas as barreiras dos preconceitos, da ignorância e dos interesses subalternos e se impôs ao reconhecimento universitário mundial, conseguindo mesmo furar a cortina de ferro do materialismo soviético e despertar o mais vivo interesse na URSS e em toda a sua órbita de influência. 

Diante dessa vitória esmagadora, os adversários mudaram de táctica e passaram também a tratar do assunto para reduzi-lo aos mínimos efeitos possíveis. O problema das fraudes e mistificações (i) morreu por si mesmo, perante as novas possibilidades de controlo absoluto das pesquisas. Esta última filha do Espiritismo, a Parapsicologia, tornou-se disputada por todos como se não tivesse a menor ligação e o mínimo laço de família com a Astronáutica, que se interessou pelos seus poderes e a tivesse transformado em sua valiosa auxiliar na conquista do Cosmos. A Física, ditadora das Ciências (segundo Rhine)confirmou a veracidade das suas proposições audaciosas, descobriu a antimatéria e com ela um novo espaço que se abria para o Outro Mundo. Os russos descobriram o corpo bioplásmico da sobrevivência do homem à morte e as investigações sobre a reencarnação tomaram conta do mundo científico. – Já não é possível negar a verdade espírita. Onde estão os trapaceiros que atavam panos às pernas das mesas e fotografavam essa ridicularia para explicar as famosas mesas girantes (i) como o truque mais grosseiro e indigno que se possa imaginar? Para onde fugiram os teóricos e os fantasmas de papelão e das alucinações visuais? Tudo isso se tornou tão ridículo, perante as evidências científicas da verdade, que hoje somente os pregadores religiosos de arrabalde e os pastores-camelôs (i) da salvação ainda se atrevem a gritar, perante as assembleias de fanáticos, que o Espiritismo é um instrumento do Diabo. 

Mas infelizmente os próprios espíritas inscientes se incumbiram (muitos deles travestidos de cientistas desconhecidos), de atiçar o fogo morto das velhas mistificações, tentando criar um antiespiritismo de orientação materialista-mecabicista (i), carregado de contradições internas e de todas as incongruências características de amadores sem formação. Ao mesmo tempo, extrovertendo as contradições internas, surgiram de mistura com o cientificismo (i) insolente – que considerava Kardec superado e as suas teorias empoeiradas – brotavam do chão, como as heresias do tempo de Tertuliano, estranhas florações de concepção arcaicas, mais velhas que o Reino de Sabá, eivadas de alucinações, loucura varrida e cheiro a enxofre. O Espiritismo regredia, nas mãos dos falsários, uns ingénuos e os outros vaidosos, às pretensões da alquimia medieval. Foi nessa fermentação espúria que explodiu a adulteração, elaborada em segredo e à porta fechada, como os assassinatos a punhal nos templos de Veneza. 

Procuramos dar a este episódio as cores necessárias, com as expressões e as comparações mais adequadas, porque ele é de grande importância na História do Espiritismo, o que vale dizer: na História da Evolução espiritual da Terra. O atentado a Kardec e a Jesus, à Doutrina Espírita e à Verdade Evangélica estava consumado. E nos trinta mil exemplares de O Evangelho Segundo o Espiritismo, que a Federação do Estado vendeu à larga por todo o Brasil, sob o prestígio do seu nome e do seu passado saíram impressos, para que todos lessem e aplaudissem, os esquemas do vandalismo planeado e já iniciado, que abrangiam toda a obra gigantesca da Codificação. E não houve nenhuma erupção vulcânica no meio espírita, contra essa insolência sem limites, a não ser a de um grupo pequenino e pobre. No silêncio mortal que se fez, por todo o Brasil, o único rumor sinistro era o do Véu do Templo, que se rasgava sozinho de alto a baixo, no salão vazio da antiga dignidade espírita. 

Tudo isso resulta das mistificações, não as ingénuas, tolas as mistificações das sessões de materialização, a que se dava tanta importância no passado e que hoje só podem acontecer entre criaturas desactualizadas e incapazes de tratar do assunto. As mistificações realmente perigosas são as doutrinárias e, estas procedem sempre de um conluio de homens e espíritos. Muitas Casas Espíritas começaram a deteriorar-se quando se entregaram à orientação de supostos mestres espirituais. Daí por diante, numa sequência natural, encheram-se de doutrinas próprias, chegando algumas a retirar dos seus cursos as obras de Kardec, fundando escolas meio igrejeiras e meio esotéricas, instituindo-se uma ginástica de passes classificados e manobrados ao estilo das antigas escolas magnéticas, criando ordens especiais do tipo de congregações marianas, chegando ao cúmulo de declarar em artigos de jornais que a sua linha doutrinária não era ortodoxa, mas heterodoxa. Isto queria, dizer que não seguiam a doutrina certa de Kardec, mas uma mistura de doutrinas espiritualistas. Todo o trabalho de Kardec, superando o espiritualismo infuso e confuso do passado para estabelecer uma linha racional de espiritualidade superior, ia por água abaixo. E ninguém percebia isso, aplaudindo aqueles que não conseguiram entender Kardec e por isso passando sobre ele afastavam a sua obra como empecilho, estorvo de velharia secular. Foi o teste inexorável da miséria cultural dos espíritas, do seu completo desconhecimento da doutrina e da sua falta de orientação histórica e filosófica. Nunca os espíritos mistificadores encontraram campo mais vasto, fecundo e propício à deformação total da Doutrina Espírita, para afastá-la da Terra justamente nesta hora grave e aguda de transição por que passamos. 

O problema das mistificações é permanente nos mundos inferiores, como o nosso. As criaturas incultas e grosseiras formam a maioria da população destes mundos. É evidente que a população desencarnada, espiritual, que sobrevive nas esferas circundantes ao planeta é da mesma natureza. Lá, como cá, enxameiam os espíritos vaidosos, sistemáticos (como advertiu Kardec), empenhados em passar as suas ideias aos homens. As ligações por afinidade formam os complôs de homens e espíritos que se julgam capazes de ensinar verdades absolutas. Basta a arrogância visível, embora disfarçada, às vezes, em falsa humildade, para mostrar aos observadores sensatos a que ordem e grau da escala espírita pertencem estas criaturas em conluio. Dos descuidados nada se pode esperar. Deixam-se levar facilmente e servem de instrumentos dóceis a todos os mistificadores. É contra isso que temos de lutar, sustentando firmemente a Obra de Kardec, que na verdade é o cumprimento da promessa do Consolador, a obra do Espírito de Verdade. Esse é um dos pontos-chave da doutrina. Quem não o compreender e não meditar sobre ele estará sempre sujeito a servir de instrumento aos mistificadores do além e do aquém. Restabelecer os ensinamentos do Cristo na sua pureza é a função do Espiritismo. Só a Doutrina Espírita tem condições para isso. Porque a revelação espiritual, confirmada pelas pesquisas e os estudos de Kardec, nos mostram que o Cristo não veio fundar uma religião, mas estabelecer os fundamentos de uma nova civilização. O seu ensino apresenta de forma sintética as três coordenadas doutrinárias: Ciência, Filosofia e Religião, que Kardec desenvolveu, sob a assistência constante do Espírito de Verdade. Há uma tese do Dr. Canuto de Abreu que contraria esta verdade histórica, suficientemente provada nas comunicações inseridas nas Obras Póstumas de Kardec e demonstrada ao longo de toda a sua obra. Os estudiosos têm de se prevenir contra estas ciladas da enorme e tumultuada bibliografia espírita. Por sinal que esta tese já vem marcada pelos seus absurdos e a sua incongruência. 

Vejamos bem a mecânica do processo histórico para podermos compreender a questão. Oliver Lodge e Léon Denis sustentaram veementemente a tese de Kardec, que nos apresenta o Espiritismo como uma síntese conceptual de toda a realidade. Isso quer dizer que a doutrina abrange na sua concepção toda a realidade acessível ao conhecimento humano. As conquistas actuais da Ciência e da Filosofia e as reformas em curso nas igrejas dão inteira razão a esta interpretação do Espiritismo. Coloquemos o problema num esquema esclarecedor, para tornar mais claros cada um dos seus aspectos: 

a) O conhecimento da realidade processa-se no contacto do homem com o mundo. Dos tempos primitivos à Civilização o homem luta sem cessar para dominar a Natureza. Esse domínio só é possível pela descoberta das leis naturais. Mas essa descoberta exige do homem a luta contra si mesmo. Porque o homem é um espírito condicionado pela encarnação num corpo de percepções animais. O homem está sujeito ao sensório, ou seja, à rede dos seus sentidos físicos que sofre o impacto de uma realidade externa e estranha à sua natureza íntima. Os sentidos lhe dão a percepção das coisas, mas ele elabora essa percepção na sua mente, sob a influência de lembranças espirituais (a reminiscência platónica do mundo das ideias) e ao formar no seu espírito os conceitos da realidade, pelo processo de abstracção, ele desenvolve o seu poder imaginativo. Os conceitos são imagens mentais de coisas e seres concretos, mas a essas imagens misturam-se os elementos provenientes dos desejos e anseios do homem. A realidade do homem é diferente da realidade natural concreta, como Descartes demonstrou que a imaginação avança para além da razão. Nesses avanços surgem as deformações do real e a falsificação do conhecimento. Todas as teologias sofreram desse mal e toda a cultura religiosa do mundo se desligou da realidade. As igrejas, as ordens espiritualistas, as irmandades secretas se impregnaram de elementos ilusórios, de pressupostos considerados como verdades fundamentais e assim por diante. A cultura mitológica do tempo de Jesus, que abrangia até mesmo o Judaísmo, aparentemente infenso ao mito, mas de facto envolvido numa mitologia grosseira, estava desligada da realidade, flutuando entre o mundo do espírito e o mundo da matéria. Javé, o Deus de Israel, assemelhava-se ao Zeus grego e ao Júpiter Romano na sua ira, no proteccionismo exclusivo de um povo, no gosto pelas homenagens e as reverências, no prazer de aspirar as carnes assadas e na volúpia pelo sangue de animais e dos homens. 

b) Talvez a única vantagem de Israel sobre os povos da época fosse precisamente a desvantagem do seu excessivo sociocentrismo, o egoísmo racista que atravessou os milénios e se conservou até mesmo na diáspora com a dureza do lendário diamante-Schamil com que Moisés teria escrito na pedra as tábuas da lei. Porque foi dessa centralização do ego que nasceu a possibilidade do aparecimento da primeira nação monoteísta do mundo. Javé não tinha condições, com o seu exclusivismo racista, para se transformar no Deus Único, mas o povo judeu aceitou-o como tal porque isso agradava às suas pretensões de superioridade. O deusinho intrigante e até mesmo alcoviteiro das tribos hebraicas, raivoso, parcial e contraditório, que punia com a lepra os que censuravam o seu amado Moisés e que após o Decálogo autoriza o seu protegido a realizar a bárbara matança do Sinai e revelava um espírito rancoroso de chefe tribal e um exibicionismo arrogante no tracto com os povos estranhos. Ao mesmo tempo, não dispunha de forças para impedir os assaltos de povos mais fortes e aguerridos aos seus pupilos que os egípcios e os babilónios, assírios e romanos conquistavam e submetiam à escravidão. Apesar disso, o povo judeu mostrou-se capaz de enfrentar todas as derrotas e decepções sem perder a confiança no seu Deus. Essa virtude estóica e essa fidelidade interesseira, aumentada por um proteccionismo escandaloso e, a coragem e tenacidade que demonstravam em todas as circunstâncias, deram a Javé uma posição excepcional. Não foi Deus, nesse caso, quem salvou o homem, mas o homem-judeu quem salvou o deusinho fanfarrão que lhe deu a Terra de Canaã, numa doação injusta, ilegal e bárbara, em que os beneficiados tiveram de conquistar o seu presente com batalhas alucinadas. Verdadeiro presente grego, que custou sacrifícios e perdas irreparáveis aos judeus ludibriados. Na verdade, Javé não deu nada, pois foram Moisés e Josué os conquistadores de uma nação tradicional, de estrutura feudal e uma cultura desenvolvida. Uma conquista militar longamente preparada nos quarenta anos de expectativa angustiosa no pequeno deserto do Sinai, com assaltos e pilhagens dos povos vizinhos. A destruição de Canaã foi um dos mais bárbaros genocídios da História. E sobre a terra ensanguentada, juncada de cadáveres, o povo ludibriado construiu os seus monumentos ao deus truculento, erguendo-lhe o Templo de Jerusalém com aras especiais para os sacrifícios de animais que Javé não podia comer, mas de cuja fumaça se alimentava aspirando-a pelas suas narinas divinais. 

Durante dois milénios se considerou o nascimento de Jesus em Israel como uma confirmação da grandeza de Javé. Mas essa grandeza era apenas uma fantasia, pois nem do ponto de vista humano, à luz dos sentimentos de justiça e dos princípios éticos se poderia ressaltar um só gesto de grandeza na atitude brutal de Javé. Hoje, à luz dos princípios espíritas, podemos compreender esta verdade assustadora, marcada a fogo nas páginas da própria Bíblia: 

c) Javé não era mais do que o espírito orientador do clã arrogante e ganancioso de AbraãoIsaac e Jacob na velha cidade mesopotâmica de Ur. Um guia espiritual de inferioridade inegável, deus guerreiro como os de Atenas e Roma, que se serviu da mediunidade espantosa de Moisés e dos Anciãos no deserto para se materializar entre aventureiros rudes e ignorantes, nas fumaradas de ectoplasma que envolviam em nuvens assustadoras a tenda do deserto. Nessas manifestações então inexplicáveis, Javé falava cara a cara com o seu Servo Moisés, dando-lhe o prestígio necessário para a consecução dos seus planos de conquista sanguinária. As pesquisas contemporâneas e actuais sobre esses fenómenos mediúnicos desvendaram o mistério. Os estudos de Max Freedom Long e André Lang, entre as tribos selvagens da Polinésia, revelavam o emprego de mana ou orenda, forças mágicas que Richet explicou racional e cientificamente como emanações orgânicas do corpo do médium e os russos provaram recentemente serem constituídas por um plasma físico formado de partículas atómicas livres. Javé, o Deus Supremo e Único, servia-se apenas dos elementos mágicos empregados pelos povos primitivos nos seus contactos com os espíritos. Esse mesmo elemento, que na sua expansão manifesta cheiro da ozona (i), foi considerado nas manifestações diabólicas da Idade Média como explosões de enxofre. Friederich Zöllner demonstrou, na Universidade de Upsala (Alemanha) que esse elemento, o ectoplasma, pode produzir explosões violentas, raios e relâmpagos, causando destruições como o poder da dinamite. Estas provas científicas modernas podem também explicar as manifestações ígneas assustadoras do Monte Sinai, no momento em que Moisés falava com Javé e este lhe aparecia em forma de silva ardente, segundo o Génese. 

Diante destas verificações, compreende-se a preferência de Jesus por Israel. E o maior milagre de Jesus apresenta-se como sendo a utilização do povo judeu, acostumado a essas manifestações mediúnicas, para o desenvolvimento da sua missão mediúnica de implantação na Terra da concepção do Deus único no plano social, transformando Javé numa imagem alegórica de Deus. A unicidade e universalidade dessa concepção foi obra exclusiva de Jesus, que viu a possibilidade de fazer de Israel o centro de expansão do Monoteísmo, que negou ao mesmo tempo o orgulho sociocêntrico de Israel e a multiplicidade dos deuses mitológicos. Daí as contradições profundas e insanáveis entre o Deus iracundo da Bíblia e o Deus ético, justo, providencial e universalmente paternal dos Evangelhos. A fusão absurda destes deuses antagónicos no Cristianismo explica-se pela incompreensão inicial e a deformação posterior dos ensinamentos de Jesus, através das lutas brutais e sanguinárias entre as seitas cristãs dos primeiros tempos. Os homens recebiam as palavras do Messias na medida das suas posições contraditórias. As condições do tempo eram propícias ao fanatismo e à História imparcial; escrita por pesquisadores universitários independentes, revela-nos o panorama de paixões exacerbadas, no meio de interesses políticos e sociais os mais diversos, que levavam facções violentas aos mais hediondos crimes. O Cristianismo que chegou aos nossos dias, através das igrejas cristãs do Ocidente e do Oriente, é a herança trágica das profanações. Os textos evangélicos falam por si mesmos, particularmente nas epístolas de Paulo e do Livro de Actos dos Apóstolos, do que foram as dissensões no próprio meio apostólico. Nem mesmo a Ressurreição de Cristo, que Paulo explicou de maneira clara e lapidar, chegou a ser compreendida. O culto pneumático, da manifestação dos espíritos, foi suprimido; a simplicidade livre das assembleias cristãs foi injectada de elementos complexos dos cultos religiosos pagãos e judeus; a comunhão memorial do Cristo com os discípulos através do pão e do vinho – praticada nas ceias cristãs e bem antes nos cultos canaanitas – foi transformada em sacramento sofisticado pela magia da transubstanciação; expressões evidentemente alegóricas que se tornaram em dogmas indiscutíveis, motivando morticínios de estarrecer. 

A comparação singela e tocante encerrada na expressão Cordeiro de Deus, referente aos sacrifícios de cordeiros nos altares do Templo para purificação de pecados, foi transformada em mistério sagrado que acobertou muitos crimes nefandos; a ressurreição no corpo espiritual tornou-se ressurreição absurda no corpo carnal, pela maneira como Tomé, o apóstolo dissidente, tocou as chagas de Cristo manifestado mediunicamente, acreditando tocar no corpo material já sepultado; Maria transformou-se numa das muitas virgens mães da Antiguidade de que trata Saint-Yves num livro excomungado; José passou de pai a padrasto numa posição equívoca e Deus perdeu novamente a sua unidade para se dividir no mistério de três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro. Só por milagre a definição de JoãoDeus é Amor sobreviveu a esse terremoto com a pureza ingénua de uma flor nos destroços. Nem se compreende que isso tenha sido possível no meio do entrançado de garras e caudas peludas, cheirando a enxofre, que lutavam para escurecer o Céu e ensanguentar a terra. Os erros dos copistas, as adulterações conscientes dos intérpretes sectários, as substituições ingénuas de reformistas ignorantes passaram à margem dessa definição de Deus sem atingi-la. O mais espantoso é que essas interferências criminosas não cessaram até hoje. As pretensas actualizações de linguagem dos velhos textos prosseguem nos nossos dias, com as edições deformadas da Bíblia pelas instituições guardiãs da sua pureza. Criou-se o dogma da Palavra de Deus para o velho livro judaico, digno de respeito histórico, mas as vestais dos textos preferem as palavras dos homens, mutilando, distorcendo, aleijando o verbo divino em cada nova tiragem da Bíblia. Se Deus falou, os homens o corrigem, porque Deus ainda não aprendeu a sujeitar-se aos caprichos formalistas das igrejas. Pois mesmo com essa permanência inquietante da censura humana, as definições de Jogo ainda não foram mascaradas. 

/… 


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XVIII – O Problema das Mistificações, (I de II), 20º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)  

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

o grande desconhecido ~


A Morte de Deus e o Século XX 

Depois da Filosofia Existencial, nascida da angústia e da solidão do teólogo dinamarquês Kierkegaard, explodiu no mundo convalescente das primeiras explosões atómicas em Hiroshima e Nagasaki, a espantosa novidade da Morte de Deus. Imitando o louco do Nietzsche (i), teólogos jovens e de formação universitária, europeus e norte-americanos, fizeram o comunicado fúnebre ao público mundial: “Deus morreu!” Como ninguém foi convidado para o enterro, nem se efectuou nenhum registo funerário da ocorrência nos cartórios civis do mundo, acreditou-se que tudo não passava de uma alucinação. Mas os teólogos insistiram com uma série de livros transbordantes de erudição e cultura, o que perturbou os espíritos crentes em Deus. Para tranquilizar os assustados, os teólogos agoireiros obedeceram ao velho preceito: “Rei morto, Rei posto” e, colocaram Jesus de Nazaré (i), o Cristo, provisoriamente no Trono do Império Cósmico. “Agora – diziam os teólogos, na euforia de herdeiros ambiciosos perante o Cadáver Sagrado – agora temos de instalar o Cristianismo Ateu à espera de um Novo Deus que deve surgir.” 

Não se trata de uma brincadeira nem de galhofa, mas de coisa sumamente séria, pois, como diziam os nossos avós: “Com Deus não se brinca!” Mas os livros dos teólogos cortadores de mortalha não convenceram ninguém, a não ser a eles mesmos. É fácil compreender-se que houve um engano. O que havia morrido não era Deus, que não pode jamais ser enterrado no cemitério em ruínas dos deuses mitológicos. Quem na verdade estava a agonizar e, continua em lenta agonia, sustentada por milhões dos seus beneficiários do profissionalismo religioso, era a generosa sabidíssima senhora chamada Teologia. Essa pretensiosa dama de certezas absolutas e irrevogáveis estava em estado de coma, mas continua a resistir às tentativas impiedosas da morte. A maioria dos teólogos viu-se em dificuldades e apenas alguns aderiram à estranha ideia. Seria uma hecatombe mundial, ficarem todos eles órfãos e sem qualquer herança, pois só Deus lhes havia prometido a partilha do seu Reino. Jesus-Cristo, herdeiro directo e filho consanguíneo de Deus, não tomou conhecimento deste assunto e não assumiu o Trono do Universo. A situação tornou-se caótica e as brigas dos herdeiros acabaram reduzindo a espantosa novidade num bate-boca de neuróticos de guerra. Andam por aí os livros dos teólogos do complô deicista, lidos por eles mesmos e alguns curiosos retardatários, pois só eles entendem o que escreveram, se realmente entendem. São livros tecidos em teses de filigranas brilhantes e sofismas escorregadios, como as de Bizâncio na sua hora final. Dão-nos a impressão do jogo dos velórios da civilização utópica de Hermann Hesse, onde a face gelada de um lago alpino enregelava um teólogo de vez em quando. 

Não nos interessam essas lamentações de carpideira em torno de um hipotético cenotáfio (i), túmulo vazio construído no pós guerra, sobre terreno impuro de ossadas sem sepultura. Esta hora não é de morte, mas de ressurreição. Cumprindo a promessa do Cristo, o seu ensino puro ressuscita das criptas de envelhecidas catedrais e anuncia por toda a parte a nova Alvorada da Verdade. William Hamilton, Thomas Altizer, Paul Van Brune, Gabriel Vahamtaan e todo o bando necrófilo da Morte de Deus não conseguiram até agora dizer mais do que isto: que Deus morreu no nosso século e que esse é um episódio histórico. Mas onde estão as provas históricas dessa morte ideológica e alógica? Só o louco do Nietzsche (i), de quem eles herdaram a loucura, ouviu as pancadas soturnas do coveiro que abria a cova e, esse louco era uma ficção. Se os teólogos continuam a ensinar as suas teologias fanadas, os místicos a destilar os seus óleos sagrados, os sacerdotes a cobrar mais caro os seus sacramentos, o populacho a arrastar-se de joelhos nas velhas escadarias das igrejas, judeus e cristãos a manter os seus cultos por toda a parte, nem mesmo o Deus da Bíblia deixou de existir. Se não aconteceu a morte física de Deus e nem mesmo a morte metafísica, se na mente dos intelectuais e na fé popular Deus continua imperando, é claro que o bando necrófilo está a delirar. 

Mas esse episódio serve para ilustrar a esquizofrenia catatónica deste século estranho, em que vacilamos entre a paranóia e o sadismo, com furacões de obsessão individuais e colectivas a varrerem a face poluída do planeta. A todo o momento os vendavais arrancam os homens do chão e os atiram ao ar em cambalhotas alucinantes. Os espíritas, que conhecem o problema da obsessão e sabem que não são encenações do exorcismo, mas a lógica persuasiva da doutrinação evangélica o remédio certo e eficaz para este momento, precisam, mais do que nunca, firmar-se nas obras de Kardec para não serem também virados de pernas para o ar. Muitos já se deixaram levar pelas rajadas da invigilância, caindo no ridículo e chegando até mesmo à profanação da doutrina. Outros aceitaram e propagam, na teimosia característica da fascinação, obras e doutrinas absurdas, carregadas de malícia das trevas, ludibriando criaturas ingénuas com a falsa importância das suas posições em organismos doutrinários ou o falso brilho dos seus títulos universitários. Outros se aboletam na sua arrogância de pseudo-sábios, pretendendo superar a doutrina com livros encharcados pelo barro escuro das regiões umbralinas. É incrível como todas essas tolices empolgam pessoas desavisadas por toda a parte, formando os quistos de mistificação que minam o movimento doutrinário.

Se mesmo fora do campo doutrinário e, entre pessoas de inegável cultura e brilho intelectual, surgem loucuras como essa da Morte de Deus e da criação do Cristianismo Ateu, pode avaliar-se ao que estamos expostos no Espiritismo, onde só a advertência do Cristo: “Vigiai e orai,” poderá livrar-nos de quedas desastrosas. Mas não basta vigiar montado nas cavalgaduras da pretensão e da vaidade, porque o inimigo não ataca de frente, insinua-se subtil no nosso íntimo, excitando o vírus da vaidade e  infestando-nos por dentro. Desde então, pensamos com as ideias de outrem e aceitamos a sua colaboração, senão o seu Comando, com a ingenuidade dos defensores de Tróia que aceitaram o presente grego do cavalo de pau. Pedro capitulou, por medo, na hora do testemunho. Por vaidade, ignorância e interesses secundários muitos espíritas estão capitulando nesta hora decisiva. A nossa vigilância tem de ser interna, sobre nós mesmos, sobre a nossa fauna interior que o inimigo utiliza contra nós. Se os teólogos necrófilos aceitaram a sugestão da morte de Deus e caíram no ridículo, porque haveriam os espíritas de rejeitar a sugestão de deturpar os textos doutrinários para actualizá-los, prestando enorme serviço à doutrina? As sugestões das trevas são assim: falam-nos do dever para nos lançar na traição. Caímos facilmente porque não vigiamos e não oramos. O orgulho e a ambição substituem em nós as palavras humildes da recomendação do Mestre. E depois reclamamos dos Espíritos Superiores o auxílio que nos faltou na hora crucial, como se já não devêssemos estar há muito preparados para enfrentar essa hora.

Se os teólogos realmente compreendessem Deus e os Espíritas conhecessem de facto a sua doutrina, as entidades sombrias não encontrariam uma nesga de treva para se ocultarem nos seus corações iluminados pelo amor. Não somos traídos, traímo-nos. A traição não vem da malícia, brota da nossa mente transviada e do nosso coração orgulhoso. Se não compreendermos isso profundamente estaremos sempre expostos aos ventos malignos. A fidelidade ao bem tem um preço que pagamos aos poucos, nas moedinhas tilintantes do dia-a-dia, rejeitando os sopros da vaidade que tentam acender a fogueira do arrependimento. Um elogio discreto que nos agrada, uma palavra de estímulo que nos estufa, um gesto de cortesia que nos comove, um ingénuo cartão de saudações, um abraço de fingida gratidão são essas e muitas outras as moedas que não caem como o óbulo da viúva, mas como as moedas envenenadas dos cambistas. Ao som dessa música subtil cresce em nós a mandrágora do orgulho, a flor roxa e perigosa dos filtros mágicos. Acreditamos na nossa grandeza com euforia, para mais tarde cairmos na nossa insignificância com desespero.

Por que motivo Deus, se tivesse de morrer, haveria de escolher o Século XX da Era Cristã? Para morrer cristão, Ele que é o Senhor do Cristo? Por que razão os Espíritas haveriam de escolher o nosso século (XX)* para revisar e corrigir Kardec, justamente quando as Ciências, a Filosofia, a Religião e toda a Cultura Humana estão a comprovar o acerto absoluto de Kardec e seguindo o seu esquema de pesquisa numa realidade sempre vitoriosa? A resposta a essas duas perguntas é uma só: Porque é nas horas de entusiasmo, de vitória, de renovações em marcha, que estamos desprevenidos e confiantes em nós mesmos, certos de que tudo vai bem e de que – (este é o motivo da queda) – chegou o momento em que os nossos esforços serão reconhecidos e nos porão na fronte a coroa de louros que nos negaram. Não é a hora do Cristo nem a da Doutrina, mas a nossa hora, pessoal, que nos fascina.

Vejamos a triste figura desses teólogos, filósofos, historiadores da Cultura, exegetas da Palavra de Deus, que de repente, decepcionados com as atrocidades dos homens (que sempre foram atrozes) proclamam em orações brilhantes e livros falaciosos o absurdo da Morte de Deus, que não conseguem explicar nem justificar, por mais que escrevam. Charles Bent dá-nos uma informação valiosa: William Hamilton foi apresentado como uma espécie de Billy Graham da Morte de Deus. Numa de suas prédicas em São Paulo o famoso Billy, que empolga multidões, respondeu à pergunta de um assistente com a maior leviandade: “O Espiritismo é obra do Demónio.” A glória de Hamilton define-se neste episódio. Hamilton é o novo Billy. Não se precisa dizer mais nada. E Bent considera-o como sendo, talvez, o mais inteligível dos expositores do problema da Morte de Deus. Sobre o cadáver suposto de Deus os camelôs da hecatombe divina disputam a túnica do Cristo. É evidente o fogaréu de vaidade que arde na frágil carne dos homens. Se o Espiritismo, que cumpre a promessa do Consolador na Terra, é obra do Diabo, o que será essa obra de demagogia e sofisma que pretende renovar a concepção cristã de Deus na prática de Brutus, assassinando Deus pelas costas? 

Os homens enrolam-se nas suas próprias palavras, como as abelhas domésticas na barba do seu tratador. Os sofistas gregos provavam todas as contradições, mostrando que a verdade não passava de um jogo de palavras. Mas entre eles estava Sócrates, protegido pelo seu daemon, o seu espírito amigo, que de repente começou a perguntar aos sofistas: O que é isso? Todos os sofismas se esboroavam, como castelos de areia, quando Sócrates pedia a definição dos conceitos. Sim, porque ele descobrira que a verdade estava nos conceitos e não nas palavras. Quando Billy e Hamilton perguntarem a si mesmos o que estão a dizer, terão a verdade, mas enquanto continuarem a jogar com palavras perante as multidões de basbaques e fanáticos, não passarão de sofistas modernos que enganam a si mesmos e aos outros. O mal mais ameaçador da nossa civilização é o desenvolvimento excessivo da mente-oral. O abuso desse processo mental aviltou o mundo das palavras. Vem de longe esse mal, desde os judeus palradores que assustavam os romanos com as suas infindáveis querelas, o matraquear atordoante dos clérigos medievais, as trapaças doiradas dos bizantinos e a demagogia burguesa que produziu o Terror na França e se espalhou pelo mundo no papagaiar político e religioso que estourou em matanças inomináveis na boca de Hitler, Mussolini e as suas quintas-colunas genocidas. Depois das explosões atómicas de Nagasaki e Hiroshima e da escalada norte-americana no Vietname, não era de admirar o assassinato misterioso de Deus, pois quem odeia a Criação deve odiar também o Criador. 

No meio espírita os faladores fazem sucesso, como em toda a parte, pois os espíritas são criaturas humanas contagiadas, como toda a espécie, pelo mal verborrágico (i). Tem sido difícil convencer o povo ingénuo de que os grandes faladores não passam de mistificadores. Falam com atitudes teatrais, de olhos fechados para convencer os basbaques de que estão sendo inspirados por elevadas entidades espirituais, quando na verdade repetem palavrórios decorados ou simplesmente destrambelham os mecanismos repetitivos de sua mente-oral. 

Este é um problema grave num meio interessado numa doutrina lógica, profundamente conceitual, onde a insensatez palavresca funciona como tóxico mental, encobrindo e aviltando a Verdade. Precisamos de expositores doutrinários conscientes da sua responsabilidade e não apenas interessados em fascinar as massas. Não temos nem devemos ter tribunos eloquentes nas nossas assembleias, mas estudiosos (i) da doutrina que procurem transmitir os seus princípios racionais aos adeptos pouco acostumados a raciocinar. Não há lugar para sofistas num movimento que busca unicamente a Verdade, que não está nos sofismas e sim na limpidez dos conceitos. Também os espíritas se comprometem com o complô da Morte de Deus quando dão apoio e estímulo criminoso aos palradores inveterados. 

/… 
* Adenda desta publicação.


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XVI – A Morte de Deus e o Século XX, 16º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)

terça-feira, 23 de junho de 2020

o grande desconhecido ~


~ a trama de acções e reacções na vida humana

Problema intrigante para muita gente é o das acções e reacções dos indivíduos e dos grupos humanos em face da teoria do livre-arbítrio. Há quem não consiga entender essa duplicidade contraditória, perguntando como podemos ser responsáveis por actos que já estavam determinados no nosso destino. Fala-se no Karma, palavra indiana de origem sânscrita, como de um fatalismo absoluto a que ninguém escapa. A palavra Karma não pertence à terminologia espírita, mas infiltrou-se no meio espírita, através das correntes espiritualistas de origem indiana por dois motivos: o seu aspecto misterioso e a vantagem de reduzir ao mínimo a expressão lei de acção e reacção. Não há nada de prejudicial nesta adaptação prática de uma palavra estranha, cujo conceito se adapta perfeitamente à expressão espírita. O prejuízo aparece quando certas pessoas pretendem que a palavra mantenha entre nós o seu significado conceitual de origem, modificando o sentido do conceito doutrinário. Segundo o Espiritismo, a acção e reacção dependem da consciência. A responsabilidade humana decorre das exigências conscienciais e está sempre na razão directa do grau de desenvolvimento consciencial das criaturas. Por outro lado, esse desenvolvimento depende das condições de liberdade e do grau de opção de que as criaturas dispõem. Justamente por isso o problema, que parece simples à primeira vista, torna-se bastante complexo quando o examinamos.

Nas fases inferiores da evolução, em que o princípio inteligente passa por acções e reacções destinadas a desenvolver as suas potencialidades, a acção da lei é natural e automática. Não existe ainda a consciência individual colectiva responsável; nas fases seguintes, até ao plano dos animais superiores e dos antropóides, a consciência está ainda em formação; mas ao iniciar-se a humanização, quando o espírito recebe, segundo a expressão bela de A Génese, de Kardec – quando Deus põe o seu selo na fronte do indivíduo, com a auréola da Razão – ele e o grupo começam a assumir a responsabilidade dos seus actos e pensamentos. Este princípio não se refere apenas a essas fases iniciais, mas estende-se a todo o desenvolvimento humano, como vemos em diversas passagens evangélicas, como na resposta de Jesus aos fariseus: “Até agora disseste não saber e não tinhas pecado, mas agora dizes saber e subsiste o vosso pecado.” E como no caso da mulher adultera, em que ninguém atirou a primeira pedra para a sua lapidação. Dessa maneira, parece-nos fácil a compreensão do problema. Quem faz, sabendo que faz, é responsável pelo que fez. Quem faz por instinto, automatismo, compulsão inconsciente ou condicionamento social não tem responsabilidade pelo que fez ou pelo menos tem a sua responsabilidade atenuada. Por outro lado, as compulsões determinadas pelo passado nem sempre são fatais, podendo ser atenuadas ou mesmo eliminadas pelo comportamento favorável dos responsáveis na vida actual. Dessa maneira, não há contradição, mas sequência e equilíbrio entre o fatalismo das consequências anteriores e a liberdade actual do indivíduo ou grupo. E a própria responsabilidade colectiva não é massiva, distribuindo-se o efeito na medida exacta das responsabilidades individuais de cada um dos seus componentes. Há ainda o problema do fatalismo voluntário, decorrente do pedido de espíritos culpados de passarem pelo que fizeram aos outros. Nesses casos, a consciência pesada do indivíduo ou do grupo só pode aliviar-se com a auto-imolação dos culpados. Com isso desaparece a falsa teoria da Ira de Deus e da vingança divina provinda de épocas de obscurantismo e de concepção extremamente antropomórfica de Deus. A Justiça Divina, segundo a concepção espírita, não é ditada por um tribunal remoto e de tipo humano, mas exclusivamente pela consciência do réu. É ele mesmo quem se condena, no tribunal especial instalado na sua consciência. Por isso, enquanto essa consciência não está suficientemente desenvolvida, a punição tarda, mas quando ela atinge o grau necessário de responsabilidade a punição manifesta-se de maneira rigorosa.

Como pode uma criança inocente, pergunta-se às vezes, ser condenada por Deus a morrer esmagada num acidente? Primeiro temos de lembrar que a criança não é inocente, mas está vestida com a roupagem da inocência, como observou Kardec (i). Depois, é preciso lembrar que o homem responsável pelo acto de brutalidade em que esmagou uma criança no passado, sob o amparo da legislação humana, sente a necessidade de sofrer uma violência correspondente, para livrar a sua consciência do peso que a esmaga e que o impede de continuar a avançar na sua evolução. Os familiares da criança são co-participantes do crime do passado e pagam a sua cota de responsabilidade com o mesmo fim de se libertarem. Aquilo, pois, que parece uma atrocidade divina, não passa de uma imolação em grupo, determinada pelas próprias consciências culpadas. Mas há também imolações voluntárias e sem culpa que as justifique, pedidas por espíritos que desejam socorrer criaturas amadas que se afundam nas ilusões da vida material, necessitando de um choque profundo que as arranque do caminho do erro, onde acumulam consequências dolorosas para si mesmas. São actos sublimes de abnegação e de amor, que elevam o espírito abnegado e abrem novas perspectivas para os que sofreram o que, na nossa ignorância, chamamos desgraça determinada pela impiedade divina. Os responsáveis pelo acidente responderão por sua culpa no tribunal das suas próprias consciências.

Os Espíritos falam em contabilidade divina, em registos e ficheiros especiais do mundo espiritual, para nos darem uma ideia humana da Justiça Suprema, mas essa Justiça não precisa dos nossos recursos inseguros e precários. A mecânica de acções e reacções é processada subjectivamente em cada um de nós e o ficheiro de cada indivíduo está visível nos registos da memória de cada um, inscritas de maneira viva e ardente nos arquivos da consciência subliminar (subconsciente) a que se referia Frederic Myers. Não há organização mais perfeita e infalível do que essa. A misericórdia divina manifesta-se nas intervenções consoladoras e nos socorros dispensados aos sofredores para que possam suportar os seus pesados resgates. Mas por quê toda essa complicada engrenagem, se Deus é omnipotente e omnisciente? Não poderia Ele, no seu absolutismo total, livrar as criaturas desse trânsito penoso pelos caminhos da evolução, fazendo-as logo perfeitas em acto? Essa objecção comum, provinda dos desesperados ou dos materialistas, provêm da ideia falsa do mundo como uma realidade mágica, produzida por Deus no simples acto oral do fiat (i). A complexíssima estrutura da realidade, nas suas múltiplas dimensões cósmicas, devia ser suficiente para nos mostrar quanto ainda estamos longe de compreender Deus. Certamente não seriamos nós, criaturas do seu amor, em fase embrionária de desenvolvimento espiritual que iríamos perceber agora o que Ele sabe desde todos os tempos. Temos de rever os nossos ingénuos conceitos de Deus, gerados pela nossa pretensão e as nossas superstições. Se Deus pudesse fazer tudo mais fácil, com a destreza inconsequente de um malabarista que tira os coelhos da cartola, é evidente que já seriamos há muito tempo anjos, arcanjos e serafins, revoando felizes e inúteis nas regiões celestiais. Indagar como e por que motivo Deus não age como um malabarista é simplesmente revelar a extensão da nossa ignorância. Como podemos conhecer os problemas divinos, se ainda não conhecemos sequer os humanos?

Mas podemos imaginar o seguinte, a partir de certas concepções contemporâneas, como a teoria do físico inglês Dirac sabre o oceano de electrões livres em que o Cosmos estaria mergulhado, a da luz infravermelha de que o Universo teria surgido, segundo os físicos russos, a teoria do Deus-Éter, de Ernesto Bozzano, e, por fim, a que nos parece mais aceitável, a tese de Gustave Geley, ex-presidente do Instituto de Metapsíquica de Paris, sobre o dínamo-psiquismo-inconsciente que impulsiona todas as coisas do inconsciente ao consciente, sendo este o título do seu livro a respeito. Deus poderia ser interpretado, à luz dessa teoria, como a Unidade no Inefável da intuição pitagórica ou o Eterno Existente e Incriado da concepção budista. O dínamo-psiquismo de Geley explicaria, no caso, o estremecimento inexplicável da Unidade que desencadeou a Década, estruturando o Universo. O dínamo-psiquismo-inconsciente de uma realidade estática teria atingido o consciente, num tempo remoto em que a Consciência Única e Suprema surgiria na solidão do Caos, gerando por sua determinação consciente e a sua vontade a estrutura do Cosmos, com todas as leis que o regem. Consciência Única e Suprema, seria a Inteligência Absoluta da concepção espírita, criadora de todas as coisas e de todos os seres. Essa Ideia de Deus supriria as lacunas lógicas do processo da Criação, conservando-lhe todos os atributos. Ao mesmo tempo, a mitologia antropomórfica e absurda do Deus das igrejas desapareceria, sendo substituída por uma hipótese científica de força e matéria unificadas na mão de uma Consciência Cósmica não pessoal. Claro que esta não seria a solução do problema que ninguém pode resolver por conta própria, mas uma tentativa de equação nas bases científicas do nosso conhecimento actual. Resta sempre uma dúvida insolúvel. Se Deus se realizou na evolução comum de todas as coisas e seres, quem estabeleceu essa lei evolutiva e quem criou, antes de Deus o Inefável e o dínamo-psiquismo-inconsciente?

A questão é solipsistatautológica, girando sempre em volta de um ponto único de que não podemos sair. O que prova a nossa total impossibilidade, no nosso estágio evolutivo actual, de conseguir resolvê-la. E o Espiritismo coloca-a nos devidos termos, ao dizer que só chegaremos à sua solução quando avançarmos o suficiente na escala evolutiva. Temos de subir a planos ainda muito distantes de nós para chegarmos a vislumbrar a verdade a respeito. De qualquer maneira, entretanto, temos de colocá-la, para mostrar que o Espiritismo não endossa as absurdas concepções teológicas, nem os mistérios absolutos que regam a percepção dos enigmas metafísicos. Deus espera a nossa maturação espiritual para nos revelar o que agora não podemos entender. Somos filhos e herdeiros de Deus e toda a Verdade nos espera nas supremas dimensões da Realidade Universal, de que conhecemos apenas uma reduzida parcela. Por outro lado, não podemos admitir que, a pretexto da nossa impotência actual, os supostos agraciados com uma sabedoria infusa nos imponham como verdades reveladas as suas conclusões dogmáticas sobre problemas ainda não concluídos.

A posição espírita é a única aceitável actualmente: Deus existe como a Causa Inteligente do efeito inteligente que é o Todo Universal, e por este efeito podemos avaliar a grandeza da Causa. Esta é a conclusão a que podemos chegar e a que Kardec chegou muito antes de podermos dispor dos recursos actuais das Ciências.

A existência de Deus é aceite como a maior e mais poderosa realidade com que nos defrontamos e que não podemos negar sem cairmos na situação ilógica de quem pretende negar a evidência. A colocação do problema por Kardec, baseado nos diálogos com os Espíritos Superiores, prova ao mesmo tempo a grandeza conceptual do Espiritismo, a firme posição científica e filosófica do Codificador, a elevação intelecto-moral dos Espíritos que o assistiram e a capacidade espírita de enfrentar racionalmente todos os problemas do homem e do mundo. Graças a isso, o Espiritismo se apresenta no nosso tempo como aquela síntese superior do Conhecimento Humano a que Léon Denis se referiu em O Génio Céltico e o Mundo Invisível (*).

A trama das acções e reacções na vida humana, que determina a extrema variedade dos destinos individuais e colectivos, já não pode, diante dos princípios comprovados da doutrina, ser considerada como ocorrência de factores ocasionais, aleatórios, que pudessem escapar das leis naturais que regem a totalidade cósmica em todas as suas minúcias, desde as simples amebas até às galáxias do Infinito. A ordem rigorosa dos eventos em todos os planos da realidade, as supostas lacunas que a pesquisa científica preenche, mais hoje, mais amanhã, descobrindo que pertencem a conexões ainda não conhecidas, as particularidades que confirmam a existência de uma estrutura subtil regendo acções e movimentos por toda a parte, evidenciam a presença de uma inteligência vigilante e atenta. A Cibernética e a Biónica demonstraram quanto temos de aprender com a Natureza no tocante aos organismos animais. Seria estranho que nessa maravilhosa estrutura macro e micro refinada, as acções e reacções da vida humana fossem esquecidas à margem. Por outro lado, o livre-arbítrio do homem não é apenas resguardado, mas também protegido e incentivado pelas responsabilidades que sobre ele se acumulam sem cessar. Tudo é importante e significativo no caleidoscópio universal. Cada acção, sentimento, pensamento e anseio das criaturas humanas pesa na balança de todos os destinos. E isso comprova-se diariamente na vida particular e na vida colectiva dos homens.

Não vivemos por viver, mas para existir na transcendência (i).

/…
(*) "O Espiritismo é o maior e mais solene movimento do pensamento que se produziu desde o aparecimento do Cristianismo. Não somente pelo conjunto dos seus fenómenos, ele nos traz a prova da sobrevivência, mas, sob o ponto de vista filosófico, as suas consequências são mais grandiosas. Com ele, o horizonte se aclara, o objectivo da vida torna-se preciso, a concepção do Universo e das suas leis aumentam, o pessimismo sombrio se esvaece para dar lugar à confiança, à fé em destinos melhores." in Léon Denis O Génio Céltico e o Mundo Invisível


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XV – A Trama de Acções e Reacções na Vida Humana, 15º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)