Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

o sentido da vida ~


Conclusões Práticas

Chegados a este ponto, estamos aptos a compreender que, de facto, o Espiritismo nos oferece uma nova concepção da vida e do mundo, capaz de transformar a Terra. Quando os preconceitos do chamado materialismo científico do nosso tempo forem definitivamente postos em causa, pela crescente e irresistível avalanche dos factos, quando as religiões compreenderem, como acaba de compreender a Igreja Anglicana, a inutilidade das suas acusações de satanismo contra a nossa doutrina; quando a filosofia perceber que o chão lhe falta debaixo dos pés, no mundo de formulações abstractas e de intelectualismo pedante em que se tem perdido; quando a política deixar de ser o jogo de interesses imediatos como tem sido até hoje, para se converter no trabalho consciente a favor da solução dos problemas sociais, à luz dos princípios da imortalidade e da reencarnação, o Espiritismo terá cumprido a sua tarefa primeira. Então, como diz Allan Kardec, a Terra deixará de ser um mundo de expiação e passará à categoria mais elevada de mundo em regeneração. Os homens não serão tão maus como o são hoje, isto é, terão superado o estado de ignorância espiritual que hoje os caracteriza. Os espíritos encarnados no planeta terão construído, através das lutas civilizadoras e espiritualizantes, um habitat diferente para a humanidade terrena.

Todavia, somente chegaremos a esse mundo ideal, que não é utópico, pois as linhas gerais da evolução aí estão para nos demonstrar a possibilidade de alcançá-lo, se empregarmos na sua conquista o nosso melhor esforço. É preciso trabalho, trabalho e muito trabalho, da parte de todos os que já foram capazes de compreender a verdade do Espiritismo, de todos os que já amadureceram suficientemente para uma percepção mais espiritual da vida. Ninguém, que tenha conhecimento das verdades proclamadas pelo Espiritismo, que tenha sido beneficiado pelos esclarecimentos doutrinários, que tenha sentido na sua própria vida e na dos seus entes mais queridos os efeitos poderosamente salutares dessa nova concepção do mundo, tem o direito de cruzar os braços, de permanecer indiferente, diante da imensa tarefa que cabe ao Espírito de Verdade realizar entre os homens, com o concurso destes.

No seu livro Por que creio na imortalidade individual, já citado nestas páginas, vimos que um homem de ciência e estatura mental qual sir Oliver Lodge considera o Espiritismo como uma nova revolução copérnica. E estudando os diversos aspectos da doutrina, chegamos à conclusão de que essa afirmativa do grande físico deve despertar-nos para um conhecimento melhor desse poderoso corpo de princípios que os espíritos nos legaram, através do trabalho persistente e corajoso de Kardec. Temos de abrir os olhos; de ver, com os olhos bem abertos, que o Espiritismo não é apenas uma palavra de consolo que nos caiu no coração no meio do nosso desespero; não é somente uma vaga suposição de como se processam a morte e a vida, no ciclo incessante das suas manifestações; não unicamente um pretexto para o desenvolvimento da nossa curiosidade no trato dos fenómenos mediúnicos. Muito mais do que isso, o Espiritismo é o fermento da parábola evangélica, destinado a levedar toda a massa dos conhecimentos e das experiências do homem na Terra, para o estabelecimento do Reino de Deus entre todos os povos. É a poderosa alavanca que terá de arrancar o homem do lodo terreno para elevá-lo às estrelas, como diria Bradley. E essa alavanca, está nas nossas mãos, é nosso dever manobrá-la com a maior rapidez e decisão.

Antes de tudo, portanto, devemos colocar-nos na posição de quem não se contenta com o simples conhecimento intelectual dos princípios espíritas. Aceitar a doutrina, tão somente nas linhas da sua estrutura filosófica, não basta para solucionar senão o problema da nossa vaidade pessoal, da nossa vontade individual de conhecer verdades que outros desconhecem. Precisamos compreender que o Espiritismo não é produto do intelecto ou da imaginação, mas uma doutrina de vida, que nasceu da dor e do sofrimento dos homens, da sua angústia em face das experiências penosas da Terra, do seu próprio amadurecimento, ao sol do trabalho rude e milenar, no seio do imenso processo de elaboração biológica do planeta. Precisamos, ao mesmo tempo, compreender, sentir e viver o Espiritismo. O conceito de Espiritismo prático, hoje tão difundido como simples sistema de realização de sessões, deve converter-se em sistema de vida espírita, de norma de pensamento e acção, de conduta, para todos nós.

Uma vez que o Espiritismo nos mostra um objectivo para a existência do homem na Terra e, que compreendemos esse objectivo, não se poderia aceitar que continuássemos de braços cruzados, esperando que as forças da vida nos impulsionassem, sem nada fazermos de nós mesmos, em favor do nosso avanço naquele sentido entrevisto. O homem vive para quê? Para melhorar a si mesmo e melhorar aos demais, para evoluir de animal a espiritual, para transformar os seus instintos em intuições, para alcançar sempre e sempre planos mais elevados para os seus sentimentos e para a sua capacidade espiritual de percepção do Universo. Se assim é, porque motivo havemos de continuar fechados no pequenino mundo das nossas aflições quotidianas, atormentados por mil problemas passageiros, que nada significam para a nossa vida infinita? Só seremos coerentes com os novos conhecimentos adquiridos quando nos dispusermos a modificar a nossa própria vida, encarando-a como um processo contínuo, de expansão e de libertação da nossa personalidade, de realização de nós mesmos em face da realização universal. Já não nos prenderemos às preocupações de rotina, chorando e sofrendo pelos pequenos percalços da existência. Entendendo que a vida é um processo de evolução e que todos os seus acontecimentos nada mais são do que vagas impetuosas do imenso oceano da evolução universal, a nos impelir para a frente, aprenderemos a acompanhar esse impulso, caminhando com a vida.

Há uma velha imagem da vida, que muito nos ajudará a compreender a atitude que devemos assumir. Diremos que a vida é um rio, um imenso rio, cujas nascentes se perdem no desconhecido do tempo e do espaço, cujas águas rolam através do infinito, passando por miríades de formas, por milhões de paisagens, para desembocar, afinal, no oceano longínquo da perfeição. Nós, os homens, nada mais somos do que habitantes das águas da vida. Estamos no meio do rio e as águas correntes passam por nós com incrível rapidez, sem parar, avançando sempre para o seu objectivo. Se olharmos à nossa volta, sentiremos a vertigem das águas. Tudo flui, tudo passa, tudo se esvai em torno de nós. Aquilo que ontem existia, hoje já não existe. O que ainda há pouco era, já agora não é. Paisagens, flores, animais, a própria sociedade humana, tudo se transforma incessantemente. Os nossos amigos e nossos entes mais queridos não permanecem eternamente connosco. Pelo contrário, como que levados de roldão nas águas da vida, que outros diriam da morte, se perdem, uns após os outros, no fluir contínuo do tempo. Nós mesmos envelhecemos. Sentimos que dia a dia nos aproximamos do fim. E por mais que lutássemos em sentido contrário, nada poderíamos fazer. É que as águas do rio não param de correr e não poderíamos fazê-las parar. Elas passam por nós com velocidade vertiginosa. Empurram-nos, arrastam-nos, e quanto mais teimamos em ficar onde estamos, em não caminhar com elas, mais o seu atrito nos desgasta, arrancando-nos a própria roupa, despindo-nos e, por fim sangrando-nos a própria pele.

A única atitude sensata que poderíamos assumir, dentro do rio, seria a de nos deixarmos levar pelas águas. Mas estamos demasiado conscientes da nossa personalidade, demasiado convencidos da nossa individualidade, do nosso eu e, temos medo de nos dissolvermos nas águas, de deixarmos de ser nós mesmos. Então, cheios de angústia, nos agarramos às raízes do barranco, nos penduramos aos ramos que se debruçam sobre o rio, nos abraçamos uns aos outros ou nos troncos que rolam ao sabor das águas, ou ainda, mais desesperados, nos apegamos às pedras que repontam, agudas e ásperas, do leito lodoso. E assim nos defendemos. Mas é uma defesa desesperada, pois as águas são mais fortes do que nós e não cessam de correr. Sofremos e nos angustiamos. Entretanto, se compreendêssemos que as águas não são inimigas, que são, pelo contrário, o elemento em que vivemos e que o seu impulso é benéfico, tudo se resolveria facilmente. Sem relutância, nos entregaríamos à corrente. E ela, suave e leve como um canal a levar uma flor, nos conduziria através das paisagens conhecidas e desconhecidas, rumo ao nosso verdadeiro destino.

Esta imagem nos lembra aquela passagem evangélica, tão obscura para os que não compreendem o sentido da vida: “aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas aquele que a perder por amor de mim, salvá-la-á”.

Disse o Padre Alta, no seu admirável livro O Cristianismo do Cristo e o dos seus vigários, que Jesus está para nós na posição de um grande nadador, ensinando-nos a nadar. A imagem condiz com a que expusemos acima. E é por isso que ele nos ensinava a nos entregarmos às águas, sem medo de perder, com isso, a nossa vida.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida / Conclusões Práticas (1 de 3), 14º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)