Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...
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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Deus na Natureza ~


~ O Destino dos Seres e das Coisas ~
~ Plano da Natureza ~ O Instinto e a Inteligência ~
(I)

  A construção lenta e progressiva dos seres e a formação das espécies duradouras estabelecem a presença permanente da causa criadora e proclamam, de forma eloquente, a sua sabedoria e inteligência.

  Se deixarmos, agora, de lado a organização do indivíduo, para estudarmos a da família, penetraremos nos mistérios do instinto e, ainda aí, encontraremos o plano do Criador brilhantemente caracterizado.

  Muito se há discutido sobre a alma animal, depois que DescartesLeibnitz e, a seguir, Reaniur se deram ao trabalho de observar in natura, directamente, a vida e costumes dos animais. É, sobretudo, pela observação directa que nos podemos instruir acerca da preciosa faculdade das espécies vivas, que lhes assegura a conservação e, basta constatar os sinais evidentes desta lei universal, para lhe aferir o valor, sob o ponto de vista dos desígnios da Criação.

  Antes de tudo, convém distinguir inteligência e instinto. Os animais possuem uma e o outro como faculdades bem distintas. Com a primeira pensam, reflectem, compreendem, decidem, recordam, adquirem experiência, amam, odeiam, julgam, por processos análogos aos da inteligência humana; com a segunda, operam obedecendo a uma impulsão íntima, sem apreensão, sem conhecimento, inconscientes do motivo e do resultado dos seus actos. Fixemos alguns exemplos, para melhor definir esses caracteres.

  Eis como nos fala Buffon de um orangotango ainda novo, por ele observado: – “Vi-o dar a mão para conduzir as pessoas que o visitavam e passear com elas como se estivesse convencido do seu papel; vi-o sentar-se à mesa, pegar um guardanapo, limpar os lábios, utilizar-se da colher e do garfo, encher o copo e tocá-lo noutro, quando a isso convidado; vi-o ir buscar uma chávena, pôr-lhe o açúcar e o chá, aguardando que este esfriasse para então o beber. Tudo isso, sem outra instigação que a palavra e a mímica do seu dono e, algumas vezes, por si mesmo. Não fazia mal a quem quer que fosse; mostrava-se mesmo circunspecto e na atitude de quem pedisse carinho, etc.”

  O Sr. Flourens diz que havia no Jardim Zoológico um orangotango notável pela inteligência: meigo, amante de carícias, principalmente das crianças, com elas brincava procurando imitar tudo quanto via, etc. Assim é que, sabia manejar a chave do seu compartimento, enfiando-a na fechadura e abrindo a porta. Se acontecia pendurarem a chave na chaminé, lá trepava por meio de uma corda presa ao tecto e que lhe servia comummente de balanço. Certa vez, deram um nó na corda, para fazê-la mais curta e, ele o desatou imediatamente. Tal como o de Buffon, não revelava a impaciência e petulância próprias da espécie, antes tinha um ar tristonho, passos lentos e gestos comedidos.

  O professor foi visitá-lo um dia, acompanhado por um ilustre ancião, que era também um observador sagaz e profundo.

  Um trajo algo esquisito, os passos lentos e vacilantes, o busto arqueado do visitante, logo despertaram a atenção do símio. Prestou-se ele, complacente, a tudo o que se lhe exigiu, mas, de olho sempre atento no objecto de sua curiosidade. Quando nos íamos retirar e ele mais se aproximou do novo visitante, tirou-lhe delicada e maliciosamente a bengala e, fingindo apoiar-se nela, curvado e vagaroso, deu uma volta ao compartimento, como procurando imitar o meu velho amigo.

  Depois, por si mesmo restituiu-lhe a bengala. É evidente que ele também sabia observar...

  Cuvier, por sua vez, observou factos não menos curiosos. O seu orangotango se divertia trepando as árvores e nelas permanecendo encarapitado. Um dia, fizeram menção de lá o irem buscar e ele logo se pôs a sacudir a árvore, assim procedendo sempre que tentavam apanhá-lo. “De qualquer modo – diz Cuvier – que consideremos este acto, não será possível negá-lo como resultante de uma combinação de ideias, para reconhecer que o animal possui a faculdade de generalizar.

  De facto, o orangotango, aqui, concluía de si para outrem: mais de uma vez, o abalo violento dos corpos, em que se apoiara, tê-lo-ia espavorido, levando-o a concluir que este mesmo medo atingiria a outrem, ou – para melhor dizer com Cuvier – “de uma circunstância particular ele fazia uma regra geral”.

  Flourens cita o exemplo de um curioso indício de inteligência, observado no Jardim Zoológico. Julgado excessivo o número de ursos lá existentes, foi resolvida a eliminação de dois exemplares. O veneno seria o ácido prússico, ministrado em pequenos bolos. À vista dos bolos, os animais logo se ergueram nas patas traseiras, abrindo a boca, na qual conseguiram atirar alguns bolos. Entretanto, logo rejeitaram o manjar e se puseram em fuga. Dir-se-ia que não seriam mais tentados a tocar na iguaria e, contudo, ei-los a empurrar com as patas os bolos para dentro do tanque e, depois de muito revolverem a água, iam comendo os bolos, à medida que o veneno se evaporava. Em o fazerem assim, impunemente demonstraram uma sagacidade que lhes granjeou a revogação da sentença.

  Plutarco afirma ter visto um cão atirar pedrinhas dentro de uma talha, não completamente cheia de óleo, admirando-se de como o cão pudesse induzir que o peso das pedras haveria de fazer subir e transbordar o conteúdo.

  Buffon escreveu belas páginas sobre a inteligência do cão, mas não lhe interpretou o alto valor. Há, nos fastos da espécie canina, exemplos de inteligência, habilidade raciocínio, julgamento, e também de afeição, devotamento, bondade e reconhecimento, dignos de serem apontados como modelo a uma grande parte do género humano.

  Poder-se-ia escrever uma série de volumes e nem assim se esgotaria o acervo de factos comprobatórios da inteligência animal, notadamente do cão. De resto, os adversários estão connosco em admitir estes factos. Citemos aqui o exemplo interessante de uma deliberação de andorinha, contado pelo autor de Força e Matéria. Um casal de andorinhas tinha começado a construir o ninho na cumeeira de uma casa. Um dia, entra por lá um bando de companheiras e travam longa discussão pela posse do ninho. Reunidas no forro da casa e não longe do ninho disputado, fizeram uma algazarra infernal. Depois de algum tempo, enquanto algumas andorinhas se destacavam para inspeccionar o ninho, se dissolveu a assembleia e o resultado foi o casal abandonar o ninho começado, entrando logo a construir outro em lugar quiçá mais adequado.”

  Um facto ainda mais notável veio à baila recentemente. Nos arredores de uma granja de Weddendorg, perto de Magdebourg, as cegonhas, após sério debate, julgaram uma companheira adúltera. Mataram-na às bicadas e atiraram-na fora do ninho (*).

  Agassiz, mais que ninguém, exalta as faculdades intelectuais dos animais. Depois de mostrar as dificuldades que ainda não permitem estabelecer uma comparação científica entre instintos e faculdades humanas e animais, emite ele as seguintes ideias: – “O desenvolvimento das paixões é tão extenso no animal quanto no homem e, eu me encontraria seriamente embaraçado para lhes apreender diferenças específicas, naturais, ainda que as haja e, grandes, no graduamento das manifestações e na forma de expressão. Ao demais, a gradação das faculdades morais entre os animais e o homem é tão imperceptível, que, recusar aos primeiros um certo sentimento de responsabilidade e consciência fora, certo, exagerar a diferença. Além disso, há neles, limitadas às suas respectivas capacidades, individualidades tão definidas como no homem. Os criadores de cavalos, os guardadores de animais, pastores, etc., aí estão para confirmá-lo.

  E aí temos argumentos dos mais fortes a favor da existência de um princípio imaterial em todos os animais análogo ao que, por excelência e faculdades superiores, coloca o homem em plano eminente. A maior parte dos argumentos filosóficos em prol da imortalidade do homem aplica-se, igualmente, à indestrutibilidade desse princípio nos outros seres vivos (**).

  Quem se atreveria hoje a pôr em dúvida a inteligência animal? Só um tímido espírito de sistema, temeroso das consequências desta verdade, em relação a umas tantas crenças, pode fechar os olhos à evidência. A nós, cumpria-nos constatar, antes de tudo, esta verdade, a fim de mais livremente podermos falar do instinto e derrocar a argumentação dos que presumem que o instinto não existe.

  Há, certamente, uma grande diferença entre actos instintivos e actos racionais. Não que esses dois caracteres da força viva se encontrem isolados (nada o está na Natureza), mas por não se encontrarem na mesma graduação e não se poderem confundir. Não devemos insistir, maioritariamente aqui, a respeito dos factos de ordem intelectual. Vamos, porém, compará-los aos factos inerentes ao domínio do instinto e que revelam existir uma providência universal presidindo à vida em geral e que não explicam de modo algum, pela instrução, o raciocínio ou o julgamento nos animais em que se deparam.

  Chama-se instinto ao conjunto das directivas que impelem o animal, obedecendo a uma necessidade constante. O instinto é inato, actua à revelia da instrução, inexperiente e invariavelmente e, não realiza progresso algum. É em tudo a antítese da inteligência. Tanto mais notáveis são os fenómenos do instinto quanto mais se afirmam inteiramente involuntários. “Não podemos fazer uma ideia nítida do instinto – dizia Georges Cuvier – senão admitindo que os animais sejam submetidos a imagens ou sensações inatas constantes, que os obrigam a proceder como levados por sensações acidentais. É uma espécie de sonho ou visão que os persegue incessante e, em tudo que se reporta ao instinto, podemos julgar os animais assim uma espécie de sonâmbulos.”

  Frédéric Cuvier consagrou parte da vida a descobrir a linha que separa o instinto da inteligência. Pode dizer-se, sem paradoxo, que não há linhas divisórias na Natureza. Aqui, porém, não se trata de metafísica. Contentemo-nos, assim, em ouvir o que diz o Sr. Flourens, das laboriosas observações do esforçado naturalista.

  O castor é um mamífero da ordem dos roedores, isto é, da ordem menos inteligente, e, contudo, possui um instinto maravilhoso, qual o de construir uma cabana sobre a água, com calçadas e diques e, tudo à mercê de uma indústria que demandaria inteligência elevadíssima, se de inteligência dependesse.

  O essencial, portanto, fora provar essa independência e foi isso o que fez F. Cuvier. Com castores muito novos, educados longe de seus pares e, por conseguinte, nada havendo com eles ou deles aprendido. Esses castores, assim isolados, solitários, postos numa jaula expressamente destinada à experiência e de forma a dispensá-los do seu trabalho peculiar construtivo, não se cobriram de o realizar, impelidos por uma força maquinal cega, ou seja um puro instinto.

  A mais completa antítese separa o instinto da inteligência. No instinto tudo é cego, necessário, invariável; na inteligência é tudo elevado, condicional, modificável. O castor que constrói uma cabana, o pássaro que constrói um ninho, só o fazem por instinto. O cão e o cavalo, que chegam a compreender o sentido de algumas palavras e nos obedecem, o fazem por inteligência.

  No instinto é tudo inato: o castor constrói sem haver aprendido. Dir-se-ia que o faz por uma fatalidade, dirigido por uma força constante e incoercível.

  Na inteligência é tudo resultado da experiência e da instrução: o cão obedece quando ensinado. E aí tudo é livre, o cão obedece porque quer.

  Finalmente, tudo no instinto é particular; essa indústria admirável que o castor utiliza ao construir a cabana não pode ele utilizá-la senão com esse fim; ao passo que, na inteligência, tudo se generaliza, uma vez que essa mesma maleabilidade de atenção e de concepção do cavalo e do cachorro pode aproveitar-lhes para fazer diversas coisas.

  Distinção que se impunha, esta. Na história da Natureza importa reconhecer em cada qual o que lhe pertence e exactamente o que lhe pertence, sem restrição sistemática, sem prevenção tendenciosa. Descartes e Buffon (este contraditório, às vezes) negam aos animais qualquer partícula de inteligência. Condillac e G. Leroy, ao contrário, chegam a conceder-lhes operações intelectuais das mais elevadas. É um erro duplo. Os animais não são plantas nem são homens. Weinband não tem razão em pretender que isso que designamos como instinto não passa de “indolência do espírito para livrar-se dos penosos esforços que o estado da alma animal reclama”. Não a tem, tampouco, Sachus, quando adita que “não há necessidade imediata, resultante da organização intelectual, nem pendores cegos e arbitrários que impulsem os animais”. Não hesitamos em reconhecer que esta questão, como todos os grandes problemas da Natureza, é difícil de resolver. Pensamos que, no seu estudo, como de resto noutras questões sucede, o homem se tem protegido mais com palavras que com ideias. Quando não se compreende o acto inteligente de um animal, é comum ligar-se ao embaraço, utilizando a palavra instinto, assim como um véu lançado ao objecto que se quer examinar; mas, à parte este processo ilusório, restam factos que não são certamente resultado de reflexão, nem de julgamento. Em vão o Sr. Darwin, e com ele Lamarck, afirmam que o instinto é um hábito hereditário. Esta explicação não transfere o instinto para os domínios da inteligência e, ainda menos, para os domínios do materialismo puro. Tampouco está demonstrado seja o instinto um hábito hereditário. Consideremos essas borboletas que vivem no ar e que, chegando à terceira fase da sua maravilhosa existência, se entreabrem aos beijos da luz e aos eflúvios do amor.

  Célere, depositarão em círculos concêntricos minúsculos ovos brancos, sobre talos ou folhas. Esses ovos não vingarão antes da próxima estação, quando surgem as pequenas lagartas e, isso depois de transcorridos muitos dias, quando as borboletas já dormem na poeira o sono da morte. Que voz teria ensinado a estas novas borboletas que as futuras lagartas, ao desovarem, hão de encontrar tal ou tal alimentação? Quem lhes aponta os talos e as folhas em que hajam de depositar os seus ovos? Os pais? Mas, se os não conhecem? Será, então, das folhas e talos que lhes advém a memória?

  Que memória, porém, se elas viveram três existências após essa época longínqua e substituíram os alimentos inferiores pelo manjar delicado das corolas olentes? Eis aqui, porém, outras espécies que protestam, ainda mais vivamente, contra as explicações humanas. Os necróforos (nome lúgubre) morrem imediatamente após a postura e as gerações jamais se conhecem. Nenhum ser desta espécie viu a mãe nem verá os filhos e, contudo, as mães têm grande cuidado em dispor cadáveres ao lado dos ovos, para que aos filhos não falte alimento logo ao nascer. Em que parte aprenderam esses necróforos que os seus ovos contêm germe de insectos que em tudo se lhes assemelham? Há outras espécies nas quais o regime alimentar é inteiramente oposto, para a larva e para o insecto. Nos pompilídeos as mães são herbívoras e os filhos carnívoros. Em fazerem a postura sobre cadáveres, contrariam os próprios hábitos. E aqui não colhe admitir o acaso, nem o hábito lentamente adquirido. Qualquer espécie que aberrasse desta lei não poderia subsistir, visto que os rebentos morreriam de fome logo após o nascimento. A estes insectos podemos juntar os odíneros e os sphex. As larvas destes últimos são carnívoras e o ninho precisa ser provido de carne fresca. Para preencher essa condição, a fêmea que vai desovar busca uma presa conveniente, tendo o cuidado de não a matar, limitando-se a feri-la de paralisia irremediável. Coloca, depois, sobre cada ovo um certo número desses enfermos incapazes de se defenderem da larva que os há de devorar, mas com vida bastante para que o corpo não se corrompa. Em algumas famílias acresce o cuidado pela alimentação da presa, até à eclosão da larva.

  Os nossos elementos de argumentação, neste particular, são tão numerosos que seria impossível reuni-los a todos. Limitamo-nos, assim, a citar alguns exemplos, convidando o leitor a tirar da letra o espírito. Entre estes exemplos, incluamos o da abelha xilófaga, com a qual o Sr. Milne-Edwards entreteve recentemente, na Sorbonne, a curiosidade dos seus ouvintes.

  Essa abelha que vemos adejar na Primavera, que vive solitária e pouco sobrevive à postura, não viu nunca os genitores e não viverá o tempo suficiente para assistir ao nascimento das pequeninas larvas vermiformes, desprovidas de patas e incapazes, não só de se protegerem, como de angariar alimento. E, contudo, elas precisam permanecer em repouso cerca de um ano, numa habitação bem fechada, sob pena de se extinguir a espécie.

  Como, então, supor que a abelha gestante, antes de pôr o primeiro ovo, tenha podido adivinhar as necessidades da prole futura e o que deve fazer para lhe assegurar o bem-estar? Tivesse ela em partilha a inteligência humana e, nada soubera a tal respeito, visto que todo o raciocínio requer premissas. Este insecto, que nada pôde aprender, tudo prepara e opera sem hesitação, como se o futuro lhe estivera devassado e uma previdência racional a norteasse. Apenas lhe despontam as asas e logo a xilófaga trata de preparar a casa dos filhos. Com as mandíbulas, broca um tronco de madeira exposto ao Sol, escava uma longa galeria e vai depois buscar, longe, no pólen das flores, o néctar açucarado. É o cibo do recém-nascido e que lhe há de bastar, o “quantum satis”, para bem-viver até à Primavera próxima.

  Uma vez provida a despensa, aí deposita o ovo e ei-la amalgamando com terra a serragem prudentemente guardada e fazendo como que uma argamassa, de maneira que o leito dessa primeira cela se transforme em tecto de uma segunda despensa e berço da larva a nascer de outro ovo. Assim se constrói um edifício de alguns andares, no qual cada alojamento recolhe um ovo e servirá, mais tarde, à larva desse ovo.

  “Admira – diz Edwards – como diante de factos tão significativos e numerosos ainda haja quem nos venha dizer que todas as maravilhas da Natureza não passam de obras do acaso ou, então, de consequências das propriedades gerais da matéria; desta Natureza que faz a substância da pedra como da madeira e que os instintos da abelha, assim como as mais altas expressões da genialidade humana, não são mais que resultado de um jogo de forças físicas ou químicas, as mesmas que determinam o congelamento da água, a combustão do carvão e a queda dos corpos... Essas hipóteses balofas, ou melhor, essas aberrações do espírito, que se mascaram, às vezes, com o nome de ciência positiva, só podem ser repelidas pela verdadeira Ciência. O naturalista não poderia acreditá-lo.

  “Por pouco que penetremos num desses obscuros redutos onde se esconde o débil insecto, nele ouvimos distintamente a voz da Providência ditando às criaturas a sua conduta diária.”

  Em todas as províncias da vida – acrescentamos nós – a mão do Criador inteligente e previdente se revela aos olhos que sabem verdadeiramente ver. E sempre que a dúvida nos perturbe, nada melhor se nos impõe que o estudo acurado da Natureza, porquanto todos os que tiverem consigo o sentimento do belo e do verdadeiro, perante o espectáculo maravilhoso da Criação, logo terão dissipadas as nuvens qual floração de luz.

/…
(*) Temos numerosos documentos comprobatórios da inteligência dos animais. Aqui, porém, não nos podemos alongar no assunto. Ao exemplo precedente, acrescentemos que a dar crédito a uns tantos barqueiros ingleses, chamados “panters”, os patos selvagens fazem reuniões parlamentares e votam. Estes, como todos os animais, têm expressões próprias para traduzir alegria, dor, fome, amor, medo, ciúme, etc. Esses termos variam, conforme as espécies. Antes da revoada matinal, uma discussão muito viva se empenha durante dez a vinte minutos, e só depois de assente uma resolução é que se opera a debandada. Conta-se, também, que uma ave, tombada num choque, apelou a seu modo para uma outra, que, procurando alentá-la, ficou a seu lado por uma hora mais ou menos, até que a outra morresse. Segundo E. W. Gruner, os gansos têm inflexões e tonalidades vocais muito variadas. O cão alegre late de modo muito diverso de quando está raivoso. A linguagem mímica e sónica dos insectos (abelhas, formigas, escaravelhos, etc.), por meio das antenas e movimentos de asas, é, como sabemos, muito rica e variada. Não iremos ao extremo de os traduzir em francês com Dupont de Nemours, mas a verdade é que se não pode negar que os animais se permutem nas suas impressões. Eles têm mesmo, sobre nós, o privilégio de compreender as nossas palavras, ao passo que nós não compreendemos as suas. Mais: compreendem-se em qualquer latitude, ao passo que um francês não compreende um alemão, nem um chinês.
(**) Contribuitions to the Natural History of the United States of North America volume 1 – 1ª parte.

(Referências: – Leis que presidem à conservação das espécies. – Faculdades instintivas especiais. – Não se explica o instinto pela suposição de hábitos hereditários. – Distinção fundamental entre os factos instintivos e os racionais. – Desígnio nas obras da Natureza. – Ordem geral e as harmonias universais. – Qual a distinção geral do mundo? – Magnitude do problema. – Insuficiência da razão humana.)


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Quarta Parte (4); O Destino dos Seres e das Coisas, (2) Plano da Natureza, O Instinto e a Inteligência (1 de 3), 34º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)

quarta-feira, 31 de maio de 2023

o problema do | ser


(Quem sou... o que faço aqui... de onde vim... para onde vou...) 

A alma e os diferentes estados do sono 

O estudo do sono fornece-nos indicações de grande importância sobre a natureza da personalidade. Em geral não se aprofunda muito o mistério do sono. O exame atento desse fenómeno, o estudo da alma e da sua forma fluídica durante a parte da existência que consagramos ao descanso, conduzir-nos-ão a uma compreensão mais alta das condições do ser na vida do Além. 

O sono possui não só propriedades restauradoras que a Ciência não pôs em devido relevo, mas também um poder de coordenação e centralização sobre o organismo material. Pode, além disso, acabamos de o ver, provocar uma ampliação considerável das percepções psíquicas, maior intensidade do raciocínio e da memória. 

O que é então o sono? 

É simplesmente o desprendimento da alma, que sai do corpo. Diz-se: o sono é irmão da morte. Estas palavras exprimem uma verdade profunda. Sequestrada na carne no estado de vigília, a alma recupera, durante o sono, a sua liberdade relativa, temporária e, ao mesmo tempo o uso dos seus poderes ocultos. A morte será a sua libertação completa, definitiva. 

Já nos sonhos, vemos os sentidos da alma, esses sentidos psíquicos, dos quais os do corpo são a manifestação externa e amortecida, entrar em acção. (ii) À medida que as percepções externas se enfraquecem e apagam, quando os olhos estão fechados e suspenso o ouvido, outros meios mais poderosos despertam nas profundezas do ser. Vemos e ouvimos com os sentidos internos. Imagens, formas, cenas à distância sucederem-se e desenrolarem-se; travarem-se conversas com pessoas vivas ou falecidas. Esse movimento, muitas vezes incoerente e confuso no sono natural, adquire precisão e aumenta com o desprendimento da alma no sono provocado, no transe de sonambulismo (i) e no êxtase. 

Às vezes, a alma afasta-se durante o descanso do corpo e são as impressões das suas viagens, o resultado das suas indagações, das suas observações, que se traduzem pelo sonho. Nesse estado, um laço fluídico ainda a liga ao organismo material e, por esse vínculo subtil, espécie de fio condutor, as impressões e as vontades da alma podem transmitir-se ao cérebro. É pelo mesmo processo que, nas outras formas do sono, a alma governa o seu invólucro terrestre, o fiscaliza e dirige. Essa direcção, no estado de vigília, durante a incorporação, exercita-se de dentro para fora; efectuar-se-á em sentido inverso nos diferentes estados de desprendimento. A alma, emancipada, continuará a influenciar o corpo mediante o laço fluídico que continuamente liga um à outra. Desde este momento, com o seu poder psíquico reconstituído, a alma exercerá sobre o organismo carnal uma direcção mais eficaz e segura. Os sonâmbulos andam à noite, por caminhos perigosos e com inteira segurança; é uma demonstração evidente desse facto. 

Sucede o mesmo com a acção terapêutica provocada pela sugestão. Esta é eficaz, principalmente no sentido de facilitar o desprendimento da alma e dar-lhe o poder absoluto de fiscalização, a liberdade necessária para dirigir a força vital acumulada no perispírito e, por esse meio, restaurar as perdas sofridas pelo corpo físico. (iii) Comprovamos esse facto nos casos de personalidade dupla. A segunda personalidade, mais completa, mais integral que a personalidade normal, substitui-a para um fim curativo, por meio de uma sugestão exterior, aceite e transformada em auto-sugestão pelo Espírito do sujet. Com efeito, este nunca abandona os seus direitos e poderes de fiscalização. Assim, como disse Myers, “não é a ordem do hipnotizador, mas antes a faculdade do paciente que forma o nó da questão”. (iv) 

O sábio professor de Cambridge disse mais: (v) 

“O único fim de todos os processos hipnogénicos é dar energia à vida; é atingir mais rápida e completamente resultados que a vida abandonada a si mesma só realiza lentamente e de forma incompleta.” 

Por outras palavras, o hipnotismo é a aplicação, num grau mais intenso, das energias reparadoras que entram em acção no sono natural. A sugestão terapêutica é a arte de libertar o Espírito do corpo, de abrir-lhe uma saída pelo sono permitindo-lhe que exerça em plenitude os seus poderes sobre o corpo doente. As pessoas sugestionáveis são aquelas cujas almas indolentes ou que pouco têm evolvido não estão aptas para se desprenderem por si mesmas e agir utilmente no sono ordinário para restaurar as perdas do organismo. 

A sugestão em si mesma não é, pois, mais do que um pensamento, um acto de vontade, diferindo somente da vontade ordinária pela sua concentração e intensidade. Em geral, os nossos pensamentos são múltiplos e hesitantes. Nascem e passam ou, então, quando coexistam em nós, chocam-se e se confundem. Na sugestão, o pensamento e a vontade fixam-se num ponto único. Ganham em poder o que perdem em extensão. Por sua acção, que se torna mais penetrante, mais incisiva, provocam no sujet o despertar de faculdades não utilizadas no estado normal. A sugestão torna-se, então, uma espécie de impulso, de alavanca que mobiliza a força vital e a dirige para o ponto onde ela tem de operar. 

A sugestão pode exercer-se tanto na ordem física, por uma influência directa sobre o sistema nervoso, quanto na ordem moral, sobre o “eu” central e a consciência do sujet. Bem empregada, constitui ela um meio muito apreciável de educação, destruindo as más tendências e os hábitos perniciosos. A sua influência sobre o carácter produz, então, os mais felizes resultados. (vi) 

Voltemos ao sono ordinário e ao sonho. Enquanto o desprendimento da alma é incompleto, as sensações, as preocupações da vigília e as recordações do passado se misturam com as impressões da noite. As percepções registadas pelo cérebro desenrolam-se automaticamente, em desordem aparente, quando a atenção da alma está desviada do corpo e deixa de regular as vibrações cerebrais. Daí a incoerência da maior parte dos sonhos; mas, à medida que a alma se desprende e se eleva, a acção dos sentidos psíquicos torna-se predominante e os sonhos adquirem lucidez e nitidez notáveis. Clareiras cada vez mais amplas, melhores perspectivas se abrem no mundo espiritual, verdadeiro domínio da alma e lugar do seu destino. Nesse estado ela pode penetrar as coisas ocultas e até os pensamentos e os sentimentos de outros Espíritos. (vii) 

Há em nós uma dupla vista, pela qual pertencemos, ao mesmo tempo, a dois mundos, a dois planos de existência. Uma está em relação com o tempo e o espaço, como nós os concebemos no nosso meio planetário com os sentidos do corpo: é a vida material; a outra, mediante os sentidos profundos e as faculdades da alma, liga-nos ao universo espiritual e aos mundos infinitos. No decurso da nossa existência terrestre, é principalmente quando dormimos que essas faculdades podem exercer-se e entrar em vibração as potências da alma. Esta torna a pôr-se em contacto com o universo invisível, que é a sua pátria e do qual estava separada pela carne. Retempera-se no seio das energias eternas para continuar, quando desperta, a sua tarefa penosa e obscura. 

Durante o sono a alma pode, segundo as necessidades do momento, aplicar-se a reparar as perdas vitais causadas pelo trabalho quotidiano e regenerar o organismo adormecido, infundindo-lhe as forças tiradas do mundo cósmico, ou, quando está acabado esse movimento reparador, continua o curso da sua vida superior, paira sobre a Natureza, exercer as suas faculdades de visão à distância e penetração das coisas. Nesse estado de actividade independente vive já antecipadamente a vida livre do Espírito; porque essa vida, que é uma continuação natural da existência planetária, a espera depois da morte, devendo a alma prepará-la não somente com as suas obras terrestres, mas também com as suas ocupações quando desprendida durante o sono. É graças ao reflexo da luz do Alto, que cintila nos nossos sonhos e ilumina completamente o lado oculto do destino, que podemos entrever as condições do ser no Além. 

Se nos fosse possível abranger com o olhar toda a extensão de nossa existência, reconheceríamos que o estado de vigília está longe de lhe constituir a fase essencial, o elemento mais importante. As almas que de nós cuidam servem-se do nosso sono para nos exercitar na vida fluídica e no desenvolvimento dos nossos sentidos de intuição. Efectua-se, então, um trabalho completo de iniciação para os homens ávidos de se elevarem. 

Os vestígios desse trabalho encontram-se nos sonhos. Assim, quando voamos, quando deslizamos com rapidez pela superfície do solo, significa isso a sensação do corpo fluídico, ensaiando-se para a vida superior. 

Sonhar que subimos sem cansaço, com facilidade surpreendente, através do espaço, sem embaraço nem medo, ou então que estamos pairando por cima das águas; atravessar paredes e outros obstáculos materiais sem ficarmos admirados de praticar actos que são impossíveis enquanto estamos acordados, não é a prova de que nos tornamos fluídicos pelo desprendimento? Tais sensações, tais imagens, que comportam completa inversão das leis físicas que regem a vida comum, não poderiam vir ao nosso espírito, se não fossem o resultado de uma transformação do nosso modo da existência. 

Na realidade, já não se trata aqui de sonhos, mas de acções reais praticadas noutro domínio da sensação e cuja lembrança se insinuou na memória cerebral. Essas lembranças e impressões no-lo demonstram bem. Possuímos dois corpos e, a alma, sede da consciência, fica ligada ao seu invólucro subtil, enquanto o corpo material está deitado e em completa inércia. 

Apontemos, todavia, uma dificuldade. Quanto mais a alma se afasta do corpo e penetra nas regiões etéreas, tanto mais fraco é o laço que os une, tanto mais vaga a lembrança ao acordar. A alma paira muito longe na imensidade e o cérebro deixa de registar as suas sensações. Daí resulta não podermos analisar os nossos mais belos sonhos. Algumas vezes, a última das impressões sentidas no decurso dessas peregrinações nocturnas subsiste ao despertar. 

E se, nesse momento, tivermos o cuidado de fixá-la fortemente na memória, pode ficar lá gravada. Tive, uma noite, a sensação de vibrações percebidas no espaço, as últimas notas de uma melodia suave e penetrante e, a lembrança das derradeiras palavras de um cântico que findava assim: “Há céus inumeráveis!” 

Às vezes sentimos, ao acordar, a vaga impressão de poderosas coisas entrevistas, sem nenhuma lembrança determinada. Essa espécie de intuição, resultante de percepções registadas na consciência profunda, mas não na consciência cerebral, persiste em nós durante certo tempo e influencia os nossos actos. Outras vezes, essas impressões se traduzem nitidamente no sonho. Eis o que a respeito diz Myers(viii) 

“O resultado permanente de um sonho é muitas vezes de tal ordem que nos mostra claramente que o sonho não é o efeito de uma simples confusão com lembranças avivadas da vida passada, mas que possui um poder inexplicável que lhe é próprio e que ele tira, semelhante nisso à sugestão hipnótica, das profundezas da nossa existência, a que a vida de vigília é incapaz de chegar. Desse género, dois grupos de casos há que, pela clareza com que se patenteiam, facilmente podem ser reconhecidos; um deles, principalmente, em que o sonho acabou por uma transformação religiosa decidida e, o outro em que o sonho foi o ponto de partida de uma ideia obsidente (i) ou de um acesso de verdadeira loucura." 

Esses fenómenos poderiam explicar-se pela comunicação, no sonho, da consciência superior com a consciência normal, ou pela intervenção de alguma Inteligência elevada que julga, reprova, condena o proceder do sonhador, lhe ocasionando perturbação e um salutar receio. A obsessão pode também exercer-se por meio do sonho até ao ponto de causar perturbação mental ao despertar. Terá como autores Espíritos malfazejos, a quem o nosso procedimento no passado e os danos que lhes causamos deram domínio sobre nós. 

Insistimos também na propriedade misteriosa que tem o sono de nos fazer senhores, em certos casos, de camadas mais extensas da memória. 

A memória normal é precária e restrita, não vai além do círculo estreito da vida presente, do conjunto dos factos, cujo conhecimento é indispensável à causa do papel que se tem de desempenhar na Terra e do fim que se deve alcançar. A memória profunda abrange toda a história do ser desde a sua origem, os seus estádios sucessivos, os seus modos de existência, planetários ou celestes. Um passado inteiro, feito de recordações e sensações, esquecido, ignorado no estado de vigília, está gravado em nós. Esse passado só desperta quando o Espírito se exterioriza durante o sono natural ou provocado. Uma regra conhecida de todos os experimentadores é que, nos diferentes estados do sono, à medida que se vai ficando a maior distância do estado de vigília e da memória normal, tanto mais a hipnose é profunda, tanto mais se acentua a expansão, a dilatação da memória. Myers confirma o facto nos seguintes termos: (ix) 

“A memória mais distanciada da vida de vigília é a que mais vasto alcance tem, é a que mais profundo poder exerce sobre as impressões acumuladas no organismo. Por mais inexplicável que esse fenómeno se tenha apresentado aos observadores, que com ele se depararam sem possuírem a decifração do enigma, é certo que as observações independentes de centenas de médicos e de hipnotizadores (i) atestam a sua realidade. O exemplo mais comum é fornecido pelo sono hipnótico ordinário. O grau de inteligência que se manifesta no sono varia segundo os sujets e as épocas; mas todas as vezes que esse grau é suficiente para autorizar um juízo, achamos que existe durante o sono hipnótico a memória considerável, que não é necessariamente uma memória completa ou razoável do estado de vigília; ao passo que na maior parte dos sujets acordados, salvo o caso de uma injunção especial dirigida ao “eu” hipnótico, nenhuma lembrança existe que se relacione com o estado de sono. 

O sono ordinário pode ser considerado como ocupando uma posição que está entre a vida acordada e o sono hipnótico profundo; e parece provável que a memória pertencente ao sono ordinário se liga, por um lado, à que pertence à vida de vigília e, pelo outro, à que existe no sono hipnótico. Realmente assim é, estando os fragmentos da memória do sono ordinário intercalados nas duas cadeias.” 

Myers, no apoio às suas palavras, cita (x) vários casos em que factos retrospectivos esquecidos e, outros dos quais o que dorme nunca teve conhecimento, se revelam no sonho. 

As experiências a que se refere Myers (vê-las-emos quando tratarmos da questão das reencarnações (i)) que foram levadas muito mais longe do que ele previa e, as consequências que daí provêm são imensas. Não só tem sido possível, pela sugestão hipnótica, reconstituir as menores recordações da vida actual, desaparecidas da memória normal dos sujets, como também reatar o encadeamento das suas vidas passadas, já interrompido. 

Ao mesmo tempo em que uma memória mais vasta e mais rica, vemos aparecer no sono faculdades que são muito superiores a todas as que desfrutamos no estado de vigília. Problemas estudados em vão, abandonados como insolúveis, são resolvidos no sonho ou no sonambulismo; obras geniais, operações estéticas da ordem mais elevada, poemas, sinfonias e hinos fúnebres são concebidos e executados. Há em tudo isso uma obra exclusiva do “eu” superior ou a colaboração de entidades espirituais que vêm inspirar os nossos trabalhos? É provável que esses dois factores intervenham nos fenómenos dessa ordem. 

Myers cita o caso de Agassiz (i) descobrindo, enquanto dormia, o arranjo esquelético de ossadas dispersas que ele tentara, por várias vezes e sem resultado, acertar durante a vigília. 

Lembraremos os casos de Voltaire (i), La Fontaine (i), Coleridge (i), S.Bach (i), Tartini (i), etc., executando obras importantes em condições análogas. (xi) 

Finalmente, importa mencionar uma forma de sonhos cuja explicação escapou até agora a Ciência. São os sonhos premonitórios, complexo de imagens e visões que se referem a acontecimentos futuros e cuja exactidão é ulteriormente verificada. Parecem indicar que a alma tem o poder de penetrar o futuro ou que este lhe é revelado por inteligências superiores. 

Assinalemos o sonho da Duquesa de Hamilton, que viu com antecipação de quinze dias a morte do Conde de L... com particularidades de natureza íntima que acompanharam esse acontecimento. (xii) 

Um facto da mesma natureza foi publicado pelo Progressive Thinker de Chicago, a 1 de novembro de 1913. Um magistrado de Hauser, M. Reed, morreu imediatamente, em consequência de uma guinada do automóvel em que viajava. O seu filho, de 10 anos de idade, tinha tido, por duas vezes seguidas, a visão dessa catástrofe em todos os seus pormenores. Apesar dos avisos e das súplicas de sua mulher, M. Reed achou que não devia renunciar ao projectado passeio, em que veio a encontrar a morte, nas circunstâncias idênticas às percebidas no sonho da criança. 

M. Henri de Parville, no seu folhetim científico do Journal des Débats (maio de 1904) refere um, caso afiançado por testemunhos dignos de fé: 

“Uma senhora, cujo marido desapareceu sem deixar vestígios e que ela não pôde descobrir apesar de todas as pesquisas a que procedeu, teve um sonho. – Um cãozinho, que por muito tempo havia vivido na sua companhia, mas que o marido levara, aparece-lhe, dá latidos de alegria e cobre-a de carícias. Instala-se-lhe ao pé, não tira os olhos dela; depois, passados uns instantes, levanta-se e começa a arranhar a porta. Está feita a sua visita e precisa ir-se embora. Ela abre-lhe a porta e, no sonho, segue o animal, que se afasta, correndo; corre também atrás dele e, passado algum tempo, o vê entrar numa casa, cujo andar térreo é ocupado por um café. A rua, a casa e o bairro gravam-se-lhe na memória, que conserva a recordação de tudo isso depois de acordada. Preocupada com esse sonho, conta-o a três pessoas da vizinhança, que depois deram testemunho da autenticidade dos factos. – Decide-se, finalmente, a seguir a pista do cão e encontra o marido na rua e na casa que vira em sonho.” 

Os Annales des Sciences Psychiques, de julho de 1905, citava dois sonhos premonitórios acompanhados de circunstâncias que lhe dão carácter muito comovente. 

Encontramos na Revue de Psychologie de la Suisse Romande, 1905, pág. 379, o caso de um mancebo que se via muitas vezes a si mesmo numa alucinação autoscópica, precipitado do cimo de um rochedo e estendido, ensanguentado e esmagado, no fundo de um barranco. Essa premonição fatal realizou-se, ponto por ponto, a 10 de julho de 1904, no monte du Salève, perto de Genebra. 

Na proporção que nos vamos elevando na ordem dos fenómenos psíquicos, se vão eles apresentando com maior clareza, com maior rigor e trazem-nos provas mais decisivas da independência e da sobrevivência do Espírito. 

As percepções da alma no sono são de duas espécies. Verificamos primeiramente a visão à distância, a clarividência, a lucidez; vem depois um conjunto de fenómenos designados pelos nomes de telepatia e telestesia (sensações e simpatias à distância). Compreende a recepção e transmissão dos pensamentos, das sensações, dos impulsos motrizes. Com estes factos se relacionam os casos de desdobramentos e aparições designados pelos nomes de fantasmas dos vivos. A psicologia oficial teve de verificar estes casos em grande número, sem os explicar. (xiii) Todos estes factos se ligam entre si e formam uma cadeia contínua. Em princípio, constituem, no fundo, um só e o mesmo fenómeno, variável na forma e intensidade, isto é, o desprendimento gradual da alma. Vamos seguir esse desprendimento nas suas diversas fases, desde o despertar dos sentidos psíquicos e das suas manifestações em todos os graus até à projecção, à distância, de todo o Espírito, alma e corpo fluídico. 

Examinemos primeiramente os casos em que a visão psíquica se exerce com agudeza notável. Citamos alguns nas nossas obras precedentes. Aqui apresentamos um, mais recente, publicado por toda a imprensa londrina. 

O desaparecimento da Srta. Holland, processo criminal que apaixonou a Inglaterra, foi explicado por um sonho. A polícia a procurava inutilmente. O acusado, Samuel Douglas, que estava para ser solto, dizia que ela havia partido para destino desconhecido. Os jornais de Londres publicaram desenhos que representavam a casa em que morava a Srta. Holland e o jardim da mesma casa. Uma criada viu a gravura e exclamou: “Aí está o meu sonho!” e, indicou um lugar, ao pé de uma árvore, dizendo: “Está ali um cadáver!” Soube-o a polícia e, na presença dos agentes, ela confirmou as suas declarações. Explicou que vira em sonho esse jardim e, no solo, no lugar indicado, um corpo enterrado. A polícia mandou escavar o terreno nesse lugar e nele foi encontrado o cadáver da Srta. Holland. Ficou provado que a criada nunca conhecera essa pessoa nem pusera os pés nesse jardim. 

C. Flammarion, na sua obra O Desconhecido e os Problemas Psíquicos, menciona uma série completa de visões directas, à distância, durante o sono, resultante de um inquérito feito na França sobre os fenómenos dessa ordem. 

Vamos referir um caso mais complicado. Os Annales des Sciences Psychiques, de Paris, setembro de 1905 (pág. 551), contêm a relação circunstanciada e autenticada pelas autoridades legais de Castel di Sangro (Itália), de um sonho macabro, colectivo e verídico: 

“O guarda rural do Barão Raphaël Corrado viu em sonho, na noite de 3 de março último, o seu pai, falecido havia dez anos. Censurando-o, a ele, aos irmãos e às irmãs, terem-no esquecido e, coisa mais grave, deixarem os seus pobres ossos desenterrados pelos coveiros, abandonados sobre a neve, por trás da torre do cemitério, à mercê dos lobos. Uma irmã do guarda sonhou exactamente a mesma coisa, e um irmão, muito impressionado, pegou numa espingarda e, não obstante a tempestade de neve que atormentava a região, se dirigiu para o cemitério, situado num monte que dominava a cidade. Aí, por trás da torre, entre as silvas e por cima da neve, em que havia sinais de patas de lobo, viu ossos humanos.” 

Os Annales dão depois a narrativa circunstanciada do inquérito e das pesquisas feitas pelo juiz de paz. Estabelecem que os ossos eram, na realidade, os do pai do guarda, que os coveiros, terminado o prazo legal, haviam exumado. Iam eles transportá-los para o ossário, à noitinha, quando o frio e a neve os obrigaram a deixar o serviço para o dia seguinte. Os documentos relativos a esse caso, que foi objecto de um processo, estão assinados pelo tabelião, pelo juiz de paz e por um magistrado da localidade. Foram publicadas pelo Eco del Sangro, de 15 de março de 1905. 

O Prof. Newbold, da Universidade da Pensilvânia, relata nos Proceedings of S. P. R., XII, pág. 11, vários exemplos de sonhos, que indicam uma grande actividade da alma durante o sono e dão ensinamentos que vêm do mundo invisível. Entre outros, citaremos o do Dr. Hilprecht, professor de língua assíria na mesma Universidade, que num sonho teve a revelação de uma inscrição antiga, que até então não havia descoberto. Num sonho mais complexo, em que intervém um sacerdote dos antigos templos de Nippur, dele recebeu a explicação de um enigma de difícil decifração. Foram reconhecidas como exactas todas as particularidades desse sonho. As indicações do sacerdote versavam sobre pontos de Arqueologia completamente desconhecidos dos seres que vivem na Terra. 

Convém notar que em todos estes factos o corpo do percipiente está em repouso e os seus órgãos físicos estão adormecidos; mas, nele o ser psíquico continua em vigília, em actividade; vê, ouve e comunica, sem o auxílio da palavra, com outros seres semelhantes, isto é, com outras almas. 

Este fenómeno tem carácter geral e dá-se com cada um de nós. Na transição da vigília para o sono, exactamente no momento em que os nossos meios ordinários de comunicação com o mundo exterior estão suspensos, se abrem em nós novas saídas para a Natureza e por elas se escapa uma irradiação mais intensa da nossa visão. Já nisso vemos revelar-se uma nova forma de vida, a vida psíquica, que vai amplificar-se nos outros fenómenos dos quais nos vamos ocupar, provando que existem para o ser humano modos de percepção e de manifestação muito diferentes dos de sentidos materiais. 

Depois dos fenómenos de visão no sono natural, vamos apresentar um caso de clarividência no sono provocado. 

O Dr. Maxwell (i), advogado geral no Supremo Tribunal de Bordéus, provoca na Sra. Agullana, sujet muito sensível, o sono magnético. Ela desprende-se, exterioriza-se, afasta-se em espírito da sua morada. O Dr. Maxwell manda-lhe observar, a certa distância, o que está a fazer um seu amigo M. B... Eram 10:20 da noite. Damos a palavra ao experimentador: (xiv) 

“A médium, com grande surpresa nossa, nos disse que estava vendo M. B..., meio despido, a passear descalço sobre a pedra. Pareceu-me que isso não tinha sentido algum. No dia seguinte ofereceu-se-me o ensejo de ver o meu amigo. Mostrou-se muito admirado com o que lhe contei e disse-me textualmente: “Ontem, à noite, não me senti bem. Um amigo meu, M. S..., que mora comigo, aconselhou-me que experimentasse o sistema Kneip e instou tanto que, para satisfazê-lo, fiz pela primeira vez, ontem, à noite, a experiência de passear descalço na pedra fria. Estava efectivamente meio despido quando a fiz. Eram 10 horas e 20 minutos e passeei durante algum tempo nos degraus da escada, que é de pedra.” 

Os casos de clarividência no estado de sonambulismo são numerosos. Vêm relatados em todas as obras e revistas que se ocupam especialmente desses assuntos. 

Médecine Française, de 16 de abril de 1906, refere um facto de clarividência relativo às minas de Courrières. A Sra. Berthe, a vidente consultada, descreveu com exactidão um desabamento na mina e as torturas impostas aos sobreviventes, cuja morte ou libertação ela anunciou. 

Acrescentemos dois exemplos recentes: 

“O Sr. Louis Cadiou, director da Usina de la Grand-Palud, perto de Landerneau (Finistère), tendo desaparecido nos fins de dezembro de 1913, não se lhe viam sinais, apesar das buscas minuciosas. Das sondagens efectuadas na ribeira do rio Elorn nenhum resultado adveio. Uma vidente, moradora em Nancy, a Sra. Camille Hoffmann, tendo sido consultada, disse, em estado de sono magnético, que o cadáver seria encontrado na orla de um bosque vizinho à usina, oculto sob ligeira camada de terra. 

Por essas indicações, o irmão da vítima descobriu, depois, o corpo numa situação idêntica à que a vidente tinha descrito. 

Todos os jornais, entre outros o Le Matin, de 5 de fevereiro de 1914, relatam pormenorizadamente o caso Cadiou, que toda a França acompanhou com apaixonado interesse. 

Alguns dias depois, produziu-se um fenómeno análogo. Havendo-se afogado no Saóne, perto de Màcon, um jovem chamado Charles Chapeland, um seu irmão recorreu à Sra. Camille Hoffmann para encontrar o cadáver. Ela assegurou que ele seria levado pelas águas, 60 dias depois do acidente, para perto do dique de Cormoranche, o que se realizou exactamente.” (xv) 

/… 
(ii) A visão ocular não é mais do que a manifestação externa da faculdade visual, que tem a sua expressão mais ampla na visão interna. A visão interior exterioriza-se e traduz-se pela acção dos sentidos, tanto na vida física como na vida psíquica. No primeiro caso, o órgão terminal pertence ao corpo material; no segundo caso aos órgãos do corpo fluídico. 
A visão no sonho é acompanhada de uma luz especial, constante, diferente da luz do dia. 
(iii) O espírito exteriorizado pode tirar do organismo mais força vital do que o homem normal ou encarnado pode obter. Experiências demonstraram que o espírito assim desprendido, pode, através do organismo, exercer maior pressão num dinamómetro do que o espírito encarnado. 
(iv) F. Myers (i) - La Personnalité Humaine, pág. 204. 
(v) Idem, pág. 187. 
(vi) Em resumo, os frutos que a sugestão hipnótica pode e deve proporcionar e em vista dos quais se deve aplicar, são estes: concentração do pensamento e da vontade; aumento de energia e vitalidade; atenção fixa em coisas essencialmente úteis; alargamento do campo da memória; manifestação de novos sentidos por meio de impulsões internas ou externas. 
(vii) Segundo os antigos, existem duas espécies de sonhos: o sonho propriamente dito, em grego, “onar”, é de origem física, e o sonho “repar”, de origem psíquica. Encontra-se esta distinção em Homero (i), que representa a tradição popular, assim como em Hipócrates (i), que é representante da tradição científica. Muitos ocultistas modernos adoptaram definições análogas. Em tese geral, segundo eles dizem, o sonho propriamente dito seria um sonho produzido mecanicamente pelo organismo e, o sonho psíquico um produto da clarividência adivinhadora; ilusório um, verídico o outro. Porém, às vezes, é muito difícil estabelecer uma limitação nítida e distinta entre estas duas classes de fenómenos. 
O sonho vulgar parece devido à vibração cerebral automática, que continua a produzir-se no sono, quando a alma está ausente. Esses sonhos são muitas vezes absurdos; mas este mesmo absurdo é uma prova de que a alma está fora do corpo físico e deixou de lhe regular as funções. Com menos facilidade nos lembramos do sonho psíquico, porque não impressiona o cérebro físico, mas somente o corpo psíquico, veículo da alma, que está exteriorizada no sono. 
“Os sentidos, diz o Dr. Pascal (Mémoire présenté au Congrès de Psychologie de Paris, em 1900), depois da actividade do dia, já não produzem sensações tão vivas e, como é a energia dessas sensações que tem a consciência “concentrada” no cérebro, esta consciência, quando os sentidos adormecem, escapa-se para fora do corpo físico e fixa-se no corpo psíquico.” 
O sonho lúcido representa o conjunto das impressões recolhidas pela alma no estado de liberdade e transmitidas ao cérebro, quer no decurso das suas migrações, quer no momento do despertar. Poder-se-ia distingui-lo do sonho vulgar ou automático pelo facto de não causar nenhuma fadiga, contrariamente ao que sucede com a actividade cerebral da vigília. 
(viii) F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 117. 
(ix) F. Myers - La Personnalité Humaine, págs. 121 e 122. 
(x) F. Myers - La Personnalité Humaine, págs. 123 e 124. 
(xi) Ver No Invisível, cap. XII. 
(xii) Proceedings, S.P.R., XI, pág. 505. 
(xiii) Ver Proceedings da Sociedade de Pesquisas Psíquicas de Londres. 
(xiv) J. Maxwell (i) - Les Phénomènes Psychiques, pág. 173, F. Alcan, Paris, 1903. 
(xv) Ver Le Matin, de 23 de fevereiro de 1914. 


Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor, Primeira Parte O Problema do Ser, V – A alma e os diferentes estados do sono, 6º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Sin título (detalhe), de uma pintura atribuída a Josefina Robirosa)