Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

~~~Párias em Redenção~~~


OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ (IV)

         A noite sobrepairou ao dia morno e quando as estrelas fulguravam no zimbório azul-escuro a cidade, ardendo em tochas resinosas e lampiões de candeeiros, fez-se deslumbrante. Luminárias especiais adornavam da Praça do Campo à fortaleza, mantendo luminosa a rota dos convidados álacres ao baile, insopitavelmente aguardado. A movimentação na via de acesso fazia-se ruidosa e gentes curiosas se amontoavam nas cercanias da estrada e no grande pátio-jardim de acesso ao palácio, em algazarra crescente.

  As carruagens brilhavam nos vernizes novos e os cocheiros, em trajes de gala, exibiam o luxo dos seus amos embriagados pela febre dos sentidos. Paggi, em veludo carmesim e verde, ostentando as insígnias da família, espalhavam-se pelas escadas da entrada que davam assomo ao amplo salão, adornado de flores e tecidos custosos que lhe escorriam pelas paredes em festoni, combinados a guirlandas aromatizadas. Músicos florentinos e senenses, especialmente contratados, enchiam o ar de melodias. Os anfitriões recebiam os convidados deslumbrando-os com o excessivo poder económico de que ainda desfrutavam. Roupas especialmente confeccionadas em Florença destacavam tecidos de fina tecedura, ajaezados de pedras preciosas, e as jóias femininas encontravam relevo nos adereços, pulseiras, argolas e colares que eram exibidos pelos famosos Duques. Meia-máscara, de veludo e aigrette, disfarçava a beleza sedutora da Duquesa. Plumas esvoaçantes, sobre o cabelo artisticamente penteado, completavam-lhe a fantasia de Manhã. O esposo, em broccatello dourado, ostentava um jaleco de musselina de seda sobre a camisa de amplas mangas “bouffants”, fazendo sobressair o colar precioso de esmeraldas adornadas de diamantes raros; tinha as costas guardadas por longa capa de seda trabalhada sobre broccatello prateado, que se erguia dos ombros em leque de pedrarias. As calças, justas e curtas, prendiam as meias longas através de uma jarretière veludosa, em laço delicado. Os sapatos de verniz, com fivela ampla, de prata, completavam-lhe a indumentária. Uma parrucca empoada dava-lhe o toque final, contrastando com a meia-máscara de couro trabalhado. Representava o Dia.

  O capitoso vinho de Chipre, os tintos e brancos, os chianti e licores, o champanhe fino, em abundância, corriam de pipas espalhadas por toda a parte, sobre o rico buffet, artisticamente decorado e ostentando jarras em prata lavrada, multiplicavam-se os tradicionais repastos: crostini, panzanella, scriccioli, castagnaccio, frittelle, peci; aqui e ali os famosos doces: panforte, ricciarelli, berricuocoli. Servos trajados em livrée desfilavam conduzindo bandejas de prata com frutos secos, aves defumadas ou com taças de cristal florentino e veneziano, de variadas cores, atendendo aos pares que voluteavam pelos salões ou que aspiravam o puro ar da noite constelada.

  As melodias embriagantes falavam de sensualidade e prazer, combinadas às emoções que davam curso a desgovernos cujas consequências, sempre imprevisíveis, arrastavam a loucuras e à insensatez de toda a espécie.

  Quando o coche em estilo rococó, pertencente a Francesco, os conduziu a ele, à esposa e Girólamo, este, dominado pelas expectativas amplas de embriagues de gozo, tinha os olhos faiscantes. Cobiçava introduzir-se naquele reduto, onde era detestado, e, espicaçado pela inveja aos poderosos, esperava ter, agora, oportunidade de dar vazão à omnímoda ganância.

  Indubitavelmente, o moço senense era garboso e possuía aplomb fascinante. Os seus olhos coruscantes, negros e grandes, faziam-se guarnecer por longos cílios escuros, com sobrancelhas espessas e bem traçadas adornando-lhe a face morena e máscula, o que lhe dava um aspecto de ser mitológico, possuidor de grande força magnética, que atraía, qual mel as formigas, os espíritos torturados pela lubricidade dos desejos carnais. No coche, forrado interiormente de cetim, cada um aspirava a maior soma de liberdade, para usufruir de gozos mais violentos e arrebatadores. Lucrécia, ferida nos sentimentos feminis, esperava espicaçar o ciúme em Girólamo, flertando com outros convivas; Francesco, igualmente ávido de efervescências emocionais, fustigava-se pensando como libertar-se da esposa, e Girólamo, desimpedido, cobiçava o mais amplo quinhão da noitada de extravagância e desregramento. Assim, logo se adentraram, justificaram-se uns aos outros, procurando cada qual a sintonia do prazer mais apetecível.

  A festa transbordava alegria e se desdobrava envolvente…

  O baile deveria ser interrompido a meio, para apresentação de um espectáculo buffo, com teatro ligeiro e de contorcionismo, facultando recreio e descanso aos convidados.

  Entre as árvores, no parque majestoso, armara-se adredemente um tablado, que, feericamente iluminado, atraía todas as atenções. Música suave, de cordas e pífaros, continuava embalando o ar ameno da noite avançada. Cantores regionais e actores contratados em Milão, Veneza e Florença se exibiam entre aplausos estridentes e gargalhadas que se misturavam às primeiras explosões de ebbrezza (i) chocante, na qual o homem desvela o íntimo primitivo, cerceado pelas convenções sociais e educacionais, desabrindo-se nesses momentos, em que se permitem cenas vandálicas e vulgares.

  Uma das surpresas era constituída pela apresentação de uma jovem cantora popular paduense, que emocionava com a doçura da voz e a fragilidade da aparência. Dizia-se, mesmo, que vários homens se lhe arrojavam aos pés, cobiçando-lhe o amor. No entanto, na sua vida nómada com os zíngaros, que a custodiavam, a ninguém permitira o licor da juventude nem o perfume estonteante do êxtase. Alguns acreditavam que os ciganos a haviam raptado na infância, vingando-se de algum nobre que lhes caíra no desagrado, culminando por amarem-na como filha predilecta da grei. Supunham outros que nascera em Pádua, e tudo eram imaginações, para aureolarem o seu nome de magia. Alguma vida já fora decepada no silêncio da noite e nas armadilhas da impiedade, para deixar livre o caminho da jovem.

  Exibia-se no colorido alegre dos seus trajos, com a cabeça resguardada por panuelo, duas longas tranças negras de cabelo, com fios de ouro, caindo-lhe sobre o colo adornado de colares e trancelim reluzente. Tomando da chitarra ornada de fitas de seda brilhante, assentou-se no centro do proscénio e, ante o natural silêncio que a sua presença modesta e romântica impôs, dedilhando o instrumento harmonioso, começou a cantar. A melodia, que lembrava um gorjeio, balada de amor e tragédia, madrigal de dor e ternura, que traduzia a crueza dos dias que se viviam, dominava em notas vibrantes, para cair de súbito em pianíssimos comovedores.

“Eu era débil rouxinol
Que a fantasia de canto embriagava!
Cantava à luz do dia, ao sol,
O festival de amor que me abrasava…

Ventura infinda me invadia a vida,
A dor em mim era desconhecida.
Sonhei voar contigo, no céu lindo;
Eras um falcão e destroçaste
Minha alegria, a vida me roubaste.

Oh! desgraça, por amar-te tanto!...”

  A melodia chorava a pulcra avezita que o desejo infrene, falcão impiedoso, destruíra. Conquanto estivesse o auditório repleto de pessoas de costumes reprocháveis, a canção da jovem parecia retratar uma visão desconhecida por aqueles seres, acostumados às paixões violentas, conseguindo, pelo inusitado, acalmar-lhes, momentaneamente, a sede da luxúria e do vinho.

  Girólamo, por circunstância óbvia, lembrou-se de Assunta. Pareceu-lhe, no momento, que, no auge da juventude, aos primeiros lances da sedução, conseguira amá-la. Era um amor selvagem, feito de ímpetos e ânsias, mas possivelmente amor. Aliás, ele não sabia o que era o amor, além do fustigar das explosões do desejo. Ignorava o sacrifício e a renúncia, desconhecia a arte de esperar e nunca se permitira ceder, senão para retomar adiante.

  Assunta reapareceu-lhe nas recordações e, por um instante, experimentou lampejos de remorso, como se lamentasse de ter feito o que fez. Como se o frescor da noite e a melodia o humanizassem, deslocou-se psiquicamente do ambiente e voltou à colina de San Miniato, onde trucidara com punhaladas contínuas a infeliz amante. Devaneava, emocionado, quando escutou a gargalhada… Arrepio violento o sacudiu. Despertou estremunhado, ergueu-se e demandou o solar, para sorver amplo bicchiere (ii) de vinho.

  A doce voz continuava modulando o estribilho da canção:

“Oh! aventura di amarti tanto
Triste manigoldo dell’alma mia
Mi rubasti il cielo e l’incanto…”

  Pávido e trémulo, arrebatou um copázio que espumava sobre uma bandeja em exposição e sorveu-o, desesperado. No íntimo, porém, sobrepondo-se ao aturdimento, continuou a escutar a gargalhada sardónica, acompanhada de objurgatórias e impropérios:

  – “Não fugirás, assassino! Assassino! Assa…ssi…no! Ladrão de vidas! FALCÃO destruidor!...”

  Sentindo o peito arfante e o espírito atroado, continuou a beber, buscando fugir da agressão mental, esquecido do baile, da vida, evadindo-se, até que o torpor alcoólico o vitimou desacordado.

  Estabelecera-se, ali, em definitivo, a obsessão.

/...

(i) Ebbrezza – embriaguez.
(ii) Bicchiere – copo próprio para vinho; caneca.



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 7. OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ (4 de 4) 25º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de ilustração: L’âme de la forêt _1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

domingo, 22 de dezembro de 2013

O Espiritismo na Arte ~


Oitava lição

(Transmissão da arte na Terra, Os dons inatos)

|3 de Fevereiro de 1922|

“Falaremos hoje sobre a transmissão da arte no planeta Terra, a fim de mostrarmos a participação que têm, nas composições artísticas, os espíritos que continuam uma obra cujos elementos se obtêm das fontes fluídicas e se propagam nos meios materiais. Vimos de que maneira, no espaço, um ser evoluído podia, por reflexos, reproduzir por meio de suas qualidades artísticas, temas retirados do domínio da arquitectura, da pintura, da escultura ou do pensamento.

Vós vos lembrais que é graças à faculdade que cada ser fluídico possui, de poder constituir os elementos e os quadros de suas vidas sucessivas, que ele aprende e retém todas as coisas que formam a universalidade divina. Agora eu desejo, deixando de lado o problema da intuição, falar-vos do espírito reencarnado que na Terra, por exemplo, quando o desenvolvimento corporal for suficiente, poderá sentir vibrar em si as moléculas fluídicas impregnadas de radiações resultantes de várias vidas no espaço, radiações estas que se podem traduzir, na Terra, por supostos dons inatos que levarão a criatura a uma situação de destaque na categoria dos artistas e dos pensadores.

Tomemos a arquitectura: após ter reunido os elementos do desenho que enriquecerão o seu cérebro de materiais capazes de concentrar as radiações, estas, intuitivamente, levarão o ser humano a criar formas ideais, inspirando-se, sem o saber, em imagens, em quadros, que poderão ser reconstituídos pelas radiações ligadas aos seus átomos cerebrais.

Segundo o número de vidas percorridas, segundo a vontade de estudar, de compreender, os átomos serão mais ou menos animados de uma vida própria e, também de acordo com a flexibilidade de harmonia das linhas que lhe servirão de condutor, a obra criada será mais ou menos rica e elevada.

De um lado, trabalho exterior, aquele que é ensinado durante a vida tangível do ser; de outro lado, fixação de moléculas radiantes, impregnadas das aquisições anteriores. Sobre essas linhas mais ou menos flexíveis, maleáveis, realiza-se uma produção, uma criação do objectivo. O arquitecto, na sua mesa de trabalho, de repente vê aparecerem as linhas, as abóbadas e, segundo a sua vontade, um monumento se edifica; são as moléculas que, de acordo com os conhecimentos geométricos adquiridos, agem por extensão sobre os lobos cerebrais do artista e concretizam imagens idealizadas pelo abstracto.

Servi-me do arquitecto como exemplo porque a arte arquitectural é, sob o vosso ponto de vista, a arte mais tangível. No espaço, o espírito percorre mundos infinitos; a arte da linha é para ele a primeira letra desse alfabeto grandioso que nós chamaremos gama das formas, dos sons e das cores. O ser vai obter no espaço e nos mundos essas formas necessárias, que serão reproduzidas pela escultura. Para um espírito mais subtil, que ocupa um escalão mais elevado da arte, a pintura será a preferida porque o relevo na pintura é unicamente fluídico e deve ser reproduzido pelo pincel.

O terceiro escalão será o que dará acesso aos pensadores, aos filósofos, aos escritores. Os trabalhos geométricos, dos quais falamos, ali se tornam quase fictícios; sendo a geometria do pensamento simplesmente uma análise cada vez mais subtil dos seres e das coisas.

Na nossa próxima conversa abordaremos a música e eu me esforçarei por vos demonstrar como as inflexões musicais devem e podem sintetizar todas as artes, porquanto elas são o veículo da inspiração que tudo cria e anima.

Na minha vida terrestre, sensibilizei-me por todas as artes: a pintura, a escultura, a música; agora, Deus permite que eu viva nas esferas onde tudo é vibração e eu desejo dar-vos um resumo desta vida celeste.”

/…



LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte IV – Oitava lição / Transmissão da arte na Terra, Os dons inatos, 19º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

sábado, 14 de dezembro de 2013

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Natureza da Revelação Espírita (V)

  Sendo Deus o eixo de todas as crenças religiosas, o objectivo de todos os cultos, o carácter de todas as religiões está de acordo com a ideia que estas transmitem de Deus. As religiões que criam um Deus vingativo e cruel julgam honrá-lo com actos de crueldade, com fogueiras e torturas; as que criam um Deus parcial e ciumento são intolerantes; são mais ou menos meticulosas na forma, consoante o julguem mais ou menos maculado com as fraquezas e mesquinhez humanas.

  Toda a doutrina de Cristo se funda sobre o carácter que ele atribui à Divindade. Com um Deus imparcial, soberanamente justo, bom e misericordioso, conseguiu fazer do amor de Deus e da caridade para com o próximo a condição expressa da redenção e dizer: «Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a vós mesmos.» Sobre esta única crença, conseguiu estabelecer o princípio da igualdade dos homens perante Deus e da fraternidade universal. Mas era possível amar aquele Deus de Moisés? Não; só poderíamos temê-lo.

  Esta revelação dos verdadeiros atributos da Divindade, juntamente com a da imortalidade da alma e da vida futura, modificava profundamente as relações mútuas dos homens, impunha-lhes novas obrigações, fazia com que encarassem a vida actual sob uma nova luz; devia, por isso mesmo, actuar sobre os costumes e as relações sociais. Incontestavelmente, pelas suas consequências, este é o ponto capital da revelação de Cristo e de que não se compreendeu suficientemente a importância; é lamentável dizer que este é também o ponto de que mais nos afastamos, em que nos enganámos na interpretação dos seus ensinamentos.

  No entanto, Cristo acrescenta: «Muitas das coisas que vos digo não as podeis ainda compreender e teria muitas mais para vos dizer que não entenderíeis; é por isso que vos falo por parábolas; mas, mais tarde, enviar-vos-ei o Consolador, o Espírito da Verdade, que restabelecerá todas as coisas e vo-las explicará todas

  Se Cristo não disse tudo o que poderia ter dito, foi por ter acreditado que devia deixar certas verdades na sombra até os homens estarem em estado de as entender. Conforme declarou, o seu ensinamento estava portanto incompleto, dado que anunciou a vinda do que o iria completar; previa então que as suas palavras seriam erradamente interpretadas, que se desviariam dos seus ensinamentos; resumindo, que desfariam o que tinha feito, já que todas as coisas deviam ser restabelecidas; ora, só se restabelece o que foi desfeito.

  Por que chama ao novo Messias Consolador? Este nome, significativo e sem ambiguidades, constitui uma revelação completa. Ele previa portanto que os homens iriam precisar de consolações, o que implica a insuficiência das que iriam encontrar na crença que iriam adoptar. Talvez nunca Cristo tenha sido mais claro e mais explícito que nestas últimas palavras a que poucas pessoas prestaram atenção, talvez porque se tenha evitado dar-lhes relevo e aprofundar o seu sentido profético.

/…


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 24 a 27, 7º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de ilustração: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

domingo, 8 de dezembro de 2013

Inquietações Primaveris ~


A Eterna Juventude

Nas pesquisas básicas da Ciência Espírita, fundada e desenvolvida por Allan Kardec, os fenómenos mediúnicos, hoje chamados paranormais, revelaram que os mortos rejuvenescem após a morte. As pesquisas posteriores, como as da Metapsíquica, da Física Transcendental de Zöllner, da Biopsíquica de Notzing, dos neo-metapsiquistas como Gustave Geley e Eugéne Osty, e nas pesquisas psicofísicas de William Crookes, de Sir Oliver Lodge, de Crawford (especialmente sobre a mecânica do ectoplasma) e nas pesquisas actuais da Parapsicologia moderna, esse fenómeno se confirmou plenamente. Mesmo nos fenómenos de aparições (estudados recentemente por Rhine e Louise Rhine, por Pratt e o seu Grupo Teta de pesquisas), a confirmação se repete. Nas nossas pesquisas pessoais ou de grupo, na companhia de pesquisadores experimentados como o Dr. Adalberto de Assis Nazaré, ou Dr. Urbano de Assis Xavier (médium de comunicações orais, inclusive voz directa, ectoplasmia e efeitos físicos em geral), constatámos directamente o fenómeno de rejuvenescimento. Um jornalista, homem de TV, contou-nos um facto curioso a respeito. A sua mãe reclamou-lhe ingenuamente aparições desafiantes do espírito do pai, que lhe aparecia como um velho rejuvenescido, mostrando-lhe especialmente o rosto sem rugas e dizendo-lhe: “Enquanto você continua enrugando, veja como estou cada vez mais jovem.”

Quando se tem a noção da diferença básica entre espírito e matéria é fácil compreender-se o fenómeno. O espírito, como elemento natural e básico da formação da Terra, não se desgasta no tempo, enquanto a matéria sofre desgaste violento. Livre do condicionamento humano do corpo físico, o espírito humano não sofre o envelhecimento. Quando se manifestam envelhecidos, fazem-no artificialmente, para comprovação da sua identidade humana.

Por estranho que pareça, o elixir da longa vida e da juventude perene não está nas mãos dos vivos, mas nas mãos dos mortos. Só a morte goza do privilégio de nos rejuvenescer. Na dialéctica da vida e da morte essa contradição se resolve na síntese da ressurreição, nos termos exactos do ensino do Apóstolo Paulo, na sua primeira epístola aos Coríntios. Geralmente buscamos na Terra o que só poderemos encontrar no Céu. É esse um dos melhores motivos para não querermos rejeitar ou maldizer a morte. Allan Kardec já ensinava que o mundo primitivo, o mundo matriz de que nasceu o nosso, é o espiritual. Este mundinho terreno pode desaparecer a qualquer momento, sem que isso afecte em nada a perfeição e a harmonia do Cosmos. Assim como a criatura humana, ao nascer na Terra, procede do mundo espiritual, também a Terra, ao ser formada no espaço sideral, procedia dos mundos ancestrais. Coube aos materialistas soviéticos – assustados com essa dialéctica desconhecida – provar neste século que uma simples folha de árvore tem a sua matriz espiritual intangível e indestrutível pelos nossos instrumentos materiais. Aquilo que parecia um simples sonho de Platão, o mundo-matriz das ideias, tornou-se realidade científica e tecnológica da Era Cósmica nas famosas pesquisas da Universidade de Kirov. O corpo bioplásmico de todos os seres vivos e o modelo ideal de todas as coisas existe e pode ser provado pelos que desejarem procurá-lo nas próprias coisas e nos seres. As duplicatas platónicas, vencidas há milhões de anos, podem ser pagas agora, sem juros nem correcção monetária, nos guichés da pesquisa científica mundial. O pânico ideológico desencadeado na URSS por essa temerária descoberta, com as reacções políticas inevitáveis, não empanam de maneira alguma a glória incómoda dos pesquisadores vitorianos. Sabemos todos que a pesquisa científica não depende de concessões estatais, como não dependeram, na Idade Média, de licenças religiosas. Uma pesquisa científica é soberana nos seus resultados e a validade destes depende apenas da autoridade científica dos pesquisadores e da metodologia aplicada. Se tudo se passou no plano universitário e as provas objectivas resistem às repetições experimentais, nenhum poder exterior pode invalidá-las. Se o Estado Soviético recusou os resultados contrários aos seus dogmas ideológicos, isso não invalida cientificamente os factos comprovados. No âmbito do poder estatal a recusa pode ser aceite pela violência, mas no plano puramente científico somente a contra-prova científica poderia invalidá-los. E como os dados foram divulgados e confirmados em entrevistas dos pesquisadores para a imprensa mundial e publicados pela Universidade estrangeira, sob a responsabilidade de entrevistadoras universitárias, em edição oficial universitária, o problema escapa ao poder do Estado interessado em negá-los. Aceitar-se a negação por decreto seria violentar os direitos impostergáveis da Ciência, soberana no seu âmbito inviolável.

Dentro das normas universais da Ciência não há nem pode haver outra rejeição dos resultados além da contra-prova cientificamente válida, realizada por cientistas capacitados em plano aberto, livre de injunções estranhas. Não fosse assim e a verdade científica ficaria entregue ao arbítrio dos Estados poderosos, em detrimento da verdade e da própria validade da Ciência como tal.

Por outro lado, a realidade do corpo bioplásmico já havia sido provada pelas pesquisas anteriores de cientistas consagrados da Europa e da América, que confirmaram a tradição cristã a respeito, com os mesmos resultados das pesquisas da Universidade de Kirov. Se o chamado materialismo científico fosse aceite como árbitro infalível da Ciência, no interesse exclusivo de ideologias sociais, a verdade ficaria adstrita ao pragmatismo dos Estados interessados e cairia no plano perigoso dos formalismos académicos. Voltaríamos à sujeição da Ciência, o que vale dizer da verdade, aos déspotas do poder estatal, em substituição do absolutismo medieval da Igreja, com o acréscimo moderno, mas não actual, da infalibilidade das revelações proféticas.

Certas pessoas se impressionam com pareceres e proclamações de entidades paracientíficas que, sem possuírem a contra-prova científica, se  arrogam o direito de condenar a descoberta apoiados apenas em argumentos pseudocientíficos. Temos contra isso, na própria URSS, o episódio Vassiliev contra Rhine, no qual o notável cientista soviético de Leningrado tentou desmentir a afirmação do Prof. Rhine de que o pensamento não é físico. Vassiliev confessou o fracasso das suas tentativas de contra-prova e contentou-se em afirmar que estava convencido do contrário. Uma capitulação que só serviu para fortalecer a tese do cientista norte-americano. E tudo ficou nisso, porque não havia nem há possibilidade de se transformar em matéria a natureza extra-física do pensamento e da mente.

As pesquisas sobre a natureza do pensamento mostraram que ele não está sujeito às leis físicas. Não está sujeito a condicionamentos, não se desgasta nas emissões às maiores distâncias, não sofre nenhuma influência da lei de gravidade e não é interditado por nenhuma barreira física. Um pensamento emitido aqui e agora pode ser captado no outro hemisfério, agora mesmo ou daqui a vários anos. Reconhecido como a energia mais vigorosa de que podemos dispor, é a única a servir com eficiência na comunicação astronáutica. O isolamento de uma nave espacial que passa por trás de um corpo celeste como a Lua, não podendo nesse trajecto comunicar-se com a Terra, é rompido sem dificuldades pelo pensamento. Temos assim em nós mesmos os recursos para as incursões cósmicas. Além disso o pensamento percorre as distâncias e o tempo em todas as suas dimensões, podendo invadir o futuro e mergulhar no passado, nos fenómenos de precognição (profecia) e de retrocognição (adivinhação do passado). O treino telepático (transmissão do pensamento) aperfeiçoa e desenvolve a acção do pensamento, permitindo ao homem a omnipresença dos deuses. Quando sabemos que essa energia mental é a mesma que constitui o espírito humano, compreendemos que a sobrevivência espiritual do homem é uma lei natural e que o domínio da morte se restringe apenas ao campo material. Nas fotos paranormais obtidas pelos pesquisadores de Kirov, segundo os depoimentos de Lynn Schroeder e Sheila Ostrander, pesquisadoras da Universidade americana de Prentice Hall, o corpo bioplásmico aparece irradiante, sem a opacidade do corpo material. Cientistas russos disseram que esse corpo espiritual se assemelha ao brilho de um céu intensamente estrelado. É isso o que somos, e não matéria. E nessa condição estelar gozamos da juventude eterna, pois o espírito não está sujeito a desgastes nem a envelhecimento. Jesus respondeu, certa vez, aos judeus que o interpelavam sobre a natureza humana: “Não está escrito, nas vossas escrituras, que vós sois deuses?” Os deuses não envelhecem nem morrem. Formados daquilo que podemos chamar de essência mental – nem matéria, nem antimatéria – não somos perecíveis nem estamos sujeitos a envelhecer. Educar para a morte é preparar os homens para a passagem natural do mundo material para o mundo espiritual. Essa preparação não demanda um curso especial e rápido, mas exige um progressivo esclarecimento da realidade humana através da existência. Temos de arrancar da mente humana a visão errónea da morte como escuridão, solidão e terror, substituindo esse avantesma do terrorismo religioso pela visão dos planos superiores de que a verdadeira vida flui para a Terra. O luto, os velórios sombrios, as lamentações das carpideiras antigas ou modernas, a fronte enrugada pelas preocupações pesadas e dolorosas, tudo isso deve passar no futuro para os museus de antiguidades macabras e estúpidas.

Em tudo isso nada existe de sobrenatural. Na Terra ou no Céu estamos dentro da Natureza. As leis naturais que conhecemos na matéria são as mesmas que abrangem todo o Universo, na riqueza e no esplendor da natureza. A salvação que todos os crentes desejam não vem dos formalismos religiosos de nenhuma Igreja, mas do nosso esforço quotidiano para nos transformarmos de prisioneiros da matéria e da animalidade primitiva para a espiritualidade que carregamos oculta e abafada em nós mesmos. A Filosofia Existencial do nosso século considera a existência como subjectividade pura, o que vale dizer que somos espíritos. A juventude eterna do Espírito é a herança que nos foi reservada, como filhos de Deus que somos. Porque Deus, a Suprema Consciência, não nos criou do barro da Terra, mas da luz das estrelas.

/…


José Herculano Pires – Educação para a Morte, A Eterna Juventude, 15º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

domingo, 1 de dezembro de 2013

O Mundo Invisível e a Guerra ~


VII
O Dia de Finados na Trincheira
(II)

|2 de novembro de 1916|

  Entretanto, no silêncio da noite, uma voz murmura ao ouvido do jovem soldado (que é médium auditivo), palavras graves e solenes. É o Invisível que entra em cena para dizer-lhe:

  “Escuta amigo, cujo pensamento chegou até mim e me atraiu: perguntas, às vezes, a ti próprio o segredo desta terrível guerra e a tua razão se perturba com o espectáculo das desgraças que ela produz.

  Ah! para que a seara sagrada germine é preciso que se rasgue o solo inculto como arado; é necessário mordê-lo com os dentes da grade e também esmagá-lo sob o peso do rolo. Só assim o grão novo poderá arrebentar a terra.

  Se a guerra se alonga, é porque, por seu intermédio, grandes coisas necessárias se preparam e se organizam.

  Uma guerra bastante rápida teria tocado, apenas ao de leve, a humanidade. A sua longa duração, a sua crueldade e as consequências que decorrem dela, do ponto de vista social, político, religioso e económico, criarão novas rodas, meios e molas por toda parte. Dela resultará uma transformação radical da sociedade, não apenas do ponto de vista da vida material, mas também no que toca ao ideal espiritualista.

  Quantos corações esfacelados, quantas almas angustiadas nos procurarão, buscando consolo e conforto! Quantas inteligências, entregues às frívolas concepções, batidas pela dor, procurarão as grandes verdades!

  Também nós estamos impacientes e queremos que termine essa carnificina, porque o nosso coração se despedaça com o desfile de males de que conheceis apenas pequena parte, mas que nós presenciamos em toda a sua extensão!

  Como vós, também sofremos diante de tantas angústias e misérias, e mais ainda, porque as enxergamos melhor, porque temos, sobre vós, a vantagem de compreender mais claramente os objectivos divinos de tais lutas fratricidas.

  Sabemos que a humanidade não se poderá salvar de um fracasso irremediável a não ser através dessa crise, e já vislumbramos a aurora de um brilhante renascimento.

  Tende, portanto, confiança na nossa França imortal, não chorando os seus mortos, porque essa luta é dos espíritos celestes contra as potências do mal, dos espíritos de luz contra as legiões tenebrosas do abismo.

  Não; Guilherme II, o grande mago negro, o evocador de Odin, não vencerá a França que, apesar das suas faltas e erros, sempre voltou os olhos para o ideal e para a luz!

  Os vossos mortos estão vivos e ainda combatem pela pátria e pela humanidade; presentes nas trincheiras, eles animam os seus camaradas, inclinam-se sobre os feridos abandonados nos campos de batalha, para lhes diminuir os padecimentos e aliviar os horrores da agonia; consolam, com os seus fluidos reconfortantes, aqueles que ficaram neste mundo.

  A França quase sucumbiu no Marne e em Verdun, salvando-se, todavia, quando o monstro se encontrava em plena posse de todos os seus poderes e de toda a sua força. Agora, o inimigo começa a se cansar e se esgota, sendo inútil contrair todos os músculos que se afrouxam pouco a pouco, e chegará o dia em que o terrível monstro cairá sobre a areia manchada pelo seu próprio sangue, para nunca mais se levantar.

  Não podemos nem devemos fixar datas, pois se Deus pode dizer ao espírito imundo: “Basta”, deve, todavia, entregar ao livre-arbítrio das nações e dos indivíduos a possibilidade de se manifestarem.

  Quantas nações não serão julgadas e não sofrerão o peso da sua covardia, quando deviam defender a justiça violada!

  Quantos indivíduos terão que pagar caro as traições e covardias que retardaram a vitória do bem e aumentaram o número de vítimas! Tremam todos porque a mão divina cairá pesadamente sobre eles.

  Porém, que essas fraquezas e desfalecimentos não vos desesperem. A França vencerá. A vitória dos aliados, gloriosa entre todas, bela por tanto heroísmo, por tantos sacrifícios, apresentará ao mundo uma nova era de justiça, amor e beleza!”

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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, VII –  O Dia de Finados na Trincheira, 2 de 2, 21º fragmento da obra.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Nas garras do pensamento crítico ~


O velho e o novo ~

   É evidente que o conhecimento da sobrevivência alarga a concepção humana da vida e do mundo, muito além dos limites terrenos ou orgânicos da concepção materialista. Oliver Lodge classificou o Espiritismo de “nova revolução copérnica”.

   Assim como Copérnico rompeu de vez o ergástulo mental do geocentrismo, a revolução espírita desloca dos organismos materiais o conceito de vida, rompe o organocentrismo da biologia moderna e reduz a uma simples confusão do efeito pela causa o chamado “materialismo-psicológico”.

   Em consequência, leis e perspectivas novas aparecem, exigindo verdadeira revisão dos conhecimentos do homem e do seu modo de encarar a vida e o mundo. Mais uma vez nos deparamos com a luta clássica entre o velho e o novo tão bem definida no Evangelho de Cristo e nas obras de Allan Kardec.

Vagas aspirações

   Alegam os mais ferrenhos materialistas que o conhecimento da sobrevivência – se de facto ela existisse – não serviria senão para perturbar a visão presente do homem, desviando-o da execução pura e simples das tarefas imediatas. Kardec, que condenou a vida contemplativa, e pregou a necessidade da acção contínua, dando o exemplo concreto da sua própria vida de militante espírita, replica: “...a incerteza, no tocante às coisas da vida futura, faz que o homem se lance, com uma espécie de frenesi, sobre as da vida material.”

   A réplica de Kardec não exige demonstrações. A vida moderna, baseada no materialismo prático do mundo capitalista, vale por uma experiência natural, em escala de assombro. Nunca se viu tamanho frenesi na procura dos bens materiais. A advertência de Francis Bacon“Busca primeiro as boas coisas do espírito, que o resto será suprido ou não sentirás a sua falta”, com base naquela de Cristo: “Busca primeiramente o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais te será dado por acréscimo”, não soa no coração, mas apenas nos tímpanos desatentos do homem moderno. Diante disso, poderíamos esperar do materialismo teórico ou filosófico uma nova aplicação do princípio de Hahnemann, – similia similibus curantur – para curar o mundo desse delírio febril?

   Kardec diz ainda: “Esse é o inevitável efeito das épocas de transição. O edifício do passado rui, sem que o do futuro esteja construído. O homem é como um adolescente, que não tem mais a crença ingénua dos primeiros anos e não adquiriu ainda os conhecimentos da idade madura. Não possui mais do que vagas aspirações, que não sabe definir.”

   A sociedade socialista, baseada na filosofia materialista mais avançada, terminaria atormentada por essas “vagas aspirações” de que nos fala Kardec. E mais uma vez surgiria, no seu próprio seio, a luta entre o velho e o novo. A hipótese não é gratuita, pois para tal não acontecer, seria necessário que não existisse uma vida futura, que a sobrevivência não fosse uma das realidades do Universo.

/…


José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, "O velho e o novo / Vagas aspirações", 11º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

a pedra e o joio ~


O comparsa da matéria ~
   Estranharam alguns leitores a acusação de materialismo que fizemos à teoria corpuscular do espírito. Realmente, alguns trechos do livro do Sr. Guimarães Andrade parecem contradizer-nos. Assim, por exemplo, na página 110, encontramos este: “Sem atribuir aos componentes da substância viva a intervenção de um princípio extra-material, não conseguiremos levar a bom termo a compreensão do enigma da vida”. (Suprimimos os trechos intercalados, para maior clareza).

   Essa, entretanto, não é mais do que uma das muitas contradições do livro e da teoria. Enquanto o autor afirma tal coisa, através de palavras, propõe o contrário na sua elaboração teórica. Preso àquilo que chamamos de “fatalismo lógico”, o Sr. Guimarães Andrade quer seguir um caminho, mas na verdade segue outro. O princípio extra-material não tem lugar nessa teoria corpuscular, tipicamente mecanicista, irremediavelmente amarrada às ciências da matéria.

   Na página 116, por exemplo (Cap. VI), vemos o autor equiparar os bions aos electrons. As suas palavras textuais são estas: “O bion seria um correspondente tetradimensional do electron. As suas propriedades se assemelham e são homólogas. Todavia, um tem quatro e o outro tem três dimensões. Talvez somente nisso resida a diferença entre eles”. Como vemos, a diferença é apenas dimensional. Mas quando nos lembramos de que a quarta dimensão é o tempo da concepção física de Einstein, chegamos a perguntar porque o autor se refere ao espírito.

   Tudo se passa, como já demonstramos, no “continuum espaço-tempo”, que é um “continuum” material, o todo material do universo einsteiniano. O próprio autor chama o espírito de “comparsa da matéria”, chegando a falar num “conúbio entre o espírito e a matéria”. Mas por que esse conúbio, se a matéria pode explicar tudo, pois tudo se passa nela? O espírito aparece por mero engano, como “peninha para atrapalhar”, pois o que importa é a matéria. E tanto assim, que o espírito, antes de se integrar na matéria, é apenas matéria em quarta dimensão.

   Para sair da situação contraditória em que se colocou, o autor inventa um curioso processo de queda dos átomos espirituais, atraídos por um campo material. Mas nesse momento tem de reformar, não só o Espiritismo, como também a Física. A sua posição é então a de um reformador universal. De um lado, quer modificar Allan Kardec, do outro, modificar Einstein e todos os teóricos da física nuclear. A sua teoria da queda dos átomos, entretanto, não é mais do que uma imitação da teoria da inclinação dos átomos, de Epicuro. E sabemos que Epicuro foi acusado, por essa teoria da inclinação, de haver desfigurado o atomismo de Demócrito.

   Vejamos como o autor propõe essa aparente novidade: “Para explicar o fenómeno (a vivificação da matéria), precisamos transpor algumas barreiras conceptuais da própria Física, admitindo que o movimento dos electrons, quando cobrindo uma superfície fechada em torno do núcleo, possa desenvolver um momento magnético perpendicular, ao mesmo tempo, aos três eixos cartesianos que definem um espaço físico”. Mais uma vez, como assinalamos anteriormente, o autor se utiliza dos conceitos alheios em função dos seus interesses teóricos. Amolda ao seu bel-prazer as próprias teorias da ciência moderna.

   No final do volume, o Sr. Guimarães Andrade se lembra da existência de Deus e declara que o excluiu intencionalmente da teoria, para o incluir mais tarde. O leitor que acompanhou o nosso estudo há de perguntar, porém, de que maneira Deus seria incluído nesse mundo mecânico, onde o próprio Espírito da concepção kardeciana foi também posto de lado e “cientificamente” substituído por um “comparsa da matéria”, que nada mais faz do que obedecer a leis de atracção e repulsão.

   Não existe, na teoria corpuscular do espírito, uma anterioridade do espírito. “Comparsa da matéria”, ele nasce com esta e nesta se desenvolve. Na página 134, ao tratar da reencarnação, o autor reafirma a sua tese: “Como já fizemos ressaltar nos capítulos anteriores, o espírito se forma e se aperfeiçoa através das suas experiências na matéria”. E na página 184, explica que a alma é simples “duplicata biomagnética”, que surge com o corpo e com ele desaparece.

   Essa nova teoria da alma é outro ponto obscuro do livro. O Sr. Guimarães Andrade faz absoluta distinção entre espírito e alma. Afirma que esta última desaparece com a morte do corpo. Mas acrescenta que ela fica “em estado latente, aguardando novo veículo fisiológico para se manifestar”. Quer dizer que a alma desaparece, mas não desaparece. Verdadeiro jogo de esconde-esconde, perfeitamente dispensável, pois em nada influi na teoria. O autor se diverte, às vezes, jogando com a sua imaginação, na formulação de subteorias inteiramente inúteis, simples brinquedos de passa-tempo.

   E o perispírito? perguntarão os leitores. E perguntarão com razão. Mas não podemos dar-lhes nenhuma resposta positiva. O perispírito existe, porque o autor se refere a ele, mas jamais o define. Aliás, parece que a omissão é determinada pelo “fatalismo lógico” a que já aludimos. Como explicar o perispírito, depois que toda a sua possível explicação foi aplicada ao espírito? O que o Sr. Guimarães Andrade chama de espírito, desde o início do livro até ao fim, seria mais aceitável se ele o chamasse de perispírito. Mas, por outro lado, se o fizesse, onde iria parar a teoria corpuscular “do espírito”?

   Pela exposição acima, parece-nos ter ficado claro que a teoria corpuscular do espírito, como já dissemos, é simplesmente um equívoco. O Sr. Guimarães Andrade empregou mal a sua inteligência e a sua cultura, ao querer fazer tamanha revolução no Espiritismo e na Ciência, pois não conseguiu atingir a nenhum dos dois. Veremos ainda, no último artigo sobre o assunto, reproduzido logo a seguir, que as intenções do autor não se limitam a contribuir para o desenvolvimento da ciência espírita. Vão bem mais longe. A teoria corpuscular pretende substituir a doutrina espírita, deixando Allan Kardec e a codificação na retaguarda. É por isso, e não pelo gosto de divergir, que insistimos no esclarecimento do assunto.
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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. O comparsa da matéria, 15º fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

| o grande enigma ~


Unidade substancial do Universo (II)

A grande querela secular que dividia as escolas filosóficas reduz-se, pois, a uma questão de palavras. Nas experiências em que a William Crookes coube tomar a iniciativa, a matéria funde-se, o átomo desaparece; em seu lugar surge a energia. A substância é um Proteu que reveste mil formas inesperadas. Os gases, que se consideravam permanentes, se liquefazem; o ar se decompõe em elementos muito mais numerosos do que a ciência de ontem ensinava; a radioactividade, isto é, a aptidão dos corpos à desagregação, emitindo eflúvios análogos aos raios catódicos, revela-se qual um facto universal. Uma revolução se dá nos domínios da Física e da Química. Por toda a parte, em nosso redor, vemos expandirem-se fontes de energia, imensos reservatórios de forças, muito superiores em potência a tudo quanto até hoje se conhecia. A Ciência se encaminha, pouco a pouco, para a grande síntese unitária, que é a lei fundamental da Natureza. As suas mais recentes descobertas têm alcance incalculável, no sentido de demonstrar, experimentalmente, o grande princípio constitutivo do Universo: unidade das forças, unidade das leis. O encadeamento prodigioso das forças e dos seres – precisa-se, completa-se. Verifica-se existir continuidade absoluta, não só entre todos os estados da Matéria, mas ainda entre estes e os diferentes estados da força. (i)

(i) “Os produtos da dissociação dos átomos – diz Gustave Le Bon – constituem uma substância intermediária, pelas suas propriedades, entre os corpos ponderáveis e o éter imponderável, isto é, entre dois mundos profundamente separados até aqui.” (Revue Scientifique, 17 de outubro de 1903).
“As observações precedentes – diz ainda esse eminente químico – parecem provar que os diversos corpos simples derivam de matéria única. Essa matéria primitiva seria produzida por uma condensação do éter.” (Revue Scientifique, 24 de outubro de 1901).

A energia parece ser a substância única, universal. No estado compacto, ela reveste as aparências a que chamamos matéria sólidalíquidagasosa; sob um modo mais subtil, constitui os fenómenos de luz, calor, electricidade, magnetismo, afinidade química. Estudando a acção da vontade sobre os eflúvios e as irradiações, poderíamos, talvez, entrever o ponto, o vértice em que a força se torna inteligente, em que a Lei se manifesta, em que o Pensamento se transforma em vida. (ii)

(ii) Ver nota complementar nº 2, no fim deste volume.

E isso porque tudo se liga e encadeia no Universo. Tudo é regulado pela lei do número, da medida, da harmonia. As manifestações mais elevadas de energia confinam com a inteligência. A força se transforma em atracção; a atracção se faz amor. Tudo se resume num poder único e primordial, motor eterno e universal, ao qual se dão nomes diversos e é apenas o Pensamento, a Vontade divina. As suas vibrações animam o Infinito! Todos os seres, todos os mundos se banham no oceano das irradiações que emanam do inesgotável foco.

Consciente da sua ignorância e da sua fraqueza, o homem fica confundido diante dessa unidade formidável que abrange todas as coisas e com ela conduz a vida das Humanidades. Ao mesmo tempo, entretanto, o estudo do Universo lhe abre fontes profundas de gozos e de emoções. Apesar da nossa enfermidade intelectual, o pouco que entrevemos das leis universais nos arrebatam; na Potência ordenadora das leis e dos mundos pressentimos Deus e, por isso, adquirimos a certeza de que o Bom, o Belo, a Harmonia perfeita, reina acima de tudo.
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Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte Deus e o Universo, II Unidade substancial do Universo 2 de 2, 10º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Victor Hugo e o invisível ~


VICTOR HUGO E AS VIDAS SUCESSIVAS DO SER

   O autor de Contemplações não negava as vidas sucessivas da alma; ao contrário, acreditava nelas como numa teoria infinita pela qual o Ser, passando de um longínquo histórico a um novo tempo, se engrandece espiritualmente. Sentia-se protagonista da grande evolução palingenésica da humanidade; por isso, as idades distintas do passado se repercutiam vivamente na sua sensibilidade poética. A visão cosmológica que possuía aproximava-o do pensamento de Camille Flamarion, que pregou a doutrina da pluralidade dos mundos habitados em relação com a pluralidade da existência da alma. O universo era para o poeta como um palco no qual o espírito age para subir os degraus do infinito. Aceitava, pois, a concepção de Allan Kardec resumida no lema: "Nascer, morrer, renascer e progredir sempre, esta é a lei". Neste aspecto, Victor Hugo coincidia com grandes poetas como GoetheWhitmanLamartineEmerson e outros que, por suas ideias palingenésicas, foram colocados sob o signo da Cruz Ansata.

   Quando o poeta disse que "a origem tem um ontem e o túmulo um amanhã'' fez declaração pública das suas ideias filosóficas baseadas na reencarnação. O seu génio imenso e abrangente não resistia às limitações de uma existência única para a alma. Não obstante as interpretações teológicas, Hugo acreditava que Jesus havia falado de um homem palingenésico quando, dirigindo-se a Nicodemos, disse: "Necessário vos é nascer de novo".

   Ler o seu estudo sobre As Almas é verificar de que forma o poeta penetrou no drama dos espíritos cujas características particulares, tão diferentes entre si, comprovam os variados desenvolvimentos de cada ser, facto que revela o processo palingenésico vivido pelas almas. Para Victor Hugo, o homem não é um composto físico-químico que se perde no nada com a decomposição. Concebia o homem como um espírito reencarnado que traz a sua própria história realizada nas vidas anteriores. Nesse sentido, a poesia se revela como uma acumulação de elevadas virtudes morais que se transformam em harmonia e beleza. Isto porque a beleza para o poeta palingenésico é uma expressão superior do Ser, pela qual penetra na essência religiosa da criação. O homem entra e sai do processo histórico mediante a lei da reencarnação e, à medida em que se liberta do mundo material, liga-se com a realidade do espírito imortal.

   Victor Hugo participava dessa legião de espíritos iluminados a que pertenciam Giuseppe MazziniEmílio CastelarGiuseppe GaribaldiPi y Margall, os que se inspiravam moral e socialmente nas ideias palingenésicas. Mas em Hugo a intuição que o fez compreender que "a origem tem um ontem e o túmulo um amanhã'' manifestou-se com sonoridades enraizadas no cósmico e no divino. O seu génio poético lhe permitiu sentir a presença do passado palingenésico, tal como o percebeu em "Terra Santa" Alphonse de Lamartine. De facto, foi ali que o autor de Jocely se recordou de uma vida anterior relacionada com os tempos apostólicos.

   Victor Hugo confirmou as suas convicções palingenésicas ao final dos seus dias, quando disse: "Faz meio século que escrevo em prosa e verso; história, filosofia, drama, legendas, sátira, ode, canção; de tudo tenho tratado, mas sinto que não disse mais que a milionésima parte do que sinto em mim. Quando estiver no túmulo, direi: 'terminei a minha jornada' e não 'terminei a minha vida'. A minha existência recomeçará no outro dia. O túmulo não é um beco sem saída mas uma avenida. A minha obra é apenas um princípio e a sede do infinito prova que existe o infinito.

   "Sou homem, mas sou uma partícula divina que, insignificante como sou, me sinto Deus porque eu também ponho ordem no meu caos interior.

   "Viverei mil vidas futuras, continuarei a minha obra, de século em século escalarei todas as rochas, todos os perigos, todos os amores, todas as paixões, todas as angústias e depois de mil ascensões, livre, transformado, o meu espírito voltará à sua fonte, unindo-se com a realidade absoluta, como o raio de luz retorna ao Sol".

   O grande poeta francês era um lírico profundamente religioso: daí os seus ímpetos por uma vida eterna e renovada pela reencarnação. Como muitos outros génios poéticos, uniu-se à concepção de um ser infinito e espiritual que nasce, morre e renasce. O seu espírito aspirava por "entrar e sair" da humanidade, a fim de participar existencialmente em todos os processos históricos e sentir-se protagonista em todos os episódios da história universal.

   Este mistério palingenésico do homem e do universo é que porá a descoberto a Nova Poesia, a excelsa. Gaia Ciência dos grandes poemas humanos e sobre-humanos. A nova poesia, como foi sentida por Hugo, Whitman, Goethe, NervoCapdevila e outros grandes poetas, revelará cada vez mais à humanidade que sem "vidas sucessivas" tudo estará desvinculado no grande processo da criação. Por outro lado, com o homem palingenésico, ou seja, o ser que nasce, morre e renasce tudo se une e entrelaça no universo. A história se mostra como um processo universal determinado pelo ''processo individual" dos espíritos encarnados. Victor Hugo cantou esse renascimento incessante das almas para que o homem compreenda que ele está sempre presente em todos os períodos da história.

  No poema O aparecido do seu livro Contemplações, a ideia do regresso palingenésico dos espíritos está dramaticamente descrita. Fala de uma mãe que adorava o seu filhinho e sonhava para ele um futuro radiante. Mas um dia, disse o poeta, "esse corvo chamado crupe penetrou bruscamente naquele lar feliz e, arrojando-se sobre o menino, pegou-o pela garganta". A mãe infeliz, vendo-se sem o filho querido, destruído pelas garras da morte, "ficou imóvel três meses, os olhos fixos, murmurando um nome ininteligível e olhando sempre para a mesma parte da parede".

   Mais adiante, diz o poeta: "O tempo passou, passaram-se os dias, semanas e meses e aquela mulher soube que seria mãe pela segunda vez''.

   Quando pressentiu a vinda do novo filho, a mãe "empalideceu e lançou um grito: – Quem é este ser estranho? exclamou. E, caindo de joelhos, acrescentou: 'Não, não o quero; meu filho morto teria ciúmes e me pressionaria por acreditar que o houvesse esquecido e que outro ocupava o seu lugar: ''minha mãe o quer, concebe-o formoso, ri com ele e beija-o; mas eu, eu estou no túmulo! Não, não o quero! "Fazia-a falar assim a sua dor profunda".

   "Quando amanheceu – continua o poeta – vendo que o seu marido era pai de outro filho, a mulher exclamou, agitada: É menino! O marido, porém, era o único que estava alegre em casa; a mãe permaneceu triste, sem esquecer o filho morto. Trouxeram-lhe o recém-nascido, deixou que viesse e o apertou no seu peito; imediatamente, porém, pensando sem cessar mais no filho morto do que naquele ali, preocupando-se mais com a mortalha do que com o agasalho, exclamou: – Está só no túmulo aquele anjo! Mas, por um milagre que fez voltar a sua alegria, aquela mãe ouviu que o recém-nascido falava nos seus braços, com voz familiar, e dizia baixinho: – Sou eu!.. mas não o digas!"

  De facto, o filho morto havia regressado através da grande lei da reencarnação. O ser chorado e tão desesperadamente invocado havia voltado às entranhas de sua mãe e por elas renascido para acalmar a sua dor e continuar, dessa forma, o seu ciclo de crescimento espiritual.

  Com este poema, Victor Hugo venceu a escuridão, o túmulo e afirmou à cultura filosófica do seu tempo que o homem é uma entidade imortal que encarna e desencarna para alcançar estados superiores e divinos. Nesse mesmo poema deu à maternidade um novo significado filosófico e religioso quando disse: "Oh mães! O nascimento começa com o túmulo. A eternidade guarda mais do que um segredo divino".
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Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, VICTOR HUGO E AS VIDAS SUCESSIVAS DO SER, 7º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo VI

A Lorraine e os Vosges. Joana d’Arc, alma céltica
(II)

   Os altos vales da Meurthe, da Moselle e da Vologne possuem ainda numerosos monumentos megalíticos: menires e dolmens.

  Segundo Charton, o altar achado em Lamerey, os “tumulus” (i) de Bouzemont, de Dommartin-les-Remiremont, de Martigny são antiguidades célticas. (ii) O vale d’Arjol, os arredores de Darney recordam lembranças do mesmo tipo. A montanha dos Deux-Jumeaux apresenta, sobre o Piton Nord, cavidades circulares e características onde os druidas recolhiam directamente as águas pluviais como sendo as mais puras para a celebração de seus ritos religiosos. Sobre o Piton Sud, o Grand-Jumeau, pode notar-se os vestígios de um “oppidum(fortaleza gaulesa).

(i) Tumulus – construção de pedras em forma de cone, que os antigos elevavam por cima das sepulturas. (N.R., conforme o Nouveau Petit Larousse Illustré.)
(ii) Ver a obra Les Vosges Pittoresques. Tumulus – construção de pedras em forma de cone, que os antigos elevavam por cima das sepulturas. (N.R., conforme o Nouveau Petit Larousse Illustré.)

  Pessoalmente, pude observar na Lorraine muitas dessas rochas arrumadas em forma de altares, com cavidades circulares, espécie de pias de água-benta druídicas, em particular em Grand-Rougimont, no vale da Haute Vezouse. Igualmente na montanha, perto de Épinal, chamada “Cabeça de Pequena Cuba” por esse motivo. Uma escavação semelhante, chamada “Caldeirão das Fadas”, é encontrada na montanha de Répy, entre Raon-l’Étape e Étival.

  Perto de Saint-Dié outros vestígios célticos são encontrados, até na floresta dos Molières, distante de todo o caminho. Sobre a crista do monte de Ormont pode seguir-se as marcas de alinhamentos de pedras levantadas.

  Mais perto de Nancy, conhece-se a fortaleza de Sainte-Geneviève; a de Champigneulles, na floresta da Fourasse, e, sobretudo, a importante obra, acima de Ludres, chamada falsamente de “campo romano” e que é céltica, da Idade do Ferro. As escavações praticadas nesses lugares deram resultados significativos, conservados no Museu de Lorraine. Quantos outros vestígios célticos são considerados, por ignorância, como galo-romanos!

  A essas lembranças, frequentemente profanas, nós preferimos os velhos altares em plena floresta onde os romanos nunca entravam, ficando nas cidades e nos grandes vales abertos às rotas comerciais. Eu admiro os rochedos antigos na floresta profunda onde nós, celtas, nos sentimos mais em nossa casa.

  Os megálitos, nota-se, são numerosos em Lorraine como em todo o resto da Gália. Os menires ou pedras de pé, dolmens ou mesas de pedra, “cromlechs” ou círculos de pedra aí se encontram frequentemente, sempre em estado rústico, aos quais se poderia denominar com o título correcto de pedras virgens.

  Se a simplicidade das formas e a ausência completa de estética podiam ser consideradas como os indícios de uma antiguidade recuada, pode-se fazer remontar a origem dos megálitos às primeiras idades da história.

  Entretanto, nós vemos que os celtas ainda faziam uso deles durante a nossa era, embora mostrassem uma arte refinada na fabricação de armas, jóias, vestuários, etc. Havia então aí, nessa simplicidade desejada, uma intenção profunda, um sentimento religioso, que Jean Reynaud, professor da Universidade de Paris, nos explica nestes termos no seu belo livro L’Esprit de la Gaule:

  “Não se pode achar uma outra origem para esta arquitectura primitiva a não ser no respeito supersticioso de que os primeiros homens deviam sentir-se penetrados para com a majestade da terra. Eles deviam recear, naturalmente, cometer um sacrilégio, aventurando-se a modificar a figura desses blocos de formas inexplicáveis... Essa arquitectura simboliza a época em que o homem já quer erigir monumentos e não ousa ainda submeter aos ultrajes do martelo a face augusta da terra.”

  As costas da Moselle e os “altos do Meuse”, isto é, as duas cadeias de colinas que cercam esses rios, eram na maioria coroadas de fortalezas e mesmo de monumentos consagrados aos deuses e às deusas locais: Teutatès, Taran, Belen, Rosmerta, Serona, deusa das águas, que não eram, na realidade, mais do que génios tutelares, espíritos protectores das tribos. Todos esses vestígios provêm de duas grandes tribos célticas: os Médiomatriques, que tinham por capital Metz (Divorentum) e os Leuques, cujo principal centro era Toul. (iii)

(iii) Ver Parisot, Histoire de Lorraine.

  Os Médiomatriques tinham enviado seis mil homens para levantar o bloqueio de Alésia, enquanto que os Leuques, aliados dos Trévires, resistiam aos germanos.

  São Jerónimo dizia, no século IV, que a língua céltica era ainda usada em Verdun e em Toul, onde atrapalhou o progresso do Cristianismo.

/... 



LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO VI – A Lorraine e os Vosges. Joana d’Arc, alma céltica 2 de 3, 20º fragmento da obra.
(imagem: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Interpretações erróneas sobre a homossexualidade ~

Na palavra homossexualidade o prefixo homo não se refere a homem, mas a igual ou semelhante. Esse é o sentido do prefixo grego que equivale a homogéneo ou homogeneidade. A palavra abrange, portanto, todos os casos de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, homens e mulheres. Há no meio espírita a tendência de se atribuir essa perversão ao processo de reencarnação. Tornou-se mesmo comum dizer-se que um afeminado revela com isso que foi mulher na encarnação anterior e que a mulher de aspecto e atitudes viris foi homem. O sexo é um caso de polaridade das funções genésicas. Essa polaridade é universal, manifesta-se em todas as coisas e em todos os seres. A sexualidade é uma das condições gerais do organismo. As leis de evolução determinam o sexo de acordo com as necessidades evolutivas do indivíduo. Sexo forma o carma, mas não é carma. O homem e a mulher são seres complementares. Na dialéctica da evolução eles se emparelham, formam a parelha humana destinada a conjugar-se e não a opor-se reciprocamente. Essa é uma antiga concepção que vem da mais alta antiguidade. Foi dela que nasceu o mito dos hermafroditas, filhos de Hermes e Afrodite, que reuniam em si os elementos femininos e masculinos. Segundo Sócrates, os primeiros habitantes da Hélade eram os andrógenos, ligados pelas costas, que andavam girando com grande velocidade e resolveram subir ao Monte Olimpo para desalojar os deuses. Zeus os castigou, cortando-os pelas costas, de maneira a separar o feminino e o masculino. Desde então as duas metades se perderam e procuram reencontrar-se e se ligarem de novo no amor, sob o poder de Eros.

O mito representa a condição humana total, em que a sexualidade revela a sua unidade primitiva, que se diferenciou no tempo em feminino e masculino. As existências actuais confirmam a essência simbólica do mito, mostrando o aspecto de polaridade das funções genéticas do homem. Todos os homens e mulheres são igualmente dotados da sexualidade única, que só se divide e se diferencia no plano funcional. Como ensina Allan Kardec, homens e mulheres têm os mesmos direitos, mas funções diferentes.

A natureza humana é una, mas sobre ela se recortam as figuras do homem e da mulher, diferenciando-se apenas pelas exigências do sexo. Mas há nessas teorias um aspecto ainda mais deprimente, que consiste no desrespeito à dignidade feminina. A mulher normal e decente não emprega as suas funções sexuais no sentido aviltante que os teóricos analfabetos lhe atribuem. Se um espírito passou pela encarnação feminina para adquirir nela as virtudes da maternidade, da ternura, da paixão pela beleza e a harmonia, como podemos conceber esse espírito aviltando-se e aviltando a espécie humana na fonte sublime da maternidade? Onde estaria o senso dos espíritos benevolentes, ao serviço de Deus nos laboratórios da reencarnação, para insistirem na técnica da perversão? Teorias dessa espécie defendidas levianamente no meio doutrinário envilecem a doutrina e fazem as pessoas de bom senso julgarem que somos uma tropilha de ignorantes.

Devemos ainda atentar para os aspectos científicos da questão. Os desequilíbrios sensoriais podem ser provocados pela educação deformante da criança. As sensações mórbidas provocadas nas primeiras fases da infância levam geralmente a distúrbios perigosos. Freud é ainda hoje censurado pelo seu pansexualismo, mas os estudiosos sérios das suas obras sabem que a razão o assistia nesses exageros que não eram propriamente dele, mas da realidade queimante que a investigação da libido lhe punha nas mãos de pioneiro. O misticismo religioso, com o seu insistente e criminoso estrangulamento das energias genéticas da espécie, das quais depende a sobrevivência humana, produziu maior número de monstros do que geralmente se pensa. Durante dois mil anos os pregadores de abstinências impossíveis violaram a naturalidade do sexo, entregando as suas vítimas à sanha dos espíritos inferiores, íncubos e súcubos, que punham clérigos e freiras em delírio nos mosteiros e conventos. Aldous Huxley nos conta, em Os Demónios de Loudun como foi estabelecida a taxa especial para a liberdade sexual dos padres celibatários durante a Idade Média. A hipocrisia e a depravação foram as flores mortais da semeadura de santidade forçada. É inacreditável que, agora, espíritas ingénuos, desconhecedores de sua própria doutrina – em que as leis de Deus são as próprias leis naturais – levantem essa acusação monstruosa à lei divina da reencarnação.

A extrema sensibilidade dos órgãos sensoriais, apta à captação da estesia, complica-se no homem com o desenvolvimento da imaginação que o leva à busca do prazer. A inquietação humana decorre da encarnação, da prisão do espírito na carne. Mas a própria carne lhe oferece as vias de fuga da imaginação e do prazer. O espírito é liberdade e quer se afirmar como tal na existência, mas as barreiras do seu condicionamento humano o impedem de ser realmente o que é. O instinto de liberdade o arrasta para as vias de escape. As proibições formais da sociedade e da cultura, freando-lhes os impulsos genésicos e as influências de um passado milenar de abusos e recalques, acrescido das restrições morais que o encurralam na consciência em desenvolvimento, geram o trágico pandemónio da libido. Unamuno foi benevolente ao considerar o homem como um drama. Mais do que isso, ele se apresenta na existência como uma tragédia. Veja-se o desespero de Sartre, que impossibilitado de pôr ordem no caos, se precipitou no suicídio conceptual da frustração e do nada. A ideia absurda da nadificação o acalmou de tal forma que ele se empenhou a sustentá-la mesmo ante as conquistas científicas que o tornaram perempto antes do tempo. Alguns teólogos medievais costumavam dizer que o homem não pode colher os frutos do Paraíso antes do tempo. A simbólica expulsão de Adão do Paraíso dá-nos o quadro vivo dessa precipitação. A mulher, considerada inferior nas sociedades patriarcais, representa o instrumento da serpente (símbolo fálico) para levar o homem à desobediência. Agora, como se não bastasse essa injustiça mitológica, queremos também imputar-lhe a responsabilidade do homossexualismo através da reencarnação. O mito grego dos homens bissexuados, que Zeus separou para defender o Olimpo, repõe a mulher na sua dignidade aviltada. A metade perdida torna-se exigência vital, que o homem busca no plano existencial, reconhecendo nela a sua aspiração imediata, para fazê-la de novo sua companheira e parceira, sonho e ideal, mãe e irmã, apoio e estímulo, que nos tempos líricos da cavalaria medieval e castelã, senhora e mártir ao mesmo tempo, escravizada ao garrote vil dos cintos de castidade. Ambivalência monstruosa em que a dama sublime era transformada em suposta criminosa condenada por suspeição.

Ver num jovem efeminado a reencarnação de uma mulher pervertida é fugir à realidade universal das perversões masculinas, sempre mais brutais que as femininas. Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, colocou bem esse problema de transferência estúpida e até mesmo covarde. As lésbicas gregas, como Safo, de inteligência e sensibilidade refinadas, viviam numa condição histórica e cultural muito diferente da nossa, integradas numa concepção do mundo que era global, gestáltica e não fragmentária como a nossa. O ideal do Belo, que Platão levara à suprema expressão, dominava o pensamento grego. A contemplação dos belos corpos, dizia o filósofo, eleva a alma aos planos divinos. Não era a sensação grosseira e banal, o refocilar dos porcos na lama, que atraía essas criaturas, mas a estesia pura ante a beleza perfeita. Já em Roma a situação era outra e os antigos camponeses transformados em conquistadores do mundo geravam as messalinas, flores espúrias de um mundo em que a práxis esmagava a herança da Grécia, mas desenvolvendo os resquícios da barbárie romana. Por isso, chegamos ao cúmulo de atribuir a Sócrates, como o fizeram Anito e Melito, a pecha de perversão. A nossa incapacidade para compreender o mundo em que o ideal superava o pragmático é inegável. Ernst Cassirer, em A Tragédia da Cultura, mostra-nos como arrancamos das ruínas de antigas civilizações, com garras de primatas, a impregnação do passado. Não recebemos a herança viva, mas os resíduos mortos que trazem o frio mineral das estátuas. Não somos capazes de medir o passado pela sua dimensão real e o reduzimos às nossas próprias dimensões. Benét Sanglé, fascinado pela figura de Cristo, colocou-o na retorta da psiquiatria e o transformou em louco no seu livro La Folie de Jesus. É geralmente assim que procedemos, com a sensibilidade embotada do nosso pragmatismo. O nosso refinamento é exterior e superficial. Por baixo das camadas de verniz da civilização actual carregamos os monstros que puseram as suas garras de fora na última Conflagração Mundial, no genocídio atómico de Nagasaki e Hiroshima, nas escaladas americanas sobre o Vietname. A prova disso está aí, flagrante e horrenda, nas violências tecnológicas de nosso século. E isso porque imolamos o espírito à matéria. Esquecemos a nossa origem, essência e destino divinos para nos proclamarmos senhores de um mundo de fome e miséria.

Outra explicação da homossexualidade atribui aos velhos a responsabilidade da perversão. Segundo os autores dessa teoria os velhos, ao perderem a virilidade, entregam-se a excitações indevidas, e quando o espírito volta a reencarnar-se, traz na sua bagagem esse estranho contrabando. Tivemos a oportunidade de contestar um dos autores num programa de televisão, no canal 13 de São Paulo. É incrível a leviandade com que certas pessoas, escudando-se em títulos universitários, mas sem critério científico, fazem afirmações dessa espécie. A generalização é tremendamente ofensiva. A dignidade, que sempre encontrou na senectude a sua mais bela expressão, esboroa-se nas mãos desses teóricos improvisados que nada respeitam. Os sectores da Espiritualidade incumbidos dos processos reencarnatórios tornam-se negligentes e insensíveis aos olhos desses teóricos do absurdo. A reencarnação, por sua vez, perde a sua validade como instituto de reparação e evolução. A desoladora falta de compreensão dos objectivos naturais da reencarnação, por parte desses diplomados por acaso ou negligência, chega a escandalizar as pessoas de bom senso. A mesquinhez dessas suspeitas infundadas revela a mentalidade tacanha desses pseudocientistas, que se apresentam como pesquisadores. Todas as pessoas que compreendem a doutrina da reencarnação sabem que esse processo universal é um dos meios de controle da evolução geral. Procurar motivos específicos e ridículos para manifestações de desequilíbrio já suficientemente conhecidos é querer confundir a questão. Não há razão para essas invenções ou invencionices, quando a perversão dos instintos naturais é uma constante da evolução em todos os seus campos. Geração e corrupção, como ensina Aristóteles, são a antítese e a tese da dialéctica da criação, mas nos limites temporais do processo. A regularidade das leis naturais que determinam a sistemática evolutiva não comporta especulações bastardas. A própria grandeza do destino humano, da destinação superior do homem no Universo, repele essas tolices. Cada ser e cada espécie estão submetidos à lei da harmonia e perfeição que rege, do minério ao homem, o desenvolvimento das potencialidades da criação. O dínamo-psiquismo-inconsciente de Geley a que já nos referimos, oferece-nos uma visão grandiosa do processo evolutivo que amesquinha por si mesmo essas especulações sem sentido.
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José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Interpretações Erróneas sobre a Homossexualidade, 15º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)