Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

o grande desconhecido ~


A Morte de Deus e o Século XX 

Depois da Filosofia Existencial, nascida da angústia e da solidão do teólogo dinamarquês Kierkegaard, explodiu no mundo convalescente das primeiras explosões atómicas em Hiroshima e Nagasaki, a espantosa novidade da Morte de Deus. Imitando o louco do Nietzsche (i), teólogos jovens e de formação universitária, europeus e norte-americanos, fizeram o comunicado fúnebre ao público mundial: “Deus morreu!” Como ninguém foi convidado para o enterro, nem se efectuou nenhum registo funerário da ocorrência nos cartórios civis do mundo, acreditou-se que tudo não passava de uma alucinação. Mas os teólogos insistiram com uma série de livros transbordantes de erudição e cultura, o que perturbou os espíritos crentes em Deus. Para tranquilizar os assustados, os teólogos agoireiros obedeceram ao velho preceito: “Rei morto, Rei posto” e, colocaram Jesus de Nazaré (i), o Cristo, provisoriamente no Trono do Império Cósmico. “Agora – diziam os teólogos, na euforia de herdeiros ambiciosos perante o Cadáver Sagrado – agora temos de instalar o Cristianismo Ateu à espera de um Novo Deus que deve surgir.” 

Não se trata de uma brincadeira nem de galhofa, mas de coisa sumamente séria, pois, como diziam os nossos avós: “Com Deus não se brinca!” Mas os livros dos teólogos cortadores de mortalha não convenceram ninguém, a não ser a eles mesmos. É fácil compreender-se que houve um engano. O que havia morrido não era Deus, que não pode jamais ser enterrado no cemitério em ruínas dos deuses mitológicos. Quem na verdade estava a agonizar e, continua em lenta agonia, sustentada por milhões dos seus beneficiários do profissionalismo religioso, era a generosa sabidíssima senhora chamada Teologia. Essa pretensiosa dama de certezas absolutas e irrevogáveis estava em estado de coma, mas continua a resistir às tentativas impiedosas da morte. A maioria dos teólogos viu-se em dificuldades e apenas alguns aderiram à estranha ideia. Seria uma hecatombe mundial, ficarem todos eles órfãos e sem qualquer herança, pois só Deus lhes havia prometido a partilha do seu Reino. Jesus-Cristo, herdeiro directo e filho consanguíneo de Deus, não tomou conhecimento deste assunto e não assumiu o Trono do Universo. A situação tornou-se caótica e as brigas dos herdeiros acabaram reduzindo a espantosa novidade num bate-boca de neuróticos de guerra. Andam por aí os livros dos teólogos do complô deicista, lidos por eles mesmos e alguns curiosos retardatários, pois só eles entendem o que escreveram, se realmente entendem. São livros tecidos em teses de filigranas brilhantes e sofismas escorregadios, como as de Bizâncio na sua hora final. Dão-nos a impressão do jogo dos velórios da civilização utópica de Hermann Hesse, onde a face gelada de um lago alpino enregelava um teólogo de vez em quando. 

Não nos interessam essas lamentações de carpideira em torno de um hipotético cenotáfio (i), túmulo vazio construído no pós guerra, sobre terreno impuro de ossadas sem sepultura. Esta hora não é de morte, mas de ressurreição. Cumprindo a promessa do Cristo, o seu ensino puro ressuscita das criptas de envelhecidas catedrais e anuncia por toda a parte a nova Alvorada da Verdade. William Hamilton, Thomas Altizer, Paul Van Brune, Gabriel Vahamtaan e todo o bando necrófilo da Morte de Deus não conseguiram até agora dizer mais do que isto: que Deus morreu no nosso século e que esse é um episódio histórico. Mas onde estão as provas históricas dessa morte ideológica e alógica? Só o louco do Nietzsche (i), de quem eles herdaram a loucura, ouviu as pancadas soturnas do coveiro que abria a cova e, esse louco era uma ficção. Se os teólogos continuam a ensinar as suas teologias fanadas, os místicos a destilar os seus óleos sagrados, os sacerdotes a cobrar mais caro os seus sacramentos, o populacho a arrastar-se de joelhos nas velhas escadarias das igrejas, judeus e cristãos a manter os seus cultos por toda a parte, nem mesmo o Deus da Bíblia deixou de existir. Se não aconteceu a morte física de Deus e nem mesmo a morte metafísica, se na mente dos intelectuais e na fé popular Deus continua imperando, é claro que o bando necrófilo está a delirar. 

Mas esse episódio serve para ilustrar a esquizofrenia catatónica deste século estranho, em que vacilamos entre a paranóia e o sadismo, com furacões de obsessão individuais e colectivas a varrerem a face poluída do planeta. A todo o momento os vendavais arrancam os homens do chão e os atiram ao ar em cambalhotas alucinantes. Os espíritas, que conhecem o problema da obsessão e sabem que não são encenações do exorcismo, mas a lógica persuasiva da doutrinação evangélica o remédio certo e eficaz para este momento, precisam, mais do que nunca, firmar-se nas obras de Kardec para não serem também virados de pernas para o ar. Muitos já se deixaram levar pelas rajadas da invigilância, caindo no ridículo e chegando até mesmo à profanação da doutrina. Outros aceitaram e propagam, na teimosia característica da fascinação, obras e doutrinas absurdas, carregadas de malícia das trevas, ludibriando criaturas ingénuas com a falsa importância das suas posições em organismos doutrinários ou o falso brilho dos seus títulos universitários. Outros se aboletam na sua arrogância de pseudo-sábios, pretendendo superar a doutrina com livros encharcados pelo barro escuro das regiões umbralinas. É incrível como todas essas tolices empolgam pessoas desavisadas por toda a parte, formando os quistos de mistificação que minam o movimento doutrinário.

Se mesmo fora do campo doutrinário e, entre pessoas de inegável cultura e brilho intelectual, surgem loucuras como essa da Morte de Deus e da criação do Cristianismo Ateu, pode avaliar-se ao que estamos expostos no Espiritismo, onde só a advertência do Cristo: “Vigiai e orai,” poderá livrar-nos de quedas desastrosas. Mas não basta vigiar montado nas cavalgaduras da pretensão e da vaidade, porque o inimigo não ataca de frente, insinua-se subtil no nosso íntimo, excitando o vírus da vaidade e  infestando-nos por dentro. Desde então, pensamos com as ideias de outrem e aceitamos a sua colaboração, senão o seu Comando, com a ingenuidade dos defensores de Tróia que aceitaram o presente grego do cavalo de pau. Pedro capitulou, por medo, na hora do testemunho. Por vaidade, ignorância e interesses secundários muitos espíritas estão capitulando nesta hora decisiva. A nossa vigilância tem de ser interna, sobre nós mesmos, sobre a nossa fauna interior que o inimigo utiliza contra nós. Se os teólogos necrófilos aceitaram a sugestão da morte de Deus e caíram no ridículo, porque haveriam os espíritas de rejeitar a sugestão de deturpar os textos doutrinários para actualizá-los, prestando enorme serviço à doutrina? As sugestões das trevas são assim: falam-nos do dever para nos lançar na traição. Caímos facilmente porque não vigiamos e não oramos. O orgulho e a ambição substituem em nós as palavras humildes da recomendação do Mestre. E depois reclamamos dos Espíritos Superiores o auxílio que nos faltou na hora crucial, como se já não devêssemos estar há muito preparados para enfrentar essa hora.

Se os teólogos realmente compreendessem Deus e os Espíritas conhecessem de facto a sua doutrina, as entidades sombrias não encontrariam uma nesga de treva para se ocultarem nos seus corações iluminados pelo amor. Não somos traídos, traímo-nos. A traição não vem da malícia, brota da nossa mente transviada e do nosso coração orgulhoso. Se não compreendermos isso profundamente estaremos sempre expostos aos ventos malignos. A fidelidade ao bem tem um preço que pagamos aos poucos, nas moedinhas tilintantes do dia-a-dia, rejeitando os sopros da vaidade que tentam acender a fogueira do arrependimento. Um elogio discreto que nos agrada, uma palavra de estímulo que nos estufa, um gesto de cortesia que nos comove, um ingénuo cartão de saudações, um abraço de fingida gratidão são essas e muitas outras as moedas que não caem como o óbulo da viúva, mas como as moedas envenenadas dos cambistas. Ao som dessa música subtil cresce em nós a mandrágora do orgulho, a flor roxa e perigosa dos filtros mágicos. Acreditamos na nossa grandeza com euforia, para mais tarde cairmos na nossa insignificância com desespero.

Por que motivo Deus, se tivesse de morrer, haveria de escolher o Século XX da Era Cristã? Para morrer cristão, Ele que é o Senhor do Cristo? Por que razão os Espíritas haveriam de escolher o nosso século (XX)* para revisar e corrigir Kardec, justamente quando as Ciências, a Filosofia, a Religião e toda a Cultura Humana estão a comprovar o acerto absoluto de Kardec e seguindo o seu esquema de pesquisa numa realidade sempre vitoriosa? A resposta a essas duas perguntas é uma só: Porque é nas horas de entusiasmo, de vitória, de renovações em marcha, que estamos desprevenidos e confiantes em nós mesmos, certos de que tudo vai bem e de que – (este é o motivo da queda) – chegou o momento em que os nossos esforços serão reconhecidos e nos porão na fronte a coroa de louros que nos negaram. Não é a hora do Cristo nem a da Doutrina, mas a nossa hora, pessoal, que nos fascina.

Vejamos a triste figura desses teólogos, filósofos, historiadores da Cultura, exegetas da Palavra de Deus, que de repente, decepcionados com as atrocidades dos homens (que sempre foram atrozes) proclamam em orações brilhantes e livros falaciosos o absurdo da Morte de Deus, que não conseguem explicar nem justificar, por mais que escrevam. Charles Bent dá-nos uma informação valiosa: William Hamilton foi apresentado como uma espécie de Billy Graham da Morte de Deus. Numa de suas prédicas em São Paulo o famoso Billy, que empolga multidões, respondeu à pergunta de um assistente com a maior leviandade: “O Espiritismo é obra do Demónio.” A glória de Hamilton define-se neste episódio. Hamilton é o novo Billy. Não se precisa dizer mais nada. E Bent considera-o como sendo, talvez, o mais inteligível dos expositores do problema da Morte de Deus. Sobre o cadáver suposto de Deus os camelôs da hecatombe divina disputam a túnica do Cristo. É evidente o fogaréu de vaidade que arde na frágil carne dos homens. Se o Espiritismo, que cumpre a promessa do Consolador na Terra, é obra do Diabo, o que será essa obra de demagogia e sofisma que pretende renovar a concepção cristã de Deus na prática de Brutus, assassinando Deus pelas costas? 

Os homens enrolam-se nas suas próprias palavras, como as abelhas domésticas na barba do seu tratador. Os sofistas gregos provavam todas as contradições, mostrando que a verdade não passava de um jogo de palavras. Mas entre eles estava Sócrates, protegido pelo seu daemon, o seu espírito amigo, que de repente começou a perguntar aos sofistas: O que é isso? Todos os sofismas se esboroavam, como castelos de areia, quando Sócrates pedia a definição dos conceitos. Sim, porque ele descobrira que a verdade estava nos conceitos e não nas palavras. Quando Billy e Hamilton perguntarem a si mesmos o que estão a dizer, terão a verdade, mas enquanto continuarem a jogar com palavras perante as multidões de basbaques e fanáticos, não passarão de sofistas modernos que enganam a si mesmos e aos outros. O mal mais ameaçador da nossa civilização é o desenvolvimento excessivo da mente-oral. O abuso desse processo mental aviltou o mundo das palavras. Vem de longe esse mal, desde os judeus palradores que assustavam os romanos com as suas infindáveis querelas, o matraquear atordoante dos clérigos medievais, as trapaças doiradas dos bizantinos e a demagogia burguesa que produziu o Terror na França e se espalhou pelo mundo no papagaiar político e religioso que estourou em matanças inomináveis na boca de Hitler, Mussolini e as suas quintas-colunas genocidas. Depois das explosões atómicas de Nagasaki e Hiroshima e da escalada norte-americana no Vietname, não era de admirar o assassinato misterioso de Deus, pois quem odeia a Criação deve odiar também o Criador. 

No meio espírita os faladores fazem sucesso, como em toda a parte, pois os espíritas são criaturas humanas contagiadas, como toda a espécie, pelo mal verborrágico (i). Tem sido difícil convencer o povo ingénuo de que os grandes faladores não passam de mistificadores. Falam com atitudes teatrais, de olhos fechados para convencer os basbaques de que estão sendo inspirados por elevadas entidades espirituais, quando na verdade repetem palavrórios decorados ou simplesmente destrambelham os mecanismos repetitivos de sua mente-oral. 

Este é um problema grave num meio interessado numa doutrina lógica, profundamente conceitual, onde a insensatez palavresca funciona como tóxico mental, encobrindo e aviltando a Verdade. Precisamos de expositores doutrinários conscientes da sua responsabilidade e não apenas interessados em fascinar as massas. Não temos nem devemos ter tribunos eloquentes nas nossas assembleias, mas estudiosos (i) da doutrina que procurem transmitir os seus princípios racionais aos adeptos pouco acostumados a raciocinar. Não há lugar para sofistas num movimento que busca unicamente a Verdade, que não está nos sofismas e sim na limpidez dos conceitos. Também os espíritas se comprometem com o complô da Morte de Deus quando dão apoio e estímulo criminoso aos palradores inveterados. 

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* Adenda desta publicação.


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XVI – A Morte de Deus e o Século XX, 16º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)

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