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sexta-feira, 30 de setembro de 2016

agonia das religiões ~


Religião | como facto social

O homem contemporâneo, vivendo numa fase de crise universal, determinada por mudanças rápidas em todos os campos de sua actividade, defronta-se com um grave problema subjectivo: ser ou não ser religioso. Os estudos sobre a origem e o desenvolvimento da Religião, a sua natureza, a sua significação para o comportamento humano, os seus efeitos na dinâmica social e nos processos de renovação das estruturas económicas e administrativas da sociedade, bem como no desenvolvimento cultural e mais especificamente das pesquisas científicas, oferecem-lhe opções contraditórias que não levam a nenhuma solução, agravando a crise com o levantamento de novos conflitos aparentemente insanáveis.

Culturalmente marginalizada, a partir do Renascimento, a Religião se transformou numa questão opinativa. Para os materialistas e ateus é apenas um resíduo do passado supersticioso; para os pragmáticos, uma questão de conveniência; para os espiritualistas, um problema vital, do qual depende a própria sobrevivência da Humanidade. As posições opiniáticas, em todas essas áreas, geram a desconfiança e a indiferença no seio das massas populares, desprovidas de elementos para uma avaliação do problema e muito menos para a sua equação.

O que hoje se convencionou chamar de Ciência da Religião, abrangendo vários aspectos da questão religiosa em diversas perspectivas científicas, fora do campo religioso, se apresenta como análise fria do processo religioso, com base nos dados objectivos da História. Mesmo a Psicologia das Religiões se vê obrigada a pairar no plano das estruturas das escolas psicológicas, sem mergulhar na essência do fenómeno religioso, sob pena de perder a sua qualificação científica.

Acontece com a Religião o mesmo que verificamos no tocante ao problema da vida, cuja solução se busca no pressuposto de que o impulso vital se origina no campo dos aminoácidos. A matéria, considerada como a fonte de toda a energia – apesar da comprovação cientifica actual de que é o produto da acumulação energética – mantém-se na posição de geradora da vida. Assim também se busca o segredo da Religião nas suas formas de manifestação, na sua estrutura e no seu funcionamento, como se ela se originasse das entranhas do homem e não das profundezas do seu psiquismo. A vida, a alma, o sentimento e o pensamento não seriam mais do que epifenómenos, eclosões efémeras do fenómeno orgânico, destinadas a desaparecer com este.

Não pretendo promover uma revolução copérnica no assunto, mas apenas mostrar, se possível, a conveniência de uma mudança de posição. Basta encararmos a Religião como um facto social, segundo a tese de Durkheim, sem nos limitarmos aos aspectos puramente estruturais e funcionais do facto em si, para que as perspectivas da análise se tornem mais amplas e flexíveis. Religião e Sociedade se mostram conjugadas indissoluvelmente no plano histórico. Se tomarmos como exemplo o clã judaico de Abraão, do grupo étnico dos Habiru, na Caldéia, veremos que ali se formava ao mesmo tempo uma nova sociedade e uma nova religião que iriam exercer papel fundamental no desenvolvimento da civilização. Ambas, sociedade e religião, nasciam no seio de outra sociedade e outra religião, organizadas, tradicionais, e delas se distinguiam pelas características étnicas e pela destinação histórica tipicamente carismática, determinada pela tendência monoteísta do clã, sob o impulso de crenças que se corporificavam nas manifestações de entidades mitológicas. Abraão, Isaac e Jacob assumiram a direcção do clã e o levariam, através do Egipto, às terras de Canaã, na Palestina, na sangrenta epopeia dos relatos bíblicos.

Temos de distinguir no caso dois elementos conjugados que provocam o nascimento da nova religião: primeiro, o elemento étnico, determinante do agrupamento social; segundo, o elemento mítico, determinante da nova orientação religiosa. Este último não se mostra como subjectivo, mas caracteriza-se pela sua objectividade. É a intervenção activa de influências exógenas na vida do clã, provenientes de manifestações concretas de entidades espirituais. Por mais que isso possa repugnar aos adeptos da interpretação psicológica dos factos, que só aceitam as manifestações espirituais como de ordem subjectiva, os resultados das pesquisas modernas e contemporâneas no campo das Ciências Psíquicas, actualmente confirmadas pelas pesquisas parapsicológicas, com a anterior comprovação das pesquisas metapsíquicasmostram que a intervenção espiritual poderia ter sido objectiva, segundo a descrição dos relatos bíblicos.

Admitindo-se a realidade dessa manifestação concreta, que corresponde a milhares de outras verificadas em todas as latitudes do planeta, podemos chegar à conclusão de que as religiões se originam de uma conjugação de factores humanos e espirituais, nenhum deles podendo ser excluído da análise honesta do facto social, sem que se pratique uma violência contra a realidade mundialmente comprovada. Os fenómenos paranormais aparecem então como o elemento básico do facto social a que chamamos religião. E não é possível, nas condições actuais do desenvolvimento das Ciências, mesmo no plano da Física, opor a essa realidade o simples desmentido dos argumentos, sem provas científicas evidentes da sua impossibilidade.

Assim, a colocação do problema religioso de maneira opiniática, em termos materialistas, pragmáticos ou espiritualistas, nesta altura de nossa evolução cultural, corresponderia a uma verdadeira heresia científica. Não obstante, o desenvolvimento das religiões e a sua institucionalização, em todo o mundo, oferecem motivos de suspeita aos espíritos objectivos, que pretendem analisá-las no seu estado actual. Nesse processo histórico inserem-se naturalmente os elementos do psiquismo comum, nas suas manifestações puramente subjectivas e não raro de ordem patológica. Inserem-se também os elementos psicológicos, hoje bem conhecidos, que determinam a criação do sectarismo religioso e das ordenações institucionais, cujos objectivos são característicos dos interesses sociais. Posições psicológicas individuais ou de grupos, tradições, interesses políticos, preconceitos, superstições, interesses imediatistas, às vezes até mesmo pessoais e outros são elementos que se mesclam no processo de institucionalização das religiões, não raro a partir do próprio momento e da própria fonte em que elas nascem. Mais do que difícil, é quase impossível distingui-los e precisar a importância que tiveram no processo histórico.

As religiões dividem-se em duas categorias fundamentais: as reveladas ou naturais e as inventadas ou artificiais. Independentemente das classificações existentes, podemos dispô-las nessas duas linhas de análise. A religião natural, neste caso, é a que surge espontaneamente, entre os povos primitivos ou civilizados, a partir do ensino de um mestre. As artificiais são criadas no meio civilizado, em momentos de crise religiosa, como no caso do Culto da Razão, de Chaumette, ou da Religião da Humanidade, de Auguste Comte. As reformas religiosas não criam tipos novos, apenas modificam os já existentes em virtude de divergências ou da verificação de distorções havidas no processo de institucionalização. A religião individual, da tese de Bergson, que corresponde à Moralidade da tese anterior de Pestalozzi, não se enquadra nesse panorama por constituir uma superação do plano social e uma libertação total de todo o condicionamento institucional. Não obstante, pela sua conotação inevitável com a realidade social em que se insere, embora individualmente, não escapa à classificação geral de facto social.

Temos assim uma possibilidade maior de esclarecer o que se pode entender por religião como facto social. Não é apenas um facto isolado que ocorre na dinâmica de uma sociedade, mas um facto que brota da realidade social como expressão de sua própria alma, de suas tendências e de suas aspirações, na forma de uma síntese conceptual que engloba, nas suas representações simbólicas e na sua estrutura racional, os elementos básicos do todo social concreto e os vectores ou direcções do psiquismo colectivo. Sem essa compreensão intuitiva, e portanto global, do facto social da religião, todas as formas de encarar e interpretar o fenómeno religioso nos levarão fatalmente a condicionamentos restritivos e esquemáticos, que só poderão aumentar a confusão e agravar as erros cometidos na colocação do problema.

Essa complexidade do fenómeno religioso parece ,explicar de maneira mais profunda a marginalização cultural a que a Religião foi relegada a partir do início do mundo moderno. Confinada nas instituições igrejeiras, abastardada pelo profissionalismo clerical, transformada em ópio do povo e sustentáculo de situações sociais profundamente injustas, catalogada entre os produtos espúrios das fases de ignorância supersticiosa, revertida à condição de promotora de guerras, massacres e asfixia das liberdades humanas, utilizada como arma poderosa nas mais desumanas guerras ideológicas, responsabilizada pelas mais cruéis deformações da criatura humana, a Religião se constituiu em barreira de todo o progresso cultural e foi excluída do mundo da Cultura como indesejável.

Não obstante, graças ao poder subjacente nas estruturas formais das religiões e à conotação vital dos seus princípios com as exigências naturais da consciência humana, a sua posição no processo cultural moderno e contemporâneo caracterizou-se pela ambivalência. A sua exclusão não pode ser total, nem mesmo nas áreas políticas dominadas pelo materialismo ideológico. Encarada ao mesmo tempo com ódio e respeito, numa estranha mistura de desconfiança e temor, encontrou na interpretação pragmática, utilitária, de mal necessário, o salvo-conduto que lhe permite a circulação tolerada nos meios culturais da actualidade.

Por outro lado, a sua presença nos meios culturais é sempre conflitiva. Não há possibilidade de harmonização perfeita entre cultura religiosa e cultura secular, a não ser no plano da religião individual, que rompe o envoltório formal das religiões sociais e é encarada por estas como uma aberração. O resultado mais negativo dessa situação conflitiva foi o aparecimento de outro mal necessário, a implantação mundial da Educação Leiga, que frustrou as possibilidades de reelaboração da experiência religiosa pelas novas gerações e determinou a sedimentação interesseira da sua posição de ambivalência no mundo contemporâneo. Como não podia deixar de acontecer, essa posição ambígua, indefinida e contraditória em si mesma, levou a proporções catastróficas a crise das religiões nos nossos dias.

Felizmente a natureza vital da Religião, as suas profundas raízes ônticas (e não apenas ontológicase a sua inelutável condição de síntese de toda a realidade social, determinaram o aparecimento de uma síntese cultural em que a Religião, reunificada à revelia da fragmentação institucional das religiões, ressurge entranhada na substância do progresso cultural. Não podemos tratar da crise das religiões no nosso tempo sem enquadrá-la nas dimensões desse facto cultural, onde todos os seus problemas se esclarecem de maneira coerente e profunda. As pessoas integradas no formalismo cultural do século, apegadas a princípios exclusivistas e alheias à recomendação cartesiana contra o preconceito e a precipitação, certamente rejeitarão como negativa e parcial a posição que assumo. Mas a coincidência com a verdade histórica (simplesmente incontestável) com a conflitiva realidade cultural dos nossos dias com as perspectivas científicas abertas por essa síntese cultural e já em parte realizadas, asseguram a validade desta interpretação, acima de qualquer facciosismo. Não seria possível desprezar a evidência dos factos e das conotações de princípios filosóficos e científicos com o panorama real, objectivo, das mudanças que se verificam dia-a-dia aos nossos olhos, apenas para satisfazer a determinadas normas convencionais. Acima das convenções transitórias e das conveniências de acomodação ao impreciso espírito da época, deve prevalecer o amor à verdade.

Acelera-se o processo das mudanças. Ampliam-se os conflitos entre o velho e o novo em todas as áreas das actividades humanas. Descontrolam-se os sistemas de segurança em todas as instituições. As religiões até ontem mais sólidas e poderosas agonizam nos seus leitos de riquezas milenarmente acumuladas. As teologias até ontem inabaláveis, como estrelas fixas do pensamento religioso, estremecem como a unidade pitagórica para desencadear a década de novos universos. Rasgam-se as fronteiras do tempo e do espaço. O homem se equilibra, nervoso e inquieto, na fímbria tenuíssima da crosta planetária, entre dois infinitos que se escancaram nos abismos do microcosmo e do macrocosmo.

Não é esta a hora de concessões à ignorância (ilustrada ou não) nem o momento de cachimbadas líricas ao cair do crepúsculo. Estamos na hora da verdade, das proposições claras e precisas, da posição destemida de alerta e vigilância. Precisamos ver, sentir, perceber por todos os nossos sentidos e além dos sentidos, através da intuição e da percepção extra-sensorial, que as peças envelhecidas do xadrez cultural estão sendo mudadas no tabuleiro do mundo. Não há mais lugar para as contemporizações tranquilas do passado, que acobertavam piedosamente os germes dos conflitos actuais. Agora os conflitos explodem e temos de enfrentá-los face a face.

Encarando a crise das religiões como um processo sócio-cultural integrado na realidade imediata, não podemos escamotear a verdade das soluções que já foram propostas para ela com grande antecedência histórica. Trata-se, por sinal, de um processo cíclico bastante conhecido dos estudiosos da História. Só há uma novidade na crise actual: a violenta ampliação das dimensões da crise, que se abre para visões dantescas do passado e do futuro. No passado, deparamos de novo com as regiões infernais percorridas pelo génio de Dante; no futuro, com as revoadas angélicas da criação artística de Gustave DoréNão há o que temer. O passado agoniza e o futuro nos arrebata, pelas mãos de Beatriz, às regiões celestiais. Estamos pisando no limiar da Era Cósmica e as constelações já brilham aos nossos olhos.

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 2 – Religião como Facto Social, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

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