Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 29 de dezembro de 2019

agonia das religiões ~


A Dúvida e A Certeza

A dúvida é uma encruzilhada nos caminhos da razão. Quando o pensamento se lança na busca de um objecto e depara com dois caminhos divergentes, pode ficar indeciso. Essa indecisão é a dúvida. Para Sexto Empírico a dúvida é a hesitação entre afirmar e negar, o que vale dizer entre aceitar e rejeitar. Descartes fez da dúvida a condição primeira da busca da verdade, considerando-a como uma suspensão do juízo para se verificar se ele está certo ou errado. Para John Dewey a dúvida nasce de uma situação problemática estimulando a pesquisa. Dessa maneira, Dewey confirma a posição de Descartes, que iniciou a filosofia moderna com a prática da dúvida metódica. Mas como a dúvida criou muitas dificuldades ao pensamento dogmático, as religiões dogmáticas acabaram por condená-la como de origem diabólica. A frase de Tertulianocredo quia absurdum (creio mesmo que absurdo) teve um curso longo no combate às heresias. Como os dogmas eram considerados de origem divina, pontos fundamentais da revelação feita por Deus aos homens, estes não tinham o direito de duvidar, mesmo que os dogmas fossem aparentemente absurdos.

Ainda hoje, essa posição é, comum em numerosas seitas e religiões, até mesmo entre pessoas cultas. Alega-se que a sabedoria humana é loucura para Deus, como Paulo afirmou, o que vale dizer que a sabedoria divina pode parecer loucura para os homens. No Espiritismo a dúvida é considerada como condição necessária à busca da verdade. Kardec a aconselha como método de controlo das manifestações mediúnicas e do estudo dos princípios doutrinários. Tendo mostrado que os espíritos são criaturas humanas desencarnadas, libertas do corpo material pela morte, e que muitos deles se manifestam para sustentar ainda opiniões erradas que defendiam na Terra, aconselha a análise constante e o exame atencioso das manifestações, que devem ser rejeitadas quando revelarem conceitos absurdos.

A crítica torna-se, assim, elemento básico da filosofia e da prática espírita. Mas é evidente que deve ser exercida por pessoas que tenham condições de cultura e bom senso para criticar. Descartes afirmou que o bom senso é a coisa mais bem repartida do mundo, mas advertiu que o emprego do bom senso depende da boa orientação do entendimento. Kardec dá, em toda a sua obra, instruções e exemplos para o uso do bom julgamento e aconselha a consulta, em casos de dificuldade, de pessoas reconhecidamente capazes de resolver problemas com lucidez. Não havendo no Espiritismo dogmas de fé, tudo pode ser apreciado e discutido em termos de bom senso ou boa razão. Descartes aconselhava a se evitarem dois elementos perigosos ao raciocínio, que são o preconceito e a precipitação. Kardec acrescenta a necessidade de vigilância no tocante à vaidade humana, que leva pessoas cultas ou incultas a se considerarem capazes de reformulações doutrinárias com base apenas nas suas opiniões pessoais.

Estabelecendo o consensus gentium, de Aristóteles, como regra para a aceitação de revelações espirituais, não o fez no sentido aristotélico do termo, mas no sentido espiritual, com o nome de consenso universal. A aplicação desse consenso não implica a aceitação da vox populi ou da opinião das gentes como verdade, mas apenas a coincidência de manifestações mediúnicas sobre os mesmo tema, para médiuns diversos, desconhecidos entre si, em locais diversos e ao mesmo tempo. É esse um meio de controlo a ser usado sob as condições de verificação racional do tema e de confronto do mesmo com os conhecimentos já adquiridos no meio espírita e na cultura geral. Levantou, assim, uma barreira à autoridade individual de um médium isolado que, por mais famoso e seguro que tenha sido nas suas actividades, nem por isso está livre de se deixar empolgar por ideias erróneas. De um critério de verdade que era evidentemente de natureza opiniática, Kardec extraiu uma norma inegavelmente válida para facilitar o uso do bom senso pelos espíritas.

A necessidade de certeza na orientação do conhecimento, num mundo em que tudo se passa no plano das relações, exige um critério científico de avaliação dos dados obtidos na prática doutrinária. Ao não aceitar a revelação espiritual de maneira gratuita, mas submetendo-a ao controlo da razão, Kardec não violentou a intenção dos Espíritos superiores, que desejavam dele precisamente essa atitude. Tanto assim que desde o inicio o estimularam nesse caminho, esclarecendo que a Humanidade terrena atingira a maturidade suficiente para se libertar do ciclo de revelações pessoais e locais, dadas sempre de maneira mística, através de um mestre, profeta ou Messias, numa determinada região e a um determinado povo. A última dessas revelações havia sido a do Cristo, que apesar de pessoal e local já se abria ostensivamente para a universalidade, escandalizando os judeus apegados a um sócio-centrismo milenar. A Terra entrava numa fase nova de sua evolução; as civilizações isoladas deviam fundir-se através de processos mais amplos e eficientes de comunicação; o mundo greco-romano chegava ao fim objectivado pelo seu desenvolvimento; um longo e doloroso processo de fusão das suas conquistas no campo do pensamento, do direito, da justiça e da espiritualidade deveria iniciar-se no caldeirão da História que foi a Idade Média, segundo a concepção de Dilthey. Essa fusão resultaria na Idade da Razão com o Renascimento, preparando o desenvolvimento da Era da Ciência e da Tecnologia, que levaria o mundo a um progresso cada vez mais acelerado. A influência do Cristianismo impregnaria todas as latitudes do planeta, arrancando da apatia nirvânica as grandes civilizações orientais e obrigando-as a seguir os padrões ocidentais. Era necessário que a passividade mística, fosse substituída pela actividade racional, na luta dos homens em busca da compreensão de suas próprias responsabilidades, na direcção da vida humana.

Cumprida essa programação, a Terra já estava, em pleno século XIX, em condições de receber as luzes renovadoras de uma doutrina de unificação espiritual, capaz de guiá-la aos objectivos mais elevados da sua integração na comunidade cósmica. Muitas inteligências terrenas, aturdidas com as inquietações do nosso tempo, com as crises ameaçadoras de uma fase de transição acelerada, e portanto violenta, perguntam se não estamos errados ao aceitar essa previsão histórica. O mesmo aconteceu na fase de desenvolvimento do Cristianismo. Realmente, a Terra não parece ainda preparada para o salto cósmico que já vem tentando. Mas podemos notar, ao longo da História, que a técnica divina parece apoiar-se num princípio de tensão-máxima para nos fazer avançar. A preguiça humana, a tendência à acomodação, o apego à vida como ela é, só podem ser removidos por meios compulsórios. O chicote do Templo tem de ser vibrado contra os vendilhões que o transformam em mercado, que não pensam em Deus mas apenas no dinheiro. Só pelo impacto da dor o homem se liberta das suas mazelas para encontrar a vida em abundância de que Jesus falou. Os anos, os séculos, os milénios passam rápido na direcção da eternidade sem limites. Não podemos fermentar na Terra indefinidamente, como o faríamos se as leis divinas não nos forçassem a buscar com maior rapidez os objectivos reais da nossa existência.

Kardec viu tudo isso com extrema lucidez, como podemos constatar na leitura das suas obras. Por isso não converteu o Espiritismo numa nova religião estática, segundo o conceito de Bergson, mas ligou-o a todos os campos da cultura para que possa agir como uma religião dinâmica, aquela religião em espírito e verdade de que Jesus falou à mulher samaritana. Não há razão nenhuma para que a religião continue como um departamento estanque e privado, condicionada em sistemas arcaicos, marginalizada no campo cultural em favor de interesses sectários. A religião é um dos campos vitais da cultura e deve integrar-se nela em plenitude. Os seus princípios não podem manter-se alheios ao progresso geral. Por isso, o Espiritismo fundou a Ciência do Espírito, que agora está sendo confirmada pelas conquistas mais recentes das ciências da matéria. Chegámos tarde à complementação do fiat da criação, mas estamos agora no momento em que o espírito se liga à matéria no campo das concepções humanas.

certeza, no nosso mundo, nunca pode ser absoluta. É também relativa, mas corresponde ao máximo possível de exactidão. Esse máximo é indispensável em todo o campo do conhecimento. Não poderíamos ficar no terreno das hipóteses inverificáveis ao tratar de assuntos tão graves como a origem do homem, a sua natureza íntima e o seu destino no sistema cósmico. Kardec, à maneira de Descartes, pôs em dúvida todo o conhecimento religioso. Os fenómenos espíritas, como ele mesmo observou, estavam na moda. Instigado por amigos que conheciam a sua capacidade científica, relutou a princípio – pois duvidara da veracidade desses fenómenos – mas acabou aceitando o convite para assistir a uma experimentação. Ali constatou a realidade, mas não aceitou a sua interpretação espiritual. Procurou explicar a chamada dança das mesas como possível efeito de forças conhecidas: a electricidade, a gravidade, o magnetismo, um suposto poder emanado das pessoas reunidas para aquele fim e assim por diante. Mas não ficou nas hipóteses. Pôs-se a pesquisar. O seu encontro com as meninas da família Boudin, uma de 14 e a outra de 16 anos, médiuns excelentes, permitiu-lhe uma série de experiências decisivas. Foi com elas que recebeu todo o texto de “O Livro dos Espíritos”. Pelas mãos dessas duas jovens nasceu o Espiritismo. E renasceu Allan Kardec, o druida das Gálias antigas, para substituir o Prof. Denizard Rivail (o seu nome verdadeiro) o discípulo emérito de Pestalozzi e sucessor do mestre no desenvolvimento da sua Pedagogia Filantrópica. Dali por diante, durante 15 anos, as pesquisas prosseguiram, 12 anos na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, por ele fundada e dirigida. Nesse período de 15 anos Kardec elaborou os cinco volumes da Codificação do Espiritismo, três volumes de introdução à doutrina, um manual de introdução à prática mediúnica, numerosos artigos para a imprensa e os doze volumes da Revista Espírita, contendo em média 400 páginas cada volume.

Em todos esses trabalhos ele foi sempre orientado pelos Espíritos superiores, como se pode ver nas suas anotações em Obras Póstumas. E a sua conduta de pesquisador foi louvada pelo próprio Richet, o fisiologista do século, que discordava das conclusões de Kardec mas reconheceu, no seu Tratado de metapsíquica, o valor do homem que iniciara as Ciências Psíquicas na França e no Mundo. Partindo da dúvida, Kardec chegara à certeza psicológica da sobrevivência do homem à morte corporal. Richet fizera um caminho paralelo, o da sua especialidade científica, para chegar à certeza fisiológica dos fenómenos espantosos de materialização. Depois dele, outros muitos comprovariam a sua descoberta mas não ficariam no meio do caminho. Avançariam como Crookes, Notzing, Zollner, Ochorowicz, Geley, Osty, Aksakov, até à certeza final de Kardec. Estava aberta nas Ciências a fronteira da imortalidade. Dali em diante, os que pretendiam reduzir o homem a ossos e cinzas lutariam sem cessar – até mesmo nas religiões – contra a maior e mais fecunda certeza científica da cultura terrena. Do Espiritismo nasceram todas as ciências do paranormal, até a Parapsicologia contemporânea. Mas os inimigos da certeza ainda continuam, nos nossos dias, diante da evidência fulminante das últimas descobertas científicas – físicas, biológicas, psicológicas e astronáuticas –, a insuflar com as suas bochechas em fúria o fantasma superado da dúvida anti-metódica. Fingem não perceber que esse fantasma é um balão furado com o pavio queimado.

A superação da dúvida no Espiritismo não se fez através dos métodos subjectivos da meditação religiosa e do êxtase místico, mas do método científico de pesquisa. Foi o que Richet reconheceu e louvou em Kardec, como se vê logo no início do seu Tratado de Metapsíquica. Integrado na tradição da busca metodológica, que vinha do século XVI, com a revolução cientifica de Bacon e Descartes, Allan Kardec encarou o problema espiritual de maneira objectiva e, numa posição tipicamente existencial, criou o método apropriado à pesquisa dos fenómenos espíritas. Ao contrario do que alegam até hoje os seus contraditores, demonstrou de maneira exaustiva que os fenómenos espíritas podem ser repetidos quantas vezes for necessário para a confrontação dos resultados experimentais, como os grandes cientistas da época iriam comprovar logo em seguida e como as pesquisas parapsicológicas actuais uma vez mais comprovaram e demonstraram.

Essa subversão metodológica no campo do conhecimento espiritual, até então submetido aos princípios da fé, despertou violenta reacção que ainda hoje não se extinguiu. Kardec partia do homem vivo, do homem no mundo, da criatura de carne e osso para elevar-se a Deus através da indução lógica, desprezando os processos dedutivos da tradição. Atrevia-se a investigar o espírito dos mortos e dos vivos com a mesma naturalidade, sustentando que a alma nada mais era do que o espírito que anima um corpo. E ousava dar uma nova explicação da Génese que incluía a criação do homem por Deus como um facto natural, dialecticamente explicável. A morte perdia o aspecto misterioso alimentado pelas religiões, os videntes e profetas eram considerados como criaturas em que uma faculdade humana natural, a mediunidade, se havia desenvolvido de maneira mais intensa.

Pacientes e incessantes pesquisas – e não revelações místicas – levaram Kardec à descoberta científica da natureza espiritual do homem. E a prova de que realmente o levaram, foi dada posteriormente pelas pesquisas científicas desencadeadas em todo o mundo e hoje confirmadas até mesmo pelo avanço das investigações materiais, por cientistas modernos que alargam a dimensão das Ciências. É assim que a dúvida sobre a continuidade da vida, após a morte, foi vencida pela certeza no campo das investigações espíritas. As religiões que ignorarem este facto culminante da evolução humana na Terra acabarão asfixiadas, por falta do oxigénio da verdade, nos seus círculos estreitos de fanatismo e exclusivismo. Não há somente crise nas religiões, há sinais evidentes de agonia.

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 9 – Dúvida e Certeza, 10º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

sábado, 14 de dezembro de 2019

~ em torno do mestre


Conversão ~

"Em verdade vos digo que se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino de Deus." 
(Mateus, 18:3.)

Jesus, dirigindo as palavras supracitadas aos seus apóstolos, fazia-lhes ver da necessidade em que eles se encontravam de se converterem.

Mas, então, não seriam convertidos todos aqueles que acompanhavam o Mestre, ouvindo-lhe os ensinamentos, edificando-se nas suas exemplificações brilhantes? Não seriam convertidos todos aqueles que foram escolhidos pelo mesmo Jesus para seus colaboradores? Este caso merece ser ponderado. Dele ressalta uma edificante lição, digna do nosso maior acatamento.

Converter-se não importa tão-só abraçar este ou aquele credo religioso, nem tão-pouco em se filiar a esta ou àquela igreja, aceitando determinado corpo de doutrina qualquer. O incrédulo pode tornar-se crente sem que se verifique com isso um caso de conversão.

Converter significa transformar. Onde não há transformação, não há conversão. Quanto mais acentuada for a transformação, tanto mais positiva será a conversão. Se essa transformação for tão grande, ao ponto de se não reconhecer o objecto primitivo, podemos afirmar que se trata de um verdadeiro caso de conversão.

Na natureza, transformar quer dizer melhorar. "Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma"; isto é, tudo sobe, tudo levita. Crescei e multiplicai — sentença aplicada à criação dos seres — tem sentido espiritual que não deve ser desprezado. "Para a frente e para o alto — tal é a legenda inscrita em cada átomo do Universo."

A conversão é um fenómeno vital de transformação constante para melhor. Tal fenómeno realiza-se tanto no plano físico quanto no moral, Os reinos da Natureza entrelaçam-se em movimento ascensional de contínuas transformações. O espírito progride, melhora e se aperfeiçoa através de ininterrupta série de conversões.

Saulo transforma-se em Paulo, Simão em Pedro, Magdala em Maria. O carácter destas personagens sofreu tal modificação que se tornaram o oposto do que eram. O fanatismo perigoso de Saulo, a fraqueza perniciosa de Simão e a voluptuosidade desenfreada de Magdala converteram-se na tolerância e no sacrifício de Paulo, na firmeza heróica de Pedro e na espiritualidade angélica de Maria. Tais são os tipos genuínos de convertidos.

Conversão importa também em valorização. Objecto convertido é objecto valorizado. O escultor toma um bloco de pedra bruta, um tronco tosco ou mesmo um punhado de argila e converte-os em belas estátuas onde refulgem os primores da arte. É incalculável o valor que o estatuário imprime, por efeito de conversão, àqueles materiais obscuros.

Qual o cálculo possível entre o valor do calcário, antes e depois de ser a Vénus de Milo ou o Discóbolo? E os gramas de tinta antes e depois de serem convertidos em quadros de Miguel Ângelo ou de Velásquez? Entretanto, um exame químico demonstrará tratar-se da mesma substância.

O mesmo acontece com o homem, antes e depois da sua conversão. O carácter se forma e consolida através da obra da conversão, obra que uma vez iniciada jamais deixa de prosseguir o seu curso eficiente de embelezamento e de valorização. O homem velho vai sendo absorvido pelo homem novo: é o renascimento espiritual que se opera.

De tal sorte, é possível voltar ao estado de inocência primitiva, conforme disse Jesus: "Se não vos converterdes, e não vos fizerdes como crianças, não entrareis no reino de Deus." A inocência revela-se sob dois aspectos distintos: a ignorância do mal e, a vitória do bem. A primeira forma é o estado da criança; a segunda representa a condição do justo.

A criança é inocente, porque desconhece o pecado; o justo é inocente, porque adquiriu a virtude. A inocência da criança é fruto da insipiência. A inocência do santo é filha da sabedoria.

Esta permanece, aquela passa. A transição de uma, para a outra espécie de inocência, é a maravilha da conversão. Sem conversão, portanto, ninguém logrará o reino de Deus.


Coragem moral ~

Um dos requisitos exigidos por Jesus, como condição indispensável àqueles que pretendessem seguir-lhe as pegadas, é a coragem moral.

Eu vos envio, disse ele aos discípulos, como ovelhas no meio de lobos. Esta frase é bastante eloquente e, por si só, define muito bem a posição dos cristãos na sociedade do século.

"Sereis entregues aos tribunais por minha causa. Suportareis perseguições, açoites e prisão. Haverá delações entre os próprios irmãos. Atraireis o ódio de todos. A vossa vida correrá risco iminente a cada instante.

"Todavia, não temais, pois até os cabelos de vossas cabeças estão contados. Nenhum receio deveis ter dos homens, cujo poder não vai além do seu corpo. Se chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto mais aos seus domésticos. Portanto, nada de temores: o que vos digo à puridade proclamai-o dos eirados. Nada há encoberto que não seja descoberto; nada há oculto que se não venha a saber. Por isso, aquele que me confessar diante dos homens, eu o confessarei diante de meu Pai celestial; e o que me negar diante dos homens, eu o negarei perante meu Pai que está nos céus."

Tais expressões são de clareza meridiana. Para ser cristão, é preciso coragem, ânimo forte, atitude varonil. "Seja o teu falar: sim, sim; não, não". (Mateus, 5:37.) Não há lugar para composturas dúbias, indecisas, oscilantes. O crente em Cristo deve possuir convicção inabalável, têmpera rija, carácter positivo e franco.

Entre as virtudes, não há incompatibilidades. A mansuetude, a cordura e a humildade são predicados que podem (e devem) coexistir com a energia, com a intrepidez, com a varonilidade. Deus é infinitamente misericordioso e, ao mesmo tempo, é infinitamente justo.

O carácter do cristão há de ser forjado de aço de Toledo e de ouro do Transvaal. Assim disse Amado Nervo"Ouro sobre aço sejam a tua vontade e a tua conduta. Sobre o aço do teu pensamento há de luzir o arabesco de ouro das formas puras e gentis. Ouro e aço será a tua vida, serão os teus propósitos, serão os teus actos."

Abulia, indiferença e marasmo não são expressões de bondade. "Não és frio, nem quente; por isso, quero vomitar-te de minha boca." Passividade não é virtude. Entre o bem e o mal, a verdade e a impostura, a justiça e a iniquidade não há lugar para acomodações, nem para neutralidade. O cristão define-se sempre em tais conjunturas, confessando o seu Mestre. "Ninguém pode servir a dois senhores." Que relação pode haver entre Jesus e Baal? Dobrar os joelhos diante de todos os tronos, só porque são tronos; curvar-se perante todos os Césares, só porque são Césares; afazer-se às tiranias e às opressões, anuir directa ou indirectamente às tranquibérnias e vilezas da época; pactuar, enfim, com a injustiça de qualquer maneira e por quaisquer motivos, é negar a Jesus-Cristo no cenáculo social. "Não sejais escravos dos homens, nem das paixões; não sejais, igualmente, nem parasitas, nem bajuladores, nem mendigos" — disse o grande educador Hilário Ribeiro num dos seus excelentes livros didácticos. Não se triunfa na vida, sem ânimo viril. É a covardia moral que faz o homem escravizar-se a outros homens; que o faz escravo de vícios repugnantes e de paixões vis e soezes. É ainda por pusilanimidade e covardia que o homem bajula, mendiga e se torna parasita.

Sem boa dose de coragem (quase ia dizendo de audácia), o homem não cumpre o dever e menos ainda consegue sair-se airosamente das emergências difíceis da vida. O suicídio, seja por este ou por aquele motivo, é sempre um acto de covardia moral. A sentinela valorosa jamais abandona o posto que lhe foi confiado.

Os altos problemas da Vida, consubstanciados na sentença evangélica — Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito — requerem ânimo forte e vontade irredutível para serem solucionados. Não é fugindo aos perigos e às dificuldades que o homem há de vencê-las; é enfrentando-as.

coragem moral é a primeira virtude do homem de fé. Cumpre, porém, não confundir a verdadeira coragem com as caricaturas de coragem, que se ostentam por toda a parte. Estas são burlescas e vulgares, aquela é rara e cheia de nobreza. A coragem não consiste em atitudes violentas e belicosas. Nada tem de comum com a temeridade. É serena e íntima. Não se ostenta em bracejos, ou gesticulações espectaculosas, nem em vozeios e frases ameaçadoras e ofensivas. Revela-se antes em suportar, dó que em repelir a ofensa recebida. Energia não significa agressividade. Ser franco não é ser ferino, nem, sequer, contundente.

Quanto maior é a coragem, tanto mais calmo age o indivíduo. A consciência do valor próprio, aliada à fé no Supremo Poder, fez o homem tolerante e sofrido, paciente e tranquilo. Tal foi a atitude invariável de Jesus diante das conjunturas mais embaraçosas de sua vida terrena. Suportou todas as injúrias, todas as humilhações e iniquidades que lhe foram infligidas, conservando imaculada e intangível a pureza do alto ideal por que se bateu até ao extremo sacrifício.

Tal é a coragem de que precisam revestir-se os seus discípulos de hoje, como souberam fazer os discípulos do passado.

Saulo, antes de ser Paulo, não denotou coragem nenhuma perseguindo, aprisionando e consentindo no assassínio dos primeiros adeptos do Cristianismo nascente.

Saulo tinha às suas ordens gendarmes municiados; as altas autoridades civis e eclesiásticas lhe conferiam poderes discricionários. Os perseguidos eram párias sociais, sem protecção, pobres e desarmados. A atitude de Saulo era daquelas que confirmam o velho brocardo: Quer conhecer o vilão? Ponha-lhe nas mãos o bastão.

Após o célebre dia de Damasco, em que Saulo se transformou em Paulo, a vilania daquele se converteu na coragem moral deste. De algoz, passou a ser vítima. A seu turno perseguido, tendo agora contra si as armas e o rancor das autoridades detentoras do poder; correndo os maiores riscos, suportando prisões e açoites, afrontando a morte a cada momento, Paulo caminha intrépido e destemido, na defesa da causa santa da justiça e da liberdade personificadas no credo de Jesus.

O extraordinário Apóstolo das gentes oferece-nos, em si mesmo, exemplos da falsa e da legítima coragem, antes e depois da conversão.

Convertamo-nos, pois, nós os espíritas, os neo-cristãos, como se converteu Paulo.

Provemos em nós mesmos, com a transformação radical de nosso carácter, a eficiência e o poder de Jesus-Cristo, como redentor da Humanidade, como libertador do homem, mediante o exemplo de coragem moral que nos legou como herança preciosíssima.

/...

"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra."
                                                                                 Pedro de Camargo “Vinícius”


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, Primeira Parte / Seixos e Gravetos; Conversão / Coragem moral, 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), pintura de Johannes Vermeer)

domingo, 1 de dezembro de 2019

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Sr. Home
(primeiro artigo)

Os fenómenos realizados pelo Sr. Home produziram tanta sensação como vieram confirmar os maravilhosos relatos chegados do outro lado do mar, a cuja veracidade se ligava uma certa desconfiança. Mostrou-nos ele que, colocando de lado a maior margem possível devida ao exagero, ainda ficava o bastante para atestar a realidade dos factos que se cumpriam fora de todas as leis conhecidas.

Tem-se falado do Sr. Home e, de diversas maneiras; pensamos que seria exigir demais, que toda a gente lhe fosse simpática, uns por espírito de sistema, outros por ignorância. Queremos até admitir, nestes últimos, uma opinião conscienciosa, visto que por si mesmos não puderam constatar os factos; mas se, em tal caso, é permitida a dúvida, uma hostilidade sistemática e apaixonada é sempre inconveniente. Em toda a relação de causa, julgar o que não se conhece é falta de lógica e, difamar sem provas é esquecer as conveniências. Façamos por um momento, abstracção da intervenção dos Espíritos ao ponto de não vermos nos factos relatados, senão apenas simples fenómenos físicos; merecendo tanto mais atenção quanto mais estranhos forem. Então, explicai-os como quiserdes, mas não os contesteis a priori, se não quiserdes que ponham em dúvida o vosso julgamento. O que deve espantar, o que nos parece ainda mais anormal que os próprios fenómenos em questão, é ver esses mesmos que debateram, sem cessar, contra a oposição de certos núcleos académicos, com relação às ideias novas que continuamente lhes são propostas – e isso em termos pouco comedidos – os dissabores experimentados pelos autores das mais importantes descobertas, como FultonJenner e Galileu, que citam a todo o momento, eles próprios caírem em erro semelhante, logo eles que dizem e, com razão, que até há poucos anos atrás teria passado por insensato quem tivesse falado em corresponder-se de um extremo ao outro da Terra em alguns segundos. Se acreditam no progresso, do qual se dizem apóstolos, que sejam, pois, coerentes consigo mesmos e não atraiam para si a censura que dirigem aos outros, negando o que não compreendem.

Voltemos ao Sr. Home. Chegado a Paris no mês de Outubro de 1855, encontrou-se, desde o início, envolvido no mundo mais elevado, circunstância que deveria ter imposto mais circunspecção no julgamento que lhe fazem, porque, quanto mais elevado e esclarecido é esse mundo, menor é a suspeita de se deixar benevolamente enganar por um aventureiro. Esta mesma posição suscitou comentários. Pergunta-se quem é o Sr. Home. Para viver aqui, para fazer viagens dispendiosas, diz-se, seria necessário ter fortuna. Se não a tem, deve ser sustentado por pessoa poderosa. Sobre este tema se levantou um sem-número de suposições, cada uma mais ridícula que a outra. O que não se disse de sua irmã, que ele foi buscar há cerca de um ano! Comentou-se que era uma médium mais poderosa que ele; que ambos deveriam realizar prodígios de fazer empalidecer os de Moisés. Várias vezes nos fizeram perguntas a esse respeito; eis a nossa resposta.

Vindo à França, o Sr. Home não se dirigiu ao público em geral; ele não gosta, nem procura a publicidade. Se tivesse vindo com propósitos especulativos, teria corrido o país, lançando mão de propaganda em seu auxílio; teria procurado todas as ocasiões para se promover, enquanto as evita; teria estabelecido um preço para as suas manifestações, contudo, ele nada pede a ninguém. Malgrado a sua reputação, o Sr. Home não é, pois, de forma alguma, o que se pode chamar de um homem do mundo; a sua vida privada pertence-lhe exclusivamente. Uma vez que nada pede, ninguém tem o direito de indagar como vive, sem cometer uma indiscrição. É mantido por pessoas poderosas? Isso não nos diz respeito; tudo quanto podemos dizer é que, nesta sociedade de elite ele conquistou amizades verdadeiras e fez amigos devotados, ao passo que, com um prestidigitador, a gente paga, diverte-se e ponto final. Não vemos, pois, no Sr. Home, mais que o seguinte: um homem dotado de uma faculdade notável. O estudo desta faculdade é tudo quanto nos interessa e tudo quanto deve interessar a quem quer que não seja movido apenas pela curiosidade. Sobre ele a História ainda não abriu o livro dos seus segredos; até lá ele pertence à Ciência. Quanto à sua irmã, eis a verdade: É uma menina de onze anos, que ele trouxe a Paris para a sua educação, de que está encarregada ilustre pessoa. Sabe apenas em que consiste a faculdade do irmão. É bem simples, como se vê, muito prosaico para os amantes do maravilhoso.

Agora, por que teria o Sr. Home vindo à França? Certamente não foi para procurar fortuna, como acabámos de provar. Para conhecer o país? Mas ele não o percorre; pouco sai e não tem absolutamente hábitos de turista. O motivo patente é o conselho dos médicos, que acreditam ser o ar da Europa necessário à sua saúde, mas os factos mais naturais são por vezes providenciais. Pensamos, pois, que, se veio aqui é porque deveria vir. A França, ainda em dúvida no que diz respeito às manifestações espíritas, necessitava que lhe fosse aplicado um grande golpe; foi o Sr. Home que recebeu essa missão e, quanto mais alto for o golpe, maior será a sua repercussão. A posição, o crédito, as luzes dos que o acolheram e que foram convencidos pela evidência dos factos, abalaram as convicções de uma multidão de pessoas, mesmo entre aquelas que não puderam ser testemunhas oculares. A presença do Sr. Home terá sido, portanto, um poderoso auxiliar para a propagação das ideias espíritas; se não convenceu a todos, espalhou sementes que frutificarão tanto mais quanto mais se multiplicarem os próprios médiuns. Como já dissemos alhures, essa faculdade não constitui um privilégio exclusivo; existe em estado latente e em diversos graus entre muita gente, não aguardando senão a ocasião para se desenvolver; o princípio está em nós, por efeito próprio da nossa organização; está na Natureza; dele todos temos o gérmen, não estando longe o dia em que veremos os médiuns surgirem em todos os pontos, no nosso meio, nas nossas famílias, tanto entre os pobres como entre os ricos, a fim de que a verdade seja de todos conhecida, pois, segundo nos anunciaram, trata-se de uma nova era, de uma nova fase que começa para a Humanidade. A evidência e a vulgarização dos fenómenos espíritas imprimirão um novo curso às ideias morais, como aconteceu com o vapor com relação à indústria.

Se a vida privada do Sr. Home deve estar fechada às investigações de uma indiscreta curiosidade, há certos detalhes que podem, com toda a razão, interessar ao público e, que são de utilidade para a apreciação dos factos.

Sr. Daniel Dunglas Home nasceu perto de Edimburgo no dia 15 de Março de 1833. Tem, pois, hoje 24 anos. Descende de uma antiga e nobre família dos Dunglas da Escócia, outrora soberana. É um rapaz de estatura mediana, louro, cuja fisionomia melancólica nada tem de excêntrica; é de compleição muito delicada, de maneiras simples e suaves, de carácter afável e benevolente, sobre o qual o contacto com os poderosos não gerou arrogância nem ostentação. Dotado de excessiva modéstia, jamais fez alarde da sua maravilhosa faculdade, nunca fala de si e se, numa expansão de intimidade, conta coisas pessoais, é com simplicidade que o faz e jamais com a ênfase própria das pessoas com as quais a malevolência procura compará-lo. Diversos factos íntimos, do nosso conhecimento pessoal, provam os seus sentimentos nobres e uma grande elevação de alma; nós o constatamos com tanto maior prazer quanto se conhece a influência das disposições morais sobre a natureza das manifestações.

Os fenómenos dos quais o Sr. Home é instrumento involuntário por vezes têm sido contados por amigos muito zelosos com um entusiasmo exagerado, do qual se apoderou a malevolência. Tais como são, não necessitam de amplificação, mais nociva do que a útil à causa. Sendo o nosso fim o estudo sério de tudo quanto se liga à ciência espírita, fechar-nos-emos na estrita realidade dos factos por nós próprios constatados ou por testemunhas oculares mais dignas de fé. Podemos, assim, comentá-los com a certeza de não estar raciocinando sobre coisas fantásticas.

Sr. Home é um médium do género dos que produzem manifestações ostensivas, sem, por isso, excluir as comunicações inteligentes; contudo, as suas predisposições naturais lhe dão para as primeiras uma aptidão mais especial. Sob a sua influência, ouvem-se os mais estranhos ruídos, o ar se agita, os corpos sólidos se movem, levantam-se, transportam-se de um lugar ao outro no espaço, instrumentos de música produzem sons melodiosos, seres do mundo extra-corpóreo aparecem, falam, escrevem e, frequentemente, nos abraçam até causar dor. Na presença de testemunhas oculares, muitas vezes ele mesmo se viu elevado no ar, sem qualquer apoio e a vários metros de altura.

Do que nos foi ensinado sobre a classe dos Espíritos que em geral produzem este tipo de manifestações, não se deve concluir que o Sr. Home esteja em contacto somente com a classe ínfima do mundo espírita. O seu carácter, bem como as qualidades morais que o distinguem, devem, ao contrário, granjear-lhe a simpatia dos Espíritos superiores; para estes últimos, ele não passa de um instrumento destinado a abrir os olhos dos cegos de maneira enérgica, sem que, para isso, seja privado das comunicações de ordem mais elevada. É uma missão que aceitou, missão que não está isenta de tribulações nem de perigos, mas que cumpre com resignação e perseverança, sob a égide do Espírito de sua mãe, seu verdadeiro anjo-da-guarda.

A causa das manifestações do Sr. Home lhe é inata; a sua alma, que parece prender-se ao corpo apenas por fracos liames, tem mais afinidade com o mundo dos Espíritos que com o mundo corpóreo; eis por que se desprende sem esforço, entrando mais facilmente que os outros em comunicação com os seres invisíveis. Essa faculdade revelou-se-lhe desde a mais tenra infância. Com a idade de seis meses, o seu berço balançava sozinho, na ausência da ama de leite e, mudava de lugar. Nos seus primeiros anos ele era tão débil que mal podia suster-se; sentado num tapete, os brinquedos que não podia apanhar deslocavam-se por si mesmos e vinham pôr-se ao alcance das suas mãos. Aos três anos teve as suas primeiras visões, não lhes conservando, porém, a lembrança. Tinha nove anos quando a sua família se fixou nos Estados Unidos; ali, os mesmos fenómenos continuaram com intensidade crescente, à medida que avançava em idade, embora a sua reputação como médium não se tenha estabelecido senão em 1850, época em que as manifestações espíritas começaram a popularizar-se naquele país. Em 1854 foi à Itália, por razões de saúde, como dissemos; surpreendeu Florença e Roma com verdadeiros prodígios. Convertido à fé católica nesta última cidade, viu-se obrigado a romper relações com o mundo dos Espíritos. Com efeito, durante um ano, o seu poder oculto pareceu tê-lo abandonado; mas, como esse poder está acima de sua vontade, terminado esse tempo, conforme lhe anunciara o Espírito de sua mãe, as manifestações reapareceram com nova energia. A sua missão estava traçada; deveria distinguir-se entre aqueles que a Providência escolheu para revelar-nos, por meio de sinais patentes, o poder que domina todas as grandezas humanas.

Se o Sr. Home, como o pretendem certas pessoas que julgam sem ter visto, fosse apenas um hábil prestidigitador, sem dúvida teria sempre à sua disposição, na sua sacola, algumas peças com que pudesse simular as suas mágicas, ao passo que não é senhor de produzi-las à vontade. Ser-lhe-ia impossível dar sessões regulares, pois muitas vezes, justamente no momento em que tivesse necessidade da sua faculdade, esta lhe faltaria. Algumas vezes os fenómenos se manifestam espontaneamente, no momento em que menos se espera, enquanto que, noutras, é incapaz de os provocar, circunstância pouco favorável a quem quisesse fazer exibições a horas certas. O facto seguinte, tomado entre mil, é disto uma prova. Havia mais de quinze dias que o Sr. Home não tinha obtido nenhuma manifestação, quando, almoçando em casa de um dos seus amigos, com mais duas ou três pessoas do seu conhecimento, de repente se ouviram golpes nas paredes, nos móveis e no tecto. Parece que voltaram, disse ele. Nesse momento o Sr. Home estava sentado num canapé com um amigo. Um doméstico trazia uma bandeja de chá e preparava-se para colocá-la sobre a mesa, situada no meio do salão; embora bastante pesada, a mesa se elevou subitamente, destacando-se do solo a uma altura de 20 a 30 centímetros, como se tivesse sido atraída pela bandeja. Apavorado, o criado deixou-a escapar e a mesa, de um pulo, lançou-se em direcção ao canapé, vindo a cair diante do Sr. Home e do seu amigo, sem que nada do que estava em cima se tivesse desarrumado. Este facto não é, absolutamente, o mais curioso dentre aqueles que temos para relatar, mas apresenta essa particularidade digna de nota: a de ter-se produzido espontaneamente, sem provocação, num círculo íntimo, do qual nenhum dos assistentes, cem vezes testemunhas de factos semelhantes, necessitava de novas provas; e, seguramente, não era caso para o Sr. Home exibir as suas habilidades, se habilidades existem.

No próximo artigo citaremos outras manifestações.

/…


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Sr. Home, primeiro artigo, Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Fevereiro de 1858, 6º fragmento da Revista objecto do presente título desta publicação.
(imagem de contextualização: Daniel Dunglas Home, o médium de efeitos físicos mais célebre de sempre)

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

O Mundo Invisível e a Guerra ~


XVIII

O Espiritismo e as Igrejas ~

(Outubro de 1918)

   Para o observador atento, a penetração do Espiritismo na Ciência transformou-se num facto evidente, sucedendo o mesmo nas mais diversas religiões, onde a sua difusão, por não ser tão visível não é menos verdadeira. Quanto à Igreja Católica, tal afirmação parecerá temerária; no dia seguinte às declarações do Santo Ofício, quando ainda perdura a violenta campanha que o clero move contra nós.

  Apesar de tais ataques, seria fácil afirmar que o Espiritismo se infiltra, pouco a pouco, nos elementos que poderiam ser mais refractários e mais ortodoxos.

 Há 20 anos que este movimento foi provocado por monsenhor Méric, professor na Sorbonne, cuja revista, Revue du Monde Invisible, tratava exclusivamente de ciências ocultas e, apesar de certas críticas suas, puramente formais, podia ver-se que o erudito prelado se apaixonara pelas pesquisas desse tipo, tendo feito escola.

   Convém destacar, no mesmo sentido, o livro do padre Bautain, notável pelas suas conferências na Notre Dame. Sabe-se também que o cardeal Perraud, bispo de Autun e membro da Academia Francesa, se dedicava assiduamente à experimentação dos fenómenos psíquicos. Havia poucas dioceses em que grupos de eclesiásticos não se dedicassem às mesmas investigações.

   Na nossa resposta ao cónego Coubé (*), reproduzimos as opiniões de notáveis prelados, favoráveis ao Espiritismo. Poderíamos ainda acrescentar, outros, mas limitar-nos-emos a mencionar a opinião do mais célebre orador católico, depois de Lacordaire, o padre Henri Didon.

   Nas suas Cartas à Senhorita Th. V., publicadas em 1902 pela Livraria de Plon-Nourrit, com a autorização da Ordem dos Irmãos Pregadores, escrevia ele:

   “Creio na influência divina que os mortos e os santos exercem misteriosamente sobre nós. Vivo em profunda comunhão com esses invisíveis, experimentando, deliciado, os benefícios de sua vizinhança secreta. Por mais que passem os séculos, não poderão impedir que as almas da mesma raça se visitem e se amem.”

   Para maior precisão, acrescente-se que, na sua instituição de Arcueil, o eloquente dominicano gostava de interrogar as mesas (i) e, temos um testemunho formal, a esse respeito, do nosso amigo Sr. Touzard, membro do Conselho Superior da Agricultura, que muitas vezes tomou parte nessas experiências.

   Esse movimento não diminuiu, apenas está mais discreto. Hoje, como ontem, estuda-se e experimenta-se no meio católico, mas nada transpira para o público. Continuo recebendo cartas e visitas de clérigos que me indagam sobre os problemas do além-túmulo.

   Existem correntes contrárias que agitam o pensamento e a consciência de muitos padres, porém, a férrea disciplina que pesa sobre eles proíbe qualquer manifestação exterior. Seguramente ninguém deverá confiar nesse silêncio enganoso. O descontentamento firma-se secretamente nas mentes e sabemos que, às vezes, as forças muito comprimidas provocam explosões.

   Esse descontentamento, produzido inicialmente por uma reacção anti-modernista contra todos quantos desejavam introduzir um pouco de ar e de luz no cárcere sombrio da Igreja Romana, aumentou ainda mais no decorrer da presente guerra.

   A atitude da Santa Sé, contrastando com a dedicação patriótica do clero humilde, provocou indignação.

   Os objectivos de Bossuet e as proposições galicanas não se encontram tão afastadas de nós e tão esquecidas que não possamos reanimá-las. A Igreja de França ganharia em desligar-se de um poder mais preocupado com os seus interesses materiais do que com o verdadeiro espírito do Evangelho.

   Falaremos na obra do padre L. Roure, O Maravilhoso Espírita, publicado em 1917. Trata-se de um dos mais fortes ataques utilizados na campanha católica contra os espíritas e que não deu os resultados esperados. Escorregando silenciosamente durante a noite, não produziu explosão nenhuma, não atingindo o seu objectivo.

   O autor afirma que é redactor dos Estudos, obra de publicidade e propaganda, fundada, como se sabe, pelos padres jesuítas. Não iremos encontrar nesse volume as belas páginas que tão bem sabia escrever o culto e inteligente padre Méric ou o eloquente padre Didon. O seu estilo é bem mais fraco e estéril, excepto nalgumas críticas com fundamento; o que o caracteriza principalmente é o desejo de incompreensão, a calúnia sistemática, factos que tiram o valor da tese desenvolvida na obra.

   O autor não demonstra o equilíbrio e o julgamento sadio que deveria possuir um padre para analisar uma ciência ou uma doutrina altamente espiritualista. A sua intenção é percebida nos últimos capítulos, dedicados a uma apologia do Catolicismo, porém há um momento em que o seu propósito cede e lhe escapa uma confissão diante do poder da verdade, conforme podemos ler na página 297:

   “O que fez o sucesso do Espiritismo foi ele ter trazido uma resposta de imortalidade para as almas inquietas, prometendo aos corações enlutados o prosseguimento das suas relações com os que já se foram.

   Também não negaremos que ele tenha trazido, para alguns, a calma que inutilmente procuraram noutras partes, oferecendo bálsamos para dores até então inconsoláveis.”

   Os argumentos dos nossos adversários católicos procuram demolir todas as provas e todos os testemunhos científicos favoráveis ao Espiritismo. Para eles, William Crookes e os sábios experimentadores que seguiram o seu exemplo foram todos enganados. Allan Kardec foi apenas um iludido e pobre compilador e tudo aquilo que pode ser factual nos nossos fenómenos é devido apenas aos artifícios do demónio. Esquecem-se de que foi no meio da própria Igreja que se encontraram os melhores testemunhos a favor da manifestação dos espíritos.

   Lembramos ao padre Coubé que, de Santo Agostinho até Lacordaire e ao padre Didon, houve um grande número de sacerdotes ilustres que se manifestaram nesse sentido.

   Os factos espíritas, como demonstramos noutro lugar, (**) são encontrados na origem da Igreja Cristã e durante todos os séculos de sua história. No seu trato com o invisível é que essa Igreja, em grande parte, obtinha a sua força moral e a sua autoridade, porém, aos poucos, o cuidado com os seus interesses materiais fê-la perder de vista as sadias tradições do Cristianismo primitivo.

   A Igreja pretendeu colocar-se no lugar dos poderes superiores e, depois de ter procurado dominar as manifestações mediúnicas em seu próprio benefício, terminou por abandoná-las. A Idade Média apresenta-nos o grande martírio dos médiuns e dos que eram inspirados.

   O padre tornou-se juiz dos destinos humanos; acreditou que poderia dirigir o mundo por meio do terror, pelo pavor ao inferno e aos sofrimentos eternos, porém a consciência humana revoltou-se contra as afirmativas que continuam em erro sobre o futuro reservado por Deus aos seus filhos. A situação actual da Igreja, os seus fracassos e a sua impopularidade são o resultado das suas faltas, da sua intolerância e do seu afastamento das grandes verdades eternas.

   Quanto aos factos espíritas, continuaram sempre a produzir-se em todos os lugares; afirmando a sobrevivência da alma, a comunhão entre os vivos e os mortos, a justiça de Deus. Nenhum poder humano seria suficiente para pôr barreiras à vida invisível que nos cerca por todos os lados.

   Os padres esclarecidos sabem e desaprovam a campanha actual porque, afirmam eles, ela se voltará contra os seus autores. Estes, chamando a atenção dos seus adeptos para esses problemas, acabam provocando o estudo e o exame de tais problemas.

   A verdade aparece e, aos poucos, se vai afirmando nas consciências. O Espiritismo nada tem realmente a temer da discussão ou da análise, pois sempre saiu vitorioso dos ataques de que foi vítima. Por isso, negando-se a participar deste conflito, muitos sacerdotes procuram, às escondidas, um meio de conciliação, uma “ponte” capaz de unir as duas doutrinas até agora antagónicas, afirmando tê-la encontrado na ideia do purgatório. Esperam que, mais tarde ou mais cedo, o aparecimento de um papa mais liberal, de visão mais ampla, ou talvez uma reviravolta completa da Igreja Francesa, permitirão que nesse corpo enfraquecido penetre um pouco do sopro vivificador do além.

   Em geral, as Igrejas Protestantes são mais liberais que o Catolicismo quanto às influências exteriores e mais abertas às correntes do pensamento e da Ciência. Não há dúvida de que também possuem os seus adeptos ortodoxos, os seus obstinados que não são menos intolerantes e retrógrados que os jesuítas, porém a liberdade que existe nas Igrejas Protestantes para o estudo e interpretação dos textos e das ideias auxilia poderosamente o progresso das inteligências.

   Na Inglaterra e na América, há muito tempo, os pastores não se cansam de mencionar os factos espíritas para a comprovação da sobrevivência da alma. Em França e na Suíça, o Protestantismo liberal impregna-se, lenta e fortemente, de Espiritismo e neste ponto o nosso respeitável amigo pastor A. Bénézech, de Montauban, pode ser considerado como verdadeiro iniciador.

   Rompendo com as doutrinas e os preconceitos do seu meio, ele não receou afirmar, alto e bom som, a realidade das comunicações de além-túmulo. As suas experiências pessoais, com as provas conseguidas na identificação dos espíritos comunicantes, são apresentadas em dois volumes, cujo sucesso foi garantido pela sua capacidade de escritor e o seu estilo sóbrio e claro. (***)

   Já em 1903 ele me escrevia:

   “Penso que o Espiritismo poderia ser uma religião positiva, não como as religiões reveladas, porém como uma religião estabelecida sobre factos experimentais e em total acordo com o racionalismo e a ciência.”

   Consegui realizar em 1905, na Câmara Municipal de Montauban, graças ao senhor Bénézech, uma conferência sobre Espiritismo para um selecto auditório e, no ano seguinte, outra no grande anfiteatro da Faculdade de Teologia dessa cidade, diante de um auditório de estudantes, professores, pastores e convidados.

   Sendo permitido o debate, muitas perguntas me foram feitas pelos presentes, que pareciam vivamente interessados nos problemas psíquicos. Essa reunião, considerada um sucesso, teve consequências, porque, como eu soube posteriormente, muitos estudantes tomaram o Espiritismo como tema para a defesa de suas teses de exame.

   O movimento não diminuiu e as ideias espíritas continuam propagando-se entre os protestantes franceses, sendo difícil determinar, actualmente, o grande número dos que aceitaram as nossas ideias. As linhas principais da Doutrina Espírita são encontradas no pensamento dos mais importantes representantes do Protestantismo.

   O pastor C. Wagner, recentemente desencarnado, após uma vida terrena fecunda, encontra-se nessa situação, tendo sido também um dos homens que exerceu a mais salutar influência no nosso tempo e na nossa pátria.

   Todos conhecem os seus livros. A Vida SimplesA JuventudeO Amigo, etc., nos quais se eleva aos mais altos píncaros morais, num estilo colorido, quente e comovedor. Tais obras, porém, são apenas um reflexo da sua brilhante alma; para um julgamento completo, seria preciso ouvirmos os seus discursos improvisados e animados pelo sopro da inspiração.

   Antes da guerra, era pacifista no sentido cristão, mas, os nossos primeiros revezes, despertaram nele um imenso sentimento patriótico. A leitura dos seus últimos sermões é consoladora, neles se nota o grito do sofrimento humano misturado aos acentos da mais nobre fé religiosa.

   C. Wagner afastou-se de qualquer espírito sectário e possuía amigos em todos os campos: entre os padres católicos, os rabinos e os livres pensadores espiritualistas. Também o Espiritismo não lhe era desconhecido, porque, em 21 de Fevereiro último, ele me apresentara os seus pontos de vista nos seguintes termos:

   “Acredito, do fundo da alma, na presença dos nossos queridos invisíveis. Sinto a sua companhia habitual, ando cercado do seu pacífico e sorridente cortejo.

   Em sua memória, gosto de cultivar o que eles amaram e agora, quando tantos jovens heróis passaram a fronteira que serve de limite ao mundo espiritual, considero toda a obra justa e boa como um depósito que eles nos legaram e que se tornou sagrada graças ao seu sacrifício.

   A nobre comunhão entre vivos e mortos, a continuação, entre nós, da influência dos que nos antecederam, a perspectiva de uma ascensão das criaturas, através das dores, dos erros e das faltas, para uma evolução superior, um aperfeiçoamento do que apenas começou em nós, tudo isso é para mim uma fé viva, que peço a Deus me seja aumentada, diariamente.

   Pelo Evangelho, amplamente compreendido e praticado, e por todos esses anseios que acabo de apresentar, sinto-me bem perto de vós, que não excluís ninguém, que tudo esperais e que dais ar e luminoso horizonte ao quadro da vida.”

   A Suíça de língua francesa não se cansou de se preocupar com os problemas psíquicos, desde os trabalhos de A. de Gasparin e do professor Thury. A Universidade de Genebra, que possui uma Faculdade de Teologia, protestante, convidou-nos, em 1892, para duas conferências públicas sobre o Espiritismo. Foram realizadas nos dias 7 e 10 de Novembro, no anfiteatro denominado Aula, tendo havido uma terceira, no casino de São Pedro, onde foram lançadas as bases da Sociedade de Estudos Psíquicos de Genebra, que teve como presidente, por muito tempo, o nobre professor Daniel Metzger, o qual, curiosamente, segundo opinião de um espírito digno de fé, era a reencarnação de Calvino.

   Os trabalhos dessa Sociedade são dos mais notáveis e, por ocasião do Congresso Espírita de Genebra, em 1913, possuía cerca de 200 membros, quase todos da religião protestante.

   O professor Théodore Flournoy, professor universitário protestante, dedicou dois grossos volumes ao estudo do Espiritismo, onde apresenta mais fantasia do que ciência imparcial. Cabe, entretanto, reconhecer que, nos seus Arquivos de Psicologia, a sua incredulidade, zombeteira no princípio, diminuiu pouco a pouco, chegando a uma reserva prudente, dirigindo até elogios a sábios ingleses como Myers e Lodge.

   O seu colega, pastor G. Fulliquet, professor da Faculdade de Teologia da Universidade, num alentado livro intitulado Os Problemas de Além-Túmulo, vai muito mais longe, escrevendo, na página 141:

    “O pensamento espírita mostra-se excelente para confortar a emoção e a dor das separações, produzir a resignação e a compreensão, suavizar o aguilhão do luto e reconciliar-nos com a morte.”

   O autor aceita a doutrina das vidas sucessivas e da reencarnação como uma hipótese importante e de interesse, pelas suas consequências e aplicações.

   Ele estende-se sobre este assunto e diz, na página 252:

   “Uma só vida na Terra não pode, certamente, proporcionar ao espírito um desenvolvimento integral e o progresso completo a que aspira e tem direito. Ninguém alcançou a perfeição ficando muito distante disso. Lícito, portanto, é afirmar que ninguém chegou ao final de sua educação, de suas provações e de suas experiências, sendo que a morte – que não tem o poder milagroso de acabar tudo, de levar tudo à perfeição – conduz a alma para uma nova vida de actividade e de progresso.”

   Em seguida o autor examina de que maneira se pode produzir essa nova existência dizendo:

   A alma retornará à Terra, reencarnando em um novo homem, para receber aqui uma educação diferente e apropriada, isso porém depois de um intervalo mais ou menos longo na vida espiritual. É a teoria das vidas sucessivas ou da pluralidade das existências terrenas.”

   Mais adiante ele acrescenta:

   “Não é totalmente impossível que a reencarnação na Terra apresente, algumas vezes, as condições mais favoráveis.”

   O Sr. Fulliquet aproxima-se de nós noutros pontos. Tratando dos fenómenos mediúnicos, acrescenta que “pelo subliminal ficamos em relação com todo um mundo espiritual”.

   No caso de certas enfermidades, “a vida psíquica fica mais intensa e mais bela, parecendo desejar e predizer que a morte não a ameaça e nem a poderia atingir”.

   Em face destas afirmações, o leitor admira-se vendo o autor aceitar, finalmente, o ponto de vista actual, a opinião na moda em alguns meios teológicos protestantes, isto é, a teoria de Sabatier sobre a imortalidade facultativa, segundo a qual nem todas as almas sobrevivem depois da morte, mas somente as que conseguiram o estado suficiente de “coesão” das faculdades e da consciência.

   Ora, não se podendo concretizar tal estado, excepto em determinado grau evolutivo, após uma série de vidas, resultaria daí que a grande parte das almas mais jovens, as criadas recentemente, desapareceriam e, de um só golpe, grande parte da humanidade póstuma seria eliminada. Eis a que resultado chega uma concepção puramente imaginária, que não se apoia em prova alguma, em nenhuma verificação.

   É lógico que o Sr. Fulliquet desejou respeitar os objectivos e os sentimentos que vigoram à sua volta, agradar aos interesses ou às simpatias, mantendo boas relações com os que o rodeiam. Tendo estudado o Espiritismo nos grupos de Lyon, tem a sua opinião a respeito do assunto, mas não se atreveu a afirmar plena e firmemente o que de facto pensava. Quem sabe algum dia se lamentará por não ter seguido o belo exemplo dado por Bénézech e por C. Wagner. Seja como for, devemos destacar a sua franqueza e também aprovar as suas boas intenções.

   Em muitos ambientes a mentalidade dos homens da Igreja está a ser trabalhada pelo Espiritismo e, apesar das resistências e dos obstáculos, a sua luz penetra lentamente, porém com segurança, através do labirinto e da escuridão dos dogmas.

   Sendo o Espiritismo a forma e a expressão do mundo invisível, ele representa a mais respeitável das tradições filosóficas e religiosas, tanto a verdade antiga como a mais moderna, destacando-se como a fonte de onde surgiram todas as religiões e onde elas se devem fortalecer e restaurar nas horas decadentes, haurindo nova vida.

   É o socorro que o Céu manda para a Terra e o instrumento pelo qual o pensamento e a Ciência se encaminham para uma síntese cuja base serão os factos mediúnicos, cuja coroa serão as alturas do progresso e cujo ensinamento reflectirá tudo quanto represente a eterna beleza da alma e do mundo.

/…
(*) Veja-se a nossa brochura O Espiritismo e o Clero Católico, Livraria das Ciências Psíquicas, 1918.
(**) Veja-se a nossa obra Cristianismo e Espiritismo.
(***) Os Fenómenos Psíquicos e a Questão do Além e Sofrer, Reviver, Livraria Paul Leymarie, Paris.


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XVIII O Espiritismo e as Igrejas, Outubro de 1918, 33º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O Padre dominicano francês, Henri Didon 1840-1900)

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Da sombra do dogma à luz da razão ~


O papel da Ciência na Génese ~

    A história da origem de quase todos os povos antigos confunde-se com a da sua religião: é por isso que os seus primeiros livros foram livros religiosos; e, como todas as religiões que se ligam ao princípio das coisas, que é também o da humanidade, deram sobre a formação e organização do Universo explicações em proporção com o estado dos conhecimentos do tempo e dos seus fundadores. Daí resultou que os primeiros livros sagrados fossem ao mesmo tempo os primeiros livros de ciência, assim como foram durante muito tempo o único código das leis civis.

  Nos tempos primitivos, sendo os meios de observação necessariamente muito imperfeitos, as primeiras teorias sobre o sistema do mundo deviam estar manchadas de erros grosseiros; mas se esses meios tivessem sido completos tal como o são hoje, os homens não teriam sabido servir-se deles; não podiam ser aliás mais do que o produto do desenvolvimento da inteligência e do conhecimento sucessivo das leis da natureza. À medida que o homem foi evoluindo no conhecimento dessas leis, penetrou nos mistérios da Criação e corrigiu as ideias que fazia sobre a origem das coisas.

  O homem foi impotente para resolver o problema da Criação até ao momento em que a chave lhe foi dada pela ciência. Foi preciso que a astronomia lhe abrisse as portas do espaço infinito e lhe permitisse mergulhar nele o seu olhar; que, pela força do cálculo, pudesse determinar com rigorosa precisão o movimento, a posição, o volume, a natureza e o papel dos corpos celestes; que a física lhe revelasse as leis da gravidade, do calor, da luz e da electricidade; que a química lhe ensinasse as transformações da matéria e a mineralogia os materiais que formam a crosta do globo; que a geologia lhe ensinasse a ler nas camadas terrestres a formação gradual desse mesmo globo. A botânica, a zoologia, a paleontologia, a antropologia, iriam iniciá-lo na filiação e na sucessão dos seres organizados; com a arqueologia, foi-lhe possível seguir os traços da humanidade através dos tempos; todas as ciências, numa palavra, completando-se umas às outras, iriam dar o seu contributo indispensável ao conhecimento da História do mundo, o homem só tinha por guia as suas primeiras hipóteses.

  Também, antes de o homem estar na posse destes elementos de apreciação, todos os conhecimentos da Génese, cuja razão embatia em impossibilidades materiais, giravam num mesmo círculo sem dele poderem sair; só o puderam fazer quando a ciência abriu o caminho, cavando uma brecha no velho edifício das crenças, e então tudo mudou de aspecto; uma vez encontrado o fio condutor, as dificuldades foram completamente reduzidas; em vez de uma Génese imaginária, obtivemos uma Génese positiva e, de certo modo, experimental; o campo do Universo estendeu-se ao infinito; viu-se a Terra e os astros a formarem-se gradualmente segundo as leis eternas e imutáveis que testemunham bem melhor a grandeza e a sabedoria de Deus que uma criação miraculosa saída subitamente do nada, como uma alteração à vista graças a uma ideia súbita da Divindade após uma eternidade de inacção.

  Uma vez que é impossível conceber a Génese sem os dados fornecidos pela ciência, podemos dizer na verdade que: a ciência é chamada a formar a verdadeira Génese segundo as leis da natureza.

  No ponto a que chegou no século XIX, terá a ciência resolvido todas as dificuldades do problema da Génese?

  Seguramente que não, mas é incontestável que destruiu sem retrocesso todos os erros capitais e que estabeleceu os fundamentos mais essenciais sobre dados irrecusáveis; os pontos ainda incertos não são, a bem dizer, mais do que questões de pormenor cuja solução, seja ela qual for no futuro, não poderá prejudicar o todo. Por outro lado, apesar de todos os recursos de que pode dispor, faltou-lhe até hoje um elemento importante sem o qual a obra não poderia nunca estar completa.

  De todas as Géneses antigas, a que mais se aproxima dos dados científicos modernos, apesar dos erros que contém e que são hoje demonstrados à evidência, é incontestavelmente a de Moisés. Alguns desses erros são mesmo mais aparentes do que reais e provêm quer de falsa interpretação de certas palavras cujo primitivo significado se perdeu ao passar de língua para língua em traduções ou cuja acepção se alterou com os hábitos dos povos, quer da forma alegórica característica do estilo oriental e de que tomámos a letra em vez de procurarmos o espírito.

  A Bíblia contém evidentemente factos que a razão, desenvolvida pela ciência, hoje não poderia aceitar e outros que parecem estranhos e repugnam porque se ligam a costumes que já não são nossos. Mas, juntamente com isto, haveria parcialidade em não reconhecer que encerra grandes e belas coisas. A alegoria tem aí um lugar considerável e, sob esse véu, esconde verdades sublimes que surgem se procuramos o fundo da ideia, porque então o absurdo desaparece.

  Nesse caso, por que não levantámos esse véu mais cedo? É, por um lado, a falta de saber que só a ciência e uma sã filosofia poderiam proporcionar e, do outro, o princípio de imutabilidade absoluta da fé, consequência de um respeito demasiado cego pela letra perante a qual a razão se deveria inclinar e, portanto, o receio de comprometer o enorme monte de crenças construído sobre o sentido literal. Partindo estas crenças de um ponto primitivo, receou-se que, se o primeiro elo da cadeia se quebrasse, todas as malhas da rede acabassem por se separar; foi por isso que, apesar de tudo, se fecharam os olhos; mas fechar os olhos ao perigo não é evitá-lo. Quando um edifício cede, não é mais prudente substituir imediatamente as pedras más por boas em vez de esperar, por respeito para com a velhice do edifício, que o mal não tenha remédio e que seja preciso reconstruí-lo do princípio ao fim?

  A ciência, levando as suas investigações até às entranhas da Terra e profundidade do céu, demonstrou então de forma irrecusável os erros da Génese moseísta tomada à letra e a impossibilidade material das coisas se terem passado tal como aí são textualmente relatadas; por isso mesmo, lesou profundamente as crenças seculares. A fé ortodoxa sensibilizou-se com isso porque julgou ver retirados os seus fundamentos; mas quem teria razão: a ciência, caminhando prudente e progressivamente no terreno sólido dos números e da observação, sem nada afirmar antes de ter a prova na mão, ou uma relação escrita numa época em que os meios de observação faltavam em absoluto? Quem deve vencer, afinal: o que diz que 2 e 2 são 5 e se recusa a verificar ou o que diz que 2 e 2 são 4 e o prova?

  Mas então, dir-se-á, se a Bíblia é uma revelação divina, Deus enganou-se? Se não é uma revelação divina, já não tem autoridade e a religião cai por falta de base. Das duas uma: ou a ciência não tem razão ou tem-na; se tem razão, não pode fazer com que uma opinião contrária seja verdadeira; não há revelação que possa vencê-la quanto à autoridade dos factos.

  Incontestavelmente, Deus (inteligência directriz)*, que é todo verdade, não pode induzir os homens em erro, nem consciente nem inconscientemente, sem o que não seria Deus. Se então os factos contradizem as palavras que lhe são atribuídas, é preciso concluir logicamente que não as pronunciou ou que foram tomadas no sentido errado.

  Se a religião sofre nalgumas partes destas contradições, o defeito não é de maneira nenhuma da ciência, que não pode fazer com que aquilo que é não seja, mas dos homens, por terem criado prematuramente dogmas absolutos, de que fizeram uma questão de vida ou de morte, sobre hipóteses susceptíveis de serem desmentidas pela experiência.

  Há coisas com o sacrifício das quais temos de nos resignar, de boa ou má vontade, quando não podemos proceder doutro modo. Quando o mundo avança, não podendo a vontade de alguns fazer com que pare, o mais sensato é segui-lo a acomodarmo-nos ao novo estado de coisas, em vez de nos agarrarmos ao passado que desaba, correndo o risco de cairmos com ele.

  Era preciso, por respeito para com os textos considerados sagrados, impor silêncio à ciência? Seria uma coisa tão impossível como impedir a Terra de girar. As religiões, sejam elas quais forem, nunca ganharam nada em sustentar erros manifestos. A missão da ciência é descobrir as leis da natureza; ora, como estas leis são obra de Deus, não podem ser contrárias às religiões fundadas na verdade. Lançar um anátema ao progresso por atentatório da religião, é lançá-lo à própria obra de Deus; é, além disso, trabalho inútil, pois todos os anátemas do mundo não impediram a ciência de avançar, nem a verdade de surgir à luz do dia. Se a religião se recusa a avançar com a ciência, a ciência avança sozinha.

  Só as religiões estacionárias podem temer as descobertas da ciência; estas descobertas só são funestas para as que se deixam distanciar das ideias progressistas, imobilizando-se no absolutismo das suas crenças; têm em geral uma ideia tão mesquinha da Divindade, que não percebem que assimilar as leis da natureza reveladas pela ciência é glorificar a Deus nas suas obras; na sua cegueira, preferem homenagear o espírito do mal. Uma religião que não estivesse em nenhum ponto em contradição com as leis da natureza, nada teria a recear do progresso e seria invulnerável.

  O Génesis compõe-se de duas partes: a história da formação do mundo material e a da humanidade, considerada no seu duplo princípio corporal e espiritual. A ciência limitou-se à procura das leis que regem a matéria; mesmo no homem, só estudou o invólucro carnal. A este respeito conseguiu perceber, com uma precisão incontestável, as principais partes do mecanismo do Universo e do organismo humanos. Neste ponto capital, pode então completar a Génese de Moisés e dela retirar as partes defeituosas.

  Mas a história do homem, considerado como ser espiritual, liga-se a uma ordem especial de ideias que não é do domínio da ciência propriamente dita e que esta, por este motivo, não tomou como tema das suas investigações. A filosofia, que tem mais particularmente nas suas atribuições este tipo de estudo, sobre este ponto só formulou teorias contraditórias, desde a espiritualidade pura até à negação do princípio espiritual e até mesmo de Deus, sem outras bases para além das ideias pessoais dos seus autores; deixou portanto a questão indefinida, à falta de um controlo suficiente.

  Esta questão, no entanto, é para o homem a mais importante, pois trata-se do problema do seu passado e do seu futuro; a do mundo material só lhe toca indirectamente. O que lhe interessa antes de mais nada é saber de onde vem, para onde vai; se já viveu e se voltará a viver e qual a sorte que lhe está reservada.

  Sobre todas estas questões, a ciência fica muda. A filosofia só dá opiniões que vão em sentido diametralmente oposto, mas pelo menos permite discutir, o que faz com que muita gente se coloque do seu lado, dando-lhe preferência à religião, que não discute.

  Todas as religiões estão de acordo quanto ao princípio da existência da alma, sem no entanto o demonstrarem; mas não estão de acordo nem sobre a sua origem, nem sobre o seu passado, nem sobre o seu futuro, nem principalmente sobre o essencial, sobre as condições de que depende a sua sorte futura. Na sua maior parte, fazem do seu futuro um quadro imposto à fé dos seus adeptos, que só pode ser aceite por uma fé cega mas que não pode resistir a um exame sério. Estando o destino que dão à alma ligado, nos seus dogmas, às ideias que se tinham sobre o mundo material e ao mecanismo do Universo nos tempos primitivos, é inconciliável com o estado dos conhecimentos actuais. Só podendo perder com a observação e a discussão, acham mais simples banir uma e outra.

  Desde divergências respeitantes ao futuro do homem nasceram a dúvida e a incredulidade. No entanto, a incredulidade deixa um vazio penoso; o homem encara com ansiedade o desconhecido para onde, mais tarde ou mais cedo, deve fatalmente ir; a ideia do nada gela-o; a sua consciência diz-lhe que, para lá do presente, há para ele qualquer coisa; mas o quê? A sua razão desenvolvida já não lhe permite aceitar as histórias com que lhe embalaram a infância, tomar a alegoria pela realidade. Questiona em vão, nada lhe responde de forma peremptória e apropriada para acalmar as suas apreensões; em todo o lado, encontra a afirmação chocando com a negação, sem provas mais positivas de um lado e de outro; daí a incerteza a incerteza sobre as coisas da vida faz com que o homem se atire com uma espécie de frenesim para as da vida material.

  É este o efeito inevitável das épocas de transição: o edifício do passado desmorona-se e o do futuro não está ainda construído. O homem é como um adolescente que já não tem a fé ingénua dos seus primeiros tempos e não possui ainda os conhecimentos da idade madura; só tem vagas aspirações que não sabe definir.

  Se a questão do homem espiritual permaneceu até hoje no estado de teoria, foi porque faltaram os meios de observação directa que tivemos para constatarmos o estado do mundo material e o campo ficou aberto às concepções do espírito humano. Enquanto o homem não conheceu as leis que regem a matéria e não pôde aplicar o método experimental, errou de teoria em teoria sobre o mecanismo do Universo e da formação da Terra. Passou-se na ordem moral como na ordem física; para fixar as ideias, faltou o elemento essencial: o conhecimento das leis do princípio espiritual. Este conhecimento estava reservado à nossa época, assim como o das leis da matéria foi obra dos dois últimos séculos.

  Até hoje, o estudo do princípio espiritual, compreendido na metafísica, tinha sido puramente especulativo e teórico; no Espiritismo é sobretudo experimental. Com a ajuda da faculdade mediúnica, hoje mais desenvolvida e sobretudo generalizada e mais bem estudada, o homem encontrou-se na posse de um novo instrumento de observação. A capacidade mediúnica foi, para o mundo espiritual, o que o telescópio foi para o mundo astral e o microscópio para o mundo dos infinitamente pequenos; permitiu explorar, estudar, por assim dizer de visu, as suas relações com os habitantes deste mundo, podemos acompanhar a alma na sua marcha ascendente, nas suas migrações, nas suas transformações; pudemos enfim estudar o elemento espiritual. Eis o que faltava aos anteriores comentadores do Génesis para o compreenderem e lhe corrigirem os erros.

  Estando o mundo espiritual e o mundo material em contacto constante, são solidários um com o outro; ambos têm a sua acção na Génese. Sem o conhecimento das leis que regem o primeiro, seria tão impossível continuar uma Génese completa, como a um estatuário dar vida a uma estátua. Só hoje, apesar de nem a ciência material nem a ciência espiritual terem dito a última palavra, o homem possui os dois elementos necessários para fazer luz sobre este imenso problema. Eram absolutamente necessárias estas duas chaves para se chegar a uma solução, mesmo que aproximada.

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* Deus (inteligência directriz ~ unidade suprema); in Léon Denis O Porquê da Vida, Solução Racional do Problema da Existência; O que somos? De onde viemos? Para onde vamos? IX – Resumo e conclusão. Nota desta publicação.


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, [...] Capítulo IV, O Papel da Ciência na Génese (de 1 a 17), 21º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)