Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 22 de março de 2020

O Mundo Invisível e a Guerra ~


XIX

O Espiritismo e a Filosofia Contemporânea ~

(Novembro de 1918)

 Apresentámos, em traços largos, a rápida marcha e o progresso do Espiritismo, durante os últimos 50 anos, em todos os domínios do pensamento, isto é, na Ciência, na experimentação psíquica, na Literatura e até no seio das Igrejas. Falta-nos analisar agora qual foi a sua influência no movimento filosófico contemporâneo, particularmente na filosofia de escola.

 Notemos que esses resultados foram obtidos fora de qualquer organização espírita, sem outros meios de acção ou outros recursos, a não ser o próprio poder da verdade e sem qualquer outra direcção, a não ser a que promana do Além. Porém, será esta, provavelmente, a mais segura e a mais eficaz, porque, melhor que os recursos humanos, pode vencer os preconceitos, as rotinas e os mais obstinados contraditores.

 Na verdade, todos os que trabalharam com persistência na divulgação do Espiritismo se sentiram ajudados e amparados pelo mundo invisível.

  Quanto à obra filosófica realizada neste meio século, não passaremos em revista todos os seus sistemas, para não sairmos do limite deste estudo; tão-somente perguntaremos qual a parte que se deve atribuir à ideia espírita no ensino oficial.

 Dizemos, inicialmente, que durante este período as teorias materialistas não pararam de retroceder e que o espiritualismo tende a substituí-las.

  Actualmente, o ensino oficial baseia-se na filosofia de Henri Bergson, cuja influência aumenta cada vez mais no exterior, ao mesmo tempo em que a sua acção sobre os espíritos se torna mais intensa no nosso país.

  As ciências psíquicas são familiares a Bergson, que seguiu com atenção o seu desenvolvimento. Ele é o autor de um artigo no Boletim do Instituto Geral de Psicologia, de Janeiro de 1904, sobre a visão de clarões na obscuridade pelos sensitivos.

  A sua filosofia não é um sistema que se junta aos anteriores. É original e profunda, representando uma verdadeira revolução no mundo do pensamento. Desde Spencer tem sido aceite que a inteligência é a principal faculdade, o mais seguro meio para se conseguir o conhecimento e abranger o domínio da vida e da evolução.

  Ora, Bergson – prova que a inteligência, que constitui uma emanação da vida, por si só é impotente para abranger a vida e a evolução , porque a parte não pode abranger o todo, nem o facto reabsorver a sua causa. Então o que fez ele? No lugar da inteligência coloca a intuição e, isso constitui um acontecimento da mais alta importância na Psicologia, pois a maior parte das faculdades mediúnicas  a clarividência, a premonição e a previsão dos acontecimentos – se prende à intuição. No dia em que a Ciência encontrar um método prático para desenvolver essa intuição, ela se aproximará dessas faces misteriosas da alma humana, com as quais esta se limita com a presciência divina e pelas quais se revelam a sua íntima essência e a sua imensa evolução.

 Com o desenvolvimento destas faculdades, podemos entrever o aparecimento de uma estirpe de homens que nos superará em poder, tanto quanto o homem actual supera o pré-histórico. Então a alma humana se apresentará com toda a sua grandeza; veremos que ela possui profundos mananciais de vida, onde pode sempre retemperar-se e, que possui picos iluminados pela luz da eterna verdade.

  A alma humana é um mundo. Conhece o esplendor das alturas e a vertigem dos abismos.
 Possui precipícios em cujo fundo rugem as torrentes das paixões. Contém filões plenos de riquezas e, o seu destino consiste exactamente em valorizar todos esses tesouros escondidos.

  O estudo da obra de Bergson mostra-nos, em certos pontos, semelhanças notáveis com a Doutrina EspíritaA vida da criatura, afirma ele, é o resultado de uma evolução anterior ao nascimento. Existe um encadeamento, uma continuidade na transformação, no progresso e, ao mesmo tempo, existe uma conservação do passado no presente. Bergson admite, como nós, que esse passado está gravado na consciência profunda e marca a evolução paralela do ser orgânico e do ser consciente. Aqui estão os termos com os quais define essa evolução:

  “O progresso é constante e prossegue indefinidamente: o progresso invisível, sobre o qual o ser visível se sobrepõe no espaço de tempo que percorrerá na Terra. Quanto mais mantemos a atenção nesta continuidade da vida, tanto mais veremos a evolução orgânica aproximar-se da evolução consciente, em que o passado actua sobre o presente, para dele fazer brotar uma nova forma, que é a resultante das anteriores.”

  Sem dúvida, isto é transformismo, porém de tal forma espiritualizado, que se aproxima de uma maneira perceptível da filosofia das vidas sucessivas. Essa noção das existências anteriores vem afirmada e precisada em numerosas páginas de Bergson das quais vão aqui alguns trechos:

  “O que somos nós, o que é o nosso carácter senão a condensação da história que temos vivido desde o nosso nascimento e, mesmo antes dele, pois que já trazemos connosco disposições pré-natais?”

  “A vida é o prosseguimento da evolução pré-natal e a prova disso é que muitas vezes se torna impossível dizer se estamos a tratar com um organismo que envelhece ou com um embrião que continua a progredir.”

  Voltamos a encontrar em Bergson a concepção espírita da vida universal:

  “O Universo não está feito, faz-se porém sem cessar, crescendo, sempre, indefinidamente, pela junção de novos mundos... É possível que a vida se manifeste noutros planetas e também noutros sistemas solares, sob formas que não imaginamos, em condições físicas que nos parecem, do ponto de vista da nossa fisiologia, inteiramente desconhecidos.”

  Segundo Bergson, o princípio da evolução não está na matéria visível e sim na invisível.

  Diz ele:

  “Todos os novos dados científicos tendem a transpor a evolução, elevando-a do visível para o invisível.”

  Pode observar-se que Bergson, na sua obra, fala constantemente da vida e muito pouco da morte. Nenhum filósofo parece se ter preocupado menos com esse acidente passageiro que não põe fim a nada. Para ele, como para nós, a vida triunfa e reina, soberanamente, tanto antes como depois da morte.

  Também sobre o livre-arbítrio, a opinião de Bergson está de acordo com o que sempre sustentamos. Afirma ele:

  “A finalidade da vida é colocar a indeterminação na matéria. Indeterminadas (quero dizer imprevisíveis) são as formas que ela cria no correr da sua evolução. Também cada vez mais indeterminada (isto é, cada vez mais livre) é a actividade para a qual essas formas devem servir de veículo.

  Mais adiante acrescenta:

  “A liberdade não é absoluta: admite graus... Somos livres enquanto somos nós mesmos, isto é, no nosso estado de personalidade profunda, porém somos determinados enquanto pertencemos à matéria e à extensão. A personalidade humana é um jacto vivo de incontrolável liberdade... A liberdade constitui um facto de experiência interna, uma coisa sentida e vivida, não raciocinada.”

  Em síntese, nota-se que o bergsonismo, como a doutrina dos espíritos, dá ao homem mais força para viver e para agir, ligando-o mais intimamente a tudo quanto vive, ama e sofre no mundo.

 O materialismo isola inteiramente o homem: na engrenagem da máquina cega do mundo o homem sente-se reduzido ao nada. Porém a ideia muda: assim como o menor grão de pó é solidário com o imenso sistema solar, assim também todos os seres vivos, desde as origens da vida, através dos tempos e lugares, não fazem outra coisa senão tornar mais perceptível uma direcção única e invisível.

  Estão sujeitos uns aos outros, interligam-se e obedecem a um impulso formidável, como uma caravana imensa que marcha através do tempo e do espaço,
 transpondo os obstáculos e desdobrando-se para além de todas as mortes.

  Não existe aí algo de novo na filosofia oficial que, até agora totalmente impregnada de intelectualismo, estava tolhida diante do problema da criatura?

  Félix Le Dantec e a sua escola procuravam a vida somente na matéria, porém Bergson, colocando mais alto a inteligência e a vida, reabilita, de algum modo, o mundo vivo, encontrando o laço que prende as doutrinas ocidentais às da Grécia e do Oriente, às crenças do nosso pais, àquela filosofia celta, resumida nas Tríades e às quais se terá de voltar, certamente, algum dia.

  E, quer Bergson tenha conseguido as suas ideias nos seus estudos psíquicos, quer nas inspirações do seu próprio génio, o facto não é menos notável, do ponto de vista da semelhança das doutrinas, principalmente no que toca às suas vastas consequências morais e sociais.

  Terminando a sua magistral obra A Evolução CriadoraBergson insiste na relatividade dos factos e na sua impotência para nos darem apenas uma concepção parcelar da natureza. Ataca com vigor os pontos de vista arbitrários de Herbert Spencer, os que a Ciência adoptou:

  “Não se pode raciocinar sobre as partes como se raciocina sobre o todo. O filósofo deve ir mais longe do que o sábio. A inteligência extrai os factos desse todo que é a realidade. No lugar de afirmar que as relações entre os factos formaram as leis do pensamento, posso bem imaginar que a forma do pensamento é que determinou a configuração dos factos perceptíveis e, consequentemente, as suas relações entre si.”

  Termina da seguinte forma:

  “A filosofia não é somente a volta do espírito para si mesmo, a coincidência da consciência humana com o princípio vivo de onde ela emana, um contacto com o esforço criador; ela é o aprofundamento da transformação em geral, o verdadeiro evolucionismo e, por consequência, o verdadeiro prolongamento da Ciência, com a condição de que se compreenda por esta última palavra um conjunto de verdades constatadas ou demonstradas e, não certa escolástica nova que apareceu, durante a segunda metade do século XIX, em torno da física de Galileu, assim como a antiga escolástica o havia feito em torno de Aristóteles.”

  Todos os espíritos abalizados se impressionarão com a concordância que há neste ponto entre a maneira de ver de Bergson e a exposta por Allan Kardec.

  Realmente, em matéria de Espiritismo, o Codificador nunca desejou separar a doutrina dos factos, mas ainda há entre nós quem desejasse limitá-lo a um campo experimental. Isso leva-nos a considerações especiais quanto à doutrina dos espíritos.

  Ninguém discute que os factos sejam a base do Espiritismo, a prova da sobrevivência da alma depois a morte. Todavia, atrás deles existe toda uma revelação. No Espiritismo o facto não se produz sem um ensinamento, sempre que o fenómeno obtido seja de ordem um tanto elevada.

   Os espíritos não se procuram comunicar connosco a não ser para nos instruírem e nos iniciarem nas grandes leis do mundo espiritual, cujo conhecimento é muito importante, principalmente nos momentos de provação.
 Foi assim que Allan Kardec compreendeu e sentiu o Espiritismo e porque, na sua obra, ele liga intimamente a doutrina à ciência. Procedendo assim, ele não atendia a uma vontade pessoal, porém a uma necessidade e à própria natureza do que ele estudava.

  O poder de acção, o papel social do Espiritismo não se deve ao que ele atende, mas simultaneamente, a todas as necessidades da alma humana, às múltiplas e importantes urgências do momento actual. O Espiritismo dirige-se, ao mesmo tempo, ao cérebro e ao coração, à inteligência, à consciência e à razão.

  O que forma o poder e a eficácia do Espiritismo é o que as satisfações intelectuais e morais que ele nos apresenta e os ensinamentos que nos proporciona, formam, no seu conjunto, uma majestosa unidade e uma soberba síntese científica, filosófica, moral e social.

  Qualquer doutrina que não busque esses diferentes fins carecerá de equilíbrio.

  A moral que provém do cérebro é estéril; só a do sentimento e do coração pode tornar o homem realmente humano, acessível à misericórdia, compassivo para com todas as dores e dedicado ao próximo.

  Não há dúvida de que devemos estudar os factos dando-lhes a merecida importância, porém, como pretende Bergson, mais além e bem mais alto que os factos, se deve verificar a meta para a qual, por seu intermédio, nos conduzem as forças invisíveis pelas ásperas sendas do destino.

  Portanto, o Espiritismo não é apenas o fenómeno físico, a dança das mesas, como ainda parecem acreditar alguns homens. Ele é todo um esforço do Além para tirar da alma humana as suas dúvidas e as suas enfermidades morais, obrigando-a a ter plena consciência de si mesma, realizando os seus gloriosos fins.

  O Espiritismo é o raio de esperança que vem aclarar o nosso sombrio Universo, a nossa Terra de lama, sangue e lágrimas; é o raio luminoso que vem clarear as habitações miseráveis, penetrando nas residências tristes onde a desgraça habita e onde gemem os que sofrem.

  O Espiritismo é o chamamento do Infinito; são as vozes que chegam para proclamar o mais nobre e mais poderoso ideal que o génio humano já alguma vez sonhou.

  Atendendo a esses apelos, a essas vozes, as frontes curvadas sob o peso da vida se levantam e os desesperados, os náufragos da existência cobram o ânimo, vendo, no sombrio céu do seu pensamento, brilhar uma aurora que anuncia novos tempos, tempos bem melhores para a humanidade.

  O Espiritismo é a comunhão das almas que se chamam e se respondem através do espaço. Graças a ele chegam até nós notícias dos que foram nossos companheiros de lutas na Terra. Pensávamos tê-los perdido e eis que nos sentimos ligados a eles novamente!

  É uma grande alegria saber e sentir que estamos vinculados àqueles a quem amámos, unidos através dos séculos, porque a morte é apenas uma ilusão da vista e toda a separação é só passageira e aparente.

  Não nos sentimos apenas ligados a eles, porém a todas as almas que povoam a imensidão, porque o Universo é uma grande família.

  Nos milhares de mundos que giram nos espaços, por toda a parte, possuímos irmãos e irmãs que estamos destinados a encontrar e conhecer algum dia e por toda a parte existem almas com as quais continuaremos o nosso progresso, debaixo de leis sábias, profundas e eternas!

  O sentimento e o poderoso instinto de vida e de solidariedade universais despertarão, aos poucos, em nós.

  Através desse meio, sentir-nos-emos vinculados aos mais humildes como aos mais nobres espíritos; sentir-nos-emos na mesma categoria dos heróis, dos sábios e dos génios, teremos a possibilidade de nos reunirmos com eles na luz, quando também houvermos trabalhado, lutado, padecido e merecido.

  Finalmente, o Espiritismo é toda a movimentação da vida invisível; um universo vivo – até há bem pouco tempo ignorado, excepto por alguns, poucos – e que sabemos e sentimos que existe, se agita, palpita, vibrando à nossa volta e enchendo o espaço com radiosos pensamentos, pensamentos de amor e inspirações geniais.

 Cada vez mais, iremos senti-lo a viver e a agir, graças ao desenvolvimento de faculdades que se multiplicarão, crescerão e se tornarão comuns a um grande número de pessoas.

  Dessa forma, conseguiremos também a valiosa certeza da protecção, do amparo que do Além se estende sobre nós; a prova de que a solicitude do Alto envolve todos os peregrinos da existência no seu penoso jornadear terreno.

  Na luta que está a ser travada para o progresso da humanidade – a grandiosa batalha das ideias – o Espiritismo é o mais forte dos combatentes, porque nele se reencontram a vida e a morte, a Terra e o Céu se reúnem e se ligam para as lides do pensamento.

  Lutemos, portanto, com nobreza, habilidade e prudência, porque o mundo invisível está connosco.

  Elevemos o nosso brado de esperança e confiança na justiça eterna e consciente que governa os mundos.

  Acreditemos, esperemos e trabalhemos.

/…


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XIX O Espiritismo e a Filosofia Contemporânea, Novembro de 1918, 34º fragmento desta obra.
(imagem: Henri Bergson 1859-1941, filosofo e diplomata francês, Nobel da Literatura de 1927)

terça-feira, 17 de março de 2020

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~ teorias antigas e modernas sobre o mundo

  A primeira ideia que os homens fizeram da Terra, do movimento dos astros e da constituição do Universo deve ter sido, na sua origem, unicamente baseada no testemunho dos sentidos. Na ignorância das leis mais elementares da física e das forças da natureza, não tendo mais que a sua visão limitada como meio de observação, só podiam avaliar pelas aparências.

  Ao ver o Sol surgir de manhã de um lado do horizonte e desaparecer do lado oposto, concluiu-se daí naturalmente que este girava à volta da Terra, enquanto esta permanecia imóvel. Se tivesse então sido dito aos homens que é o contrário que se passa, teriam respondido que isso não podia ser, porque, teriam eles dito; nós vemos o Sol mudar de sítio e não sentimos a Terra mexer-se.

  A pouca extensão das viagens, que raramente ultrapassavam então os limites da tribo ou do vale, não permitiam que se constatasse a forma esférica da Terra. Como é que, aliás, se poderia supor que a Terra pudesse ser uma bola? Os homens não se poderiam manter sobre o ponto mais elevado e imaginá-la habitada em toda a sua superfície; como poderiam viver no hemisfério oposto, de cabeça para baixo e pés para cima? A coisa teria parecido ainda menos possível com um movimento de rotação. Quando vemos, ainda hoje, que se conhecem as leis da gravidade, pessoas relativamente esclarecidas não se aperceberem deste fenómeno, não nos devemos espantar por os homens dos primeiros tempos não o terem nem sequer suspeitado.

  A Terra era portanto para eles uma superfície plana, circular como uma  de moinho, estendendo-se a perder de vista em sentido horizontal; daí a expressão ainda utilizada: ir até ao fim  do mundo. Os limites, a sua espessura, o seu interior, a sua face inferior, o que havia por baixo, era o desconhecido (*).

  O céu, aparentemente sob uma forma côncava, era, segundo a crença vulgar, uma abóbada real cujos bordos inferiores assentavam na Terra, demarcando-lhe os confins; vasta cúpula com a capacidade total repleta de ar. Sem nenhuma noção de infinito, de espaço, incapazes mesmo de o conceber, os homens imaginavam esta abóbada formada por matéria sólida; daí o nome de firmamento que sobreviveu à crença e que significa firme, resistente (do latim firmamentum, derivado de firmus e do grego hermahermatos, firme, suporte, ponto de apoio).

  As estrelas, cuja natureza não podiam imaginar, eram simples pontos luminosos, mais ou menos grandes, ligados à abóbada como lâmpadas suspensas, dispostas numa única superfície e, por consequência, todas à mesma distância da Terra, tal como se representam no interior de certas cúpulas pintadas de azul para imitar o azul dos céus.

  Apesar de hoje as ideias serem muito diferentes, o uso das expressões antigas conservou-se; diz-se ainda, por comparação: a abóbada estrelada; sob a calote do céu.

  A formação das nuvens por evaporação das águas da Terra era então igualmente desconhecida; não podiam pensar que a chuva que cai do céu tivesse a sua origem na Terra, de onde não se via a água subir. Daí a crença na existência das águas superiores e das águas inferiores, das fontes celestes e das fontes terrestres, em reservatórios situados nas regiões altas, suposição que estava perfeitamente de acordo com a ideia de uma abóbada capaz de as manter. As águas superiores, escapando-se por fissuras da abóbada, caíam em chuva e, consoante essas aberturas fossem maiores ou menores, a chuva era suave ou torrencial e diluviana.

  A ignorância total sobre o conjunto do Universo e das leis que o regem, da natureza, da constituição e destino dos astros, que pareciam tão pequenos em comparação com a Terra, deve necessariamente ter feito com que esta fosse considerada a coisa principalfim único da Criação e, onde os astros seriam acessórios criados unicamente para os seus habitantes. Este preconceito perpetuou-se até aos nossos dias, apesar das descobertas da ciência que mudaram, para o homem, o aspecto do mundo. Quantas pessoas acreditam ainda que as estrelas são ornamentos do céu para recrear a vida dos habitantes da Terra!

  Não tardaram a aperceber-se do movimento aparente das estrelas que se movem em massa de Oriente para Ocidente, levantando-se à noite e deitando-se de manhã, conservando as suas posições respectivas. Esta observação não teve durante muito tempo outra consequência para além de confirmar a ideia de uma abóbada sólida arrastando as estrelas no seu movimento de rotação.

  Estas primeiras ideias, ideias ingénuas, foram durante longos períodos seculares a base das crenças religiosas e serviam de fundo a todas as cosmogonias antigas.

  Mais tarde compreendeu-se, pela direcção do movimento das estrelas e pelo seu regresso periódico na mesma ordem, que a abóbada celeste não podia ser simplesmente uma semiesfera assente sobre a Terra, mas sim uma esfera inteira, côncava, no centro da qual se encontrava a Terra, sempre plana ou quando muito convexa e habitada unicamente na face superior. Era já um progresso.

  Mas em que estava assente a Terra? Seria inútil mencionar todas as suposições ridículas concebidas pela imaginação, desde a dos índios que a diziam levada por quatro elefantes brancos e estes pelas asas de um imenso abutre. Os mais sensatos confessavam que não sabiam nada disso.

  No entanto, uma opinião geralmente propagada nas teogonias pagãs situava nos lugares baixos, ou dito de outra maneira, nas profundezas da Terra, ou por baixo, não se sabia muito bem, a morada dos reprovados, chamados infernos, quer dizer, lugares inferiores; nos lugares altos, para além do lugar das estrelas, a morada dos bem-aventurados. A palavra inferno conservou-se até aos nossos dias, embora tenha perdido o seu significado etimológico desde que a geologia desalojou o lugar dos suplícios eternos das entranhas da Terra e que a astronomia demonstrou que não há nem alto nem baixo no espaço infinito.

  Sob o céu puro da Caldeia, da Índia e do Egipto, berço das mais antigas civilizações, foi possível observar o movimento dos astros com tanta precisão quanto permitia a ausência de instrumentos especiais. Viu-se primeiro que certas estrelas tinham um movimento próprio independente da massa, o que permitia supor que estivessem agarradas à abóbada; chamaram-lhes estrelas errantes ou planetas para as distinguir das estrelas fixas. Calcularam-se os seus movimentos e os seus regressos periódicos.

  No movimento diurno da esfera estrelada observou-se a imobilidade da estrela polar à volta da qual as outras descreviam, em vinte e quatro horas, círculos oblíquos paralelos maiores ou menores, consoante o seu afastamento da estrela central; foi o primeiro passo para o conhecimento da obliquidade do eixo do mundo. Além disso, longas viagens permitiam observar a diferença de aspectos do céu consoante as latitudes e as estações; a elevação da estrela polar abaixo do horizonte, variando com a altitude, colocou-nos no caminho da esfericidade da Terra; foi assim que, a pouco e pouco, fomos ficando com uma ideia mais certa do sistema do mundo.

  Cerca do ano 600 antes de Jesus Cristo, Tales de Mileto (Ásia Menor), conheceu a esfericidade da Terra, a obliquidade da elíptica e a causa dos eclipses.

  Um século depois, Pitágoras de Samos, descobre o movimento diurno da Terra sobre o seu eixo, o seu movimento anual à volta do Sol e liga os planetas e os cometas ao sistema solar.

  160 anos antes de J. C., Hiparco de Alexandria (Egipto), inventa o astrolábio, calcula e prevê os eclipses, observa as manchas do Sol, determina o ano trópico, a duração das mudanças da Lua.

  Por muito precisas que fossem estas descobertas para o progresso da ciência, levaram cerca de 2000 anos a produzir-se. As ideias novas, não tendo então para se propagarem mais do que raros manuscritos, continuavam a ser o quinhão de alguns filósofos que as ensinavam a discípulos privilegiados; as massas, que nem se pensava em esclarecer, não as aproveitavam em nada e continuavam a alimentar-se de velhas crenças.

  Cerca do ano 140 da era cristã, Ptolomeu, um dos homens mais ilustres da escola da Alexandria, combinando as suas próprias ideias com as crenças vulgares e algumas das mais recentes descobertas astronómicas, compôs uma nova teoria a que podemos chamar mista, que tem o seu nome e que, durante quase quinze séculos, foi a única adoptada no mundo civilizado.

  Segundo a teoria de Ptolomeu, a Terra era uma esfera no centro do Universo; compunha-se de quatro elementos: terra, água, ar e fogo. Era a primeira região dita elementar. A segunda região, dita etérea, compreendia onze céus ou esferas concêntricas girando à volta da Terra, a saber: o Sol da Lua, os de Mercúrio, de Vénus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno, das estrelas fixas, do primeiro cristalino, esfera sólida transparente; do segundo cristalino e, finalmente, do primeiro móbil que dava o movimento a todos os céus inferiores e os fazia dar uma rotação em vinte e quatro horas. Para lá dos onze céus ficava o Empíreo, morada dos bem-aventurados, assim chamado do grego pyr ou pur, que significa fogo, porque se julgava esta região resplandecente de luz como o fogo.

  A crença em vários céus sobrepostos prevaleceu durante muito tempo; mas variava-se no número; o sétimo era geralmente considerado o mais elevado; daí a expressão estar no sétimo céuSão Paulo disse que tinha sido criado no terceiro céu.

  Independentemente do movimento comum, os astros tinham, segundo Ptolomeu, movimentos próprios, maiores ou menores, consoante o seu afastamento do centro. As estrelas fixas faziam uma rotação em 25,816 anos. Esta última avaliação denota o conhecimento da precisão dos equinócios, que se realizava efectivamente em 25,868 anos.

  No início do século XVI, Copérnico, célebre astrónomo, nascido em Thorn (Prússia), em 1473, falecido em 1543, retomou as ideias de Pitágoras; publicou uma teoria que, diariamente confirmada por novas observações, foi favoravelmente acolhida e não tardou a derrotar a de Ptolomeu. Segundo esta teoria, o Sol está no centro, os planetas descrevem órbitas circulares à volta deste astro; a Lua é um satélite da Terra.

  Um século depois, em 1609, Galileu, nascido em Florença, inventa o telescópio; em 1610, descobre os quatro satélites de Júpiter e calcula as suas rotações; conclui que os planetas não possuem luz própria como as estrelas, mas que são iluminados pelo Sol; que são esferas semelhantes à Terra; observa as suas fases e determina a duração da sua rotação sobre o eixo; dá assim, com provas materiais, uma sanção definitiva à teoria de Copérnico.

  De imediato se desmoronou a pirâmide de céus sobrepostos; os planetas foram reconhecidos como mundos semelhantes à Terra e, como ela, sem dúvida habitados; as estrelas, por inúmeros sóis, centros prováveis de outros tantos sistemas planetários; e o Sol, ele próprio foi reconhecido como uma estrela, centro de um turbilhão de planetas que lhe estão submetidos.

  As estrelas já não estão confinadas a uma zona da esfera celeste, mas irregularmente disseminadas no espaço sem limites; as que parecem tocar-se estão a distâncias incomensuráveis umas das outras; as mais pequenas em aparência, são as mais afastadas de nós; as maiores, as que estão mais perto, estão também a centenas de milhares de léguas (**) de distância.

  Os grupos a quem deram o nome de constelações não são mais do que agrupamentos aparentes provocados pelo afastamento; as suas figuras são efeitos de perspectiva, como se formam à vista de quem está colocado num ponto fixo das luzes dispersas numa vasta planície, ou as árvores de uma floresta; mas estes agrupamentos não existem na realidade; se fosse possível transportar-nos para a região de uma dessas constelações, à medida que nos fôssemos aproximando a forma iria desaparecendo e novos grupos se desenhariam à nossa vista.

  A partir do facto desses só existirem em aparência, o significado que uma crença vulgar supersticiosa lhes atribui é ilusória e a sua influência só poderia existir em imaginação.

  Para distinguir as constelações deram-lhes nomes como Leão, Touro, Gémeos, Virgem, Balança, Capricórnio, Caranguejo, Orion, Hércules, Ursa Maior ou Carro de David, Ursa Menor, Lira, etc., e representam-nas com figuras que lembram estes nomes, a maior parte de fantasia, mas que, em todos os casos, não têm qualquer relação com a forma aparente do grupo de estrelas. Seria portanto em vão que procuraríamos estas figuras no céu.

  A crença na influência das constelações, sobretudo daquelas que constituem os doze signos do Zodíaco, vem da ideia ligada aos nomes que têm; se a que se chama leão tivesse o nome de burro ou ovelha, ter-lhe-iam certamente atribuído uma influência muito diferente.

  A partir de Copérnico e de Galileu, as velhas cosmogonias foram para sempre destruídas: a astronomia só podia avançar e não recuar. A história fala nas lutas que estes homens de génio tiveram de manter contra os preconceitos e, sobretudo, contra o espírito de seita, interessado na manutenção dos erros sobre que se tinham fundado as crenças que se imaginavam assentes sobre uma base inabalável. Bastou a invenção de um instrumento de óptica para derrubar um monte com vários milhares de anos. Mas nada poderia prevalecer contra uma verdade reconhecida como tal. Graças à impressora, o público, iniciado nas ideias novas, começava a não se deixar embalar com ilusões e tomava parte na luta; já não era contra a opinião geral que tomava partido pela verdade.

  Como o Universo é grande ao pé das mesquinhas proporções que os nossos pais lhe atribuíam! Como é sublime a obra de Deus, quando a vemos realizar-se segundo as eternas leis da natureza! Mas também quanto, que esforço de génio, que devoções foram necessárias para abrir os olhos e arrancar por fim a venda da ignorância!

  Doravante, estava aberta a via por onde ilustres e numerosos sábios iriam entrar para completar a obra esboçada. Kepler, na Alemanha, descobre as célebres leis que têm o seu nome e com a ajuda das quais reconhece que os planetas descrevem não órbitas circulares, mas elipses, onde o Sol ocupa um dos domicílios; Newton, na Inglaterra, descobre a lei da atracção universal; Laplace, uma teoria baseada em conjecturas ou em probabilidades, mas uma ciência estabelecida sobre as mais rigorosas bases do cálculo e da geometria. Assim se encontra colocada uma das pedras fundamentais da Génese, aproximadamente três mil e trezentos anos depois de Moisés.

/…
(*) «A mitologia hindu ensinava que o astro do dia se despojava à noite da luz e atravessava o céu durante a noite com uma face obscura. A mitologia grega representava o carro de Apolo puxado por quatro cavalos. Anaximandro, de Mileto, sustentava em relação a Plutarco, que o Sol era uma quadriga cheia com o fogo muito vivo que teria escapado por uma abertura circular. Epicuro teria, segundo alguns, emitido a opinião de que o Sol se acendia de manhã e se apagava à noite nas águas do oceano; outros pensavam que ele fazia deste astro uma pedra-pomes aquecida até à incandescência. Anaxágoras considerava-o um ferro quente com o tamanho do Peloponeso. Estranha observação! Os antigos eram tão irresistivelmente levados a considerar a grandeza aparente deste astro como se fosse real, que perseguiram este filósofo temerário por ter atribuído um tal volume ao archote do dia e que foi necessária toda a autoridade de Péricles para o salvar de uma condenação à morte, comutando-a por uma sentença de exílio.»
Quando vemos tais ideias expressas no século V antes da era cristã, na época mais florescente da Grécia, não nos podemos espantar com as que os homens das primeiras eras tinham sobre o sistema do mundo. (N. do A.)
(**) As unidades de medida usadas pelo autor no decorrer desta obra são as que se encontravam em vigor em França em meados do século XIX, altura em que foi escrita. A sua determinação exacta varia de país para país, ou mesmo de época para época. Contudo, apresentamos seguidamente os valores comummente atribuídos em França às medidas mais usadas nesta obra; légua terrestre e marítima – 4,445 km; milha terrestre – 1481,5 m; milha marítima – 1852 m; pé – 33 cm. (N. do E.)


ALLAN KARDEC, A GÉNESE, – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo V, Teorias Antigas e Modernas sobre o Mundo (de 1 a 14), 22º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).