Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

O Homem e a Sociedade


Capítulo II
O Marxismo e O Espírito

  O marxismo, como gerador de um sentir materialista do homem e da vida, vem sendo combatido por teóricos religiosos pertencentes a várias confissões eclesiásticas, que procuram mostrar os seus erros a respeito da realidade humana e espiritual. Todo esse trabalho poderá ser louvável para os que necessitam de um conceito espiritual com que enfrentar as contingências sociais; mas, quando analisado com certa atenção, percebe-se que a sua finalidade é apenas uma defesa sectária.

  Dizem-nos que no marxismo se elabora um partidarismo da filosofiae que o filósofo deve amoldar a sua mentalidade aos interesses do partido. Mas, se bem considerarmos, vemos que acontece o mesmo, quase com as mesmas características, no campo religioso: forja-se um partidarismo eclesiástico, condicionado aos interesses espirituais do partido religioso, pondo-se de lado o sentido real da busca da verdade.

  Neste sentido, trava-se a luta entre duas concepções, ambas com o mesmo direito à análise e à discussão. O grau democrático, alcançado pelo desenvolvimento das ideias, permite-nos hoje cotejar o valor das doutrinas e até mesmo dos dogmas religiosos. Consequentemente, já não se trata de atacar particularmentemarxismo nem o materialismo dialéctico; o que agora interessa é saber positivamente onde se encontra a realidade do Espírito; se é que de facto se deseja superar o perigo representado pelo niilismo filosófico.

  Actualmente não se trata de atacar sistemas, mas de saber se eles são realmente falsos, e se as ideias que lhes contrapomos são reais e demonstráveis. Neste campo, a luta trava-se entre o Espírito e a Matéria. Para o espiritualismo religioso, é na existência do Espírito que se radica a legitimidade do cristianismo e das verdades escatológicas. Pois se a existência do Espírito fosse uma irrealidade, todo esse sistema religioso seria derrubado, colocando-se em primeiro plano o materialismo e o marxismo. A ideologia marxista afirma que a sua doutrina está fundada nas ciências, e que unicamente uma contraprova científica poderia obrigá-la a mudar de orientação. O espiritualismo religioso apresenta os seus dogmas, fazendo uso da fé, numa posição de absoluta insuficiência para contradizer as posições do critério científico.

  Como se sabe, o marxismo funda-se na ciência experimental. Sobre essa base estabeleceu as suas conclusões materialistas, referentes à origem da vida, opondo-se assim tanto ao idealismo como à religião. Mas o que não devemos esquecer é que esta concepção marxista se baseia também na falta de provas positivas acerca do mundo sobrenatural, sobre o qual repousam a ideia de Deus e do Espírito.

  Se o marxismo repele a espiritualidade do homem e da história, não o faz por ódio a essa ideia, já que o pensador marxista possui, sem nenhuma dúvida, uma faculdade intelectual tão esclarecida e elevada como a do idealista e do religioso. Consideramos que a repulsa do marxismo às ideias religiosas decorre da falta de provas que pudessem apresentar, tanto o idealismo como a Igreja. Por isso, a escola espírita admite que a cessação da contenda entre o espiritualismo e o materialismo se dará com o reconhecimento e a admissão do fenómeno metapsíquicomediúnico, único fundamento real que obrigará as correntes materialistas a reconhecerem como verdadeira a existência imortal do Espírito.

  Mas a Igreja, e com ela o sistema idealista clássico, repelem o conceito espírita da realidade; a primeira, por considerar o espiritismo como uma causa do demónio, e o segundo, por sustentar um critério nebuloso e ambíguo a respeito da espiritualidade do homem. Não obstante, o curso que vão seguindo as questões morais obrigam cada vez mais o pensamento filosófico a recorrer à realidade espiritual, apresentada pelo espiritismo, como o último recurso contra o avanço triunfal do conceito materialista da vida.

  Como dizíamos, o marxismo repele toda a ideologia espiritualista por considerar que ela submete o homem económica e socialmente, afundando-o na ignorância e na superstição. Por isso, sustenta que o espiritualismo, além de ser uma irrealidade, tem servido para apoiar os regimes reaccionários e conservadores e, nunca a liberdade e o direito das classes sem recursos.

  Se o realismo marxista não for superado por um realismo espiritual que ultrapasse os seus limites, a consciência materialista continuará a impor-se e serão vãos os protestos dos idealistas e religiosos. As realidades espirituais, se de facto existem, deverão ser expostas ao homem moderno com a mesma objectividade que caracteriza os fenómenos físicos e sociais. Defender ideologias abstractas é unicamente falar ou escrever em favor do partido político ou religioso a que se pertence. Se os espiritualistas querem demonstrar a existência de Deus e da imortalidade da alma, deverão abandonar o método dogmático. Agora, são os factos que devem falar em favor da vida espiritual do homem. Entretanto, prefere-se defender o dogma e o partido, esquecendo-se de que o homem está acima dos interesses de seitas e de grupos.

  Chegamos, porém, a uma situação em que o ser humano tem grande necessidade de conhecer a verdade acerca da sua natureza teológica. Aspira, mais do que nunca, apegar-se a ela, para sobreviver ao desolador desastre espiritual da espécie. As doutrinas idealistas e religiosas deverão responder-lhe com verdade e, não com dogmas, já que o homem vale mais do que o partido e a igreja. Por isso, a verdade espiritual, assente sobre os factos, é a única que poderá defendê-lo do perigo social que o rodeia.

  É necessário considerar que o homem não deve morrer sem que lhe sejam ensinadas as verdades espirituais autênticas; não deverá ausentar-se deste mundo aceitando verdades que, depois da morte, lhe aparecerão como erros, conservados apenas para a defesa de sistemas religiosos e sociais dominantes.

  Não obstante, enquanto as instituições civis e religiosas permanecem quietas, o progresso e a evolução fazem girar a roda do mundo, para sensibilizá-lo desde os fundamentos. Enquanto as organizações religiosas aparentam estabilidade e segurança, a revolução espiritual está a acontecer no âmago das almas. E esta revolução subjectiva é a que promoverá a derrocada dessas organizações, que zelam somente pelos privilégios e os seus interesses materiais. Acreditamos que o grito angustioso da alma humana, nos tempos actuais, merece o mais fraternal dos auxílios. Consideramos que o homem merece agora o nosso respeito, mais do que em nenhum outro período da história.

  Aqueles que dividiram o mundo em classes, sectores e partidos, deveriam abandonar a sua atitude dogmática e lembrar que a humanidade está no direito de conhecer a verdade espiritual, ainda que essa verdade possa afectar as instituições religiosas, já incapazes de oferecer provas sobre o destino escatológico do homem.

  O marxismo é uma rebelião contra os erros de toda a ordem; não é somente uma força de carácter político: ele se dirige a todo o sistema espiritual existente, cansado de admitir as suas erradas doutrinas, cujo único fim é manter nas trevas o pensamento humano. Assim, se a Igreja, e com ela o antigo espiritualismo desejam opor-se ao marxismo, deverão fazê-lo por meio dos factos, demonstrando que o metafísico e o sobrenatural existem, que são realidade. Mas, infelizmente, essas instituições carecem do equipamento necessário, com o qual deveriam sobrepor-se ao conceito materialista do marxismo. Continuam opondo-se ao espiritismo, o que prova que não buscam a salvação espiritual do homem, mas unicamente sobreviver, empregando para isso a força que lhe concedem os Estados materialistas.

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Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE, O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo II, O MARXISMO E O ESPÍRITO, 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea (detalhe)1936, Salvador Dali)

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