Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O Espiritismo na Arte~


Parte I

Conceitos de arte.
Espiritismo, fonte de inspiração.
Materialismo, esterilizador da arte
(Janeiro de 1922).

   A beleza é um dos atributos divinos. Deus pôs nos seres e nas coisas esse encanto misterioso que nos atrai, nos seduz, nos cativa e enche a alma de admiração, às vezes de entusiasmo.

   A arte é a busca, o estudo, a manifestação dessa beleza eterna da qual percebemos, aqui na Terra, apenas um reflexo.


Para contemplá-la em todo o seu esplendor, em todo o seu poder, é preciso subir de grau em grau em direcção à fonte de onde ela emana, e isso é uma tarefa difícil para a maioria entre nós. Pelo menos, podemos conhecê-la pelo espectáculo que o Universo oferece aos nossos sentidos e também pelas obras que ela inspira aos homens de génio.

   O Espiritismo vem abrir para a arte novas perspectivas, horizontes sem limites. A comunicação que ele estabelece entre os mundos visível e invisível, as indicações fornecidas sobre as condições da vida no Além, a revelação que ele nos traz das leis de harmonia e de beleza que regem o Universo vêm oferecer aos nossos pensadores, aos nossos artistas, motivos inesgotáveis de inspiração.

   A observação dos fenómenos de aparições proporciona aos nossos pintores imagens da vida fluídica da qual James Tissot já pôde tirar proveito nas ilustrações da sua Vida de Jesus. Os oradores, os escritores, os poetas neles encontrarão uma fonte fecunda de ideias e de sentimentos. O conhecimento das vidas sucessivas do ser, sua ascensão dolorosa através dos séculos, o ensino dos espíritos sobre a questão grandiosa do destino, lançaram, sobre toda a História, uma luz inesperada, e proporcionarão ainda aos romancistas, aos poetas, temas de drama, motivos de elevação, todo um conjunto de recursos intelectuais que ultrapassarão em riqueza tudo o que o pensamento pôde conhecer até aqui.

   Quando reflectimos em tudo quanto o Espiritismo traz para a humanidade, quando pensamos nos tesouros de consolação e de esperança, na mina inesgotável de arte e de beleza que ele vem lhe oferecer, nós nos sentimos cheios de piedade por esses homens ignorantes ou pérfidos, cujas críticas malévolas não têm outro objectivo senão desacreditar, ridicularizar e mesmo asfixiar a ideia nascente cujos benefícios já são tão sensíveis. Evidentemente, essa ideia, em sua aplicação, necessita um exame, um controle rigoroso; mas a beleza que emana dessa ideia se revela deslumbrante para todo o pesquisador imparcial, para todo o observador atento.

   O materialismo, com o seu sopro dessecante, havia esterilizado a arte. Essa se arrastava no realismo degradante sem poder se elevar até aos cumes da beleza ideal. O Espiritismo veio lhe dar um novo estímulo, um impulso mais vivo através das alturas onde ela encontra a fonte fecunda das inspirações e a sublimidade do talento.                 /…


LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte I Conceitos de arte, Espiritismo, fonte de inspiração, Materialismo, esterilizador da arte. 1º fragmento da obra.
(imagem: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

~~~Párias em Redenção~~~


2. ALUCINAÇÃO E CRIME
…/

   Horas avançadas, Girólamo caminhava pela alcova, agitado, em trajes de dormir.

   O punhal afiado brilhava aos reflexos do luar que por vezes penetrava no quarto, colocado sobre delicada arca de

cânfora trabalhada.

   Pensava, em tumulto íntimo, na agressão que deveria perpetrar e que culminaria no homicídio múltiplo.

   Repentinamente, percebeu-se recordando o pai adoptivo, recém-falecido e surda revolta lhe assomou à mente. Como se se sentisse realizado em poder vingar-se da antipatia natural que ambos nutriam reciprocamente, monologava: “Esta é a hora do meu desforço. Estás morto, miserável! Tudo me pertencerá, logo mais. E agora, Senhor di Bicci di M.?”

   O pensamento em desalinho martelava, repetia, disparava dardos de ódio que buscava o alvo…

   Conquanto a enfermidade o vitimasse com rapidez, o duque sabia que se acercava da porta da Imortalidade. No íntimo, acalentava, quase desejoso, poder dar o grande passo, que o colocaria ao lado da esposa idolatrada. Homem lutador, não cultivara, todavia, os sentimentos da fé, deixando o problema da religião ao sacerdote que mantinha no palácio para cuidar das responsabilidades da alma, como se outrem pudesse responder pelos deveres espirituais que a cada um nos cabe, no cômputo da existência planetária. Ignorando totalmente as realidades espirituais, sentia a desvitalização orgânica e a paralisia cerebral, compreendendo ser a aproximação da morte, vencido de angústia pelo destino dos filhos e de Lúcia, que ficariam a sós, num mundo de ódios e vinganças qual aquele, apesar dos cuidados que tivera na distribuição dos bens.

   Mesmo após estarem paradas as carnes pela morte e ser seu espírito sacudido por diversos delíquios, experimentava sensações estranhas. A morte não lhe dominou o raciocínio. Seria aquilo morrer?! – pensou. Somente, então, recordou-se de que nunca dera atenção a tão importante questão da vida. Acompanhou, sem compreender, o velório, as exéquias, os prantos e a cerimónia final, com os sentidos atordoados, desconexos, observando o que se passava, sem inteirar-se totalmente da realidade. Sim – pensava –, deveria ter morrido, pois que não conseguia comunicar-se com as pessoas presentes, e todos aqueles apetrechos lutuosos traduziam o desaparecimento do senhor da herdade, como era tradição. Ele, porém, continuava a viver, experimentando as dominadoras sensações de sempre. Que era, porém, a morte? Não podia examinar o palpitante assunto naquele instante. A dor visitava-o, a fraqueza que o imobilizara no corpo continuava a sua acção nos departamentos diversos do seu ser, tonturas constantes e frio cortante venciam-no lentamente. Desejou andar, traduzir as aflições do momento, agasalhar-se, e não pôde. Estava ligado aos despojos orgânicos que, sem saber precisar como, conduziram-no ao esquife e ao mausoléu…

   Encontrava-se em agonias longas, com dificuldade respiratória, quando pareceu escutar soturna voz que o chamava com veemência, exercendo, sobre a sua mente, desconhecido poder. Padecimentos mais fortes assaltaram-no, qual se uma chibata habilmente manipulada o açoitasse. Incapaz de compreender quanto se passava, foi subitamente arrastado da capela mortuária, em que jazia o corpo, por estranho sortilégio, aos aposentos de Girólamo e pôde, então, identificar o sobrinho, cujos dentes rilhados pronunciavam-lhe o nome, blasfemando, irado, venal…

   A pobre entidade, ainda esmagada pelas sensações e emoções do túmulo, em recomeço difícil, recordou a surda antipatia que sempre lhe inspirara o moço e, sentindo-se alvo do ódio do ingrato, começou a revidar, desavisado, esquecido da situação nova, quando observou que o jovem se acercou da arca, sacou do punhal reluzente e avançou pelo longo corredor em trevas, na direcção da ampla alcova das crianças e de Lúcia.

   Sentindo-se aniquilar pelo horror que dele se apossava, o Espírito perturbado em si mesmo seguiu-o e, em superlativa amência, acompanhou o trágico desfecho da insanidade.

   Girólamo, tomando um travesseiro de plumas leves, acercou-se do leito de Grazziella e asfixiou-a impiedoso, enquanto a menina, adormecida e impossibilitada de respirar, debatia-se sem forças até a parada total dos movimentos, qual ave fraca e inocente nas garras odientas do abatedor. Concluía a primeira etapa, o homicida repetiu a experiência com as demais crianças, após o que se acercou de Lúcia, dominado por infeliz e desconcertante vindita, apunhalando-a repetidas vezes, enquanto gritava, totalmente louco…

   A jovem nem sequer despertou do torpor que a venceu. Emitiu surdos ruídos e desfaleceu, moribunda, e logo morta, atirada ao solo pelo implacável tirano.

   Aos gritos do moço, os servos acorreram, trazendo archotes, e depararam com a cena funesta, indescritível. O moço, banhado pelo sangue da vítima, apontava-a morta, enquanto bradava:

   – Fui obrigado a matá-la. Surpreendi a infame asfixiando as crianças, meus primos, com o travesseiro, naturalmente para ficar herdeira única. Não resisti, e apunhalei-a quanto pude!

   “Nada há mais que fazer. Está morta; estão todos mortos! A assassina, serpe venenosa que se nutriu do leite que a vitalizou, terminou por picar o seio no qual se alimentava. Vingança, vingança!”

   Ante os brados dos servidores, desesperados, estupidificados, o palácio se transformou imediatamente num pandemónio terrível.

   Girólamo despachou servos na direcção de Siena, para que as autoridades fossem notificadas da tragédia inominável e viessem tomar conta dos acontecimentos chocastes.

   A manhã surgiu na densa neblina, enquanto o palácio do Senhor di Bicci di M. enlutava-se outra vez, no curso da mesma semana, agora sob o estigma de inconcebível catástrofe.

   O Espírito do duque, face ao infortúnio, desfaleceu ali mesmo, no recinto da desgraça, vencido por inexplicável dor.

   Simultaneamente, a sombra augusta da duquesa, em prece, acompanhava, comovida, o desenrolar do drama, buscando receber nos braços os espíritos colhidos ao império da Lei de Causa e Efeito. Acolitada por Emissários do amor, oferecia assistência a Lúcia e aos filhos, que chegavam à vida nova em circunstâncias trágicas, porém libertados dos cruéis liames com a retaguarda. Infelizmente, e porque se vinculasse pelo revide mórbido a Girólamo, não pôde ser amparado com a mesma segurança o duque, dolorosamente esmagado pelas agonias que o desequilibravam.               /...


VICTOR HUGO, Espírito "PÁRIAS EM REDENÇÃO" – LIVRO PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (fragmento 4 de 4) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’Âme de la Florêt – 1898, pintura de Edgar Maxence)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O Mundo Invisível e a Guerra~


   A França, de 1914 em diante, passou muitas horas de cruel angústia, à beira de muitos abismos; porém, após 50 meses de

lutas, de esforços e de sacrifícios, saiu enaltecida da provação, aureolada pela vitória e regenerada pelo sofrimento.

   Essa vitória, sem dúvida, é devida ao apoio de seus aliados, ao heroísmo de seus soldados e à ciência e talento de seus chefes, mas é devida, principalmente, ao poderoso socorro recebido do Mundo Invisível, que nunca deixou de interferir a seu favor. Esta é uma das faces pouco conhecidas desse imenso drama e para a qual achamos necessário atrair a atenção de todos.

   Através de um excelente médium, cuja clarividência e lealdade estavam, para mim, acima de qualquer suspeita, consegui acompanhar, durante mais de três anos, a influência dos espíritos nos acontecimentos e observar seus aspectos mais importantes.

   Graças à incorporação, meus amigos espirituais, e entre eles um nobre espírito, me comunicavam, de tempos a tempos, suas opiniões sobre essa terrível guerra, observada em seus dois aspectos: visível e oculto.

   Essas comunicações levaram-me a escrever, nas datas indicadas, alguns artigos que se acham reunidos neste volume. Juntei outros, inspirados pelas circunstâncias e já publicados em várias revistas. O livro é concluído com uma série de páginas ainda inéditas.

   O objectivo principal desses escritos é dirigir o pensamento francês para um espiritualismo científico e elevado, para uma crença que coloque nosso país à altura dos sérios deveres e nobres realizações que lhe cabem.

   É necessário que uma grande corrente idealista e um poderoso sopro moral varram as sombras, as dúvidas, as incertezas que ainda existem sobre muitas inteligências e consciências, a fim de que a luz das verdades eternas aclare os cérebros, aqueça os corações, levando conforto aos que sofrem.

   A educação do povo precisa ser totalmente modificada, para que todos possam ter a noção dos deveres sociais, o sentimento das responsabilidades individuais e colectivas e, principalmente, o conhecimento do objectivo real da vida, que é o progresso, o aperfeiçoamento da alma, o aumento de suas riquezas íntimas e ocultas.

Cabe, afinal, uma íntima solidariedade unindo vivos e mortos, para que as duas humanidades, a da Terra e a do Espaço, cooperem na obra comum de aperfeiçoamento e de progresso.

   Já falamos anteriormente, em O Problema do Ser e do Destino, sobre a acção dos poderes invisíveis na História, entretanto essa acção nunca se manifestou com tamanho esplendor, como nos acontecimentos actuais, em favor do direito e da justiça.

   Seria realmente lamentável que uma lição tão grave e tão solene se perdesse e que o homem continuasse indiferente aos apelos e auxílios do Além. Pelo contrário, eles devem provocar, em todos, o exame desse mundo invisível para o qual iremos, cedo ou tarde, porque a morte é apenas uma passagem e nossos destinos são infinitos.

   O pretérito da França está pleno de brilhantes períodos e de páginas gloriosas, mas o seu futuro se anuncia com maior brilho ainda, se ela iluminar sua alma com o sopro do espírito que anima os mundos. Se a França controlar e dirigir as forças vivas, progressivas, provocadas pela guerra e que nela vibram, conseguirá realizar obras que ultrapassarão, em poder e brilho, tudo quanto seu génio produziu até nossos dias.                /…


“Léon Denis, que vivenciou um dos períodos mais conturbados da história francesa, escrevia tendo como base as mensagens mediúnicas que lhe chegavam, particularmente do médium cego, Sr. G. C., que possuía a mediunidade da escrita mecânica.”
Altivo Carissimi Pamphiro in O Mundo Invisível e a Guerra, 2ª Edição CELD 2001 Apresentação.


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, Introdução.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A vinda de Jesus~


Cristo e os essénios

   Muitos séculos depois da sua exemplificação incompreendida, há quem o veja entre os essénios, aprendendo as suas doutrinas, antes do seu messianismo de amor e de redenção.

As próprias esferas
mais próximas da Terra, que pela força das circunstâncias se acercam mais das controvérsias dos homens que do sincero aprendizado dos espíritos estudiosos e desprendidos do orbe,

reflectem as opiniões contraditórias da Humanidade, a respeito do Salvador de todas as criaturas.

   O Mestre, porém, não obstante a elevada cultura das escolas essénias, não necessitou da sua contribuição. Desde os seus primeiros dias na Terra, mostrou-se tal qual era, com a superioridade que o planeta lhe conheceu desde os tempos longínquos do princípio.

Cumprimento das profecias de Israel

   Do seu divino apostolado nada nos compete dizer em acréscimo das tradições que a cultura evangélica apresentou em todos os séculos posteriores à sua vinda à Terra, reafirmando, todavia, que a sua lição de amor e de humildade foi única em todos os tempos da Humanidade.

   Dele asseveraram os profetas de Israel, muito tempo antes da manjedoura e do calvário:

   – Levantar-se-á como um arbusto verde, vivendo na ingratidão de um solo árido, onde não haverá graça nem beleza. Carregado de opróbrios e desprezado dos homens, todos lhe voltarão o rosto. Coberto de ignomínias, não merecerá consideração. É que Ele carregará o fardo pesado de nossas culpas e de nossos sofrimentos, tomando sobre si todas as nossas dores. Presumireis na sua figura um homem vergado ao peso da cólera de Deus, mas serão os nossos pecados que cobrirão de chagas sanguinolentas e as suas feridas hão de ser a nossa redenção. Somos um imenso rebanho desgarrado, mas, para nos reunir no caminho de Deus, Ele sofrerá o peso das nossas iniquidades. Humilhado e ferido, não soltará o mais leve queixume, deixando-se conduzir como um cordeiro ao sacrifício. O seu túmulo passará como o de um malvado e a sua morte como a de um ímpio. Mas, desde o momento em que oferecer a sua vida, verá nascer uma posteridade e os interesses de Deus hão de prosperar nas suas mãos.

A grande lição

   Sim, o mundo era um imenso rebanho desgarrado. Cada povo fazia da religião uma nova fonte de vaidade, salientando-se que muitos cultos religiosos do Oriente caminhavam para o terreno franco da dissolução e da imoralidade; mas Cristo vinha trazer ao mundo os fundamentos eternos da verdade e do amor. Sua palavra, mansa e generosa, reunia todos infortunados e todos os pecadores. Escolheu os ambientes mais pobres e mais desataviados para viver a intensidade de suas lições sublimes, mostrando aos homens que a verdade dispensava o cenário sumptuoso dos areópagos, dos fóruns e dos templos, para fazer-se ouvir na sua misteriosa beleza. Suas pregações, na praça pública, verificam-se a propósito dos seres mais desprotegidos e desclassificados, como a demonstrar que a sua palavra vinha reunir todas as criaturas na mesma vibração de fraternidade e na mesma estrada luminosa do amor. Combateu pacificamente todas as violências oficiais do Judaísmo, renovando a lei antiga com a doutrina do esclarecimento, da tolerância e do perdão. Espalhou as mais claras visões da vida imortal, ensinando às criaturas terrestres que existe algo superior às pátrias, às bandeiras, ao sangue e às leis humanas. Sua palavra profunda, enérgica e misericordiosa, refundiu todas as filosofias, aclarou o caminho das ciências e já teria irmanado todas as regiões da Terra, se a impiedade dos homens não fizesse valer o peso da iniquidade na balança da redenção.

A palavra divina

   Não nos compete fornecer uma nova interpretação das palavras eternas de Cristo, nos Evangelhos. Semelhante interpretação está feita por quase todas as escolas religiosas do mundo, competindo apenas às suas comunidades e aos seus adeptos a observação do ensino imortal, aplicando-a a si próprios, no mecanismo da vida de relação, de modo que se verifique a renovação geral, na sublime exemplificação, porque, se a manjedoura e a cruz constituem ensinamento inolvidável, muito mais devem representar, para nós outros, os exemplos do Divino Mestre, no seu trato com as vicissitudes da vida terrestre.

   De duas lições inesquecíveis, decorrem consequências para todos os departamentos da existência planetária, no sentido de se renovarem os institutos sociais e políticos da Humanidade, com a transformação moral dos homens dentro de uma nova era de justiça económica e de concórdia universal.

   Pode parecer que as conquistas do verdadeiro Cristianismo sejam ainda remotas, em face das doutrinas imperialistas da actualidade, mas é preciso reconhecer que dois mil anos já dobaram sobre a palavra divina. Dois mil anos em que os homens se estraçalharam em seu nome, inventando bandeiras de separatismo e destruição. Incendiaram e trucidaram, em nome dos seus ensinos de perdão e de amor, massacraram esperanças em todos os corações. Contudo, o século que passa deve assinalar uma transformação visceral nos departamentos da vida. A dor completará as obras generosas da verdade cristã, porque os homens repeliram o amor em suas cogitações de progresso.

Crepúsculo de uma civilização

   Uma nuvem de fumo vem se formando, há muito tempo, nos horizontes da Terra cheia de indústrias de morte e destruição. Todos os países são convocados a conferirem os valores da maturação espiritual da humanidade, verificada no orbe há dois milénios. O progresso científico dos povos e as suas mais nobres e generosas conquistas são reclamados pelo banquete do morticínio e da ambição, e, enquanto a política do mundo se sente manietada ante os dolorosos fenómenos do século, registam-se nos espaços novas actividades de trabalho, porque a direcção da Terra está nas mãos misericordiosas e augustas do cordeiro.

O exemplo de Cristo

   Sem nos referirmos, porém, aos problemas da direcção política transitória do mundo, lembremos, ainda, que a lição de Cristo ficou para sempre na Terra, como tesouro de todos os infortunados e de todos os desvalidos. Sua palavra construiu a fé nas almas humanas, fazendo-lhes entrever os seus gloriosos destinos. Haja necessidade e tornaremos a ver a crença e a esperança reunindo-se em novas catacumbas romanas, para reerguerem o sentido cristão da civilização da Humanidade.

   É, muitas vezes, nos corações humildes e aflitos que vamos encontrar a divina palavra cantando o hino maravilhoso dos bem-aventurados.

   E, para fechar este capítulo, lembrando a influência do Divino Mestre em todos os corações sofredores da Terra, recordemos o episódio do monge de Manilha, que, acusado de tramar a liberdade de sua pátria contra o jugo dos espanhóis, é condenado à morte e conduzido ao cadafalso.

   No instante do suplício, soluça desesperadamente o mísero condenado:
   – como, pois, será possível que eu morra assim inocente? Onde está a justiça? Que fiz eu para merecer tão horrendo suplício?

   Mas um companheiro corre ao seu encontro e murmura-lhe aos ouvidos:
   – Jesus também era inocente!...

   Passa, então, pelos olhos da vítima, um clarão de misteriosa beleza. Secam-se as lágrimas e a serenidade lhe volta ao semblante macerado, e, quando o carrasco lhe pede perdão, antes de apertar o parafuso sinistro, ei-lo que responde resignado: – Meu filho, não só te perdoo como ainda te peço que cumpras o teu dever.

* Essénios
* Pietà 


ESPÍRITO EMMANUEL, A Caminho da Luz, XII – A VINDA DE JESUS, Cristo e os essénios, Cumprimento das profecias de Israel, A grande lição, A palavra divina, Crepúsculo de uma civilização, O exemplo de Cristo. Texto mediúnico recebido em 1938 por FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
(imagem: Pietà_1789, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Doçura, Paciência, Bondade~


   Se o orgulho é o germe de uma multidão de vícios, a caridade produz muitas virtudes. Desta derivam a paciência, a doçura, a prudência. Ao homem caridoso é fácil ser paciente e afável, perdoar as ofensas que lhe fazem. A misericórdia é companheira da bondade. Para uma alma elevada, o ódio e a vingança são desconhecidos. Paira acima dos mesquinhos rancores, é do alto que observa as coisas.
Compreende que os agravos humanos são provenientes da ignorância e por isso não se considera ultrajada nem guarda ressentimentos. Sabe que perdoando, esquecendo as afrontas do próximo, aniquila todo germe de inimizade, afasta todo motivo de discórdia futura, tanto na Terra como no espaço.

A caridade, a mansuetude e o perdão das injúrias tornam-nos invulneráveis, insensíveis às vilanias e às perfídias: promovem nosso desprendimento progressivo das vaidades terrestres e habituam-nos a elevar nossas vistas para as coisas que não possam ser atingidas pela decepção.

   Perdoar é o dever da alma que aspira à felicidade. Quantas vezes nós mesmos temos necessidade desse perdão? Quantas vezes não o temos pedido? Perdoemos a fim de sermos perdoados, porque não poderíamos obter aquilo que recusamos aos outros. Se desejamos vingar-nos, que isso se faça com boas acções. Desarmamos o nosso inimigo desde que lhe retribuímos o mal com o bem. Seu ódio transformar-se-á em espanto e o espanto, em admiração. Despertando-lhe a consciência obscurecida, tal lição pode produzir-lhe uma impressão profunda. Por esse modo, talvez tenhamos, pelo esclarecimento, arrancado uma alma à perversidade.

   O único mal que devemos salientar e combater é o que se projecta sobre a sociedade. Quando esse se apresenta sob a forma de hipocrisia, simulação ou embuste, devemos desmascará-lo, porque outras pessoas poderiam sofrê-lo; mas será bom guardarmos silêncio quanto ao mal que atinge nossos únicos interesses ou nosso amor-próprio.

   A vingança, sob todas as suas formas, o duelo, a guerra, são vestígios da selvageria, herança de um mundo bárbaro e atrasado. Aquele que entreviu o encadeamento grandioso das leis superiores, do princípio de justiça cujos efeitos se repercutem através das idades, esse poderá pensar em vingar-se?

   Vingar-se é cometer duas faltas, dois crimes de uma só vez; é tornar-se tão culpado quanto o ofensor. Quando nos atingirem o ultraje ou a injustiça, imponhamos silêncio à nossa dignidade ofendida, pensemos nesses a quem, num passado obscuro, nós mesmos lesamos, afrontamos, espoliamos, e suportemos então a injúria presente como uma reparação. Não percamos de vista o alvo da existência que tais acidentes poderiam fazer-nos olvidar. Não abandonemos a estrada firme e recta; não deixemos que a paixão nos faça escorregar pelos declives perigosos que poderiam conduzir-nos à bestialidade; encaminhemo-nos com ânimo robustecido. A vingança é uma loucura que nos faria perder o fruto de muitos progressos, recuar pelo caminho percorrido. Algum dia, quando houvermos deixado a Terra, talvez abençoemos esses que foram inflexíveis e intolerantes para connosco, que nos despojaram e nos cumularam de desgostos; abençoa-los-emos porque das suas iniquidades surgiu nossa felicidade espiritual. Acreditavam fazer o mal e, entretanto, facilitaram nosso adiantamento, nossa elevação, fornecendo-nos a ocasião de sofrer sem murmurar, de perdoar e de esquecer.

   A paciência é a qualidade que nos ensina a suportar com calma todas as impertinências. Consiste em extinguirmos toda sensação, tornando-nos indiferentes, inertes para as coisas mundanas, procurando nos horizontes futuros as consolações que nos levam a considerar fúteis e secundárias todas as tribulações da vida material.

   A paciência conduz à benevolência. Como se fossem espelhos, as almas reenviam-nos o reflexo dos sentimentos que nos inspiram. A simpatia produz o amor; a sobranceria origina a rispidez.

   Aprendamos a repreender com doçura e, quando for necessário, aprendamos a discutir sem excitação, a julgar todas as coisas com benevolência e moderação. Prefiramos os colóquios úteis, as questões sérias, elevadas; fujamos às dissertações frívolas e bem assim a tudo o que apaixona e exalta.

   Acautelemo-nos da cólera, que é o despertar de todos os instintos selvagens amortecidos pelo progresso e pela civilização, ou mesmo uma reminiscência de nossas vidas obscuras. Em todos os homens ainda subsiste uma parte de animalidade que deve ser por nós dominada à força de energia, se não quisermos ser submetidos, assenhoreados por ela. Quando nos encolerizamos, esses instintos adormecidos despertam e o homem torna-se fera. Então, desaparece toda a dignidade, todo o raciocínio, todo o respeito a si próprio. A cólera cega-nos, faz-nos perder a consciência dos actos e, em seus furores, pode induzir-nos ao crime.

   Está no carácter do homem prudente o possuir-se sempre a si mesmo, e a cólera é um indício de pouca sociabilidade e muito atraso. Aquele que for susceptível de exaltar-se deverá velar com cuidado as suas impressões, abafar em si o sentimento de personalidade, evitar fazer ou resolver qualquer coisa quando estiver sob o império dessa terrível paixão.

   Esforcemo-nos por adquirir a bondade, qualidade inefável, auréola da velhice, doce foco onde se reaquecem todas as criaturas e cuja posse vale essa homenagem de sentimentos oferecida pelos humildes e pelos pequenos aos seus guias e protectores.

   A indulgência, a simpatia e a bondade apaziguam os homens, congregando-os, dispondo-os a atender confiantes aos bons conselhos; no entanto, a severidade dissuade-os e afugenta. A bondade permite-nos uma espécie de autoridade moral sobre as almas, oferece-nos mais probabilidade de comovê-las, de reconduzi-las ao bom caminho. Façamos, pois, dessa virtude um archote com o auxílio do qual levaremos luz às inteligências mais obscuras, tarefa delicada, mas que se tornará fácil com um sentimento profundo de solidariedade, com um pouco de amor por nossos irmãos.


LÉON DENIS, Depois da Morte – Parte Quinta O Caminho Recto XLVIII – Doçura, Paciência, Bondade.
(imagem: Pâquerettes, pintura de William-Adolphe_Bouguereau)

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

O instinto e as paixões~


Sendo o instinto
o guia
e as paixões
a energia das almas
no primeiro período
do seu desenvolvimento,
confundem-se
às vezes
nos seus afectos.

Há no entanto
entre estes dois princípios
diferenças que
é essencial considerarmos.

O instinto é um guia seguro,
sempre bom;
numa determinada
altura,
pode tornar-se inútil,
mas nunca prejudicial;
enfraquece com a
predominância
da inteligência.

As paixões, nos primeiros anos da alma, têm isto de comum com o instinto, no que os

seres são para isso solicitados por uma força igualmente inconsciente.

Nascem mais particularmente das necessidades do corpo e estão mais ligadas ao organismo do que o instinto.

O que sobretudo as distingue do instinto é que são individuais e não produzem, como este último, efeitos gerais uniformes; pelo contrário, vemo-las variar de intensidade e de natureza consoante os indivíduos.

São úteis como estimulante até à eclosão do sentido moral que, de um ser passivo, faz um ser racional; nesse momento, não só se tornam inúteis como são prejudiciais á evolução do Espírito, a que retardam a desmaterialização; enfraquecem com o desenvolvimento da razão.

O homem que agisse constantemente por instinto poderia ser muito bom, mas deixaria a sua inteligência adormecer; seria como uma criança que não largasse os suspensórios e não soubesse servir-se dos seus membros. Quem não domina as suas paixões pode ser muito inteligente mas, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto anula-se por si; as paixões só se dominam com força de vontade.


ALLAN KARDEC,  A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo III, O BEM E O MAL, O instinto e a inteligência 18 e 19.
(imagem: Linnocence, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

O Génio Céltico e o Mundo Invisível~


O
Druidismo

Se aplicava sobretudo a
desenvolver a personalidade humana, em vista da evolução que lhe é destinada.

Ele cultivava as qualidades activas, o espírito de iniciativa, a energia, a coragem;

Tudo o que permite afrontar as provas, a adversidade, a morte com uma inflexível segurança.

Esse ensino desenvolvia, no mais alto grau, entre os homens o sentimento do direito, da independência e da liberdade.

Em compensação, ele era censurado por ter negligenciado em demasia as qualidades passivas e os sentimentos afectivos.

Os gauleses eram iguais e livres, mas eles não tinham uma consciência suficiente dessa fraternidade universal que assegura a unidade de um grande país e constitui sua salvaguarda na hora de perigo.

O Druidismo tinha necessidade desse complemento que o Cristianismo de Jesus lhe proporcionou.

Nós falamos do Cristianismo primitivo, ainda não alterado pela acção do tempo, e que nos primeiros séculos apresentava tanta analogia com as crenças célticas porquanto ele reconhecia a unidade de Deus, a sucessão das vidas da alma e a pluralidade dos mundos.

Eis por que os celtas o adotaram com tanta presteza visto estarem mais bem preparados por suas próprias aspirações.             /...


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO I – Origem dos celtas. Guerra dos gauleses. Decadência e queda. Longa noite; o despertar. O movimento pancéltico. 2º fragmento.
(imagem: The Apotheosis of the French Heroes who Died for their Country During the War for Freedom_1802, pintura de Anne-Luis GIRODET-TRIOSON)

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

~a maioridade espiritual da humanidade~



A
VINDA
DE
JESUS


A
manjedoura





   A manjedoura assinalava o ponto inicial da lição salvadora de Cristo,
como a dizer que a humildade representa a chave de todas as virtudes.

   Começava a era definitiva da maioridade espiritual da humanidade terrestre,
de vez que Jesus, com a sua exemplificação divina, entregaria o código da fraternidade e do amor a todos os corações.

   Debalde os escritores materialistas de todos os tempos vulgarizaram o grande acontecimento, ironizando os altos fenómenos mediúnicos que o precederam.
As figuras de Simão, Ana, Isabel, João Baptista, José, bem como a personalidade sublime de Maria, têm sido muitas vezes objecto de observações injustas e maliciosas; mas a realidade é que somente com o concurso daqueles mensageiros da Boa Nova, portadores da construção de fervor, crença e vida, poderia Jesus lançar na Terra os fundamentos da verdade inabalável.


ESPÍRITO EMMANUEL, A Caminho da Luz, XII – A VINDA DE JESUS, A manjedoura. Texto mediúnico recebido em 1938 por FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
(imagem: Christ with Martha and Maria_1886, pintura de Henryk Semiradsky)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – I
 
Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

…/


   Quœrens – A palestra que ora inauguro convosco, meu caro mestre, traz à memória os diálogos de Platão sobre a imortalidade da alma; e igual a Fedro que o solicitava a seu mestre, Sócrates, no próprio dia em que este devia beber a cicuta – para obedecer à iníqua sentença dos Atenienses –, eu vos pergunto, ó vós, que haveis transposto o termo fatal, que diferença essencial distingue a alma do corpo, de vez que este perece, enquanto que a primeira não morre jamais?

   Lúmen – Não darei a essa questão uma resposta metafísica, qual a de Sócrates, nem uma solução dogmática, qual a dos teólogos, mas uma resposta científica, porque vós, tal qual eu, dais valor somente aos factos constatados pelos métodos positivos. Ora, pode-se distinguir no ser humano três princípios diferentes, ainda que reunidos:
1ª: o corpo material; 2ª: o corpo astral; 3ª: a alma.
Menciono-os nessa ordem para seguir o método a posteriori. O corpo material é uma associação de moléculas, formadas elas próprias de agrupamentos de átomos. Os átomos são inertes, passivos, governados pela força, e entram no organismo pela respiração e pelos alimentos, renovam incessantemente os tecidos, são substituídos por outros e, eliminados, vão pertencer a outros corpos. Em alguns meses, o corpo humano é totalmente renovado, e nem no sangue, nem na carne, nem no cérebro, nem nos ossos resta mais um único dos átomos que constituíam o todo alguns meses antes.

   Por intermédio da atmosfera, principalmente, os átomos viajam sem cessar de um para outro corpo. A molécula de ferro é sempre a mesma, quer esteja incorporada ao sangue que pulsa sob a têmpora de um homem ilustre, quer pertença a um vil fragmento enferrujado. A molécula de oxigênio é idêntica, brilhe no olhar amoroso da noiva, ou, reunida ao hidrogênio, projecte sua flama em um dos mil luzeiros das noites parisienses, ou, ainda, tombe em gota de água do alto das nuvens. Os corpos actualmente vivos são formados da cinza dos mortos e, se todos os mortos ressuscitassem, faltariam aos vindos por último muitos fragmentos pertencentes aos primeiros. E, durante a vida mesmo, numerosas mudanças ocorrem, entre amigos e inimigos, entre homens, animais, plantas, trocas que causariam singular espanto ao olhar analisador. Quanto respirais, comeis ou bebeis, já foi respirado, bebido ou comido milhares de vezes. Tal é o corpo: um complexo de moléculas materiais que se renovam constantemente.

   O corpo astral é, por assim dizer, imaterial, etéreo, fluídico. É por ele que o Espírito está associado ao corpo material; é o envelope da alma, a substância física do Espírito.

   Pela energia vital a alma grupa as moléculas, seguindo certa forma, e constitui os organismos.

   A força rege os átomos passivos – incapazes de se conduzirem eles próprios, inertes; a força os chama, faz que lhe obedeçam, toma-os, coloca-os, dispõe todos conforme certas regras e forma esses corpos tão maravilhosamente organizados que o anatomista e o fisiologista contemplam. Os átomos são permanentes; a força vital não. Os átomos não têm idade; a força vital nasce, envelhece, morre. Um octogenário não é mais idoso do que o jovem de quatro lustros. Porquê? Os átomos que o constituem estão, naquele, apenas há alguns meses e, além disso, não são nem velhos, nem novos; analisados, os elementos constitutivos do seu corpo não têm idade. O que envelheceu, pois, no octogenário? A sua energia vital, a qual outra coisa não é que uma transformação da energia do Universo, e esgotada no corpo. A vida se transmite pela geração. Ela mantém o corpo instintivamente sem ter consciência dela própria: tem um começo e um fim; é uma força física inconsciente, organizadora e conservadora do corpo.

   A alma é um ser intelectual, pensante, imaterial na essência. O mundo das idéias, no qual vive, não é o mundo de matéria: não tem idade, nem envelhece; não muda em um mês ou dois, igual ao corpo, pois, decorridos ano, lustro, decénio, sentimos que conservamos a nossa identidade, que o nosso eu permanece. De outro modo, se a alma não existisse, se a faculdade de pensar fosse função do cérebro, não poderíamos continuar a dizer que temos um corpo: este seria o corpo que teríamos na ocasião. Além disso, de período em período, nossa consciência mudaria, não possuiríamos mais a certeza, nem mesmo o sentimento da nossa identidade, e não seríamos mais responsáveis pelas resoluções segregadas pelas moléculas que haviam passado por nosso cérebro muitas dezenas de meses antes. A alma não é a força vital, pois esta é mensurável, transmite-se por geração, não tem consciência intrínseca, nasce, aumenta, declina e morre – estados diametralmente opostos aos da alma, imaterial, imensurável, intransmissível, consciente. O desenvolvimento da força vital pode ser representado geometricamente por um fuso que inche insensivelmente até ao meio e depois decresça até anular-se na outra extremidade. No meio da vida, a alma não desincha (se se pode usar a comparação) para diminuir em forma de fuso e ter um fim, mas continua a abertura da sua parábola, lançada no Infinito. Além disso, o modo de existência da alma é essencialmente diverso do da vida. É um modo espiritual. O sentimento do justo ou do injusto, do verdadeiro ou do falso, do bom ou do mau; o estudo, as matemáticas, a análise, a síntese, a contemplação, a admiração, o amor, o afecto ou a antipatia, a estima ou o desprezo, em uma palavra, as preocupações da alma, quaisquer que sejam, pertencem à ordem intelectual e moral, que os átomos e as forças físicas não podem conhecer, e que existe tão verdadeiramente quanto a ordem material. Jamais o trabalho químico ou mecânico das células cerebrais, por mais subtil que se suponha, poderia dar em resultado um julgamento intelectual, por exemplo, concluir que 4 multiplicado por 4 é igual a 16 ou que a soma dos três ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos rectos.

   Esses elementos da entidade humana são encontrados no conjunto do Universo:
   1º –      os átomos, os mundos materiais, inertes, passivos;
   2º –      as forças físicas, activas, que regem os mundos e que se transformam umas nas outras;
   3º –      Deus, o Espírito eterno e infinito, organizador intelectual das leis matemáticas às quais as forças obedecem… ser incognoscível, no qual residem os princípios supremos do verdadeiro, do belo e do bem.

   A alma é ligada ao corpo material pelo corpo astral, intermediário, que ela conserva depois da morte. Quando a vida se extingue a alma se separa naturalmente do organismo e cessa qualquer relação imediata com o Espaço e o Tempo, pois não tem densidade alguma, nem peso. Depois da morte ela se encontra desprendida do corpo e permanece maior ou menor interregno na atmosfera. Relativamente livre, a alma pode deslocar-se facilmente e, às vezes, projectar-se mesmo a imensas distâncias, com a rapidez do pensamento. Sabeis que do Sol à Terra, ou desta aos planetas, a gravitação se transmite quase instantaneamente com uma velocidade maior do que a da luz. A transmissão da alma, mônada-psíquica, no Espaço, é da mesma ordem. Assim, estamos no céu, imediatamente depois da morte, de igual modo que o havíamos estado, aliás, durante todo o período da existência. Somente não temos mais o peso que nos prende ao planeta. Acrescentarei, todavia, que a alma demora algum tempo para desprender-se do organismo nervoso e, por vezes, permanece muitos dias, meses mesmo, magneticamente ligada ao antigo corpo que não deseja abandonar. Não raro, conserva, por largo período, seu organismo fluídico, além de que, dotada de faculdades especiais, pode transportar-se rapidamente de um ponto a outro do Espaço.
/...

CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – I. 2º fragmento global da obra (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Destruição dos seres vivos uns pelos outros~


   A destruição dos seres vivos é uma das leis da natureza que, à primeira abordagem, se parece conciliar menos com a bondade de Deus. Perguntamos por que razão lhes deu a necessidade de se entredestruírem para se alimentarem à custa uns dos outros.

   Para os que só vêem a matéria, que limita a sua visão presente, isto parece de facto uma imperfeição da obra divina. É que, em geral, os homens avaliam a perfeição de Deus sob o seu ponto de vista; a sua própria avaliação é a medida da sua sabedoria e pensam que Deus não poderia fazer melhor do que eles mesmos. Não lhes permitindo a sua curta visão avaliar o conjunto, não percebem que um bem real possa sair de um mal aparente. O conhecimento do princípio espiritual, considerado na sua verdadeira essência, e só a grande unidade que constitui a harmonia da Criação pode dar ao homem a chave deste mistério e mostrar-lhe a sabedoria providencial e a harmonia, exactamente onde só via uma anomalia e uma contradição.

   A verdadeira vida, tanto do animal como do homem, não está mais no invólucro do que no vestuário; e está no princípio inteligente que existe previamente e sobrevive ao corpo. Este princípio tem necessidade do corpo para se desenvolver através do trabalho que deve realizar sobre a matéria bruta; o corpo gasta-se neste trabalho, mas o Espírito não se gasta; pelo contrário, fica cada vez mais forte, mais lúcido e mais capaz. Que importa então que o Espírito mude mais ou menos de invólucro! Não deixa por isso de ser o Espírito; é absolutamente como se um homem renovasse cem vezes o vestuário durante o ano: não deixaria por isso de ser o mesmo homem.

   Pelo espectáculo constante da destruição. Deus ensina aos homens o pouco caso que devem fazer do invólucro material e suscita neles a ideia da vida espiritual, fazendo com que a desejem como compensação.

   Deus, dir-se-á, não poderia atingir o mesmo resultado por outros meios e sem obrigar os homens a destruírem-se uns aos outros? Se tudo é sabedoria na sua obra, devemos supor que essa sabedoria não deve falhar neste ponto mais que nos outros; se não o compreendemos, temos de culpar a nossa fraca evolução. De qualquer maneira, podemos tentar encontrar-lhe a razão tendo como bússola este princípio: Deus deve ser infinitamente justo e sábio; procuremos então em tudo a sua justiça e a sua sabedoria e inclinemo-nos perante o que ultrapassa o nosso entendimento.

   Uma primeira utilidade que se nos apresenta como resultado desta destruição, utilidade puramente física, é verdade, é esta: os corpos orgânicos só se conservam com ajuda das matérias orgânicas, sendo estas matérias as únicas a conter os elementos nutritivos necessários à sua transformação. Os corpos, instrumentos de acção do princípio inteligente, tendo necessidade de ser constantemente renovados, servem à sua manutenção mútua por acção da Providência; é por isso que os seres se alimentam uns dos outros; é então o corpo que se alimenta do corpo, mas o Espírito não é anulado nem alterado; é só despojado do seu invólucro.

   Existem além disso considerações morais de ordem mais elevada. A luta é necessária ao desenvolvimento do Espírito; é na luta que exerce as suas faculdades. O que o ataca para se alimentar e o que se defende para se conservar a vida, assaltam com astúcia e inteligência e aumentam por isso mesmo as suas forças intelectuais. Um dos dois sucumbe; mas o que é que na realidade o mais forte ou o mais hábil retirou ao mais fraco? A sua roupagem de carne, nada mais; o Espírito, que não está morto, retomará outra mais tarde.

   Nos seres inferiores da Criação, naqueles em que o senso moral não existe ou em que a inteligência não substitui ainda o instinto, a luta só teria por objectivo a satisfação de uma necessidade natural; ora, uma das necessidades materiais mais imperiosas é a da alimentação; lutam então unicamente para viver, quer dizer, para captar ou defender uma presa, pois não seriam capazes de ser estimulados por móbil mais elevado. É durante este primeiro período que a alma se elabora e ensaia a vida.

   No homem há um período de transição em que mal se distingue da besta; nos primeiros anos, o instinto animal domina e a luta tem também como objectivo a satisfação das necessidades materiais; mais tarde, o instinto animal e o senso moral equilibram-se. O homem luta então não para se alimentar, mas para satisfazer a sua ambição, o seu orgulho, a necessidade de dominar; para isso, necessita ainda de destruir. Mas, à medida que o sentido moral se vai sobrepondo, a sensibilidade desenvolve-se, a necessidade de destruição diminui; acaba mesmo por se apagar e se tornar odiosa; o homem tem horror ao sangue.

   No entanto, a luta é sempre necessária para o desenvolvimento do Espírito, pois, mesmo atingido esse ponto que nos parece culminante, está longe de ser perfeito; é unicamente à custa da sua actividade que adquire conhecimentos, experiência e que se despoja dos últimos vestígios de animalidade; mas, a partir desse momento, a luta sangrenta e brutal torna-se puramente intelectual; o homem luta contra as dificuldades e já não contra os seus semelhantes*.


(*) Sem nada conjecturar sobre as consequências que se podem retirar deste princípio, quisemos só demonstrar, com esta explicação, que a destruição dos seres vivos uns pelos outros não invalida em nada a sabedoria divina e que tudo se encadeia nas leis da natureza. Este encadeamento é necessariamente quebrado se nos abstrairmos do princípio espiritual; é por isso que tantas questões são insolúveis, quando se considera só a matéria.

As doutrinas materialistas comportam em si o princípio da sua destruição; têm contra elas não só o seu antagonismo para com as aspirações da universalidade dos homens, as consequências morais que farão com que sejam repelidos como corruptores da sociedade, mas também pela necessidade que sentimos de reconhecer a impotência do materialismo para tudo explicar. Como é que doutrinas que não satisfazem o coração, a razão ou a inteligência, que transformam em problemas as questões mais vitais, poderiam prevalecer sempre? A evolução das ideias matará o materialismo, tal como matou o fanatismo. (N. do A.)


ALLAN KARDEC,  A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo III, O BEM E O MAL, Destruição dos seres vivos uns pelos outros 20, 21, 22, 23 e 24.
(imagem: The Goose Girl_1891, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

terça-feira, 29 de novembro de 2011

~~~Párias em Redenção~~~


2. ALUCINAÇÃO E CRIME
…/

   A noite avançava lavada e varrida pelas chuvas e ventos, que desabavam abundantes, e o moço revira-se impaciente no leito, desassossegado. A avançadas horas, deixou-se abater por torpor dominante e, assaltado por esquisito

pesadelo, sentiu-se amarrado ao leito, experimentando os sentidos psíquicos exaltados. Foi dominado pela sensação desusada de que, embora caído pesadamente sobre a cama, podia locomover-se no quarto em brumas espessas, entre as quais, direcção estóica e hierática, como sempre o fora. Agitando-se penosamente e desejando evadir-se do desagradável e insólito fenómeno que o avassalava, compreendeu-se vencido ante aquela que lhe fora mãe espiritual dedicada e cujo amor ele estava prestes a desrespeitar, por meio de hediondo crime. A entidade acercou-se dele e, traduzindo inconfundível melancolia na voz, marcada por acento de doída angustia, inquiriu:

   – Que pretendes, Girólamo? Assim retribuis, através do crime nefário que premeditas, o calor da afeição pura e da dedicação que recebeste deste lar? Substituíste por ácido o sangue que pulsa nas tuas veias para, enlouquecido, te comprometeres por penosos séculos de infeliz peregrinação ressarcidora? Susta o golpe, antes que o golpe te vença, sem que consigas aniquilar-te a ti mesmo. Ninguém tem o direito de erguer a mão, que se torna sacrílega quando investe contra a vida de outrem. Mesmo diante do revel, a nós não nos pertence o direito de destruir, e sim Àquele que a produz, e que se utiliza de recursos que nos escapam, para equilibrar tudo, no padrão da Sua Sabedoria. Estaca, e modifica a intenção! Ignoras que a vida não cessa e que nós outros, os que antecipamos na jornada do túmulo, vivemos?!

   Desfigurado pela visita inusitada, o moço, em febre, arguiu, desafiadoramente:

   – Deliro, oh! Deus. Enlouqueço! Ninguém volta da morte. Você está morta, titia! Deixe-me em paz, antes que me estourem os miolos avassalados por demónios perversos. Não pode ser você. Deve ser algum enviado das geenas, para aniquilar-me.

   – Não, filho, sou eu mesma, quem retorna. É a voz da minha alma que te fala hoje, como fizera ontem, despertando as mínimas expressões de consciência, de dignidade, na tua razão, obnubilada pela ambição ignóbil que te vence. Morri, mas não fiquei destruída. Não encontrei o céu de repouso ou o inferno de desdita. Deparei-me com a vida estuante, colocada pela Excelsa Misericórdia Divina ao alcance dos que Lhe respeitam as leis. A vida aqui é a razão da vida daí. Ressurgimos do portal de cinzas da sepultura com as asas de anjos ou os pesados grilhões atros, resultantes das nossas atitudes na Terra, que nos alçam a regiões de paz inefável ou nos conduzem a abismos de dores demoradamente remissíveis, até a consciência ferida no seu mais fundo sentir experimente a necessidade de tudo recomeçar e refazer… Somos os construtores da nossa ventura como também do nosso infortúnio. Por isso, reprime o passo e detém-te, antes que seja tarde demais.

   – Agora já é tarde demais! O ódio que me arde nalma destruir-me-á antes que eu possa recuar. Tenho que cumprir esse destino…

   – O destino nos pertence. A cada instante estamos a elaborá-lo, modificando-o ou estabelecendo-o através do que pensamos, do que dizemos, do que fazemos. Cada um consegue o que cultiva, quanto acontece ao agricultor que recolhe a resposta da terra através do grão que lhe atira na cova. Susta o vil pensamento e reflecte. Por que te voltas contra a inocência de Lúcia e a pureza das crianças? Que te fizeram, revel? O ódio que lhes devotas são as farpas da inveja e do despautério do teu espírito ingrato. Volta-te para Deus e escuta a insuperável mensagem de amor do Seu Filho Jesus. Escolhe: agora, ou será tarde demais, realmente. Esquece a sandice e não serás esquecido pela Justiça Celeste. Este é o momento da tua redenção: pára! Ignoras as realidades da vida: do ontem e do amanhã…

   – Não posso, não posso. É muito tarde para mim. Tudo está pronto. Não posso, nem desejo recuar…

   – Eu lamento, por ti e por outrem que não está em condições de perguntar-te e de amar-te. Na minha imensa, incomparável dor, eu te perdoo e choro por ti e por alguém mais. No entanto, ouve-me, Girólamo, é tempo. Foge, viaja, sai desta casa, evade-te ainda hoje, buscando renovação noutros sítios e retorna depois. Serás sempre bem recebido. Terás o de que necessitas, o que ambicionas, porém, por outros meios. Dai em busca da paz, enquanto luze a oportunidade, pelo amor de Deus eu te rogo, meu filho!

   Tresloucado, espírito em alucinação, o moço gritou:

   – Nunca! Agora irei até ao fim, até a minha total desgraça ou ventura. Não pararei!

   – Atingirás, sim, a desgraça. Deus tenha piedade de ti! Eu te perdoo, filho. Perdoe-nos Senhor a todos nós!

   A emissária espiritual levou a nívea mão ao peito levemente ofegante e lágrimas silenciosas, longas, lhe escorreram pela face venerada. Um olhar de indizível dor foi endereçado ao moço, conduzido pela teimosa incoerência de raciocínios e, embora distendendo, logo após, os braços para recolhê-lo outra vez no seio sofrido, Girólamo, como se libertasse do magnetismo que o retinha preso, atirou-se na direcção do corpo que se debatia em desespero no leito e despertou gritando, de olhar esgazeado, suado, aturdido…
Ergueu-se de um salto, apoiou-se à janela, abriu-a e aspirou o ar húmido e frio da noite para recobrar a lucidez e coordenar as ideias assaltadas pela quase demência.

   Transcorridos alguns minutos, aumentando a luz no quarto, entregou-se aos sombrios pensamentos já habituais, enquanto ruminava com a desconcertante visão, que parecia persegui-lo, embora desperto. Sentia-se assistido pela tia; conquanto não a pudesse ver naquele instante, percebia-se por ela visitado. Deixou repentinamente a alcova, desceu ao patamar da parte térrea, abriu a porta de entrada, procurando, sem saber exactamente o quê, meios de reencontar-se. A chuva torrencial, porém, prosseguia. Em derredor da herdade, os rios transbordavam, as estradas estavam quase intransponíveis…

   Em inquisição crescente, aguardou a madrugada e o dia brumoso raiou. O cansaço venceu-o com a chegada da manhã, quando, então, se recolheu por algumas horas, em pesado e tormentoso sono.

   Levantou-se tarde e não compareceu à refeição matinal.

   Amainada a tormenta, deambulou a esmo pela terra encharcada e ao retornar, com a alma em frangalhos, foi recebido pela vigilante Assunta, que o aguardava ansiosamente.

   Higienizando-se, tomou caldo quente e reparador, que a serva lhe trouxe. Amolentado de carácter, deixou-se arrastar pelas paixões absorventes e cuidou, com a consócia, do crime em delineamento, sobre todos os detalhes da tragédia que logo mais seria consumada. Buscou repousar, enquanto Assunta, que guardara o soporífico que ele lhe entregara, desceu à cozinha.

   Naquela noite, Assunta oferecera-se a Lúcia para cuidar do repasto das crianças, prontificando-se a ajudá-las a se recolherem ao leito, informando que também lhe traria a refeição, contanto que descansasse das últimas e longas fadigas.

   Embora pressentindo a borrasca que a ameaçava, Lúcia, exaurida pelo cansaço, aceitou a oferenda da mulher pusilânime e se quedou em leve recreio com os pequenos órfãos.

   Após servir a refeição frugal, Assunta trouxe imensa bandeja de prata com chávenas e bule de chá fumegante, bolinhos de milho, leite e açúcar. Antes, porém, adicionara forte quantidade de pó sonífero, que se misturara ao chá, e, sorridente, serviu às vítimas em potencial, que ignorando a trama cruel, se deixaram conduzir inermes pela má e injusta adversária gratuita. Transcorridos poucos minutos, e não podendo vencer a moleza e o sono que de todos se apossou, recolheram-se aos leitos, vestidos conforme se encontravam.

   A astuta comparsa de Girólamo trocou os trajes das crianças, que ressonavam sob o peso do produto forte, e as depôs nas respectivas camas. Lúcia, porém, foi arrastada, como se encontrava, para o lado do cataló da menina Grazziella, ali ficando adormecida, enquanto a relutância que oferecera ao invencível mal-estar. Isto feito, Assunta cerrou a porta, deu ciência a Girólamo de toda a ocorrência e demandou, por sua vez, o próprio dormitório.


   A noite, embora ameaçadora, não se encontrava sacudida pelas chuvas nem pelos ventos da véspera. Uma lua fria e triste espiava entre nuvens carregadas. O relâmpago aparecia de longe em longe e a voz do trovão chegava cansada e rouca aos cenários dos próximos e tristes acontecimentos.

   Horas avançadas, Girólamo caminhava pela alcova, agitado, em trajes de dormir.

   O punhal afiado brilhava aos reflexos do luar que por vezes penetrava no quarto, colocado sobre delidada arca de cânfora trabalhada.
/...


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (fragmento 3 de 4) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

sábado, 26 de novembro de 2011

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa* I

Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)




Quœrens – Vós me haveis prometido, ó LÚMEN!, fazer a narrativa dessa hora, estranha entre todas, que se seguiu ao vosso derradeiro suspiro, e descrever de que modo, por uma lei natural, embora mui singular, revistes o passado no presente e penetrastes um mistério que havia permanecido oculto até hoje.

Lúmen – Sim, meu velho amigo, vou cumprir a promessa e, graças à longa correspondência de nossas almas, espero compreendereis esse fenómeno estranho, conforme o classificastes. Há contemplações cuja força o olhar mortal não pode suportar. A morte, que me libertou dos frágeis e fatigáveis sentidos do corpo, ainda não vos tocou com a sua mão emancipadora. Pertenceis ao mundo dos vivos. Apesar do isolamento de ermo, nessas reais torres do arrabalde
Saint-Jacques, onde o profano não vem perturbar vossas meditações, fazeis, sem embargo disso, parte da existência terrestre e das suas superficiais preocupações. Não vos admireis, pois, no instante de vos associar ao conhecimento do meu mistério, do convite para que vos isoleis, mais ainda, dos ruídos exteriores e me presteis toda a –  intensidade de atenção – de que o vosso Espírito seja capaz de concentrar nele próprio.

Quœrens – Serei todo ouvidos, para vos escutar, ó LÚMEN!, e todo o meu Espírito estará concentrado em vos compreender. Falai, sem receio nem circunlóquio, e dignai-vos de me fazer conhecedor das impressões, ignotas para mim, que sucedem à cessação da vida.

Lúmen – Por onde desejais comece a narração?

Quœrens – Se bem recordardes, a partir do momento em que, mãos trémulas, eu vos fechei os olhos. Gostaria que daí partisse a vossa origem.

Lúmen – Oh! a separação do princípio pensante e do organismo nervoso não deixa na alma nenhuma espécie de recordação. É como se as impressões do cérebro, que constituem a harmonia da memória, se apagassem inteiramente e fossem logo restabelecidas sob outro modo. A primeira sensação de identidade que se experimenta depois da morte assemelha-se à que se sente ao despertar, durante a vida, quando, acordando pouco a pouco, à consciência da manhã, ainda se está penetrado pelas visões da noite. Chamado pelo futuro e pelo passado, o Espírito busca, por seu turno, retomar a plena posse de si mesmo e deter as impressões fugitivas do sonho esvaecido, que passam ainda nele com o respectivo cortejo de quadros e acontecimentos. Às vezes, absorvido em tal retrospecção de um sonho cativante, sente sob as pálpebras, que de novo se fecham, os elos ténues da visão reatados e o espectáculo prosseguir; recai, então, no sonho e numa espécie de meio-sono. Assim se balança nossa faculdade pensante ao sair desta vida, entre uma realidade que não compreende ainda e um sonho não desaparecido completamente. As mais diversas impressões se amalgamam e confundem, e se, sob o peso de sentimentos perecedouros, tem saudades da Terra de onde vem exilado, é então oprimida por um sentimento de tristeza indefinível que pesa sobre nossos pensamentos, nos envolve de trevas e retarda a clarividência.

Quœrens – Experimentastes essas sensações imediatamente após a morte?

Lúmen – Após a morte? Mas não existe morte. O facto que designais sob tal nome, a separação do corpo e da alma, não se efectua – por assim dizer – sob uma forma dita material, comparável à separação química de elementos dissociados que se observa no mundo físico. Não se percebe essa separação definitiva, que vos parece tão cruel, mais do que a pode perceber o recém-nascido, saindo do ventre materno. Somos verdadeiramente nascidos para a vida celeste, tal qual o fomos para a existência terrestre. Apenas, não estando a alma envolta nas faixas corporais que a revestem na Terra, adquire ela mais prontamente a noção do seu estado e da sua personalidade. Tal faculdade de percepção varia todavia – essencialmente – de uma para outra alma. Há as que durante o viver nunca se elevaram rumo do céu, nem sentiram o desejo de penetrar as leis da Criação. Essas, dominadas ainda pelos apetites corporais, permanecem longo tempo em estado de perturbação e de inconsciência. Outras existem, felizmente, que, desde esta vida, voaram com as suas aspirações aladas rumo aos cimos do belo eterno. Estas, vêem chegar com calma e serenidade o instante da separação; elas sabem que o progresso é a lei da existência, que entraram no Além, numa vida superior à de aquém; seguem, passo a passo, a letargia que sobe ao coração e, quando o último movimento, vagaroso e insensível, pára em seu curso, elas estão já acima do corpo e daí já observaram o adormecimento. Libertando-se dos liames magnéticos, sentem-se rapidamente arrebatadas por uma força desconhecida rumo do ponto da Criação, a que as suas aspirações, sentimentos e esperanças as atraem.
/…

(*) Escrito em 1866. Publicado pela primeira vez, na "Revista do XIX.º Século", de 1 de Fevereiro de 1867. Desenvolvido, depois, pelas aplicações sucessivas do mesmo princípio de óptica transcendente.  


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – I. 1º fragmento global da obra (Camille Flammarion faz falar, pela mediunidade, uma alma após a morte, que em vida havia preparado e a quem passou a chamar Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)