Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Da sombra do dogma à luz da razão ~


O papel da Ciência na Génese ~

    A história da origem de quase todos os povos antigos confunde-se com a da sua religião: é por isso que os seus primeiros livros foram livros religiosos; e, como todas as religiões que se ligam ao princípio das coisas, que é também o da humanidade, deram sobre a formação e organização do Universo explicações em proporção com o estado dos conhecimentos do tempo e dos seus fundadores. Daí resultou que os primeiros livros sagrados fossem ao mesmo tempo os primeiros livros de ciência, assim como foram durante muito tempo o único código das leis civis.

  Nos tempos primitivos, sendo os meios de observação necessariamente muito imperfeitos, as primeiras teorias sobre o sistema do mundo deviam estar manchadas de erros grosseiros; mas se esses meios tivessem sido completos tal como o são hoje, os homens não teriam sabido servir-se deles; não podiam ser aliás mais do que o produto do desenvolvimento da inteligência e do conhecimento sucessivo das leis da natureza. À medida que o homem foi evoluindo no conhecimento dessas leis, penetrou nos mistérios da Criação e corrigiu as ideias que fazia sobre a origem das coisas.

  O homem foi impotente para resolver o problema da Criação até ao momento em que a chave lhe foi dada pela ciência. Foi preciso que a astronomia lhe abrisse as portas do espaço infinito e lhe permitisse mergulhar nele o seu olhar; que, pela força do cálculo, pudesse determinar com rigorosa precisão o movimento, a posição, o volume, a natureza e o papel dos corpos celestes; que a física lhe revelasse as leis da gravidade, do calor, da luz e da electricidade; que a química lhe ensinasse as transformações da matéria e a mineralogia os materiais que formam a crosta do globo; que a geologia lhe ensinasse a ler nas camadas terrestres a formação gradual desse mesmo globo. A botânica, a zoologia, a paleontologia, a antropologia, iriam iniciá-lo na filiação e na sucessão dos seres organizados; com a arqueologia, foi-lhe possível seguir os traços da humanidade através dos tempos; todas as ciências, numa palavra, completando-se umas às outras, iriam dar o seu contributo indispensável ao conhecimento da História do mundo, o homem só tinha por guia as suas primeiras hipóteses.

  Também, antes de o homem estar na posse destes elementos de apreciação, todos os conhecimentos da Génese, cuja razão embatia em impossibilidades materiais, giravam num mesmo círculo sem dele poderem sair; só o puderam fazer quando a ciência abriu o caminho, cavando uma brecha no velho edifício das crenças, e então tudo mudou de aspecto; uma vez encontrado o fio condutor, as dificuldades foram completamente reduzidas; em vez de uma Génese imaginária, obtivemos uma Génese positiva e, de certo modo, experimental; o campo do Universo estendeu-se ao infinito; viu-se a Terra e os astros a formarem-se gradualmente segundo as leis eternas e imutáveis que testemunham bem melhor a grandeza e a sabedoria de Deus que uma criação miraculosa saída subitamente do nada, como uma alteração à vista graças a uma ideia súbita da Divindade após uma eternidade de inacção.

  Uma vez que é impossível conceber a Génese sem os dados fornecidos pela ciência, podemos dizer na verdade que: a ciência é chamada a formar a verdadeira Génese segundo as leis da natureza.

  No ponto a que chegou no século XIX, terá a ciência resolvido todas as dificuldades do problema da Génese?

  Seguramente que não, mas é incontestável que destruiu sem retrocesso todos os erros capitais e que estabeleceu os fundamentos mais essenciais sobre dados irrecusáveis; os pontos ainda incertos não são, a bem dizer, mais do que questões de pormenor cuja solução, seja ela qual for no futuro, não poderá prejudicar o todo. Por outro lado, apesar de todos os recursos de que pode dispor, faltou-lhe até hoje um elemento importante sem o qual a obra não poderia nunca estar completa.

  De todas as Géneses antigas, a que mais se aproxima dos dados científicos modernos, apesar dos erros que contém e que são hoje demonstrados à evidência, é incontestavelmente a de Moisés. Alguns desses erros são mesmo mais aparentes do que reais e provêm quer de falsa interpretação de certas palavras cujo primitivo significado se perdeu ao passar de língua para língua em traduções ou cuja acepção se alterou com os hábitos dos povos, quer da forma alegórica característica do estilo oriental e de que tomámos a letra em vez de procurarmos o espírito.

  A Bíblia contém evidentemente factos que a razão, desenvolvida pela ciência, hoje não poderia aceitar e outros que parecem estranhos e repugnam porque se ligam a costumes que já não são nossos. Mas, juntamente com isto, haveria parcialidade em não reconhecer que encerra grandes e belas coisas. A alegoria tem aí um lugar considerável e, sob esse véu, esconde verdades sublimes que surgem se procuramos o fundo da ideia, porque então o absurdo desaparece.

  Nesse caso, por que não levantámos esse véu mais cedo? É, por um lado, a falta de saber que só a ciência e uma sã filosofia poderiam proporcionar e, do outro, o princípio de imutabilidade absoluta da fé, consequência de um respeito demasiado cego pela letra perante a qual a razão se deveria inclinar e, portanto, o receio de comprometer o enorme monte de crenças construído sobre o sentido literal. Partindo estas crenças de um ponto primitivo, receou-se que, se o primeiro elo da cadeia se quebrasse, todas as malhas da rede acabassem por se separar; foi por isso que, apesar de tudo, se fecharam os olhos; mas fechar os olhos ao perigo não é evitá-lo. Quando um edifício cede, não é mais prudente substituir imediatamente as pedras más por boas em vez de esperar, por respeito para com a velhice do edifício, que o mal não tenha remédio e que seja preciso reconstruí-lo do princípio ao fim?

  A ciência, levando as suas investigações até às entranhas da Terra e profundidade do céu, demonstrou então de forma irrecusável os erros da Génese moseísta tomada à letra e a impossibilidade material das coisas se terem passado tal como aí são textualmente relatadas; por isso mesmo, lesou profundamente as crenças seculares. A fé ortodoxa sensibilizou-se com isso porque julgou ver retirados os seus fundamentos; mas quem teria razão: a ciência, caminhando prudente e progressivamente no terreno sólido dos números e da observação, sem nada afirmar antes de ter a prova na mão, ou uma relação escrita numa época em que os meios de observação faltavam em absoluto? Quem deve vencer, afinal: o que diz que 2 e 2 são 5 e se recusa a verificar ou o que diz que 2 e 2 são 4 e o prova?

  Mas então, dir-se-á, se a Bíblia é uma revelação divina, Deus enganou-se? Se não é uma revelação divina, já não tem autoridade e a religião cai por falta de base. Das duas uma: ou a ciência não tem razão ou tem-na; se tem razão, não pode fazer com que uma opinião contrária seja verdadeira; não há revelação que possa vencê-la quanto à autoridade dos factos.

  Incontestavelmente, Deus (inteligência directriz)*, que é todo verdade, não pode induzir os homens em erro, nem consciente nem inconscientemente, sem o que não seria Deus. Se então os factos contradizem as palavras que lhe são atribuídas, é preciso concluir logicamente que não as pronunciou ou que foram tomadas no sentido errado.

  Se a religião sofre nalgumas partes destas contradições, o defeito não é de maneira nenhuma da ciência, que não pode fazer com que aquilo que é não seja, mas dos homens, por terem criado prematuramente dogmas absolutos, de que fizeram uma questão de vida ou de morte, sobre hipóteses susceptíveis de serem desmentidas pela experiência.

  Há coisas com o sacrifício das quais temos de nos resignar, de boa ou má vontade, quando não podemos proceder doutro modo. Quando o mundo avança, não podendo a vontade de alguns fazer com que pare, o mais sensato é segui-lo a acomodarmo-nos ao novo estado de coisas, em vez de nos agarrarmos ao passado que desaba, correndo o risco de cairmos com ele.

  Era preciso, por respeito para com os textos considerados sagrados, impor silêncio à ciência? Seria uma coisa tão impossível como impedir a Terra de girar. As religiões, sejam elas quais forem, nunca ganharam nada em sustentar erros manifestos. A missão da ciência é descobrir as leis da natureza; ora, como estas leis são obra de Deus, não podem ser contrárias às religiões fundadas na verdade. Lançar um anátema ao progresso por atentatório da religião, é lançá-lo à própria obra de Deus; é, além disso, trabalho inútil, pois todos os anátemas do mundo não impediram a ciência de avançar, nem a verdade de surgir à luz do dia. Se a religião se recusa a avançar com a ciência, a ciência avança sozinha.

  Só as religiões estacionárias podem temer as descobertas da ciência; estas descobertas só são funestas para as que se deixam distanciar das ideias progressistas, imobilizando-se no absolutismo das suas crenças; têm em geral uma ideia tão mesquinha da Divindade, que não percebem que assimilar as leis da natureza reveladas pela ciência é glorificar a Deus nas suas obras; na sua cegueira, preferem homenagear o espírito do mal. Uma religião que não estivesse em nenhum ponto em contradição com as leis da natureza, nada teria a recear do progresso e seria invulnerável.

  O Génesis compõe-se de duas partes: a história da formação do mundo material e a da humanidade, considerada no seu duplo princípio corporal e espiritual. A ciência limitou-se à procura das leis que regem a matéria; mesmo no homem, só estudou o invólucro carnal. A este respeito conseguiu perceber, com uma precisão incontestável, as principais partes do mecanismo do Universo e do organismo humanos. Neste ponto capital, pode então completar a Génese de Moisés e dela retirar as partes defeituosas.

  Mas a história do homem, considerado como ser espiritual, liga-se a uma ordem especial de ideias que não é do domínio da ciência propriamente dita e que esta, por este motivo, não tomou como tema das suas investigações. A filosofia, que tem mais particularmente nas suas atribuições este tipo de estudo, sobre este ponto só formulou teorias contraditórias, desde a espiritualidade pura até à negação do princípio espiritual e até mesmo de Deus, sem outras bases para além das ideias pessoais dos seus autores; deixou portanto a questão indefinida, à falta de um controlo suficiente.

  Esta questão, no entanto, é para o homem a mais importante, pois trata-se do problema do seu passado e do seu futuro; a do mundo material só lhe toca indirectamente. O que lhe interessa antes de mais nada é saber de onde vem, para onde vai; se já viveu e se voltará a viver e qual a sorte que lhe está reservada.

  Sobre todas estas questões, a ciência fica muda. A filosofia só dá opiniões que vão em sentido diametralmente oposto, mas pelo menos permite discutir, o que faz com que muita gente se coloque do seu lado, dando-lhe preferência à religião, que não discute.

  Todas as religiões estão de acordo quanto ao princípio da existência da alma, sem no entanto o demonstrarem; mas não estão de acordo nem sobre a sua origem, nem sobre o seu passado, nem sobre o seu futuro, nem principalmente sobre o essencial, sobre as condições de que depende a sua sorte futura. Na sua maior parte, fazem do seu futuro um quadro imposto à fé dos seus adeptos, que só pode ser aceite por uma fé cega mas que não pode resistir a um exame sério. Estando o destino que dão à alma ligado, nos seus dogmas, às ideias que se tinham sobre o mundo material e ao mecanismo do Universo nos tempos primitivos, é inconciliável com o estado dos conhecimentos actuais. Só podendo perder com a observação e a discussão, acham mais simples banir uma e outra.

  Desde divergências respeitantes ao futuro do homem nasceram a dúvida e a incredulidade. No entanto, a incredulidade deixa um vazio penoso; o homem encara com ansiedade o desconhecido para onde, mais tarde ou mais cedo, deve fatalmente ir; a ideia do nada gela-o; a sua consciência diz-lhe que, para lá do presente, há para ele qualquer coisa; mas o quê? A sua razão desenvolvida já não lhe permite aceitar as histórias com que lhe embalaram a infância, tomar a alegoria pela realidade. Questiona em vão, nada lhe responde de forma peremptória e apropriada para acalmar as suas apreensões; em todo o lado, encontra a afirmação chocando com a negação, sem provas mais positivas de um lado e de outro; daí a incerteza a incerteza sobre as coisas da vida faz com que o homem se atire com uma espécie de frenesim para as da vida material.

  É este o efeito inevitável das épocas de transição: o edifício do passado desmorona-se e o do futuro não está ainda construído. O homem é como um adolescente que já não tem a fé ingénua dos seus primeiros tempos e não possui ainda os conhecimentos da idade madura; só tem vagas aspirações que não sabe definir.

  Se a questão do homem espiritual permaneceu até hoje no estado de teoria, foi porque faltaram os meios de observação directa que tivemos para constatarmos o estado do mundo material e o campo ficou aberto às concepções do espírito humano. Enquanto o homem não conheceu as leis que regem a matéria e não pôde aplicar o método experimental, errou de teoria em teoria sobre o mecanismo do Universo e da formação da Terra. Passou-se na ordem moral como na ordem física; para fixar as ideias, faltou o elemento essencial: o conhecimento das leis do princípio espiritual. Este conhecimento estava reservado à nossa época, assim como o das leis da matéria foi obra dos dois últimos séculos.

  Até hoje, o estudo do princípio espiritual, compreendido na metafísica, tinha sido puramente especulativo e teórico; no Espiritismo é sobretudo experimental. Com a ajuda da faculdade mediúnica, hoje mais desenvolvida e sobretudo generalizada e mais bem estudada, o homem encontrou-se na posse de um novo instrumento de observação. A capacidade mediúnica foi, para o mundo espiritual, o que o telescópio foi para o mundo astral e o microscópio para o mundo dos infinitamente pequenos; permitiu explorar, estudar, por assim dizer de visu, as suas relações com os habitantes deste mundo, podemos acompanhar a alma na sua marcha ascendente, nas suas migrações, nas suas transformações; pudemos enfim estudar o elemento espiritual. Eis o que faltava aos anteriores comentadores do Génesis para o compreenderem e lhe corrigirem os erros.

  Estando o mundo espiritual e o mundo material em contacto constante, são solidários um com o outro; ambos têm a sua acção na Génese. Sem o conhecimento das leis que regem o primeiro, seria tão impossível continuar uma Génese completa, como a um estatuário dar vida a uma estátua. Só hoje, apesar de nem a ciência material nem a ciência espiritual terem dito a última palavra, o homem possui os dois elementos necessários para fazer luz sobre este imenso problema. Eram absolutamente necessárias estas duas chaves para se chegar a uma solução, mesmo que aproximada.

/…
* Deus (inteligência directriz ~ unidade suprema); in Léon Denis O Porquê da Vida, Solução Racional do Problema da Existência; O que somos? De onde viemos? Para onde vamos? IX – Resumo e conclusão. Nota desta publicação.


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, [...] Capítulo IV, O Papel da Ciência na Génese (de 1 a 17), 21º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

domingo, 13 de outubro de 2019

~~~Párias em Redenção~~~


~~ O JULGAMENTO SOB O AÇODAR* DA CONSCIÊNCIA
(I)

No ergástulo nefário onde se contorcia na abjecção do odioso crime, o suicida acompanhava toda a extensão do atentado praticado contra o corpo que lhe deveria servir de barco para atravessar o mar das vicissitudes, na busca do porto seguro do progresso.

Emparedado no estreito jazigo em que se via obrigado a permanecer, não poderia sopesar qual o infortúnio maior a que estava submetido: se o pútrido exalar da carne em demorada decomposição, se as sensações que lhe penetravam oriundas da invasão dos vermes a desagregarem as moléculas, se a asfixia do laço poderoso que continuava constringindo-lhe as carnes e impossibilitando a circulação, causando sensações impossíveis de descrever, se toda a cabeça, sempre prestes a explodir, se o deslocamento da medula… ou as angústias morais decorrentes da zombaria das turbas e turbas que, sucessivamente, se acercavam do sombrio local para chasquearem, atirando-se em incessantes alcateias sobre as últimas exteriorizações fluídicas, agora pardo-escuras nauseantes e viscosas, ou se, finalmente, o medo do que o aguardava…

Os usurpadores da sua vitalidade pareciam obedecer a diferentes classes: a princípio, eram determinados sugadores que, após algum tempo, debandaram em alacridade, embriagados, e, assim, em continuação, as faces das sórdidas entidades chegavam a aparências grosseiras, incomparáveis, mesmo, às mais exageradas fantasias monstruosas, culminando pela apresentação dos últimos visitantes, que haviam perdido totalmente a forma humana e se rastejavam dolorosamente, coleantes… Eram mil mortes e mil renascimentos na sepultura húmida e fria. Não havia espaço mental para o raciocínio nem e a reflexão, porque tudo prosseguia no mesmo ritmo de alucinação e desdita, como razão humana alguma, enquanto na carne, poderia entender.

Transcorrida uma eternidade, naquele sem-fim onde os dias e as noites não se sucediam, demorando-se apenas uma longa e tenebrosa treva, Girólamo viu, estarrecido, chegar um estranho grupo, trazido por Dom Giovanni.

– Eis aí – disse o antigo duque – o nefasto criminoso, cujas aberrações eu denunciei às Autoridades.

O aspecto feroz dos estranhos e as suas roupagens levaram a mente do amargurado suicida à lembrança das óleo-gravuras católicas, não tendo dúvida em reconhecer naqueles seres os sequazes do Demónio. (i)

Um deles aproximou-se, examinou detidamente os despojos consumidos na sua quase totalidade e, após demorada quanto complexa operação, desligou os últimos liames perispituais do desencarnado libertando-o das vísceras e dos ossos remanescentes.

Um outro pegou uma corda e atou as mãos do infeliz, segurando a outra extremidade de modo a retê-lo preso.

– Saiamos daqui, – disse o que parecia o chefe e, de todos os mais hediondo.

A imensa fraqueza não permitia ao desditoso manter-se sobre as pernas, que se negavam ao movimento. Todo ele era um trapo em convulsão, cuja aparência humana estava reduzida a destroços vergonhosos.

Incapaz de reagir, deixou-se arrastar pela indiferença dos algozes, que agora o defendiam dos bandos de vagabundos que antes o exploravam. Rumando por caminhos sombrios, em que emanações sulfúricas, desagradáveis, se faziam cada vez mais fortes, foi conduzido a um profundo vale, sofrendo as pedras e a lama da vereda.

Na paisagem morta e gelada podia ver, entre as nuvens-chumbo, as encostas de penedias altas que formavam intransponível muralha naquele país donde ninguém podia escapar, senão à tutela da Divina Misericórdia.

O pavor em crescendo, na mente em frangalhos, fê-lo perder a noção de tudo.

Quando despertou, estava numa prisão muito semelhante às da Terra, com a única diferença da aparência sórdida e da podridão reinante. Ao lado, outro infeliz algemado mergulhara totalmente na demência, repetindo sem cessar a mesma sílaba, fazendo recordar o célebre Tan, do antigo Asilo de Bicêtre. (ii)

As dificuldades respiratórias, a sensação no peito e na cabeça eram, no superlativo das dores, os destaques mais afligentes.

Impossibilitado de falar e gritar, como se assim procedendo lhe diminuísse o desespero, o sentenciado àquela impérvia situação se pôs a ulular em grunhidos animais que lhe escapavam dos refolhos da alma, agitando o tórax comprimido e favorecendo-se, ao menos, com a satisfação de exteriorizar todo o horror que o dominava.

Enquanto assim procedia, outros seres, possivelmente na mesma situação, soltaram bramidos e gritos, lancinantes apelos espocaram de todos os lados.

Simultaneamente, ladridos de cães, misturados a vozes que bradavam silêncio, faziam-se acompanhar do som da chibata descarregada no dorso dos prisioneiros da misérrima prisão desconhecida.

O choro convulso tomou conta das celas e a algazarra, eram as exclamações de horror e desesperança dos presidiários.

Com o tempo, o antigo jovem senense passou a experimentar as necessidades fisiológicas e, reduzido à condição animal, adicionou a fome e a sede ao tormento que não cessava…

Por fim, abriram a porta da cela e dois guardas arrancaram-no impiedosamente, açoitando-o, lhe impuseram o rastejar macabro até ao imenso salão, que parecia situado abaixo da superfície ou numa profunda furna. Tochas resinosas ardiam e a fumaça asfixiava.

O absurdo julgamento teve início.

O suicida, quase nas raias da loucura plena e total, foi arrojado a um assento brutesco e, sem a possibilidade de entender quanto se desenrolava ao seu redor e sobre o seu espírito, passou a ouvir, com inaudito esforço, as acusações terrificantes.

Muitos eram os julgados do dia. Na sua vez, um ser infernal, de aparência chocante, arengou algumas palavras em latim, como se houvera pertencido a alguma organização religiosa da Terra, depois do que foram chamadas as testemunhas de acusação.

O primeiro a apresentar-se foi Dom Giovanni, que se transfigurara em horrendo como impiedoso algoz.

– Eu acuso Girólamo dos crimes…

E passou a citar, minuciosamente, todas as maquinações que culminaram nas contínuas tragédias perpetradas pelo acusado. Referiu-se às constantes interferências da duquesa, que, inclusive, lhe suplicara, a ele, ora acusador, abandonasse os seus intentos de vingança; que retornara também, do Além-túmulo, para impedir que o bandido continuasse a dar curso à longa loucura de destrui vidas, inutilmente. Nada o detinha; nem as incursões que ele próprio, senhor da herdade di Bicci, fizera, utilizando-se de um sensitivo grego para lhe falar… Sustentou que já não o deixou desde aquele momento, sitiando-lhe a mente nefária e insinuando que ele deveria pagar através da loucura e do suicídio os crimes cometidos, a fim de surpreendê-lo com as armas da justiça que naquela casa se ofereciam aos lesados, para punir os que os exploravam. Agora, solicitava permissão para apropriar-se do seu sicário e nele aplicar os correctivos que merecia, aplacando a sede que o devorava no ódio irrefreável.

/…

(i) Obviamente, não se trata dos satanases ou diabos da Mitologia religiosa, que seriam aqueles anjos caídos e perdidos por toda a Eternidade. Acontece que os Espíritos maus assumem tal aparência, contando apavorar os que lhes caem nas mãos, sitiando-os com maior impiedade, por encontrar-lhes o campo mental explorado pela ignorância e pela astúcia religiosa que lhes inculcou as falsas ideias de um inferno impossível. O fenómeno da ideoplastia na mente em desregramento ajuda a feição e a aparente realidade de tais seres.
(ii) Paciente estudado pelo Dr. Paulo Broca, fundador da Escola de Antropologia, que foi pesquisado vivo e depois teve estudado o seu cérebro morto, identificando nele a “terceira circunvolução frontal esquerda” como o centro da fala, também chamado de “centro de Broca”.


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO SEGUNDO, 2. O JULGAMENTO SOB O AÇODAR DA CONSCIÊNCIA (1 de 3), 37º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)