Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...
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sábado, 26 de outubro de 2024

metapsíquica | e depois


~~~ Segundo Caso ~~~

(A Crise da Morte)

Tiro este segundo facto do volume De MorganFrom Matter to Spirit (i(pág. 149). (*) A personalidade mediúnica do Doutor Horace Abraham Ackley descreve, nestes termos, a maneira como o seu Espírito se separou do organismo somático:

Como acontece em muito elevado número de humanos, o meu espírito não se libertou facilmente do corpo. Eu sentia que me desprendia gradualmente dos laços orgânicos, mas encontrava-me em condições pouco lúcidas de existência, afigurando-se-me que sonhava. Sentia a minha personalidade como que dividida em muitas partes, que, todavia, permaneciam ligadas por um laço indissolúvel. Quando o organismo corpóreo deixou de funcionar, pode o meu espírito despojar-se dele inteiramente. Pareceu-me então que as partes destacadas da minha personalidade se reuniam numa só. Senti-me, ao mesmo tempo, levantado acima do meu cadáver, a pequena distância dele, donde eu via distintamente as pessoas que me cercavam o corpo.

Não saberia dizer por que poder cheguei a me desprender e a me elevar no ar. Depois desse acontecimento, suponho ter passado por um período bastante longo em estado de inconsciência, ou de sono (o que, aliás, acontece frequentemente, se bem que isso não sucede em todos os casos); deduzo-o do facto que, quando tornei a ver o meu cadáver, estava ele em estado de adiantada decomposição.

Logo que voltei a mim, todos os acontecimentos da minha vida desfilaram aos meus olhos, como que em panorama; eram visões vivas, muito reais, em dimensões naturais, como se o meu passado se tivesse tornado o presente. Revi todo o meu passado, tendo compreendido o último episódio: o da minha desencarnação. A visão passou diante de mim com tal rapidez, que quase não tive tempo de reflectir, tendo ficado como que arrebatado por um turbilhão de emoções. A visão, em seguida, desapareceu com a mesma instantaneidade com que se mostrara; as meditações sobre o passado e o futuro, provocaram vivo interesse em mim pelas condições actuais.

Eu ouvira dizer aos espíritas que os Espíritos desencarnados eram acolhidos no mundo espiritual pelos seus parentes, ou pelos seus Espíritos-guardiães. Não vendo ninguém perto de mim, conclui que os espíritas se tinham enganado. Mas, logo que este pensamento me atravessou o espírito, vi dois Espíritos que me eram desconhecidos e para os quais me senti atraído por um sentimento de afinidade. Soube que tinham sido homens muito instruídos e inteligentes, mas que, como eu, não haviam cogitado em desenvolver em si os princípios elevados da espiritualidade. Chamaram-me pelo meu nome, sem que eu o tivesse pronunciado, e me acolheram com uma familiaridade tão benévola, que me senti agradavelmente reconfortado. Com eles deixei o meio onde desencarnara e onde me conservara até àquele momento. Pareceu-me nebulosa a paisagem que atravessei; mas dentro dessa meia obscuridade, fui conduzido a um lugar onde vi reunidos numerosos Espíritos, entre os quais muitos havia que eu conhecera em vida e que tinham morrido há algum tempo...

Notarei que no último parágrafo do episódio precedente se encontra um outro o dos detalhes secundários habituais, que se diferenciam mais ou menos nas descrições de tantos Espíritos que se comunicam. Este detalhe encontrará a sua razão de ser nas condições espirituais, bem pouco evolvidas, do defunto autor da mensagem. Geralmente, nas de revelações transcendentais, lê-se que os Espíritos dos mortos entram num meio mais ou menos radioso, onde são acolhidos pelos Espíritos dos seus parentes. Aqui se vê, ao contrário, que o Espírito comunicante se encontrou num meio nubloso, onde foi acolhida amistosamente por dois Espíritos que lhe eram desconhecidos, mas que guardavam afinidade com ele, do ponto de vista das condições espirituais. É fácil de julgar que este aparente desacordo entre as primeiras impressões deste Espírito desencarnado e outras muito mais frequentes dependa da circunstância de que, como ele próprio diz, se descuidara em vida em desenvolver em si o elemento espiritual e que os Espíritos que lhe foram ao encontro se encontravam nas mesmas condições. Daí resultou que, pela lei de afinidade, um meio de luz não se adaptava às condições transitórias, mas obscurecidas, dos seus Espíritos.

De outro ponto de vista, notarei que, também no episódio em apreço, o Espírito que se comunica afirma ter sofrido a prova da visão panorâmica do seu passado, prova que, neste caso, em vez de se desenrolar espontaneamente, em consequência de uma superexcitação sui generis das faculdades mnemónicas (superexcitação produzida pela crise da agonia, ao que dizem as psicologistas), pareceria antes provocada pelos guias espirituais, com o fim de predispor o Espírito recém-chegado a uma espécie de exame de consciência.

Esta interpretação do fenómeno ressaltará muito mais claramente de alguns dos casos que se vão seguir.

Notarei, finalmente, que este caso, ocorrido em 1857, já contém a narração de um incidente interessante de bilocação no leito de morte, seguido do fenómeno consistente na situação que durante algum tempo o Espírito desencarnado se manteve, pairando por cima do cadáver. Frequentes incidentes análogos encontrar-se-ão nas comunicações da mesma natureza; com mais frequência ainda, são sensitivos que, assistindo à morte de alguém, os descreverão segundo o que perceberam. As obras espiritualistas estão cheias de episódios deste género, a começar pelos que foram descritos pelo famoso vidente Andrew Jackson Davis e pelo juiz Edmonds, até aos que chegaram ao Rev. William Stainton Moses e à governante inglesa (enfermeira diplomada) Mrs. Joy Snell (i), que tem vindo a assistir à produção de fenómenos desta espécie desde há vinte anos. Ora, quem não vê que o facto das afirmações de videntes, concordantes de modo admirável com o que narram os próprios Espíritas desencarnados, tem inegável importância, uma vez que se confirmam mutuamente? E também, com relação a esta ordem de incidentes, é muito comum que o médium escrevente, ou o sensitivo vidente, estejam na mais completa ignorância acerca da existência de tais fenómenos e da maneira pela qual se produzem no leito de morte. E como o caso com que acabamos de ocupar-nos remonta a 1857, isto é, aos começos do movimento espírita, tudo contribui para que se suponha que nesta circunstância o médium e os assistentes ignoravam tudo o que concerne aos fenómenos de bilocação em geral e, sobretudo, à maneira como se dão com os moribundos.

/...

(*) From Matter to Spirit (Da Matéria ao Espírito), uma obra escrita por Sophia Elizabeth De Morgan (1809–1892) foi esposa do matemático e lógico Augustus De Morgan e mãe do célebre ceramista William De Morgan. Neste livro, publicado em 1863, De Morgan, escrevendo como 'CD' – com um prefácio de seu marido assinado como 'AB' – reconhece que supostas manifestações espirituais enfrentaram muitas críticas e cepticismo, mas argumenta que era um fenómeno pouco compreendido que merecia mais investigação. Ela passou uma década nesta pesquisa e se concentrou no papel dos médiuns, pessoas que se acreditava comunicarem-se com o mundo espiritual. Ela foi auxiliada nisso pela chegada de um médium que viveu com a família De Morgan durante seis anos. Os seus capítulos também examinam em profundidade o processo de morrer e as ideias sobre a vida depois da morte. Um relato em primeira mão do mundo espiritualista do século XIX, este livro fornece um vislumbre fascinante do cenário religioso em mudança da Grã-Bretanha à época. Adenda desta publicação.


Ernesto Bozzano (1862-1943) (i)A Crise da Morte, Publicação original (1930), "La Crisi Della Morte"; Segundo Caso. 2º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Puro aire, uma pintura de Josefina Robirosa)

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Deus na Natureza ~


~ a vontade do homem ~
(VI)

 O apanágio mais glorioso da natureza humana não passaria de grosseiro engodo, se pudesse prevalecer a teoria mecânica do Universo. A Verdade, o Bem, o Belo desaparecem nela. Em vão os adversários nos alegam a sua conduta exemplar, inatacável.

 No caso, não se trata das consequências de sua vida pessoal e sim das de sua doutrina. Pois bem: logicamente, sem contradizer-se a si mesmo, não pode o ateísmo constituir-se em moral. “O materialismo – diz judiciosamente Patrice Larroque (i) – para mais nada serve, senão para tirar à vida humana a sua gravidade e o seu valor, dando razão aos seres miseráveis, cuja habilidade consiste em explicar, com a maior segurança possível, as misérias e fraquezas do próximo.”

 Queremos francamente acreditar que todos os materialistas, em o serem, não se tornem só por isso corrompidos. Não nos fazemos eco dos que os acusam de “viverem mergulhados na embriaguez e no deboche”. Conhecemos homens e mulheres cuja vida pode apontar-se como modelo de moralidade, embora não crendo na existência de Deus e da alma. Não, não podemos deixar de confessar que, no seu próprio sistema, essa honestidade é apenas uma questão de temperamento e que, justos e bons, conscienciosos e benevolentes, afectuosos e moralizados, em suma, se praticam a caridade, se não sacrificam ao bezerro de ouro, se preferem a integridade e a pureza de carácter à fortuna ilícita, não é devido ao seu sistema e sim a uma convicção íntima, que os guia a seu talante e protesta contra as suas palavras e a sua filosofia. Sim: não são moralizados por serem cépticos, mas, a despeito de o serem.

 Pois, na verdade, que significa uma moralidade sem base, sem motivo e sem finalidade?

 Certo, não duvidamos possa haver uma moral independente do Catolicismo, mesmo do Cristianismo e, em geral, de qualquer confissão religiosa. No que não cremos é numa moral independente da ideia de Deus. Se só existissem as verdades de ordem física, se fossem místicas as que possuímos como de ordem moral, a própria moral não passaria de utopia e a honestidade de mera tolice.

 Outras propensões, existem, porém, que não procedem da matéria.

 “O homem que passa os dias sofrivelmente a trabalhar, ou, antes, que não consome todo o tempo em prover a existência física – diz um grande astrónomo (ii) – experimenta necessidades nas quais não intervêm os sentidos, penas e gozos, que nada têm de comum com as misérias da vida. E, uma vez manifestadas com certa intensidade, ele não pode confundi-las com os apetites animais. Sente-as como de outra espécie e de uma ordem mais elevada. Mas isso não é tudo. O homem não é sensível somente aos jogos da imaginação, às suavidades dos costumes sociais, mas sim especulativo por natureza. Não contempla o mundo e tudo que o rodeia, passiva e admirativamente, como se fossem fenómenos seriados e apenas dignos de interesse pelas relações que mantêm com ele. Ao contrário, considera-os como sistematizados, dispostos e coordenados com desígnio. A harmonia das partes, a sagacidade das combinações, causam-lhe a mais viva admiração. Assim, é levado à conjectura de uma potência, de uma inteligência superior à sua e capaz de produzir e conceber, quanto se lhe depara na Natureza. Pode chamar a essa potência, infinita, uma vez que lhe não percebe limite nas obras com que se lhe manifesta. Quanto mais examina, observa, indaga, maiores magnificências descobre e mais grandezas entrevê.

 “Vê que tudo o que lhe pode facultar a mais longa existência e a maior inteligência, já como fruto de experiência própria, já como património de esforço alheio, só pode conduzi-lo aos limites da Ciência. Como estranhar, então, que um ser assim constituído comece por agasalhar a esperança e acabe convicto de que o seu princípio espiritual não acompanhe as vicissitudes da carcaça, que lhe sobreviva ao desaparecimento? Como admirar se convença ele, que, longe de extinguir-se, passará a uma vida nova, na qual, liberto dos mil entraves que aqui lhe tolhem o voo, dotado de sentidos mais subtis, de faculdades mais altas, matará a sede na fonte de sabedoria que tão sequioso buscara na Terra?”

 A hipótese materialista exclui todas estas grandezas morais, todas estas altas aspirações e esperanças consoladoras. Os nossos adversários, porém, tomam facilmente o seu partido: “Façamos abstracção – diz o autor de Força e Matéria – de toda a questão de moral e de utilidade. A Natureza não existe para a Religião, nem para a Moral, nem para os homens. Não seríamos ridículos – vejam bem, ridículos – se fôssemos chorar como crianças só porque as nossas torradas têm pouca manteiga?” Que tal vos parecem as... torradas? Pelo que nos toca, confessamos não compreender o gracejo em assunto de tamanha relevância.

 Diante dos grandes factos de ordem moral e intelectual, parece-nos haver perdido todo o senso da verdade para subordinar estas virtudes, as “virtudes”, aos movimentos da matéria. Como atribuir a esse predomínio, com Moleschott, que o “homem deva, em parte, o lugar privilegiado na escala zoológica, à faculdade de alimentar-se tanto de vegetais como de carne”? O mesmo vale dizer, com Helvétius, que “o homem só deve à conformação das mãos a superioridade que desfruta em relação aos outros animais”.

 Como admitir que Büchner, apregoando a matéria como base de toda a força espiritual, de toda a grandeza terrestre e humana – que aquele mesmo que reconheceu a igualdade do espírito e da matéria e julgue honroso o título de materialista, pois ao materialismo é que o mundo deve a sua grandeza? (iii)

 Como afinar com Spencer nestas declarações:

 “O que denominamos quantidade de consciência é determinado pelos elementos constitutivos do sangue; vemo-lo claramente na exaltação que se dá quando introduzimos na circulação uns quantos compostos químicos, como sejam o álcool e os alcalóides vegetais.” Como Compartilhar da opinião de Littré ao declarar que “a vontade é inerente à substância cerebral, assim como a contractilidade o é dos músculos e, que o livre-arbítrio não é mais que simples modalidade do trabalho cerebral”? (iv)

 Como reduzir a proporções da Física e da Química orgânicas, a simples fenómenos de nutrição e assimilação, essas realizações magníficas do génio e da virtude?

 Terminando este capítulo, regressemos ao objectivo com que o encetámos e constatemos a inconsequência desses filósofos que imaginam, arrogantemente, ter lançado uma ponte entre o espírito e a matéria, sem perceberem que apenas lançaram pedras no abismo. Descrevem eles o movimento atómico das substâncias, metamorfoses de combinações, processos de assimilação e desassimilação e pretendem que essas transformações que levam do pulmão ao cérebro uma molécula de ferro, são de molde a explicar claramente a formação do pensamento. Posto isto, não temem acrescentar: – “Temos provas tão concretas desta verdade, que uma profissão de fé materialista não deve ser considerada apenas como premissa de grande alcance, nem como arrojada profecia, mas como fruto de uma convicção profundamente enraizada” (v).

 Eis o que se pode chamar ousadia! Sabei assim todos vós, ó filósofos e moralistas! que o homem é manufactura do seu alimento, da sua paternidade, do seu clima, do seu solo e da sua educação. Se afagais o nobre intuito de colaborar para a melhoria humana, não é, precisamente, a graduação do nível moral e intelectual do indivíduo o que vos deve preocupar e, sim de como vive e como se alimenta. Se ele tem muito ferro (já que o ferro é uma das maiores apoquentações da época e as raparigas muito necessitam dele; (Carta 11ª) se tem fósforo que baste (já que sangue, cérebro, ovos e esperma, todas as partículas do corpo, em suma, que ocupam os mais altos postos na escala da vida devem à gordura fosforada (vi) o seu carácter mais essencial); (Carta 11ª) se tem bastante sal no espírito e açúcar no coração...

 A questão fundamental é alimentar-se bem e estabelecer uma conveniente harmonia entre os regimes vegetal e animal. Escolhamos então, nos elementos deste último, os mais ricos de substâncias nutrientes e, sobretudo, os que primam por abundância de fósforo, sem chegar, claro, aos extremos de engolir cabeças do dito.

 Mas, à batata, ao arroz, à cenoura, ao nabo, às verduras, prefiramos o feijão, as ervilhas e as lentilhas. Eis os três restauradores do espírito! e eis como se escreve a respeito desses beneméritos legumes.

 Ouçamos esta tirada: “As ervilhas, o feijão e as lentilhas continuam a florescer nos nossos olhos, elas contêm aproximadamente tanta albumina (legumina) quanto o nosso sangue; e duas ou três vezes mais matérias adipógenas que legumina. Embora mais caras e de preparação mais dispendiosa, as ervilhas, o feijão e as lentilhas dão melhor resultado que as batatas. Elas são de molde a produzir um bom sangue e a fortificar os músculos e o cérebro, qual o não faz a batata. As ervilhas, o feijão e as lentilhas, atendendo às suas qualidades nutritivas, são mais baratos que as batatas, pela mesma razão que o ferro é mais barato que a madeira, quando se trate de fabricar trilhos. Ervilha, feijão e lentilha dão energias para o trabalho, pagam por si mesmos o seu custo; ao passo que um regime longo de batatas acarreta debilidade e decadência. O homem que, durante quinze dias, só comesse batatas, ficaria impossibilitado de as arrancar por si mesmo” (vii).

 O prolator deve ter assinado contracto com algum hortelão (ou talvez hoteleiro), exclusivamente devotado a estes omnipotentes legumes. Que lhes faça bom proveito...

 Sob esse novo panegírico das ditas substâncias alimentares, o materialismo desliza suavemente e se insinua sem rumor. Compararam-no certa feita (mas nós temos cá as nossas dúvidas) àquela coisa de que nos fala D. Basílio: um leve ruído resvalando pelo solo, qual andorinha que, prenunciando tempestades, pipila e passa, a espalhar no seu curso a semente envenenada...

 Seja, porém, qual for o efeito dos miríficos farináceos, não será neles que havemos de procurar as manifestações do espírito humano.

 Quando, finalmente, concluem que a influência incontestável e incontestada do regime alimentar sobre o físico e o moral basta para justificar, em absoluto, a suserania da matéria, caem nos excessos do sistematismo, a negarem tudo que se não enquadra no seu sistema e a torcerem os factos para os ajeitar aos seus estreitos moldes. Bastaria, contudo, que ponderassem um pouco mais, para não sustentarem semelhantes erros.

 Quaisquer que sejam o carácter, o propósito e a persistência de ânimo daqueles de quem aqui temos falado, os seus exemplos valem como protesto de afirmações tão insensatas.

 Eis aqui o grande missionário das Índias, Francisco de Xavier. Sigamo-lo na nau que o levou às Índias portuguesas, por ordem de D.João III, a descer o Tejo, envolto na sua estamenha remendada e só com a bagagem do seu breviário – ele, o generoso gentil-homem, o sábio de 22 anos, o já consagrado professor de Filosofia na Universidade de Paris, que tudo abandonava para acompanhar um amigo. Durante o dia, trabalha com os marinheiros e aos marinheiros se devota; à noite, dorme no convés e tem por travesseiro um rolo de cordoalha.

 Em Goa, foi encontrar-se no meio de uma população miserável, sem outra preocupação que a de libertá-la do miasma moral e material. Mais tarde, no prosseguimento da abnegada missão, ei-lo a descer as costas de Comorim e a fundar uma igreja no Cabo. Depois encontramo-lo em Malaca e no Japão, a defrontar novas raças e novos climas. Sabemos que toda a sua vida foi um rosário de sofrimentos físicos e de conquistas espirituais. Fome, sede e torturas inauditas barraram a senda do peregrino da fé.

 Tudo vencia, porém, e avançava para diante como que impelido por uma vontade incoercível “Seja qual for a morte, o suplício que me reservem – dizia –, estou disposto a sofrê-lo mil vezes pela salvação de uma só alma.” A febre e a morte detiveram-no nas fronteiras da China. Em face de exemplos como este, que se poderia concluir das teorias do feijão, das ervilhas e das lentilhas? Em que, como e, quando o regime alimentar teria governado a alma do apóstolo? Teria ele encontrado nessas regiões desconhecidas aquela balança metódica que se oferece ao cidadão e que o capitalista preguiçoso pode encomendar ao seu Vatel? Que relação pode haver entre Brillat-Savarin e Grimodde la Reynière com um Inácio de Loyola e um Vicente de Paula? Os grandes exploradores, à cabeça dos quais se encontram um Dumont-d’Urville, um Cook, um Livingstone, etc., não vingaram, todos eles, os seus desígnios em circunstâncias e condições físicas as mais contrárias e variadas?

 Poder-se-á sustentar que, mudando de terra, de alimentação, de clima, de meio social, de outros elementos e até de corpo, dado a transformação molecular, mudassem também de alma, de fé e de coragem? Pois não é verdade que persistiram íntegros na consecução do ideal, através de vicissitudes tremendas e dos mais fortes obstáculos? (viii) Na verdade, insistirmos seria injuriar o leitor, os nossos sistemáticos adversários à parte, nenhum espírito sensato duvida que matéria e espírito sejam coisas diferentes. Ninguém ignora que, se a assimilação corporal actua no nosso pensamento, assim como a beleza do dia influi na serenidade de nossa alma, isso não impede que seja essa alma um ser pessoal, que chora às vezes quando as aves cantam e as flores exalam perfumes e, outras vezes se entrega serenamente ao estudo, enquanto o céu tempestuoso se funde em raios e trovões (ix).

 Entendam-nos bem e não venham interpretar infielmente as nossas alegações. Nós não dizemos que a matéria seja destituída de toda e qualquer influência sobre o espírito; não dizemos que a alma humana seja completamente independente do organismo e nem mesmo estamos com Platão, ao pretender que o espírito é estranho ao corpo e que há antipatia entre eles.

 Certo, ninguém dirá que uma criatura a morrer de fome esteja disposta a cantar. Quem duvidará de que, após uma jornada fatigante, cabeceando de sono, tenhamos disposição para dançar?

 Então não sabemos, todos, que a nossa alma se impressiona com e pelos aspectos exteriores? Que um dia luminoso nos alegra, que uma manhã sombria e chuvosa nos entristece? Que a placidez das belas noites nos penetra intimamente, proporcionando-nos gozos calmos? E dizei: os poemas sonoros, os encantos da música, sinfonias deliciosas, sonatas apaixonantes, nunca vos arrebataram, nunca vos sacudiram os nervos? Será que, nas vossas disposições habituais, tanto quanto nos sonhos que povoam as vossas noites, nunca experimentastes o efeito da alimentação e dos vossos hábitos e misteres? Dar-se-á que a maneira pela qual terminastes a vossa tarefa, não tenha afectado os vossos sonhos?

 Numa palavra: será possível ao observador negar a influência permanente e variável que o mundo exterior, sociedade, relações, alimento, frio, luz, obscuridade, cidade ou aldeia e outras causas mil, de nós independentes, não influam nos nossos pensamentos, sentimentos e sensibilidade? Não. Essas influências são reais, admitimo-las e indicamo-las. Montesquieu, cuja declaração é menos exclusiva do que supõem, escreveu: “Nos países frios haverá pouca tendência para os prazeres, que será mais acentuada nos climas temperados e, sempre exuberante nas regiões quentes. Ouvindo as mesmas óperas na Inglaterra e na Itália, notei que a mesma música produzia efeitos diferentes, isto é: enquanto na primeira o auditório se mantinha calmo, na segunda vibrava de forma inconcebível. O mesmo se dá com relação à dor... A grande estatura e os nervos enrijecidos dos povos do Norte são menos vibráteis que os da gente dos países quentes. Lá, há menos sensibilidade na dor. Para sensibilizar um moscovita, quase precisamos esfolá-lo.” Mais adiante, porém, acrescenta que, entre as coisas que governam o homem, importa distinguir “a religião, as leis, as máximas, os exemplos”. Concordaremos com o autor de O Espírito das Leis, com restrições, isto é, no que concerne a influências extrínsecas, por assim dizer; mas daí a admitir que só elas fazem o homem, vai todo um abismo. Uma coisa é dizer que a alma é impressionada por causas situadas fora dela, outra é dizer que essa alma não existe. Chegamos mesmo a nos perguntar como podem os adversários conciliar as duas proposições, quando, no fundo, imaginam que a alma não existe e os pensamentos não passam de produtos da substância cerebral, variáveis com as impressões recebidas. Eis ao que se reduz o homem!

 Abstraindo-nos de todas as provas precedentes acumuladas, a testificação da nossa liberdade viria, enfim, depor a favor da força pensante que nos anima.

 – O panteísmo, fazendo da alma uma partícula da substância divina, a escraviza e arrasta, inevitavelmente, ao fatalismo absoluto.

 – O ateísmo, negando a existência do espírito, faz da alma a escrava da matéria e a conduz, por outra via, ao mesmo fatalismo.

 Poderíamos, portanto, proceder por eliminação, demonstrando a inanidade dessas doutrinas, forçar o acolhimento da nossa, como a única que concilia os diversos imperativos de nossa consciência. Assim, permitiu de sorte fossem os adversários batidos em todos os quadrantes e que a negação da personalidade ficasse presa ao pelourinho por todos os elementos de nossa convicção.

 Concluindo o arrazoado sobre a existência da alma, afirmamos: a dignidade humana não permite um semelhante atentado ao que constitui o seu supremo farol; antes protesta contra essas tendências exageradas. As influências exageradas actuam mais ou menos em nós, conforme a nossa sensibilidade nervosa; mas, tanto quanto a composição química do cérebro, elas não constituem o nosso valor moral e intelectual. Para arrasar essa hipótese, bem como a precedente, basta considerar a potencialidade da nossa força mental. Com ela, só, podemos afrontar todas essas influências e seguir desdenhosos, de cabeça erguida, por entre essas acções e reacções ambientes.

 Quando a alma se acabrunha ao peso de uma dor profunda, pouco nos preocupamos com o estado do céu, se chove ou se faz vento.

 Quando nos abandonamos a um enlevo de alegrias íntimas, pouco se nos dá o dia e o mês em que nos encontramos.

 Quando estudos sérios nos absorvem a atenção, esquecemo-nos de jantar e até de dormir.

 Quando o som das fanfarras atroa os ares e a cidade em alvoroço festeja a liberdade, não lembra saber se estamos em Julho ou em Fevereiro.

 Quando a pátria periclita, o pavilhão francês não se preocupa com a data e o barómetro.

 A vontade suserana não cogita dessas pretensas causas. As profundas emoções do coração desprezam bagatelas. Se a saúde é condição excelente para bem pensar e sentir, não quer dizer que ela só por si promova o estado da alma. Há, na vida, horas mais deliciosas que as dos mais opíparos banquetes e, nas quais se esquecem as iguarias deleitosas aos paladares insaciáveis; horas que eclipsam câmaras sumptuosas, peles caras, jóias brilhantes, todos os prazeres do mundo, enfim, para só nos absorvermos em gozos mais íntimos e mais vivazes... Quantos, na Terra, fruíram esses momentos de felicidade, sabem que acima da esfera material existe uma região inacessível aos tormentos inferiores, onde as almas idealistas se encontram em comunhão com a beleza espiritual incriada.

/…
(ii) Discurso en the Study Natural Philosophy, by J. F. W. Herschel.
(iii) Force et Matière, ch. V. Dignité de la Matière.
(iv) Dictionaire de Nysten, article Volonté.
(v) Moleschott – Circulation de la Vie, t. 2º, página 57.
(vi) A propósito desta apologia dos alimentos fosforados, perguntaremos a esses entusiastas se imaginam que os pescadores da Picardia e da Bretanha, que comem muito pescado, se destacam por uma inteligência excepcional.
(vii) Moleschott – Loc. cit. conclus. t. 2º, página 225.
(viii) Moleschott ainda não se penitenciou do seu erro e continua sustentando as mesmas opiniões de 1852. Bom seria que imitasse, até ao fim, o exemplo de Cabanis. Depois dos exemplos que acabamos de citar, concebe-se que um observador de boa-fé proponha, por princípio geral, o seguinte conceito: – “Em toda a série animal vemos funções múltiplas da vida cerebral em correspondência com as fases de crescimento e decrescimento do órgão; vemos a sensibilidade, o “julgamento”, a “consciência”, a coragem e o amor mudarem com o regime alimentar e com o estado de saúde”. Curso de 1865 na Universidade de Zurich.
(ix) A Filosofia não se deixa dominar por esses mistérios. O vitae philosophia dux – exclamava Cícero. (Tese quaest). O virtutis indagatrix espultrixque vitiorun. (Tu urbe. peperisti; tu Inventrix legum, tu magistra morum et discipline fuisti: “ad te confugimus, a te opem pertimus”.)


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte; (3) A Vontade do Homem (6 de 6), 32º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Diálogos de Kardec ~


~ o caminho da vida ~ 

A questão da pluralidade das existências, tem desde há muito tempo, preocupado os filósofos e, mais de um, reconheceu; na anterioridade da alma, a única solução possível para os mais importantes problemas da psicologia. Sem esse princípio, eles se encontram presos a cada passo, encurralados num beco sem saída, donde somente poderão escapar com o auxílio da pluralidade das existências. 

A maior objecção que podem fazer a esta teoria é a da ausência da lembrança das existências anteriores. Com efeito, uma sucessão de existências inconscientes, umas das outras; deixando um corpo, para ocupar outro, sem a memória do passado, equivaleria ao nada, visto que quanto ao pensamento seria o nada; seria uma multiplicidade de novos pontos de partida, sem ligação entre si; seria a ruptura incessante de todas as afeições que fazem o encanto da vida presente, a mais doce e consoladora esperança do futuro; seria, afinal, a negação de toda a responsabilidade moral. Semelhante doutrina seria tão inadmissível e tão incompatível com a justiça divina, quanto a de uma única existência com a perspectiva de uma eternidade de penas por algumas faltas temporárias. Compreende-se então que, os que fazem semelhante ideia da reencarnação a recusem; mas, não é assim que o Espiritismo no-la apresenta. 

A existência espiritual da alma, diz ele, é a sua existência normal com a lembrança retrospectiva indefinida. As existências corpóreas são apenas intervalos(curtas estações) na existência espiritual, sendo a soma de todas as estações, apenas uma parcela mínima da existência normal, absolutamente como se numa viagem de muitos anos, de tempos a tempos, o viajante parasse durante algumas horas. Embora pareça que, durante as existências corporais, haja solução de continuidade, por ausência de lembrança, a ligação efectivamente se estabelece no curso da vida espiritual, que não sofre interrupção. A solução de continuidade, realmente, só existe para a vida corpórea exterior e de relação e, a ausência, aí, da lembrança prova a sabedoria da Providência que assim evitou fosse o homem por demais desviado da vida real, onde ele tem deveres a cumprir; mas, quando o corpo se encontra em repouso, durante o sono, a alma levanta voo parcialmente e restabelece então a cadeia interrompida, apenas durante a vigília. 

A isto ainda se pode opor uma objecção, perguntando que proveito pode o homem tirar das suas existências anteriores, para se melhorar, dado que ele não se lembra das faltas que tenha cometido. O Espiritismo responde, primeiro, que a lembrança das existências infelizes, juntando-se às misérias da vida presente, ainda mais penosa tornaria esta última. Desse modo, poupou Deus às suas criaturas um acréscimo de sofrimentos. Se assim não fosse, qual não seria a nossa humilhação, ao pensarmos no que já fomos! Para o nosso melhoramento, aquela recordação seria inútil. Durante cada existência, damos sempre alguns passos para a frente, adquirimos algumas qualidades e nos despojamos de algumas imperfeições. Cada uma de tais existências é, portanto, um novo ponto de partida, em que somos aquilo em que nos tivermos feito, em que nos tomamos pelo que somos, sem nos preocuparmos com o que tivesse-mos sido. Se numa existência anterior, fomos antropófagos, que importa isso, uma vez que já o não somos? Se tínhamos um defeito qualquer, de que já não conservamos nenhum vestígio, aí está uma conta saldada, de que não mais nos cumpre cuidar. Suponhamos que, porém, se trate de um defeito apenas meio corrigido: o restante ficará para a vida seguinte e será nesta que dele devemos cuidar, corrigindo-o. 

Tomemos um exemplo: um homem foi assassino e ladrão e, foi punido, quer na vida corpórea, quer na vida espiritual; ele se arrepende e corrige do primeiro pendor, porém, não do segundo. Na existência seguinte, será apenas ladrão, talvez um grande ladrão, porém, não mais assassino. Mais um passo para diante e já não será mais que um ladrão vago; um pouco mais tarde já não roubará, mas poderá ter a tentação de roubar, mas que a sua consciência neutralizará. Depois, um esforço derradeiro e, tendo desaparecido todos os vestígios da enfermidade moral, será um modelo de probidade. Que lhe importa então o que ele foi? A lembrança de ter acabado no cadafalso não seria uma tortura e uma humilhação constantes? 

Aplicai este raciocínio a todos os vícios, a todos os desvios e, podereis ver como a alma se melhora, passando e voltando a passar pelos cadinhos da encarnação. Não terá sido Deus mais justo com o tornar o homem árbitro de sua própria sorte, pelos esforços que empregue para se melhorar, do que se fizesse que a sua alma nascesse ao mesmo tempo que o seu corpo e o condenasse a castigos perpétuos por erros passageiros, sem lhe conceder meios de purificar-se das suas imperfeições? Pela pluralidade das existências, o seu futuro está nas suas mãos. Se ele gasta muito tempo a melhorar-se, sofre as consequências dessa maneira de proceder: é a suprema justiça; a esperança, porém, jamais lhe é interdita. 

A seguinte comparação é de molde a tornar compreensíveis as peripécias da vida da alma: 

Suponhamos uma estrada longa, em cuja extensão se encontram – de distância em distância – mas com intervalos desiguais, florestas que se tem de atravessar e, à entrada de cada uma, a estrada larga e magnífica, se interrompe, para só continuar à saída. O viajante segue por essa estrada e penetra na primeira floresta. Aí, porém, não dá com caminho aberto; depara-se-lhe, ao contrário, um labirinto indestrinçável em que ele se perde. A claridade do Sol desapareceu sob a espessa ramagem das árvores. Ele vagueia, sem saber para onde se dirige. Afinal, depois de inauditas fadigas, chega aos confins da floresta, mas extenuado, dilacerado pelos espinhos, amachucado pelos montes de pedras. Lá, descobre de novo a estrada e prossegue a sua jornada, procurando curar-se das feridas. Mais adiante, segunda floresta se lhe afigura, onde o esperam as mesmas dificuldades. Mas, ele já possui um pouco de experiência e dela sai menos molestado. Noutra, cruza-se com um lenhador que lhe indica a direcção que deve seguir para se não transviar. A cada nova travessia, aumenta a sua sagacidade, de maneira que transpõe cada vez mais facilmente os obstáculos. Certo de que à saída encontrará de novo a boa estrada, fixa-se nessa certeza; depois, já sabe orientar-se para encontrá-la com mais facilidade. A estrada termina no cume de uma montanha elevadíssima, donde ele descortina todo o caminho que percorreu desde o ponto de partida. Vê também as diferentes florestas que atravessou e se lembra das vicissitudes por que passou, mas essa lembrança não lhe é penosa, porque chegou ao fim da caminhada. É como o velho soldado que, então na calma do lar, recorda as batalhas que vivenciou. Aquelas florestas que lhe pontilhavam a estrada, são como que pontos negros sobre uma fita branca e, ele diz a si mesmo: “Quando eu estava naquelas florestas, nas primeiras, sobretudo, como me pareciam imensas de atravessar! Afigurava-se-me que nunca chegaria ao fim; tudo à minha volta me parecia gigantesco e intransponível. E quando penso que, sem aquele bondoso lenhador que me pôs no bom caminho, talvez eu ainda lá estivesse! Agora, que contemplo essas mesmas florestas do ponto onde me encontro, como se me apresentam pequeninas! Afigura-se-me, que de um passo, teria podido transpô-las; ainda mais, a minha vista as penetra e lhes distingue os menores detalhes; percebo até os passos em falso que dei.” 

Diz-lhe então um ancião: – “Meu filho, eis-te chegado ao termo da viagem; mas, um repouso indefinido causar-te-ia tédio mortal e tu tenderias a ter saudades das vicissitudes que experimentaste e que te davam actividade ao corpo e ao Espírito. Vês daqui grande número de viajantes na estrada que percorreste e que, como tu, correm o risco de perder-se; tens agora a experiência, nada mais temas: vai-lhes no encalço e procura com os teus conselhos guiá-los, a fim de que cheguem depressa.” 

– Irei com alegria, responde o nosso homem; entretanto, pergunto: por que não há uma estrada directa desde o ponto de partida até aqui? Isso pouparia aos viajantes o terem de atravessar aquelas abomináveis florestas. 

– Meu filho, novato ou mais experiente, atenta bem e verás que muitos evitam a travessia de algumas delas: são os que, tendo adquirido mais rapidamente a experiência necessária, sabem seguir um caminho mais directo e mais curto para chegarem aqui. Essa experiência, porém, é fruto do trabalho que as primeiras travessias lhes impuseram, de sorte que eles aqui chegam em virtude do próprio mérito. Que saberias, se por lá não tivesses passado? A actividade que tiveste de desenvolver, os recursos de imaginação que precisaste empregar para abrir caminho, aumentaram os teus conhecimentos e desenvolveram a tua inteligência. Sem que tal se desse, serias tão noviço quanto o eras à partida. Ao demais, procurando livrar-te dos obstáculos, contribuíste para o melhoramento das florestas que atravessaste. O que fizeste foi pouca coisa, imperceptível mesmo; pensa, contudo, nos milhares de viajantes que fazem outro tanto e que, trabalhando para si mesmos, trabalham, sem o perceberem, para o bem comum. Não será justo que recebam o salário de suas penas no repouso de que gozam aqui? Que direito teriam a esse repouso, se nada tivessem feito? 

– Meu pai, responde o viajante, numa das florestas, encontrei um homem que me disse: “Na orla há um imenso abismo a ser transposto de um salto; mas, de mil, apenas um só o consegue; todos os outros lhe caem no fundo, numa fornalha ardente e ficam perdidos sem remissão. Esse abismo, eu não vi.” 

– Meu filho, é que ele não existe, pois, de contrário, seria uma cilada abominável, armada a todos os que para cá se dirigem. Bem sei que lhes cabe vencer dificuldades, mas igualmente sei que cedo ou tarde as vencerão. Se eu tivesse criado impossibilidades para um só que fosse, sabendo que esse sucumbiria, teria praticado uma crueldade, que dificultaria imenso, a atingissem a maioria dos viajantes. Esse abismo é uma alegoria, cuja explicação vais receber. Olha para a estrada e observa os intervalos das florestas. Entre os viajantes, alguns vês que caminham com passo lento e semblante jovial; vê aqueles amigos, que se tinham perdido de vista nos labirintos da floresta, como se sentem ditosos, por se terem de novo encontrado ao deixarem-na. Mas, a par deles, outros há que se arrastam penosamente; estão estropiados e imploram a compaixão dos que passam, pois que sofrem atrozmente das feridas de que, por culpa própria, se cobriram, atravessando os espinheiros. Curar-se-ão, no entanto e, isso lhes constituirá uma lição da qual tirarão proveito na floresta seguinte, donde sairão menos estropiados. O abismo simboliza os males que eles experimentam e, dizendo que de mil apenas um o transpõe, aquele homem teve razão, porquanto enorme é o número dos imprudentes; errou, porém, quando disse que aquele que ali cair não mais sairá. Para chegar a mim, o que tombou encontra sempre uma saída. Vai, meu filho, vai mostrar essa saída aos que estão no fundo do abismo; vai amparar os feridos que se arrastam pela estrada e mostrar o caminho aos que se embrenharam pelas florestas. 

A estrada é a imagem da vida espiritual da alma e em cujo percurso esta é mais ou menos feliz. As florestas são as existências corpóreas, em que elas trabalham pelo seu adiantamento, ao mesmo tempo que para a obra geral. O caminheiro que chega ao fim e que volta para ajudar os que vêm atrasados, representa os anjos guardiães, os missionários de Deus, que se sentem venturosos em vê-lo, como, também, no desdobrarem as suas actividades para fazer o bem e obedecer ao supremo Senhor. 

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte – O caminho da vida, 22º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)