Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 22 de novembro de 2014

Nas garras do pensamento crítico ~


O indivíduo e o meio ~

   Alguns espíritas não entendem esse imperativo histórico da doutrina. Pensam que a lei de causa e efeito explica e resolve todas as coisas, cabendo-nos apenas compreendê-la e aceitar passivamente a sua acção. Esse pensamento misoneísta, de fundo místico, aparece até mesmo em A Grande Síntese, o livro de Ubaldi, que já citamos algumas vezes, e que comete ainda o pecado filosófico de confundir o comunismo científico de Marx e Engels com o comunismo igualitário e ingénuo de Weitling. Outros entendem que a revolução espírita é essencialmente individualista, cabendo-lhe transformar o homem, para que a estrutura social, em consequência, se transforme. É novo equívoco de fundo místico, e Mariotti o menciona, chegando mesmo a tropeçar nele.

   Allan Kardec nos indica, entretanto, a necessidade do contínuo esforço do homem para se superar a si mesmo e às circunstâncias. A passividade diante das leis naturais caracteriza as formas inconscientes de vida. A consciência está submetida a uma nova lei, em plano mais alto: a lei do esforço próprio, a lei do trabalho e da actividade livre, que a fará progredir, a si mesma e ao todo a que pertence, à colectividade. Em O Livro dos Espíritos encontramos esse pensamento claramente definido, impregnando toda a obra, e podemos surpreendê-lo nos passos como o seguinte: “Tudo se deve fazer para chegar à perfeição, e o próprio homem é o instrumento de que Deus se serve para atingir os seus fins. Sendo a perfeição a meta da natureza, favorecer essa perfeição é corresponder aos propósitos de Deus.” (pergunta 692).

   Kardec não é misoneísta. Deus, para ele, é sinónimo de incessante actividade em direcção do bem, é o constante “vir-a-ser” do Universo, actuando por todos os meios e por todas as formas, para atingir o objectivo ideal. Vejamos, por exemplo, o seguinte trecho do seu comentário ao número 783 de O Livro dos Espíritos: “O homem não pode conservar-se indefinidamente na ignorância, pois tem de atingir a finalidade que a Providência lhe assinalou. Ele se instrui pela força das coisas. As revoluções morais, como as revoluções sociais, germinam durante séculos. Depois, irrompem subitamente e produzem o desmoronamento do carunchoso edifício do passado, que já não se encontra em harmonia com as necessidades novas e as novas aspirações.”

   A renovação do homem implica a renovação social – mas desde que o homem renovado se empenhe na transformação do meio em que vive, sendo esta, aliás, a sua indeclinável obrigação espírita. Ora, querermos ficar no conceito de uma renovação puramente individualista seria um contra-senso, simples ignorância da estrutura social como um todo. Que diríamos de um pedreiro que, para embelezar um edifício, não cuidasse do seu aspecto de conjunto, mas somente de cada um dos tijolos, isoladamente? E quem poderia negar, dentro da concepção espírita, que o homem não é um indivíduo abstracto, mas parte integrante do todo social, sobre o qual exerce a sua influência e pelo qual é influenciado, resultando, dessa constante simbiose, a sua evolução e a evolução colectiva? Como, pois, isolarmos o homem, para que o Espiritismo o trabalhe no espaço, independentemente das suas raízes gregárias?

   A função do Espiritismo é a renovação integral do homem, não apenas do homem na sua expressão individual e transitória, mas na sua permanente expressão colectiva. A propósito, aliás, poderíamos lembrar aos defensores do pensamento isolacionista, a lei maior do Evangelho, que é a do amor ao próximo. Não conheceriam eles o poder do ambiente sobre os indivíduos, mormente sobre os menos evoluídos? Não saberão que as influências mesológicas determinam, quase sempre, o próprio carácter individual? Não perceberão que uma vida social mais equilibrada, e portanto mais justa, será o grande e permanente estímulo do progresso individual?

   Por uma consciência humanista

   Se a experiência nos mostra que a formação de uma “consciência proletária” é praticamente inviável, pois, entre outros motivos, a própria revolução proletária vem sendo impulsionada e dirigida por forças estranhas ao proletariado; não somente desde os seus pródromos, mas ainda, hoje, e cada vez mais; se nos mostra que a “filosofia do proletariado” não consegue atraí-lo e empolgá-lo mais do que a demagogia fascista ou o diversionismo democrático dos países capitalistas mais altamente industrializados; se nos revela ainda que a vitória das chamadas “minorias conscientes” cria novos e violentos antagonismos internacionais, cada vez mais agressivos, é evidente que só nos resta procurar uma saída humana, e não proletária nem burguesa, para essa terrível situação. A saída não será a da submissão, a do pescoço entregue mansamente à canga, mas não será também a da violência e a da força.

   Se Marx reconhece no proletariado o potencial revolucionário, que a sua filosofia devia armar da necessária orientação para a luta, e se essa orientação só seria possível através da criação da “consciência de classe”, não teremos, nesse mesmo facto, o exemplo e a indicação do que nos cabe fazer? As massas que hoje se deparam à nossa frente, exploradas e sofredoras, não são apenas o proletariado, mas essa multidão heterogénea, que se chama povo, humanidade, e que as classes dividem de maneira formal, mas não substancial. Ao mesmo tempo, a situação das classes dominantes é de angústia e desespero, pesando sobre elas as consequências morais inevitáveis do usufruto indevido e da exploração dos semelhantes. O capital, o dinheiro, o poder, as comodidades, não bastam para salvá-las e, pelo contrário, cada vez mais as precipitam no pântano da corrupção moral e social.

   Diante disso, cabe-nos repetir o gesto de Marx, oferecendo agora uma filosofia, não a esta ou àquela classe, mas a toda a humanidade, para armá-la da orientação necessária, através da criação de uma “consciência humanista”. Entreguemos essa filosofia de libertação, essa arma de defesa moral, esse instrumento de luta social, ao homem de todas as latitudes e de todas as classes, e trabalhemos pela criação da “consciência humanista” nos indivíduos em particular e no meio social em geral.

   Elevar a Terra na escala dos mundos

   Não nos iludamos, porém, quanto aos métodos de acção que devemos empregar. A simples evangelização ou catequização, nos moldes religiosos, não dará resultados, porque nos amarram, pelo contrário, às antiquadas formas sectárias, que proliferam por toda a parte e criam divisionismos estéreis e perigosos. O Espiritismo tem de descobrir a sua própria maneira de agir, tem de forjar as suas próprias armas, inteiramente novas, tão diferentes das usadas pelo processo do religiosismo clássico quanto pelo materialismo-dialéctico. Talvez nesta altura nos pudessem servir de “pontos-de-referência” algumas longínquas tentativas históricas, como a da comunidade apostólica, de que nos dá notícia O Livro de Actos, ou ainda as recentes colónias de produção do Estado de Israel. O certo, porém, é que precisamos estabelecer os fundamentos sólidos e definidos do Espiritismo Dialéctico, aplicando-o, no plano sociológico ou histórico, rumo à sociedade futura.

   Ele mostrará, com base na experiência secular e no estudo objectivo da natureza humana, do homem psicológico, que não se pode construir um mundo social harmónico através da violência social, mas tão-somente do desenvolvimento do espírito colectivista de cooperação. E que a sociedade, como o homem – sem cairmos rigidamente no organicismo spenceriano –, tem as suas fases evolutivas bem definidas, que não poderemos deixar de considerar, pois Engels já nos ensinou que não desprezaríamos impunemente a dialéctica.

   Assim, se aquilo que o homem só podia resolver pelo emprego da força bruta, no seu estado primitivo, consegue fazê-lo pelo raciocínio e pela técnica, no estado de civilização, também a humanidade, superada a fase primitiva da sua elaboração social, pode caminhar, sem o uso da violência brutal e instintiva, para a revolução colectivista. Isso não quer dizer que a luta não se processe, que tenha sido interrompida no seu organismo, e que tenhamos de esperar o advento espontâneo da nova forma social, mas apenas que a luta se desenvolve de maneira diversa, em plano mais alto, como bem o definiu Ubaldi.

   Aproveitemos, pois, a oportunidade que Humberto Mariotti nos oferece, com a sua “interpretação espiritual da dialéctica”, para meditarmos sobre esses assuntos e buscarmos a forma que nos falta de oferecer ao mundo a solução espiritual do problema social. De fazermos, enfim, que o Espiritismo cumpra a sua missão histórica, vencendo a crise que o reduz, no momento, a uma luz bruxuleante no meio de densas trevas, a uma espécie de simples refúgio individual para as decepções e para as aflições humanas. Pois o seu destino, como assinalou sir Oliver Lodge, não é apenas o de consolar corações desalentados, mas o de rasgar para o mundo as perspectivas de uma nova era. Se a fé dogmática determinou o fanatismo religioso da Idade Média, com as suas fogueiras sinistras, a fé raciocinada criará o positivismo religioso do terceiro milénio, com as piras da fraternidade acesas em todos os quadrantes do planeta. Porque, como já o dissera Kardec, a tarefa do Espiritismo é a de elevar a Terra na escala dos mundos, transferindo-a da categoria expiatória para a de Mundo Regenerador.

                                                                                         J. Herculano Pires



José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico  O indivíduo e o meio – Por uma consciência humanista – Elevar a Terra na escala dos mundos, 14º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)

domingo, 16 de novembro de 2014

O sentido da vida ~


O Sentido da Vida ~

O fardo da existência torna-se demasiado pesado para a criatura humana, quando, vencendo os primeiros anos de ilusão e de fácil entusiasmo, ela se encontra envolvida na dura e monótona rotina quotidiana. Os dias e as noites se tornam iguais, ou variam muito pouco, e não raro da pior maneira. Sobrevém para o homem o cansaço das obrigações que o escravizam, o perigo constante da doença, do desemprego, dos acidentes e da morte, para ele mesmo e para os que lhe são mais caros, a incerteza dos dias futuros e a angústia das dificuldades financeiras.

Os ricos, bem aquinhoados pela fortuna, despreocupam-se de muitas dessas coisas, que pesam mais fortemente na vida obscura de milhares de pobres, de milhares de pessoas que vivem do suor de seu próprio rosto. Mas, mesmo para eles, a vida reserva o seu quinhão de desilusões e de amarguras. E não raro ela se torna tão amarga, através das dificuldades de família, das lutas inglórias com amigos e parentes, das decepções de toda espécie, que o homem aparentemente felizardo, senhor de grandes fortunas, se enche de tédio e procura uma saída no suicídio ou nas dissipações e no tumulto das paixões impuras.

Os cientistas e os artistas, dizia Goethe, empenham-se no caminho de suas conquistas e realizações, e de nada mais precisam. Os religiosos apegam-se à fé e conseguem superar os próprios dissabores. Entretanto, se analisarmos melhor esses velhos conceitos, à luz das experiências reais, veremos que nem a Ciência, nem a Arte, a Filosofia ou a Religião conseguem de facto salvar o homem do vazio da vida, quando esse vazio se lhe apresenta em todo o seu horror. O estímulo de viver, que esses ramos do conhecimento humano conseguem despertar, pode também esgotar-se, levando o cientista, o artista, o filósofo e o religioso ao desespero e à descrença.

Diante disso, procuram os homens construir várias espécies ou sistemas de explicações para a vida. Numerosos livros foram escritos, milhares de conferências são diariamente pronunciadas, no intuito de tornar suportável a existência para todos, aplainando o escarpado caminho dos desiludidos e descrentes.

Desses sistemas, há um que podemos chamar de heróico. É o materialista, que explica a vida como uma fatalidade natural a que não podemos fugir e que devemos enfrentar com energia e serenidade, sem nos atemorizarmos e sem cometermos a franqueza de uma deserção. Belo sistema para as almas fortes, dotadas da intuição inata de que a vida tem um objectivo oculto, embora intelectualmente o neguem. Mas de que serve todo o heroísmo desse sistema para a grande massa do povo, que não tem disposição para o heroísmo? Se nos fosse possível tornar materialista um povo inteiro, toda uma nação, veríamos a que extremos de desespero e de loucura esse belo sistema nos levaria.

Há um sistema que poderíamos chamar de superficial, e que se enquadra, na filosofia clássica, na corrente do cepticismo, que nos vem do filósofo grego Pirron (aproximadamente 360-270 a.C.). Este sistema nada explica nem quer explicar. Limita-se a considerar a vida como um facto consumado, diante do qual não nos resta fazer outra coisa senão suportá-la. Para os temperamentos frios, naturalmente indiferentes e egoístas, ele pode servir. Mas há momentos em que o próprio egoísta se vê apanhado num torniquete do qual não pode sair e não raro sente que o seu sistema de indiferença lhe escapa das mãos, deixando-o sozinho e desarmado diante do imenso mistério do mundo e da vida.

Há um sistema que chamaríamos de optimista, e que não se funda no pensamento de Epicuro porque é muito inconsequente para ter as suas raízes em tão esplêndida fonte. Segundo ele, a vida é bela, o mundo é magnífico e o homem nasceu para gozar as delícias da vida e os esplendores do mundo. Quando, premido pela doença ou por qualquer outros motivos imperiosos, não pode satisfazer a esse objectivo único da existência, deve ele corajosamente estourar os miolos com uma bala ou atirar-se do último andar do mais elegante arranha-céus. Este sistema encontra, hoje, intérpretes mais ou menos avançados em certos ramos da chamada filosofia existencialista.

Mas há outro sistema, que se enquadra na estrutura doutrinária das várias religiões dominantes no mundo, segundo o qual o homem nasceu para sofrer e o seu destino é a dor, a amargura, a desesperança, a luta constante com as adversidades insuperáveis. É o sistema doloroso do misticismo exasperante, que o povo, entretanto, procura sempre dosar com a sua esperança ilógica nos milagres e nas providências dos santos e dos anjos. Há um lema para este sistema, que todos nós conhecemos, e não raro repetimos, por força do hábito: “A felicidade não é deste mundo.”

O Espiritismo, entretanto, ao surgir na Terra, em forma de filosofia e, portanto, de interpretação da vida, em meados do século XIX, opôs-se desde logo a todos esses sistemas. Negou que a vida não tenha objectivo nem significação, combateu a teoria do prazer material como finalidade da existência humana e manifestou-se contrário à ideia de que o homem nasceu para sofrer. Os espíritos que deram a Allan Kardec a tarefa de codificar a doutrina ensinaram-lhe outro sistema, diferente de todos os anteriores. E abriram, com ele, perspectivas novas e mais amplas para a inteligência humana, horizontes mais vastos para o coração angustiado do homem terreno, que se debatia entre a crença empírica numa vida futura e a descrença científica, cada vez mais desesperada, em qualquer possibilidade de sobrevivência.

O Espiritismo renovou fundamentalmente a concepção humana da vida e do mundo, ensinando ao homem que ele não nasceu para gozar nem para sofrer, mas apenas para evoluir, para progredir, como tudo evolui e progride à nossa volta, na natureza e na própria sociedade. A dor deixou de ser um castigo imposto ao homem pela absurda vingança de Deus contra o casal primitivo; o prazer deixou de ser o objectivo aceitável da existência corpórea e ambos, prazer e dor, passaram a ser meras decorrências de um processo mais amplo e mais complexo, em que o homem se acha envolvido, para crescer e se desenvolver, em espírito e verdade.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, O Sentido da Vida 2º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

| o grande enigma ~


Solidariedade comunhão universal |||

Nas Almas evolvidas, o sentimento da solidariedade torna-se bastante intenso para se transformar em comunhão perpétua com todos os seres e com Deus.

A Alma pura comunga com a Natureza inteira; inebria-se nos esplendores da Criação infinita. Tudo – os astros do céu, as flores do prado, a canção do regato, a variedade das paisagens terrestres, os horizontes fugitivos do mar, a serenidade dos espaços – tudo lhe fala uma linguagem harmoniosa. Em todas essas coisas visíveis, a Alma atenta descobre a manifestação do pensamento invisível que cobre o Cosmos. Este reveste para ela um aspecto encantador. Torna-se o teatro da vida e da comunhão universais, comunhão dos seres uns com os outros e de todos os seres com Deus, seu pai.

Não há distância entre as Almas que se amam, porque se comunicam através da extensão.

O Universo é animado de vida potente: vibra qual uma harpa sob a acção divina. As irradiações do pensamento o percorrem em todos os sentidos e transmitem mensagens de Espírito a Espírito, através do Espaço. Esse Universo que Deus povoou de Inteligências, a fim de que o conheçam e o amem e cumpram a sua Lei, Ele o enche de sua presença, ilumina-o com a sua luz, aquece-o com o seu amor.

A prece é a expressão mais alta dessa comunhão das Almas. Considerada sob este aspecto, ela perde toda a analogia com as fórmulas banais, os recitativos monótonos em uso, para se tornar um transporte do coração, um acto da vontade, pelo qual o Espírito se desliga das servidões da Matéria, das vulgaridades terrestres, para perscrutar as leis, os mistérios do poder infinito e a ele submeter-se em todas as coisas: “Pedi e recebereis!” Tomada neste sentido, a prece é o acto mais importante da vida; é a aspiração ardente do ser humano que sente a sua pequenez e a sua miséria e procura, pelo menos por um instante, pôr as vibrações do seu pensamento em harmonia com a sinfonia eterna. É a obra da meditação que, no recolhimento e no silêncio, eleva a Alma até essas alturas celestes, onde aumenta as suas forças, onde a impregna das irradiações da luz e do amor divinos. Mas quão poucos sabem orar! As religiões nos fizeram desaprender a prece, transformando-a em exercício ocioso, às vezes ridículo.

Sob a influência do Novo Espiritualismo, a prece tornar-se-á mais nobre e mais digna; será feita com mais respeito ao Poder Supremo, com maior fé, confiança e sinceridade, em completo destaque das coisas materiais. Todas as nossas ansiedades e incertezas cessarão quando tivermos compreendido que a vida é a comunhão universal e que Deus e todos os seus filhos vivem, em conjunto, essa vida.

Então, a prece tornar-se-á a linguagem de todos, a irradiação da Alma que, nos seus transportes, agita o dinamismo espiritual e divino. Os seus benefícios se estenderão por todos os seres e particularmente por aqueles que sofrem, pelos ignorados da Terra e do Espaço.

Ela chegará àqueles em quem ninguém pensa, que jazem na sombra, na tristeza e no esquecimento, diante de um passado acusador. Ela originará neles inspirações novas, fortificar-lhes-á o coração e o pensamento – porque não tem limites a acção da prece, assim como as forças e os poderes que ela pode pôr em elaboração para o bem dos outros.

A prece, em verdade, nada pode mudar às leis imutáveis; ela não poderia, de maneira alguma, mudar os nossos destinos; o seu papel é proporcionar-nos socorros e luzes que nos tornem mais fácil o cumprimento da nossa tarefa terrestre. A prece fervente abre, de par em par, as portas da Alma e, por essas aberturas, os raios de força, as irradiações do foco eterno nos penetram e nos vivificam.

Trabalhar com sentimento elevado, visando a um fim útil e generoso, é, ainda, orar. O trabalho é a prece activa desses milhões de homens que lutam e penam na Terra, em benefício da Humanidade.

A vida do homem de bem é uma prece contínua, uma comunhão perpétua com os seus semelhantes e com Deus. Ele não tem mais necessidade de palavras, nem de formas exteriores para exprimir a sua fé: ela se exprime por todos os seus actos e por todos os seus pensamentos. Ele respira e se agita sem esforço numa atmosfera fluídica cheia de ternura pelos desgraçados, cheia de boa-vontade por toda a Humanidade. Essa comunhão constante se torna uma necessidade, uma segunda natureza. É graças a ela que todos os Espíritos de eleição se mantêm nas alturas sublimes da inspiração e do génio.

Os que vivem no organismo e na materialidade, e cuja compreensão não está aberta às influências do Alto, esses não podem saber que impressões inefáveis faculta essa comunhão da Alma com o Espírito Divino.

Todos aqueles que, vendo a espécie humana deslizar sobre os declives da decadência moral, procuram os meios de sustar a sua queda, devem esforçar-se por tornar uma realidade essa união estreita de nossas vontades com a vontade suprema! Não há ascensão possível, encaminhamento para o Bem, se, de tempos a tempos, o homem não se volta para o seu Criador e Pai, a fim de lhe expor as suas fraquezas, as suas incertezas, as suas misérias, para lhe pedir os socorros espirituais indispensáveis à sua elevação. E quanto mais essa confissão, essa comunhão íntima com Deus for frequente, sincera, profunda, mais a Alma se purifica e emenda. Sob o olhar de Deus, ela examina, expande as suas intenções, os seus sentimentos, os seus desejos; passa em revista todos os seus actos e, com essa intuição, que lhe vem do Alto, julga o que é bom ou mau, o que deve destruir ou cultivar. Ela compreende, então, que tudo quanto há de mal vem do eu e deve ser abatido para dar lugar à abnegação, ao altruísmo; que, no sacrifício de si mesmo, o ser encontra o mais poderoso meio de elevação, porque, quanto mais ele se dá, mais se engrandece. Deste sacrifício faz a lei de sua vida, lei que imprime no mais profundo do seu ser, em traços de luz, a fim de que todas as acções sejam marcadas com o seu cunho.

De pé sobre a Terra, meu sustentáculo, minha nutriz e minha mãe, elevo os meus olhares para o Infinito, sinto-me envolvido na imensa comunhão da vida; os eflúvios da Alma universal me penetram e fazem vibrar o meu pensamento e o meu coração; forças poderosas me sustentam, aviventam em mim a existência. Por toda a parte onde a minha vista se estende, por toda a parte a que a minha inteligência se transporta, vejo, discirno, contemplo a grande harmonia que rege os seres e, por vias diversas, os faz rumar para um fim único e sublime. Por toda a parte vejo irradiar a Bondade, o Amor, a Justiça!

Ó meu Deus! Ó meu Pai! Fonte de toda a sabedoria, de todo o amor, Espírito Supremo cujo nome é Luz, eu te ofereço os meus louvores e as minhas aspirações! Que elas subam a ti, qual um perfume de flores, qual sobem para o céu os odores inebriantes dos bosques. Ajuda-me a avançar na senda sagrada do conhecimento, para uma compreensão mais alta das tuas leis, a fim de que se desenvolva em mim mais simpatia, mais amor pela grande família humana; pois sei que, pelo meu aperfeiçoamento moral, pela realização, pela aplicação activa em torno de mim e em proveito de todos, da caridade e da bondade, aproximar-me-ei de ti, e merecerei conhecer-te melhor, comungar mais intimamente contigo na grande harmonia dos seres e das coisas. Ajuda-me a desprender-me da vida material, a compreender, a sentir o que é a vida superior, a vida infinita. Dissipa a obscuridade que me envolve; depõe na minha alma uma centelha desse fogo divino que aquece e abrasa os Espíritos das esferas celestes. Que a tua doce luz e, com ela, os sentimentos de concórdia e de paz se derramem sobre todos os seres!

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Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo, III Solidariedade | comunhão universal 3 de 3, 13º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)